V.18, nº 35 - 2020 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i35.40514
ENTREVISTA DE JOSÉ LUIZ DEL ROIO - GUARDIÃO DA MEMÓRIA OPERÁRIA NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR (1964-1985)1
Elina Pessanha2 A entrevista que se segue registra uma das mais importantes iniciativas
para a preservação da memória dos trabalhadores brasileiros. Ao abrigar, no período pós-1964, um rico acervo contendo material de trabalhadores e sobre trabalhadores, salvando-o da destruição e coordenando sua atribulada transferência para a Itália, onde foi acolhido pela Fundação Feltrinelli, de Milão, o historiador José Luiz del Roio deu uma contribuição inestimável à história de nossa classe trabalhadora e de suas iniciativas de organização e resistência desde o início do século XX.
Hoje, quando essa documentação original já se encontra no Brasil, vale recordar o longo trajeto que cumpriu. E também reafirmar o valor fundamental desse conjunto de fontes, para a recuperação e compreensão mais fina do duro caminho trilhado, pelos trabalhadores, na tentativa de construir uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.
Como estudiosa das relações de trabalho, da resistência dos trabalhadores e de suas lutas por direitos, e também como coordenadora do Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro, da UFRJ - depositário há décadas de cerca de 100 mil fotogramas em microfilmes gerados por del Royo e adquiridos pela universidade - só posso parabenizar esta revista pela recuperação da trajetória do relevante acervo e pela justa homenagem que se presta ao seu principal protetor e gestor.
1 Recebido em 20/11/2019. Aprovado pelos editores em 27/12/2019. Publicado em 23/01/2020. 2 Doutora em Ciências Sociais (USP), professora do IFCS/UFRJ, no Rio de Janeiro/RJ, Brasil. É pesquisadora do CNPq e coordenadora do AMORJ. E-mail: elina.pessanha@terra.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8443-1534.
Del Roio esteve no Brasil no final de 1991 e visitou o Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo, no andar rés-do-chão do prédio Alexandre Mackenzie, onde conversou com José Antonio Segatto, Ricardo Maranhão e eu. Dias antes do Natal, em meio ao barulho de trânsito e corre- corre dos festejos natalinos vindos da Xavier de Toledo, centro paulistano (“parece Milão”), o autor de Enrico Berlinguer e a evolução do PCI e 1º de maio: cem anos de luta (1886-1986) falou à Memória sobre seu trabalho no maior e mais importante acervo do movimento operário e socialista fora do Brasil. Foi ali, por exemplo, que o escritor Fernando Morais conseguiu preciosas informações para compor o livro Olga, além de ter sido local de peregrinação para a pesquisa de inúmero historiadores e cientistas sociais brasileiros e estrangeiros. (Roniwalter Jatobá)
3Transcrição da entrevista publicada por Memória. Departamento Patrimônio Histórico da ELETROPAULO, São Paulo, p. 2-6, julho / set. 1992.
exilados. Milão mesmo era uma cidade praticamente deserta de brasileiros naquele período, pelo menos de brasileiros da área política. O que aconteceu é muito simples: eu era muito amigo do líder operário Roberto Morena, que morava em Praga, e sempre que podia ele vinha a Milão. Roberto Morena foi um líder operário estranhíssimo. Por exemplo, adorava ópera. Então quando podia pegava o trem e vinha ver algum espetáculo em Milão. Conheci o Morena ali. Personagem deliciosa, maravilhosa, ele me disse que tinha muito material, parte estava no Brasil e parte estava em Praga. E ele gostaria que esse material ficasse junto, com a possibilidade de ser consultado. Bem, a situação política dele em Praga não era boa, ele tinha apoiado a Primavera de Praga em 1968. Aí, ele propôs que eu arrumasse um lugar para trazer seu material. Em 1977, Morena morre em Praga, e aí nós ficamos com medo de perder seus arquivos. Até dona Eugênia, mulher de Morena, insistiu muito que ele teria dito que o material deveria ser passado ao Maurício Martins de Melo e a mim. Então tivemos que achar um local para colocar esse arquivo. Na época, o Maurício trabalhava na Feltrinelli como arquivista e, assim, resolvemos discutir a questão com a sua direção, que topou na hora colaborar e ajudar na estruturação.
sempre aos pedacinhos, coisas às vezes que as pessoas guardavam com carinho. Vamos pensar: Paulo Cavalcanti, quando ele achava que tinha alguma coisa muito interessante sobre o PCB em Pernambuco; Jorge Amado, de vez em quando. O próprio Jorge mandou um material sobre José Medina, que foi secretário do PCB em 1943. O Jorge mandou coisas dele também. Oscar Niemayer mandou alguma coisa. E depois sempre acontecia que alguém mandava, como um arquivista gaúcho chamado Marçal que tem um arquivo próprio sobre a história operária no Rio Grande do Sul.
Memória – Como foi a operação de transferência do arquivo do Astrojildo? José Luiz – O arquivo dele sofreu com a repressão e parte se perdeu. Quando o Astrojildo morre, em 1965, o arquivo ficou com o seu grande amigo historiador, general Nelson Werneck Sodré. Evidentemente, ele teve dificuldades depois com a repressão que foi apertando. Aí, o arquivo começa a ir para os porões das diversas casas de amigos, começa a viajar pelo interior. Além disso, o clima brasileiro é ruim para a guarda de coisas em porões: emboloram. Depois ele sofreu desmembramento. Em 1975, uma parte do arquivo estava dentro das gráficas da Voz Operária. Esta parte se perdeu; não voltou até hoje. Deve estar na polícia. Parte dos livros do Astrojildo foi deixada na Unicamp e nas portas de bibliotecas; esse material sumiu dentro das bibliotecas. Foi classificado sem se saber que a origem era do Astrojildo. Outra parte do material, por exemplo, foi simplesmente entregue para sebos; por sorte, uma parte disso foi recuperada pelo professor Edgard Carone e pelo empresário José Mindlin. Então é um arquivo que sofreu tudo que tinha direito. Aconteceu com ele o mesmo que com muitas pessoas nesse país durante a ditadura. As pessoas perdiam o emprego, ficavam clandestinas, de vez em quando iam para a cadeia, levavam um pau; com ele aconteceu a mesma coisa. Então, nesse momento, todo mundo falava nesse arquivo, todo mundo queria ver esse arquivo. Apesar da repressão tinha gente muito interessada em estudar o movimento operário, todo mundo falava deste misterioso e fundamental arquivo. Isso tudo passou por uma discussão e eu perguntei ao Luiz Carlos Prestes se ele sabia onde estava, como estava e se era possível retirá-lo do Brasil. Ele pessoalmente apoiou a ideia, e nos incentivou muito, nos deu muito apoio. E a partir disso nós conversamos com a direção do Partido Comunista Brasileiro que estava exilada. E através dela nos deram alguns contatos e particularmente foi uma companheira (não vou citar o nome pois não tenho autorização), passando pela figura de José Sales e Marli Viana, que nós tivemos o contato de onde estava e o que restava do arquivo; e esta companheira sozinha enfrentou o leão para tirar uma tonelada de documentos do PCB do país em 1977 e 1978. “Todo mundo que trabalha com a história social brasileira passou pelo Arquivo de Milão. Tínhamos séries de documentos que hoje é carne de vaca mas até aquele momento não era.”
José Luiz – Em 1978, o arquivo chegou aos pedaços. Foi muito difícil a catalogação. Muitos jornais estavam irrecuperáveis. O mofo tinha comido tudo, sobretudo cartas e a parte fotográfica. Foi feito um trabalho de recuperação de fotos. Foi um arquivo de difícil classificação, até porque Astrojildo guardava tudo. E era muito anárquico na sua organização. Por exemplo, todas as suas anotações políticas ou literárias ele adorava fazer em cédulas eleitorais da época. Então, você recebe um bolo de dez mil cédulas bagunçadas, como é que você põe em ordem aquelas malditas cédulas? Temos poucas cartas do Astrojildo. A correspondência é só a que ele recebe, não a que envia. Com o Morena é diferente: cada carta que envia ele toma nota, copia a sua carta e depois anexa a resposta. É uma maravilha. Um arquivista vê aquilo e chora de alegria. Mas Astrojildo não, é uma grande confusão. Assim, a partir de 1979 tivemos uma quantidade muito grande de pessoas que foram lá. Quase todo mundo que escreveu sobre a história operária do Brasil, todos necessariamente pesquisaram lá. Muitos norte- americanos. Vieram também franceses, soviéticos, alemães, ingleses. Todo mundo de um jeito ou de outro que trabalha com história social brasileira, e um pouco a latino-americana, foi lá, mesmo porque tínhamos a única coleção do mundo da Correspondência Sul-Americana, revista do Bureau Sul- Americano da Internacional Comunista. O Trabalhador Latino-Americano, que é a revista da Internacional Sindical Vermelha da América Latina, ou seja, tínhamos uma série de documentos que hoje é carne de vaca mas até aquele momento não era.
da Argentina de 1896. Temos alguma documentação de 1858, mas é pouca coisa.
é a relação das empresas privadas com a história da esquerda, na Itália? José Luiz – Na prática não existia. Na Itália depois da Segunda Guerra Mundial – depois de vinte e dois anos de fascismo e três de guerra no seu território – começa um movimento de esquerda muito forte, tanto sindical (CGL), como do Partido Socialista e Partido Comunista. São milhares de militantes que, por exemplo, não conheciam um senhor chamado Antonio Gramsci. E por que deviam conhecer? Ele tinha morrido há mais de 10 anos. Iniciou-se então um trabalho para recuperar a riquíssima história política do socialismo italiano, não só italiano, mas europeu. De um lado, o Instituto Gramsci, que foi criado pelo Partido Comunista, então financiado pelas suas estruturas; criaram-se diversos Centros do Partido Socialista, também financiados ou pela direção central ou em parte financiado também pelo Estado, mas pelo Estado através dos partidos fortes. Por outro lado, a
Fundação Feltrinelli, cujo fundador não era ligado diretamente ao partido, embora na prática fosse, Era Giangiacomo de Feltrinelli um dos homens mais ricos da Itália. Com longa tradição da família burguesa, riquíssima, ele foi assistente contra o fascismo. E assim foi feito. Ele agrupou o que tinha de melhor de historiadores da Itália, historiadores contemporâneos do fascismo, do socialismo, e mesmo da Europa. Feltrinelli virou a Europa e parte do mundo comprando tudo. Comprou até coisas absurdas, como a bandeira da Comuna de Paris.
golpeado muitíssimo a arquivística italiana. Nesse sentido, as fundações que tratam a história do movimento operário da Itália vivem um momento dramático. Quanto às empresas privadas, existem colaborações, mas as que eu conheço, no entanto, são diretamente do movimento operário. Além disso, a crise séria que golpeia a esquerda mundial, golpeia também os bolsos dos sindicatos na Itália. Então, neste momento, a situação dos estudos sociais, dos movimentos sociais, estudos operários na Itália, é dramática. O Instituto Gramsci, o movimento operário socialista e a Feltrinelli vivem uma situação parecida com muitas instituições brasileiras que eu conheço do mesmo ramo. O dinheiro não basta para pagar os seus funcionários, que já foram em quase todas as instituições reduzidos a 60%, 70%. E sem informatização, sem nada, a situação é muito difícil.
Paulista e depois retornou a São Paulo. Conte um pouco dessa trajetória. José Luiz – Ainda me recordo dos primeiros anos em São Paulo. Morava na rua Bela Cintra. Recordo de cabras que passavam pela Bela Cintra e um homem vendendo leite. Ele tirava o leite das cabras. Outra coisa que me marcou muito, tinha 12 anos, foi o famoso IV Centenário. Vim para São Paulo: 25 de janeiro de 1954. Marcou muito. São Paulo tinha chegado a 2 milhões de habitantes e aí a cidade não parou de crescer. Depois vim para São Paulo para tentar estudar e trabalhar. A São Paulo nos anos 60 era muito difícil. E também nesse momento eu já tinha me ligado à militância. Depois do golpe a vida política ficou difícil: o problema da repressão, o desespero que o golpe causava. A nossa impressão, pelo menos para nós militantes de esquerda, era que nosso futuro tinha acabado. Isso era um desespero, tanto espaço, tanta luta, e tanta ilusão. O que íamos fazer? A possibilidade que se abria era nada: estudar direitinho e ser empregado em algum lugar. Isso era insuportável. São Paulo passou a ser, como era para tantos milhões de jovens,
um terreno de batalha. Ocupado por tropas estranhas, alheias. Isso tudo acabou criando uma grande decepção. Da militância do PCB – eu era dirigente do PCB aqui no Estado -, eu me liguei muito a Carlos Marighela e a Câmara Ferreira. Evidentemente com tudo aquilo que comportava tal escolha política. Até que, em 1969, a organização, ALN, me mandou para o exterior para voltar logo, poucos meses depois, e esses meses se transformaram em infinitos anos.
Memória – E nisso não parece com São Paulo?
Memória – Hoje, no Brasil, se começa a ter uma preocupação com preservação da história, sobretudo em São Paulo e no interior. Na Itália as pessoas estão engajadas nessa questão?
Memória – No Brasil você tem placas de rua, mas não se sabe nem quem é. José Luiz – É que na maioria absoluta das vezes não merece saber quem é. Em Milão, há, portanto, esta preocupação, até física, com a história.
Memória – Fora do Brasil algum tempo, você teria alguma sugestão de forma que a população tivesse um maior contato não só com a história do país, mas também com sua história.
José Luiz – Na Itália houve um fenômeno atípico para as massas aprenderem noções de sua história. E o responsável foi o Partido Comunista Italiano, um partido de milhões de inscritos. Ele se organizou com escolas e várias casas do povo, por exemplo. À noite, você ia jogar bocha, dominó e beber vinho (ótimo, não é?) e tinha um curso. Quer dizer, ele fez um fabuloso ensino da história à massa.
Memória – Há, no Brasil, condições de fazer isso?
algum ministério, tem que ficar ali lutando pelo salário mínimo. Mas é uma obrigação daqueles que sabem se aproximar desses líderes sindicais e ajudá- los no que for. É que o Brasil é grande, a população brasileira é grande. O número de jovens é desesperador. Só no Estado de São Paulo temos mais de 6 milhões de alunos. De qualquer forma, dá para fazer através de sindicatos. Outro setor seria a sociedade amigos de bairros. Governos democráticos deveriam dar uma contribuição maior. Acho, porém, que o simples fato de existir o Centro de Memória Sindical, o Arquivo Leuenroth, que ajudam em muitas teses universitárias, melhorou muito. O movimento negro existe e começa a estudar sua história. Mesmo o índio diz: “Espera um pouco branco, a história não é bem assim. Eu tenho a minha história também”. Isto é maravilhoso, avançamos muito. O problema do Brasil está no seu imenso espaço e população de 150 milhões de habitantes. Mas são 70 milhões de jovens para você ensinar. Meu Deus do céu, eu fico pensando: é preciso fazer um método tipo chinês. Aí, você olha a sua força e vê que é muito pouca.