V.18, nº 36 - 2020 (maio-ago) ISSN: 1808-799 X
No pequeno planeta chamado Terra habitam 7,79 bilhões de pessoas. Ainda que estudos sobre questões socioambientais nos alertassem que a produção destrutiva do capital ameaça sobremaneira a flora, a fauna e o próprio planeta, o Covid 19 nos pegou desprevenidos, deixando-nos atônitos diante da ameaça de morte de uma grande parte da humanidade. Ou desaparecemos todos para renascer das cinzas? É com este sentimento que escrevemos o editorial da TN 36, cuja temática versa sobre “Lutas no campo e o ‘comum’ na América Latina”, organizado pela Profª Ana Maria Motta Ribeiro (Observatório Fundiário Fluminense – UFF) e pelo Prof. William Kennedy do Amaral Souza – TECA/IFRO (Trabalho-Educação, Economia e Cultura na Amazônia/IFRO).
Neste cenário em que o confinamento é um mal necessário, é impossível não nos indignar com o (des)governo que assola o país, desde o golpe de 2016 e, especialmente, com a eleição de Jair Bolsonaro. Como se não bastassem políticas neoliberais de devastação e degradação das forças da natureza, a retirada de direitos sociais têm repercutido na precarização do trabalho e da vida de milhares de brasileiros. De cor verde-oliva, e com o “mandato tampão” do General Pazuello, o Ministério da Saúde é o espelho embaçado do que nos espera nos próximos meses: a “morte anunciada” de homens e mulheres que retornaram às suas frentes de trabalho. Por temer o desemprego e a fome e/ou terem sido convencidos de que o coronavírus é apenas uma “gripezinha”, atendem ao covarde apelo dos bolsomínios sobre a necessidade de “salvar a economia”. Mesmo que não tenham lido O Capital, de Karl Marx (1980), os empresários e seus representantes no Planalto não têm
1 Editorial submetido em 18/05/2020. Aprovado em 20/05/2020. Publicado em 22/05/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i36.42755
dúvida alguma de que só existe capital se houver trabalho, ou seja, se os trabalhadores/as colocarem em ação sua força de trabalho!
Ao longo da história do capitalismo, para os “homens-de-negócio”, não apenas a mercadoria força de trabalho se tornou descartável, mas também a vida humana. Nessa perspectiva, “higienizar” a população brasileira pode contribuir para diminuição das obrigações do Estado quanto ao pagamento de aposentadorias, pensões e benefícios assistenciais.
Em pleno século XXI, a conjuntura-estrutura do sistema do capital nos remete à Teoria Populacional de Malthus, do Século XVIII: guerras e pandemias são consideradas necessárias para o controle positivo da população, corroborando para promover o equilíbrio da compra e venda da força de trabalho. Também nos remete às Teorias Eugenistas do final do século XIX, que sangrou no Século XX e persiste em nossos dias, anunciando a possibilidade de extermínio de idosos, favelados, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros grupos sociais. Sem falar das perdas no campo da cultura e dos próprios trabalhadores/as em saúde que, no trabalho de cuidado das pessoas, têm sucumbido com o Coronavírus. Sabemos que os considerados “grupos de risco” precisam ser relativizados, pois o vírus não atinge somente os idosos ou pessoas com morbidades específicas, mas uma grande parcela da população, independente das etapas de vida que experiencia.
Não menos importante é considerar que a emergência do trabalho remoto ou home office intensifica a exploração do trabalho, assegurado pela reforma trabalhista (Lei 13.467/2017). E como se não bastasse o negacionismo e ataque as ciências (cortes de diferentes ordens), o necessário confinamento dentro de casa traz à baila a defesa insistente de Educação a Distância (EaD) como elemento de precarização da formação humana.
Com o tema “Lutas no campo e o ‘comum’ na América Latina”, a TN 36 contribui para que possamos refletir sobre outras formas de produzir a vida. De acordo com o materialismo histórico, que orienta a linha editorial da Revista Trabalho Necessário, o trabalho é condição básica e fundamental da vida humana. Ao transformar a natureza, homens e mulheres modificam sua própria natureza; produzem cultura, criam formas de estar, sentir e fazer o mundo. No entanto, é preciso considerar em que relações sociais de produção se circunscreve a atividade do trabalho. Dependendo das condições históricas - objetivas/subjetivas, materiais e simbólicas - em que homens e
mulheres produzem sua existência, o trabalho pode se constituir tanto como fonte de vida ou como fonte de sua destruição.
Em 2019, a Amazônia ardeu em chamas e mais de duzentas pessoas morreram soterradas com o rompimento da barragem de Brumadinho. O relatório da CPT (2019) contabilizou em 2019, 32 mortes e 1254 por conflitos pela terra, conflitos pela água e conflitos trabalhistas. Se, como assegurava Marx (1980, p.50) “o trabalho é o pai, mas a mãe é a terra”, o Covid 19 convida-nos a refletir sobre as relações que, mediados pelo trabalho, estabelecemos com a Mãe-Natureza (carinhosamente chamada pelos povos latino-americanos de Pachamama).
Em O papel do trabalho na transformação do macaco em homem, Friedrich Engels alertava que não deveríamos nos entusiasmar demais com a nossa vitória na luta pelo domínio da natureza. Entendendo ser a relação ser humano/natureza uma relação dialética e, portanto, uma via de mão dupla, lembra que, no Século XVIII, por exemplo, “os que difundiram o cultivo da batata na Europa não sabiam que com este tubérculo farináceo difundiriam ao mesmo tempo a escrofulose”2. Afirma que, na criação da máquina a vapor, homens e mulheres também não suspeitavam que estivessem criando poderosos instrumentos para colocar a concentração da riqueza nas mãos de poucos.. Nas palavras de Engels (1981, p.76-77), “por nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos à natureza, nos encontramos no seu seio”, no entanto, o não respeito às leis da natureza pode repercutir em sérios problemas para os próprios seres humanos: aridez das terras, seca, enchentes. Certamente, o Covid 19 é mais um exemplo de “desastre” que, hoje, podemos chamar de “crime ambiental” ou, mesmo de um genocídio.
O coronavírus nos evidencia que, ao caminhar de mãos dadas com o capitalismo, o antropocentrismo exacerbado, que concebe o animal Homem como um ser no topo da cadeia alimentar, torna absolutamente irracional as relações seres humanos/natureza. Em Formações econômicas pré-capitalistas, Marx (1991, p.126) nos dizia que, o que exige explicação não é a unidade dos seres humanos com a natureza, mas a sua separação: “uma separação somente completada, na relação entre o trabalho assalariado e o capital”.
2 A escrofulose (tuberculose ganglionar), é uma doença que se se manifesta pela formação de tumores duros e dolorosos nos gânglios linfáticos, principalmente nos que se localizam no queixo, pescoço, axilas e virilhas, devido a presença do Bacilo de Koch fora dos pulmões.
No livro “17 contradições e o fim do capitalismo”, considerado, pelo próprio autor, como o livro mais perigoso que já escreveu, Harvey sugere o “humanismo revolucionário” como uma contraofensiva de cunho anticapitalista. Afinal, “qual momento seria melhor que este para propor uma despedida do capital e começar a construir uma alternativa e um modo de produção mais saudável?” (HARVEY, 2016, p. 287).
Frente a uma crise que se configura como crise de humanidade, o que nos resta a não ser reinventar a vida? O que nos resta a não ser criar outro modo de estar no mundo, fundado em relações sociais que privilegiam a vida em coletividade, movida por relações de solidariedade e reciprocidade? Como Marx e Engels (1987, p. 116-7), entendemos que “apenas na coletividade [de uns e outros] é que cada indivíduo encontra os meios de desenvolver suas capacidades em todos os sentidos; somente na coletividade, portanto, torna-se possível a liberdade pessoal”.
Em nosso entender, mais que uma crise cíclica, vivemos uma crise estrutural profunda de um modo de produção que, embora tenha se tornado hegemônico em âmbito planetário, não conseguiu ofuscar modos de produção da existência humana, cuja relação com a natureza é umbilical. Caminhando na contramão da lógica do capitalismo, não são poucas as experiências na América Latina que perduram ao longo da história da humanidade, as quais podem ser consideradas como espaços/tempos de longa duração. São grupos e, mesmo comunidades inteiras que insistem em preservar seus modos de vida, lutando para o fortalecimento do “comum”. Para Dardot e Laval (2017, p.25), o “comum” é o princípio político das lutas atuais contra o capitalismo; designa “não apenas o que é ‘posto em comum’, mas também e principalmente os que têm ‘encargos em comum’. Portanto, o comum, o commune latino, implica sempre certa obrigação de reciprocidade”
No processo de (re) invenção da vida, o Covid 19 nos reforça a vontade de fortalecer o que é e o que pode vir a ser “comum” na América Latina. Como sinalizou o indígena/filósofo Ailton Krenak (2019, p.12). “a ideia de nós, os humanos, nos descolar da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurdo. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”. Nesse sentido, queremos agradecer à querida Ana Maria Motta Ribeiro (UFF) e ao querido Willian Kennedy do Amaral Souza (IFRO) pelo árduo, comprometido e incansável trabalho de organização da TN 36. Ficamos muito felizes em trazer a público, artigos
de pesquisadores do México, Argentina, Uruguai e Brasil que apresentam, com base empírica, questões teóricas fundamentais sobre a construção do “comum” na América Latina. Nossa gratidão também a Dante Gastaldoni pelo carinho depositado na seleção das imagens do Ensaio Fotográfico sobre a obra de João Roberto Ripper, retratando as caras e o modo de ser dos povos tradicionais no Brasil.
Um grande abraço (com a devida distância que o Covid nos impõe).
Editores da Revista Trabalho Necessário
ENGELS, F. El papel del trabajo en la transformación del mono en hombre. Madrid: Editorial Ayuso, 1981.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016
MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. Introdução de Eric Hobsbawm. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1991.
MARX, K.; ENGELS, F. Ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1987.
3 Doutora em Ciências Políticas e Sociologia (Programa de Sociologia Econômica e do Trabalho) pela Universidade Complutense de Madrid - Espanha. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (Mestrado e Doutorado) - Brasil. E-mail: liatiriba@gmail.com; ORCID: 0000-0003-0117-4160.
4Assistente Social, doutora em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, é professora adjunta da Escola de Serviço Social, da Universidade Federal Fluminense/UFF - Brasil e estudiosa da área do trabalho e movimentos sociais, especialmente o sindical. E-mail: rodriguesmcris@globo.com; ORCID: 0000-0003-0545-2260.
5Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Adjunto II da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (aposentado) / Niterói – Rio de Janeiro - Brasil. Membro do Neddate – Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho-Educação. E-mail: lutajose@gmail.com. ORCID: 0000-0002- 8120-8617.