V.18, nº 36 - 2020 (maio-ago) ISSN: 1808-799X
Hugo Belarmino de Morais2 Ana Maria Motta Ribeiro3
Este artigo apresenta e convida a uma reflexão crítica sobre a questão hídrica no Nordeste brasileiro, a partir de um estudo de caso no Estado da Paraíba. Apresenta alguns resultados parciais de uma das etapas da pesquisa de campo realizada em julho de 2018, que buscou investigar o “novo caminho das águas” na Paraíba, a partir dos impactos decorrentes da construção do Canal das Vertentes Litorâneas, chamado “Canal Acauã-Araçagi”, considerada a principal obra hídrica do Estado, que visa ao aproveitamento das águas do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco na Paraíba.
Este artículo presenta e invita a una reflexión crítica sobre la cuestión del agua en el Noreste de Brasil, a partir de un estudio de caso en el Estado de Paraíba. Presenta algunos resultados parciales de una de las etapas de la investigación de campo llevada a cabo en julio de 2018, que tenía por objeto investigar la "nueva forma de las aguas" en Paraíba, a partir de los impactos resultantes de la construcción del Canal de las Vertientes Costeras, denominado "Canal de Acauã-Araçagi", considerada la principal obra hídrica del Estado, que tiene por finalidad el aprovechamiento de las aguas del Eje Oriental del Transvase del Río São Francisco en Paraíba.
This article presents and invites a critical reflection on the water issue in the brazilian Northeast from a case study in the state of Paraíba. Presentes partial results of one of the stages of the field research carried out in July 2018, which sought to investigate the “new water way” in Paraíba, from the impacts arising from the construction of the Coastal Vents Channel, called “Acauã-Araçagi”, considered the main water work of the State, which aims to take advantage of waters of the East Axis of the Transposition of the São Francisco River in Paraíba.
Artigo recebido em 31/01/2020. Primeira avaliação em 02/02/2020. Segunda avaliação em 06/03/2020. Terceira avaliação em 09/03/2020. Aprovado em 07/04/2020. Publicado em 22/05/2020.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i36.38475
Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
(PPGSD/UFF) - Brasil, na linha de pesquisa “Conflitos socioambientais Rurais e Urbanos”. Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Integrante do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF/UFF). Ex-bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior da CAPES (PDSE/CAPES). E-mail: hugobelmorais@gmail.com, ORCID: 0000-0002-2733-5412.
Professora Associada da Universidade Federal Fluminense - Brasil, vinculada ao Departamento de Sociologia
e Metodologia das Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF), na Linha de Pesquisa “Conflitos Socioambientais Rurais e Urbanos”. Coordenadora do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF-UFF). E-mail: anamribeiro@outlook.com, ORCID: 0000-0003-2761-3539.
Neste artigo objetiva-se discutir os resultados parciais da investigação realizada pelo autor, com o suporte e construção coletiva junto da sua orientadora, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF), que discute os “novos” contornos de grandes obras hídricas no Semiárido Nordestino, a partir de um estudo de caso no Estado da Paraíba.
Para tal, dividimos este trabalho em três partes. Primeiramente, iremos descrever alguns aspectos essenciais do território estudado, apontando o que caracterizamos neste trabalho como o “novo caminho das águas” na Paraíba, entendido aqui como um novo planejamento hídrico-territorial, decorrente da “integração” de três obras hídricas: o Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco, a Barragem de Acauã e o Canal das Vertentes Litorâneas, mais conhecido como Canal Acauã-Araçagi.
Após, será apresentada nossa proposta metodológica, baseada nos pressupostos da pesquisa militante (BRINGEL & VARELLA, 2016), que buscou identificar, a partir de um complexo e rico planejamento coletivo, os principais impactos decorrentes da construção do Canal.
Depois, iremos apresentar alguns dados mais específicos decorrentes das atividades de campo desenvolvidas no final de Julho de 2018, centrando nossa atenção aos aspectos metodológicos e nos achados decorrentes daquela empiria: em especial, decorrentes das entrevistas realizadas com atingidos de “ontem” e de “hoje”, que vivem às margens do canal supracitado, e outra entrevista, realizada com o engenheiro da Secretaria de Recursos Hídricos do Estado da Paraíba, responsável pelas desapropriações que viabilizaram a construção do Canal.
Cabe ressaltar que a escolha destes materiais se deu em virtude do processo de sistematização que está em curso para a tese de doutorado, motivo pelo qual buscamos alguns materiais do campo que sintetizam questões mais relevantes para o objetivo do dossiê e que foram observadas ao longo do processo da pesquisa. Tais achados se apresentaram fortemente na experiência real e concreta dos atingidos: a expropriação e a violência, como marcas permanentes da acumulação do capital, que se reproduzem nas grandes obras hídricas, de ontem e de hoje. Mas
também aparecem as lutas e resistências contra as expropriações, às vezes de maneira mais explícita e às vezes de maneira mais singela, como veremos.
“Barragem de Acauã: inaugurado cemitério para comunidade de Pedro Velho, PB (17/03/2017)”4
“Lula e Dilma levam multidão à inauguração da transposição do São Francisco, na PB (19/03/2017)”5
“Canal Acauã-Araçagi a segunda maior obra do nordeste recebe o nome de Celso Furtado (24/03/2017)”6
As notícias acima, retiradas de diversas fontes jornalísticas e meios de comunicação no ano de 2017, ilustram um contexto extremamente complexo no Estado da Paraíba, Região Nordeste do Brasil. As notícias narram um conjunto de expectativas, estratégias discursivas e os usos políticos ligados à questão hídrica, com os conflitos e contradições inerentes a esse processo.
A primeira notícia retrata a situação dos atingidos pela Barragem de Acauã7, que foi construída entre os anos de 1999 a 2002 nos municípios de Natuba, Itatuba e Aroeiras, na região Agreste do Estado. Reconhecida nacionalmente como um dos casos mais emblemáticos de violações de direitos humanos aos atingidos por barragens no Brasil, conforme relatório oficial produzido pelo antigo CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), atual Conselho Nacional de Direitos Humanos, no processo de construção – e posteriormente – à Barragem de Acauã foram constatadas violações: ao Direito à informação; Direito ao trabalho;
MAB, Movimento de Atingidos por Barragem. Barragem Acauã: inaugurado cemitério para a comunidade Pedro Velho, PB. Disponível em: <http://www.mabnacional.org.br/noticia/barragem- acau-inaugurado-cemit-rio-para-comunidade-pedro-velho-pb-0>. Acesso em: 13 de maio de 2017.
BRASIL DE FATO. Lula e Dilma levam multidão à inauguração da tranposição do Velho Chico
REVISTA FÁCIL. Canal Acauã-Araçagi a segunda maior obra do nordeste recebe o nome de Celso Furtado. Disponível em: <http://www.revistafacil.net/2017/03/canal-acaua-aracagi-segunda- maior-obra.html>. Acesso em: 13 de maio de 2017.
As obras da barragem, no Rio Paraíba, começaram em 14 de Junho de 1999 e foram concluídas
(construção física da estrutura de barramento) em Agosto de 2002. A barragem, que ocupa uma bacia hidráulica de 1.725 ha, provocou o deslocamento de aproximadamente 4.500 pessoas (900 famílias) que viviam às margens do rio. As águas barradas atingiram, em maior ou menor escala, as zonas rurais das cidades mencionadas acima, inundando completamente 06 povoados (Melancia, Cajá, Ilha Grande, Junco, Pedro Velho e Cafundó) e cerca de 115 imóveis rurais.
Direito à propriedade e a justa indenização; Direito à moradia; Direito à educação; Direito à saúde; Direito à segurança, Direito cultural; Direito ao meio ambiente seguro e sadio (BRASIL, 2010).
Como aparece no relatório, a situação de violações de direitos humanos é tão grave que em 2004 dois cemitérios das comunidades atingidas foram alagados (nas comunidades rurais de Cajá e Pedro Velho). Por exemplo, segue uma imagem abaixo, de época, de um desses cemitérios:
Grande, 2002.
A primeira notícia, pois, relata a reinauguração de um desses cemitérios, ocorrida em março de 2017. Estes, passaram muitos anos submersos sob as águas do Rio Paraíba e “reapareceram”, como decorrência do longo período de estiagem na região. Esse reaparecimento – somado à instauração de um novo Procedimento Administrativo no Ministério Público Federal da Paraíba para apurar as violações aos atingidos pela Barragem – promoveu um novo ciclo de articulações junto aos poderes públicos8 . Tal acontecimento nos relembrou aalter Benjamin nas suas teses sobre a história, quando retratava que os mortos não estarão em segurança
A situação dos atingidos de Acauã já foi objeto de pelo menos dois documentários, um dos quais retrata exatamente a questão do reaparecimento dos cemitérios em 2015, intitulado “Águas para a vida ou para a morte?”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fevOOCMxIHY&t=126s.
O outro documentário é mais antigo e se chama “O canto de Acauã”, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=2XAd6sHhxj0.
se o inimigo vencer e continuarem vencendo. E nos serviu de motivação desde o início da pesquisa de doutorado ainda em curso.
Já a segunda notícia trata da “inauguração popular” da Transposição do Rio São Francisco na cidade de Monteiro-PB, para celebrar a “chegada das águas” – simbolicamente, no dia 19 de março, Dia de São José, que segundo a nossa cultura popular é o dia em que “deve chover para ter uma boa invernada”. Esta inauguração, na verdade, foi um grande ato político, que contou com a presença do ex-Presidente Lula e a Ex-presidenta Dilma Rousseff, já dentro do contexto de disputas políticas após o golpe de Estado ocorrido no ano de 2016 que depôs a Presidenta, e ainda antes da Prisão do ex-Presidente Lula.
Preliminarmente, percebe-se que a “chegada das águas” do Eixo Leste da Transposição aparece nos discursos como um esperança de dias melhores para o exercício de um “direito humano à água” e para garantia da segurança hídrica de diversos municípios, em especial da cidade de Campina Grande, o segundo maior município do Estado da Paraíba e um dos maiores municípios do interior do Nordeste. Aliás, o único momento em que a Transposição do São Francisco realmente funcionou (com bombeamento de água) foi exatamente no ano de 2017, para abastecer o Açude Epitácio Pessoa (Boqueirão), diante da situação de “colapso hídrico” que aquela cidade se encontrava. Aponta-se para um conjunto de disputas acirradas acerca dos “novos rumos da Transposição” após a vitória da extrema direita, podendo, inclusive, ser esta uma das obras a serem privatizadas nas mãos do Ministro da Economia mais neoliberal que o Brasil já conheceu, junto a um Presidente que deliberadamente manifesta preconceito contra nordestinos, e todos os grupos subalternizados.
Ressalte-se que o tema da Transposição já conta, por si, com uma gama muito grande de literatura especializada sobre os conflitos decorrentes da obra. Um ótimo panorama crítico pode ser encontrado no trabalho premiado de Juliana Neves Barros, advogada popular e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que trata exatamente sobre “o conflito em torno da implementação do Projeto de Transposição das águas do Rio São Francisco, no período do Governo Lula (2003-2010), com a pretensão de abastecer de água 12 milhões de pessoas, em 390 municípios do Semiárido nordestino (BARROS, 2017, p. 19)”. Através de vasta pesquisa empírica, a autora procurou mapear o complexo campo
de legitimação social e política da obra bem como os processos de reação e mobilização social ligados a este grande projeto de investimento “em movimento”.
No final do seu livro, a autora indica algumas perspectivas que, em nossa opinião, sintetizam um olhar crítico e reflexivo, dialético, sobre os processos ligados à Transposição e que tomamos como referência para o nosso próprio trabalho de pesquisa:
As possibilidades de intervenção que se abrem sobre o território do Semiárido, ao se analisar mais a fundo os planos oficiais, apontam para uma perspectiva de ampliação do acúmulo de capital mediante a comoditização dos recursos naturais e ampliação das desigualdades sociais. A crise, antes de justificar um possível recuo nos grandes projetos, aparece como uma alavanca na intensidade da exploração. O futuro do Projeto da Transposição abre-se no meio dessa encruzilhada política e econômica que atravessamos. Do ponto de vista do conflito, observam-se algumas iniciativas que refletem esse espírito de disputa sobre os rumos do projeto, como as ocupações das áreas dos canais por famílias atingidas e povos indígenas, carecendo ainda de uma articulação mais ampla (2017, p. 211–212).
Assim, percebemos (e recebemos) as contradições inerentes ao Projeto da Transposição como dados importantes, mas não pretendemos retornar a estes conflitos, dadas as novas complexidades inerentes aos “desdobramentos” da Transposição no caso paraibano.
A última notícia trata, enfim, de uma outra obra hídrica em construção na Paraíba. É sobre ela – e partindo da já consolidada e complexa situação dos atingidos de Acauã – que este artigo tratará mais especificamente. Em virtude da construção do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco, foi justificada a necessidade desta outra obra, o Canal das Vertentes Litorâneas (chamado de Acauã-Araçagi) – obra considerada como a “transposição da Paraíba”, dada a sua magnitude em termos de investimento. É maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC-2) no Estado, que promete “beneficiar 600 mil habitantes e garantir irrigação em 16 mil hectares de terras”. O Canal, segundo a matéria, receberá o nome do economista paraibano Celso Furtado, em sua homenagem.
Neste sentido, este artigo é uma parte preliminar de um estudo mais amplo que está sendo realizado em nossa tese de doutorado, que evidencia territorialidades e discursos conflitantes – somadas às reflexões decorrentes da experiência social dos subalternizados, no sentido que a emprega E. P. Thompson (1981) – quando nos questionamos sobre os sentidos e futuros “resultados” desta
“nova obra hídrica” e seus impactos. Dito isto, tratemos de localizar geograficamente o leitor ou a leitora deste artigo no nosso “universo empírico”:
O Mapa indica a localização geográfica dos pontos de interesse. No caso do Eixo Leste da Transposição, as águas entram na Paraíba a partir da cidade de Monteiro - PB (número 1 - seta de cor roxa) e seguem o curso pelo Rio Paraíba até o Açude de Boqueirão (número 2 - seta vermelha), que abastece Campina Grande e toda a sua microrregião.
Após esta fase, o planejamento hídrico realizado pelo Estado da Paraíba é de que as águas retornem ao Rio Paraíba até chegar à Barragem de Acauã (número
3 - seta preta) e, mais especificamente nas proximidades da comunidade de Melancia – uma das comunidades atingidas pela construção da Barragem de Acauã
ocorre a “tomada d’água” do Canal Acauã-Araçagi. Este Canal está situado no mapa dentro do traçado pontilhado de cor vermelha.
Desta forma, partindo da experiência histórica da construção da Barragem e suas consequências até os dias de hoje, esta pesquisa assume o desafio de atualizar a análise sobre os conflitos socioambientais naquele território com esta “nova” conjuntura. Após a apresentação “geral” deste território conflituoso e em constante transformação nos dias atuais, iremos discutir no próximo ponto os elementos teórico-metodológicos e os dados da pesquisa de campo.
Nosso processo de investigação social interdisciplinar valoriza tanto as chaves teórico-políticas do pensamento crítico latinoamericano e do materialismo histórico-dialético, buscando conectá-los, sem formalismos estruturalistas, à necessidade da realização de pesquisas empíricas, a fim de produzir conhecimento novo e útil.
Para concretizar este objetivo teórico-metodológico, pois, discutimos e sistematizamos os dados coletados que serão trabalhados em confronto ou complemento aos debates teóricos, buscando, ao máximo, uma abordagem metodológica dialética que evite: a) tanto o formalismo que caracteriza a “utilização” da realidade como um meio “por exemplo”, que servem antes de tudo para comprovar a adequação de categorias – inclusive marxistas – anteriormente formuladas, desprezando, pois, o próprio método; b) o empirismo acrítico e positivista, que considera a realidade um dado “em si” e auto-evidente, que não necessitaria de qualquer explicação e/ou mediações com as estruturas da totalidade social que a condicionam e definem. Em linhas gerais, e informados pelo materialismo histórico-dialético, estamos chamando esta perspectiva de Sociologia Viva (RIBEIRO et al., 2018; RIBEIRO, 2019).
Por outro lado, trata-se de uma investigação que se insere na perspectiva da pesquisa militante, que embora seja uma perspectiva com longa tradição na América Latina, aparece ainda como novidade no Brasil. Em apertada síntese, pode-se dizer que o termo pesquisa militante
é utilizado aqui para contemplar as linhas de pesquisas associadas a diversas formas de ação coletiva, que são orientadas em função de objetivos de transformação social. Nesse sentido, militância seria o compromisso ético e político com a mudança social e que, por isso, implica posicionamentos e atuações proativas em várias áreas da vida, como a profissional e a acadêmica, envolvendo a inserção em espaços coletivos de discussão, articulação e mobilização com objetivo de viabilizar e potencializar lutas políticas que representem a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Portanto, considerando a impossibilidade de dissociação entre o científico e o político, a pesquisa militante recoloca, em um patamar digno e legítimo, as investigações que envolvam a produção de conhecimento, a ação política e a mudança da realidade social. Trata-se, em suma, de investigações socialmente engajadas e politicamente posicionadas, que buscam, a partir da produção do conhecimento, entender a realidade para transformá-la, vinculando-se com a ideia de práxis, tal como explicitado acima (BRINGEL & VARELLA, 2016, p. 482).
Assim, a pesquisa de campo realizada exigiu do pesquisador – e de sua orientadora – a construção de uma estratégia diferenciada para compreender melhor o que está se passando como decorrência das novas obras do Canal Acauã- Araçagi. A seguir apontaremos sucintamente essas estratégias, que são consequências práticas das decisões teórico-metodológicas apontadas acima.
Primeiramente, deve ser apontado o planejamento e a parceria entre o pesquisador e sua orientadora de doutorado na atividade de campo, seguindo o saber-fazer das experiências já consolidadas no âmbito do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) desde sua fundação no início dos anos 20009.
Desta forma, na etapa da pesquisa de campo supracitada decidiu-se por percorrer, de carro, este “caminho artificial” ainda em fase de obras, realizando entrevistas, georreferenciando os pontos de interesse no mapa e captando imagens que revelassem alguns aspectos centrais tanto da própria obra como da situação das populações locais.
Esse processo se deu após ter sido realizada uma rodada de entrevistas também com órgãos públicos em João Pessoa, para compreender como estavam sendo planejadas as obras, a fim de identificar discursos que permitissem compreender as problemáticas apontadas pelos “de cima”. Por outro lado, decidiu- se coletivamente que era imprescindível a presença do movimento social organizado – no caso, do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) – durante todos os dias de percurso no campo. A presença do MAB, não se deu por acaso: como relatamos anteriormente, foram eles, os atingidos pela Barragem de Acauã na Paraíba, os principais afetados pela construção de uma obra hídrica justificada pela necessidade de resolução de problemas similares, ainda no início dos anos 2000. Suas histórias e trajetórias são como um acervo vivo – individual e coletivo –
Importante ressaltar este saber-fazer consolidado sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria Motta Ribeiro, no qual orientandos/as e orientadora partem juntos para a pesquisa de campo ao menos uma vez na condução da pesquisa empírica. Este fato pressupõe disponibilidade e compromisso
fora do comum dentro da Academia. Por outro lado, tal experiência demanda uma organização e
planejamento ainda mais refinados, haja vista a diversidade e intensidade das visões compartilhadas tanto na construção e coleta de dados quanto na sua sistematização. O trabalho coletivo, neste caso, não é somente um artifício retórico do exercício sociológico desenvolvido, mas o resultado vivo e em constante aperfeiçoamento de uma experiência acumulada de pesquisa e extensão envolvendo a realidade rural e camponesa.
dos processos de expropriação e violências, aliadas a uma compreensão contextualizada das necessidades de organização e luta dos atingidos.
Também decidimos que o percurso planejado percorreria e visitaria certas áreas de assentamentos rurais de reforma agrária por onde as obras do Canal estavam passando. As áreas eram ligadas aos dois principais movimentos do campo na Paraíba – a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – e ambos os movimentos, pelas relações de confiança estabelecidas desde o lugar da assessoria jurídica e advocacia popular10, se disponibilizaram a fornecer informações e a contactar as lideranças nas comunidades.
Estes apontamentos permitiram o entrecruzamento de olhares e percepções, já que o objetivo não era somente cartografar, realizar entrevistas e documentar as atividades, mas contar com a experiência social dos próprios movimentos na leitura desta realidade.
A presença dos dois pesquisadores-militantes do MAB junto conosco no decorrer do percurso trouxe diversos elementos para a compreensão da realidade de maneira comparativa, entre os elementos que permaneciam na memória dos atingidos e as novos depoimentos colhidos durante o percurso. Por outro lado, o Movimento Social também pode divulgar e apresentar sua “antiga” realidade para “novos” afetados, numa experiência especular, como se fossem colocados frente a frente num espelho, o velho e o novo despojo: a experiência acumulada como denúncia das violações já ocorridas há vários anos e sem soluções concretas até hoje, e outra experiência, mais imediata e sentida, em curso “aqui e agora”, prenunciando um futuro de mais expropriações. Reconhecer e valorizar que o processo de pesquisa se dá no encontro de saberes e de experiências compartilhadas, portanto, foi uma das apostas desta estratégia metodológica.
Ademais, realizou-se um planejamento para percorrer sempre que possível as margens do Canal até onde as construções estavam prontas, com inspiração
A assessoria jurídica popular e advocacia popular podem ser compreendidas como uma espécie de síntese da atuação contra hegemônica que se dá dentro do campo jurídico no Brasil. Esta perspectiva de atuação alia ao menos três vetores interligados: a assessoria política, realizada junto
aos movimentos sociais organizados nas suas pautas perante o Estado; a assessoria pedagógica,
visando a educação jurídica popular em direitos humanos; e a assessoria técnico-jurídica, ligada à atuação perante os órgãos do sistema de justiça utilizando o instrumental jurídico-normativo posto. Para mais sobre assessoria jurídica popular ver Terra de Direitos & Dignitatis – Assessoria Técnica Popular (2012).
nas experiências de cartografia social (ACSELRAD, 2008). Neste sentido, marcamos os pontos e os detalhamos através de um aplicativo de GPS no próprio celular. Alguns dados foram sendo “descobertos” no caminho, como a presença das fazendas de camarão a jusante da Barragem, a presença de áreas de latifúndio de pecuária, as casas de alguns dos entrevistados na pesquisa, os momentos em que o Canal se transforma em túneis (sifões invertidos), entre outros dados.
Fizemos, por fim, uma espécie de “diário fotográfico”, para permitir a compreensão mais detalhada do que foi realizado em campo comparando com as fotografias captadas, que ficaram sob a responsabilidade de um dos membros do MAB no carro, durante parte do percurso; este acabou por se tornar rapidamente o nosso “fotógrafo oficial”. O carro, aliás, tornou-se uma espécie de “fórum de debate”, pois as reflexões e impressões sobre todo o caminho foram gravadas e também foram um material importante para sistematização acerca do “novo caminho das águas”. Apresentadas essas discussões e decisões teórico-metodológicas, a seguir iniciaremos a discussão dos dados e achados do campo de forma sistematizada.
Partimos inicialmente da cidade de João Pessoa em direção à Barragem de Acauã (ainda sem os outros parceiros da viagem, do MAB, pois iríamos encontrá- los em campo). Chegamos à Comunidade de Melancia, umas das comunidades que já citamos e que se localiza exatamente em frente a tomada d’água do Canal e também da Barragem. Trata-se de uma comunidade emblemática para a situação atual.
No quintal da casa de um dos atingidos, em meio aos bodes, galinhas e um cheiro agradável de manteiga que estava sendo preparada no fogão e perfumava o ambiente, realizamos uma primeira conversa para entender o antes e depois daquela “nova obra”, partindo da memória do que já havia ocorrido antes. Importante contextualizar que esta liderança camponesa e ribeirinha se formou no contexto das lutas do MAB na Paraíba, mas atualmente está muito ligado à ASA – Articulação do Semiárido do Brasil – rede de coletivos e organizações ligadas ao chamado paradigma da convivência com o semiárido, no sentido de desenvolver e promover as tecnologias sociais adaptadas à região.
Articulado nos argumentos e à vontade no quintal compartilhado entre a sua casa e a casa de sua mãe, ele ressalta que “A situação nossa não é fácil não. Você não vê perspectiva de nada. Tem quatro, cinco, seis famílias morando dentro de uma casa de placa”. Perguntado sobre o Canal, responde que “Por causa do Canal piorou... aumentou né...”. É logo interrompido por sua mãe dizendo que “Eles pensavam que ia dar muito trabalho para as famílias, mas, assim, deu... passou um ano e depois demitiu essas pessoas” (Depoimento de campo, atingido e atingida pela Barragem de Acauã, Comunidade de Melancia, Itatuba-PB, 28/07/18). E continuam, os dois, falando sobre a questão dos empregos e a desmobilização decorrente:
Quem que demitiu? não entendi.
O Canal, pegaram muita gente aqui.
Para trabalhar, pra fazer o canal?
Mas a conversa na verdade...
O canal ficou pronto, todo mundo foi embora…?
E num ficou pronto não.
Não. Foi depois que esfriou... Depois que esfria aquela pressão do povo, depois daquela audiência... contrataram muita gente daqui, contrataram daqui para justificar que era bom, depois, pé na tábua pra todo mundo.
Mandaram embora? E contrataram de onde?
De outro lugar mais pra frente.
Do caminho?
Do caminho... que é pra justificar o canal pro povo se acalmar, aí você contrata quem tá às margens.
Dizendo que o canal também ia dar emprego a muita gente.
Vai dando emprego no caminho.
Emprego de quinta categoria né, porque os empregos bom são do pessoal de fora... nunca tem daqui em emprego bom.
Eu conheço pessoas também do caminho aqui ó, que tão f…, num receberam nada ainda... tem umas conhecidas minhas que a gente fez uma medição de terra para ela lá em canto alegre, homi, ainda hoje eles tão sofrendo sem conseguir receber...
Onde é que é isso?
Ali perto de Salgado (Salgado de São Félix). O pessoal já foi embora, num sabem nem onde tão mais, eles num receberam nada ainda. Nada, num receberam nada ainda não.
Mas teve detonação (tiro), essas coisas, só aqui, né?
Não, em todo canto, em todo canto.
É porque num tem comunidade perto como aqui...
Aqui, o povo já caiu dentro da comunidade o tiro, homi... a grande m... foi essa, que foi dentro da comunidade... você num foi lá com ela lá não, né? É dentro da comunidade, foi encostado à Igreja, o tiro.
Ele me mostrou onde era a Igreja, mostrou a calha que foi feita pra obra... - Mas assim, no caminho, em todas as comunidades por onde o canal passa teve tiro?
Teve, mas não pegou comunidade cheia, pegou áreas rurais.
Entendi, não dentro da comunidade, pegou área erma, mas também teve tiro.
- No canal num faz sem tiro não. Até mesmo onde é tubulação tem tiro...(Depoimento de campo, atingido e atingida pela Barragem de Acauã, Comunidade de Melancia, Itatuba-PB, 28/07/18)
Os “tiros” a que se refere o camponês e sua mãe foram as detonações ocorridas para fazer a primeira parte da obra do Canal, em meados de 2013. Como se vê na imagem a seguir, há uma grande quantidade de rochas que foram dinamitadas para fazer a “tomada d’água” do Canal:
.
Essas detonações ocorreram justamente em frente à Comunidade de Melancia, já atingida pela Barragem de Acauã no início dos anos 2000, e que tem como uma das características citadas no Relatório do Conselho de Direitos Humanos a fragilidade e precariedade na estrutura das casas “de placa”. Assim, pode-se compreender o grau de impacto naquela comunidade, que causaram diversas rachaduras e danos físicos às estruturas já precárias das casas.
Após mais algum café e a explicação sobre algumas tecnologias sociais que o camponês desenvolve em sua própria casa e de sua mãe – como um biodigestor e as cisternas de placa11 – o camponês atingido pela Barragem nos acompanhou para um percurso curto de carro, a fim de encontrarmos com a outra participante da atividade de campo e onde dormiríamos naquela noite.
Para os interessados, consultar o site da ASA, onde há uma bom material mapeado, que trata sobre essas tecnologias e os avanços comunitários alcançados: https://www.asabrasil.org.br/mapatecnologias/
No segundo dia, partiu-se da Barragem de Acauã em direção à cidade de Campina Grande, seguindo pela Rodovia BR-230 até chegarmos ao “ponto de encontro” das obras do Canal onde realizamos um “percurso inverso” pelas margens do Canal até as proximidades do Aqueduto na cidade de Mogeiro. Neste momento foi possível coletar mais alguns depoimentos e cartografar dados importantes para análise dos impactos das obras, tanto em áreas de agricultura familiar quanto de assentamentos da reforma agrária. Em especial constatamos a diferença de tratamento do Consórcio responsável pela obra e do Governo do Estado, a depender dos processos de mobilização dos atingidos pelo Canal.
Ao percorrermos esta parte do caminho foi possível compreender a magnitude da obra e a qualidade da sua construção em concreto, atravessando vales e montes saindo de uma região “mais alta” – e com terras de menor qualidade
em direção à região Agreste e Litoral, em terras mais baixas. Estas terras baixas, segundo um dos parceiros no carro era “um filé”, para produzir o que se quisesse pela oferta hídrica e pela qualidade da terra.
Após contato telefônico, encontramos um dos camponeses, que nos concedeu uma entrevista exatamente em frente ao Aqueduto na cidade de Mogeiro, numa área muito próxima ao Assentamento onde mora. Explicou um pouco da história da luta do Assentamento e destacou que as obras do Canal “chegaram sem
avisar”, em meados de 2013. Desde o início, em virtude da desinformação sobre como seria feita a obra e por onde ela efetivamente passaria, se instaurou um conflito sobre a “metragem” e os limites de área que seriam utilizadas dos dois lados do Canal.
O limite, eles diziam que era de 100 metros, a distância de uma cerca a outra.
100 metros é 50 de um lado e 50 do outro, né isso?
Aqui tá mais do que isso, porque no início ele disse que era 100 (50 e 50 metros). Mas aí tá 60 e 60 de cada lado, ele tá 120 (metros). Por conta que ele disse uma metragem, aí quando veio executar a obra, aí botou pra 120, foi… Aí como aqui não é área da gente, aí a gente disse que, que podia passar, mas como ali atrás, a gente vai passar por um açudim ali, que foi aonde a gente paremo o canal, pra que ele não passasse destruindo o açude. Era um açude de água doce que em 2013 nós pegava água de lá. Nós viemo, fechamo aqui a BR e o pessoal do (Assentamento) João Pedro Teixeira eles meio que foram contra a gente, porque a gente tava fechando a BR […] E aí, a gente teve o apoio da CPT também, porque a gente quando faz isso a gente comunica a eles né. […] Aí então, nós conseguimo que não fosse, num passasse no açude... não passou, desviou. Nós pegava água dele, nós pegava dele pra beber.
E continuou pegando?
Hoje a gente já não pega mais por conta que cada um da gente já temo cisterna... de projeto que a gente fizemo. […] E aí passou (o Canal), mas a gente, na exigência nossa, foi passado com 80 metros, porque a gente exigiu que passasse com 60 (30 de cada lado) e eles queriam 120 (60 de cada lado). […] Aí, no acordo, a gente fechou em 80. Nem eu nem você… Aí a gente botemo essas exigência, e o açude ficou pra dentro da área nossa. E a gente conseguiu ainda que fosse para limpar outros açudes, que a gente tinha na comunidade, aí foi construído mais açude e foi limpo mais seis açudes.
E quem foi que limpou?
O consórcio. Ele teve que limpar seis e construir mais quatro.
E o pessoal do (Assentamento) João Pedro Teixeira?
O pessoal, eles tiveram a ilusão que o Canal quando passando era indenizado, né. Aí teve pessoas (em) que foi estourado açude, é… dividido a parcela no meio… e então, eles que ficaram perdendo, depois que viro o que a gente fizemo, aí queria se juntar pra nóis fechar, mas aí já tava, já tinha passado […] Ai eles ficaram com o acordo de quando eles (do Canal) saíram, o canteiro ficasse dentro do Assentamento (Depoimento de campo, assentado da Reforma Agrária, Assentamento Padre João, Mogeiro-PB, 29/07/18).
Interessante observar que, mesmo após esse contexto de reivindicação e instaurado um conflito, ele relatou que o acordo não foi cumprido, ao menos num primeiro momento. O tempo foi passando… “Aí, só promessa de fazer o açude... Aí, ele (o Canal) passou um ano trabalhando, quando foi no outro ano seguinte aí a gente disse: Não.” E o que vocês fizeram? Perguntamos. “Nós viemos pro canal e chegamos nas máquina e disse: oh, pode parar as máquinas aí. Ninguém trabalha aqui.” E continuou:
Aí eles ficaram parado um ano sem trabalhar aqui... deixaram parado a parte do Assentamento Padre João até... em Julio Paulo Neto, e pegaram de Julio Paulo Neto pra frente. […] Aí aqui quando voltaram para fazer o Canal, aí me procuraram primeiro para
poder continuar... Aí a gente disse: bom pra vocês continuar a gente tem uma sujeição, vocês bota as máquinas para fazer os nossos açude e os poço, e quando tiver pronto vocês
trabalham (Depoimento de campo, assentado da Reforma Agrária, Assentamento João Pedro Teixeira, Mogeiro-PB, 29/07/18).
Os camponeses definiram, pois, uma agenda de reivindicações e uma ação direta que impediu a obra de continuar até que o acordo previamente estabelecido fosse cumprido. O assentado falou que, na prática, eles concordaram que uma máquina fosse utilizada para fazer as obras do Canal e outra fosse utilizada para a construção e limpeza dos açudes. E a expectativa de vocês, agora?, perguntamos. “Os açude agora tá ok, tão limpo né, agora só esperar a chuva pra encher, e produzir no lote da gente.” E vocês vão depender dessa água do Canal para alguma coisa?”, continuamos. E ele responde: “Aqui a gente pode até depender dessa água porque a gente tem... por causa do boi né, e vem pegar essa água, dar água a bicho... mas de a gente pegar e ter algum ponto de água para levar, num temo (a necessidade)” (Depoimento de campo, assentado da Reforma Agrária, Assentamento João Pedro Teixeira, Mogeiro-PB, 29/07/18).
Como a situação de cada lote no Assentamento ainda não estava estabelecida (o que eles chamam de pré-parcelamento), no momento do conflito que ele narrou com a empresa eles puderam "planejar" como ficaria a situação de cada parcelamento, evitando maiores impactos.
No entanto, a situação do outro Assentamento foi diferente. O próprio camponês nos levou para conversar com o outro senhor, do outro lado da rodovia por onde passou o Aqueduto, para falar o que ocorreu. Sentamos juntos no alpendre da sua casa de alvenaria, fim da tarde quase anoitecendo, para perguntar-lhe sobre o que aconteceu em seu lote.
Após ser apresentado, ele ressalta logo no início da conversa que “nós fomos atingidos diretamente né, porque passou aqui por dentro. Que divide o assentamento aqui no meio. Mais ou menos a gente sabe, né, o que aconteceu aqui...” (Depoimento de campo, assentado da Reforma Agrária, Assentamento João Pedro Teixeira, Mogeiro-PB, 29/07/18). Pedimos para que ele detalhasse melhor o que aconteceu com o seu lote e as conversas e negociações que ocorreram junto ao Consórcio:
E aí em 2012 é que, chegou… Em 2008 passou um cara medindo aí, dizendo que ia passar um Canal aqui, a gente nem botou nem isso na cabeça né, "isso é conversa", e quando foi em 2012 chegou o cara aí já pedindo autorização pra... uma coisa bem...
Mas entrou lá para conversar com vocês?
Primeiro chegou um cara aqui fazendo a topografia né. Já marcando o local... Aí quando foi depois, isso foi no final de 2011, aí 2012 eles convidaram a gente pra uma reunião.[…] Ai convidaram a gente pra uma reunião, que ia passar o Canal aqui e tal. E que ia precisar de uma faixa de terra com 120 metros de largura. […] Então, aí nós tinha feito investimento né, tinha feito cerca, plantado capim, palma, barreiros, e aí esse canal ele pegou justamente os barreiros, foram doze. Doze barreiros. E, que ainda tinha mesmo esse aqui na frente de casa... O canal passou mesmo em cima.
O canal passou mesmo em cima do Barreiro do Senhor?
É.
Nós tamo aqui sentado na tua casa no Assentamento, e vendo o Canal ali.
É, o Canal é dentro do Assentamento. […] Então, aí nós sentamos com eles para ver, né, como ia ficar, né. Aí eles disseram logo... aí convidou também uma pessoa do INCRA, e ficou logo certo de que a terra a gente num ia receber... a terra num tinha indenização, indenizar só as benfeitorias.
E qual era o argumento pra não indenizar a terra?
É que tinha sido desapropriada e já era uma terra do governo federal, né. (Depoimento de campo, assentado da Reforma Agrária, Assentamento João Pedro Teixeira, Mogeiro-PB, 29/07/18)
No caso acima é possível perceber o grau de impacto para uma área de assentamento rural, que num pequeno espaço teve doze barreiros destruídos para que o Canal “pudesse passar”. Neste caso, em se tratando de uma área já desapropriada não haveria discussão sobre a indenização da terra, mas tão somente das benfeitorias.
No terceiro dia, percorremos os caminhos das obras do Canal após a margem direita da Rodovia BR-230, na qual foram novamente articuladas entrevistas com assentados e assentadas da reforma agrária, organizados pelo MST e CPT, chegando até o canteiro de obras do Consórcio Acauã-Araçagi na cidade de Mari-PB, a fim de agendar algumas entrevistas que se realizaram no dia seguinte. Destacamos a entrevista realizada exatamente com o servidor responsável pelas desapropriações para, segundo ele, “liberar” as obras. Vejamos o que ele nos respondeu sobre como ocorreram (ou estão ocorrendo) as desapropriações no caso do Canal:
Pra aqueles proprietários que tinham escrituras, certo, foi passado a escritura, inclusive eu tenho aqui ó, aqueles imóveis que tinha escritura registrada, foi passado escritura em nome do Estado né. "Heronaldo de Andrade Marinho e esposa", aí escritura no nome do Estado, outra aqui... Joaquim Lopes da Silva, tal... São várias, várias escrituras, né, aquele imóvel que tinha escritura, aí era identificado, passa, pega documentação do imóvel e dos proprietários, encaminha para o cartório, o cartório faz a escritura, e no ato de assinar a escritura ele recebe o cheque dele, o pagamento dele […] Aqueles que não tinham escritura, eh, uma posse, ou então era do bisavô, do avô, do pai que faleceu, era feito o mesmo procedimento: pegava a escritura no nome do proprietário, do avô, do bisavô, de quem fosse... aí era feito o mesmo processo, a documentação do falecido, a escritura no
nome do falecido que não tinha feito inventário, e... (procura um caso nas suas pastas), aí não ia pro cartório de imóveis, ia pro cartório do fórum, aí o juiz dava a imissão de posse em nome do Estado. […] dava para o Estado a faixa que o Estado estava utilizando, imissão na posse.
Então na verdade pro pessoal que tava nas margens que não tinha título de propriedade, não passava pelos posseiros, passava direto pelo Juiz pra poder da imissão?
Não, não, não. Possivelmente era contato com ele mesmo, o proprietário, a gente pegava a documentação dele mesmo, o que tivesse de documento, e abria um processo na Secretaria em nome dele, por exemplo, o pai dele faleceu, abriu um processo em nome do pai porque a escritura era no nome do pai dele, e esse processo ia para o fórum, e era feito o depósito judicial, daquele valor que ele tinha direito. […] aí pronto, aí ele dava a imissão. aí era feito o depósito judicial, o juiz solicitava da família (o oficial de justiça ia lá), aí solicitava da família os herdeiros, quem era os herdeiros, quem não era, e tal... tudo ok, aí os herdeiros compareciam, lá no juiz, num era nem pra gente isso aqui, aí lá o juiz dava o alvará, para liberar o dinheiro que tava depositado em juízo.
Tá, mas no caso dele ser posseiro?
Posseiro… não, num tem documento nenhum paga administrativamente. Paga administrativamente. Ninguém deixou de receber de lá pra cá.
E quem calculava o valor?
Sou eu.
(Depoimento de campo, Servidor da Secretaria de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Ciência e Tecnologia - PB, 2018)
Na entrevista acima, ressaltamos duas questões muito importantes. Primeiramente, há uma concepção proprietária ou patrimonialista no modus operandi do setor de desapropriação, que praticamente repete, após mais de 20 anos, o procedimento utilizado no caso dos atingidos pela Barragem de Acauã. Aliás, é o mesmo senhor o responsável pelas duas obras: o Canal Acauã-Araçagi e a Barragem de Acauã. Trata-se, portanto, de uma “memória viva” de como se dão os processos de desapropriação no Estado da Paraíba.
Para os fins deste artigo, e após todos os depoimentos colhidos junto aos camponeses nas margens do Canal e dos atingidos pela Barragem de Acauã na tomada d’água, esse depoimento do ente público reveste-se de um achado importante da pesquisa, pois de certa forma condensa o discurso e o procedimento das desapropriações por parte do Estado no caso de obras hídricas. A visão se assemelha ao que Vainer caracterizou como concepção territorial-patrimonialista (VAINER, 2008). Esta concepção aponta que no planejamento de uma “grande obra de investimento” somente aqueles indivíduos com títulos formais de propriedade – em geral de bens imóveis – poderiam receber algum tipo de ressarcimento ou indenização: ou seja, o atingido é o proprietário.
Esta visão, de cunho fortemente liberal-individualista e restritivo, diminui drasticamente o universo de “potenciais atingidos”, pois em geral são
desconsiderados elementos como o modo de vida, a posse efetivamente exercida e a existência de benfeitorias (em regra ligadas a um estilo de vida calcado na produção familiar e camponesa, etc), além da descaracterização dos impactos “indiretos”, fora da área de abrangência direta da obra e objeto das eventuais desapropriações perpetradas. Essa visão, segundo Vainer, pautou durante muitos anos a construção dos estudos prévios e cadastramentos socioeconômicos ligados à construção de barragens, independentemente da natureza pública ou privada da obra.
É neste sentido que compreendemos a expropriação, em seu papel específico de separação – total ou parcial – dos camponeses e camponesas do seus meios de existência, com consequências significativas para a própria reprodução da vida12. Tratando-se de um processo permanente dentro do modo capitalista de produção, as expropriações e as violências são a contraface do processo de acumulação do capital, agravadas num contexto neoliberal.
Em segundo lugar, o engenheiro nos detalhou como é feito o cálculo dos valores das desapropriações. Esta tarefa é revestida de uma percepção legitimada pelo “interesse público”, sem qualquer dúvida sobre os benefícios e a justiça das indenizações calculadas. Tratando-se de alguém tão experiente neste campo, com “39 anos de profissão”, tentamos obter o máximo de detalhes do procedimento. Pedimos desculpas ao leitor ou leitora pelo tamanho da citação que segue abaixo, sem interrupções; mas acreditamos que somente assim será possível compreender nossa dificuldade para tentar “captar” as lógicas – formais ou informais – que caracterizam um procedimento tão importante e que gera tantas repercussões na vida das pessoas às margens do Canal. Perguntamos sobre a questão da metodologia utilizada e os dados de referência utilizados:
Você calcula com algum critério, alguma metodologia?
Critério, critério. As planilhas de benfeitorias de imóveis, né, é as planilhas utilizadas da CEHAP (Companhia Estadual de Habitação da Paraíba). E as benfeitorias e estruturas, é as planilhas do Banco do Nordeste.
A gente tem acesso a essas planilhas?
Não é possível tratarmos aqui com toda a profundidade e complexidade o tema da “acumulação primitiva” ou “originária” na literatura marxista, que informa o nosso debate sobre os cercamentos e expropriações como contraface violenta e “extra econômica” da acumulação de capital. Para tal,
indicamos outro texto, em que realizamos uma revisão deste debate na literatura marxista desde o
próprio Marx, passando por Rosa Luxemburgo e David Harvey e Mina Navarro Trujillo. Ver Morais (2019).
Tem, aqui eu não tenho ela aqui não, mas no Banco é fácil de conseguir lá no Banco, as planilhas... Eu tenho ela aqui assim (procura as planilhas)... - eu peguei aqui, a Banco do Nordeste tá vendo? (a gente pode tirar uma fotografia?) - pode, pode.
Deve ter no sítio eletrônico.
Tem, eu acho que no site do Banco do Nordeste você pega lá.
Aí aqui as planilhas que tem aqui, por exemplo, orçamento para capim-elefante, aí aqui eu atualizo os valores...
Segundo o quê?
A mão-de-obra... digamos, pra plantar um capim, aí o capim: dez/horas/homens-dias pra fazer o plantio, o dia hoje deve estar em torno de, entre 40 e 50 reais a diária por trabalhador, né.
Isso é um referencial que você tem da experiência?
É o contato mesmo, eu pergunto: quanto é uma diária aqui de um trabalhador rural?
Mas você usou algum padrão ou em cada lugar você tem?
Não, não. Aqui da Paraíba a diária é nessa faixa aí, 40 reais. Quando você parte pra cerca, aí a diária já é outra, porque aí já é uma mão-de-obra qualificada, aí vai uns 60 reais.[…]
Você teve que atualizar porque é de Junho de 1997… Você pega só os parâmetros e os valores e atualiza?
Porque não muda, não muda... digamos assim, que tenha uma cultura que não exista orçamento no Banco do Nordeste, eu pego uma planilha da FETAG. Vamos dizer, é, abacate, que no BNB num tem orçamento...
E você chegou a uma planilha final, então?
Não, não, eu pego individual.
Então, em cada caso, você faz uma coisa diferente?
- Eu não faço, eu não faço a mistura... Digamos, tomate, se for o caso... melhor, abacaxi ou cana, que a região aqui é mais abacaxi e cana-de-açúcar... Cana-de-açúcar eu peguei da ASPLAN (Associação de Plantadores de Cana do Estado da Paraíba), o custo de um hectare pra plantar a cana-de-açúcar.
E pra colher?
Não, aí já está incluído, o custo né. Aí em cima desse custo do hectare, da implantação de um hectare de cana-de-açúcar eu jogo o lucro cessante por cinco... porque aqui nós temos no corte da cana, são cinco cortes. A cultura da cana aqui você dá cinco cortes nela, então ela dá cinco vezes. Só aí depois que tira e bota outra.
Mas uma dúvida então. A ASPLAN é a Associação dos Plantadores de Cana da PB, né, e a FETAG é a Federação dos Trabalhadores de Agricultura, a FETAG num tem uma planilha de todas as culturas também não?
Rapaz, tem não. Pior que não. Tem não... E assim mesmo, é, eu uso o da FETAG, eu até conversei com o menino lá que fazia esses valores né. Eu dizia: rapaz, o negócio aqui tá muito vago. Aí mostrei a ele: se eu pegar a planilha aqui do Banco do Nordeste pra fazer aqui o orçamento, o valor vai dar maior do que esse aqui de vocês. […] Aí, aí eu só usava FETAG quando eu não tinha do Banco do Nordeste. Porque o do Banco do Nordeste você tem a coisa mais exata, porque você tem... (olha as planilhas para exemplificar) vou lhe dar um exemplo aqui pra você entender melhor...
[…]
Então, é, as tabelas que vocês utilizam é CEHAP, BNB, FETAG e no caso da cana-de- açucar, ASPLAN.
ASPLAN eu pego só o custo de implantação e manutenção. Aí o restante, o lucro cessante, eu calculo. Por aí o lucro cessante você vai tirar toda a mão-de-obra que ia ter dentro dela aí, porque você não vai ter colheita mais né... Aí é só pegar o valor e diminuir os custos de implantação e manutenção e limpa, etc. […]
E como faz com a agricultura familiar?
Agricultura familiar, aqui, o peso aqui, é milho e feijão, num tem outra coisa... quando é milho e feijão, a gente deixa colher... A gente paga, porque no momento do levantamento, infelizmente a gente não pode deixar passar... aí faz o levantamento, é pago, certo? E ele
vai e colhe, como aconteceu com a cana aqui. Eles receberam o lucro cessante, receberam tudo, e colheu e entregou lá pra usina, como eles quiseram, porque infelizmente a gente não ia pegar, digamos aí, deu em torno de uns 150 a 200 hectares de cana, o que era que o governo ia fazer com 150, 200 hectares de cana?
Deixa o cara vender…?
Aí, deixa pra lá, corta, eles cortam lá e faz o que eles querem. Embora recebam o dinheiro né.
(Depoimento de campo, Servidor da Secretaria de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Ciência e Tecnologia - PB, 2018)
Como retrata o longo trecho acima, nos foi impossível, realmente, compreender qual o padrão e o procedimento legal ou administrativo para o cálculo das desapropriações. É um procedimento surpreendentemente flexível, uma espécie de canivete suíço à disposição do ente expropriador, no uso de diversas “tabelas” para cada tipo de cultura e produção; a ser utilizada conforme critérios de conveniência e oportunidade, mas também – e esse é o elemento sociológico e jurídico relevante – a partir da pressão social, agenciamentos diversos e distinções de classe.
Este processo nos remeteu às considerações trazidas por Levien (2014) sobre o que ele chama de regimes de desapropriação. A partir de uma discussão teórica sobre as relações entre capitalismo e as desapropriações, explica o autor:
O aspecto mais significativo da desapropriação de terra é que ela envolve a intervenção direta e transparente do Estado no processo de acumulação. Do ponto de vista político, essa intervenção direta e extraeconômica na acumulação gera um antagonismo imediato entre o Estado e a população a ser desapropriada. Osfazendeiros reconhecem claramente o que está acontecendo quando o Estado tenta despojá-los de sua terra; a desapropriação de terras é universalmente e imediatamente transparente (De Angelis, 2007: 139) (…) Impedidos de se apoiar na mistificação comum à exploração do trabalho no capitalismo, os Estados são normalmente compelidos a justificar essas expropriações de terra tão evidentes por meio de reivindicações ideológicas: de servirem a "um propósito público" ou ao "interesse nacional"; no século passado, eles costumavam fazê-lo por meio da linguagem do "desenvolvimento". A força de persuasão dessas reivindicações depende consideravelmente da capacidade de alinhar o propósito econômico dessas desapropriações com um conceito amplamente aceito de progresso nacional (LEVIEN, 2014, p. 36).
Aponta o autor, pois, para a importância dos meios políticos pelos quais, atualmente, as desapropriações 13 são desenvolvidas e para a necessidade de
A tradução do termo desapropriação, em Levien, nos parece que corresponde mais ao termo despojo ou expropriação, no entanto manteremos a tradução do texto em Português, ainda que consideremos que a reflexão trazida pelo autor indica exatamente uma dimensão extra-econômica
ao processo de acumulação que, no caso brasileiro, estaria mais ligado ao termo expropriação do
que ao termo desapropriação (que se revestiria de alguma roupagem legal em virtude da ação “legitimada” do poder estatal).
compreender esse elemento diferenciador ligado à dependência do poder estatal para fazer valer o processo de acumulação (LEVIEN, 2014, p. 35-36).
Conclui-se, assim que contextos e formações sociais específicas acabam por apresentar também configurações específicas – muito menos idílicas ou “objetivas” num sentido legal ou imparcial, como vimos – e que são importantes para a caracterização de uma certa “micropolítica” do que vem sendo realizado pelo ente expropriador estatal, reproduzindo as expropriações e as violências em grandes obras hídricas, mesmo após quase 20 anos entre a construção da Barragem de Acauã e o Canal Acauã-Araçagi.
Segundo uma das lideranças do MAB, havia nas margens do Rio Paraíba em um local próximo à primeira proposta de Barragem na região – ainda na década de 1980 - uma “curva dos Acauãs”. Este local era referenciado pelos camponeses e ribeirinhos como o preferido dos pássaros Acauãs, ave falconídea comum naquela região e muito conhecida na cultura popular sertaneja e nordestina.
O Acauã é uma das aves mensageiras, que expressa com o seu cantar o mau-agouro, anunciando a seca no sertão ou notícias indesejadas, como a morte de algum ente familiar. Esta narrativa, inclusive, foi eternizada na canção de José Dantas e musicada por Luiz Gonzaga também chamada Acauã: “Acauã, acauã vive cantando / Durante o tempo do verão / No silêncio das tardes agourando / Chamando a seca pro sertão / Chamando a seca pro sertão / Acauã, Acauã, / Teu canto é penoso e faz medo / Te cala acauã, / Que é pra chuva voltar cedo / Que é pra chuva voltar cedo (Canção Acauã, de Luiz Gonzaga e José Dantas, 1952).
Com esta inspiração, derivada de músicas e dos causos sertanejos, entendemos que no contexto paraibano há dois cantos de Acauã: um derivado da Barragem e outro, recente, do Canal Acauã-Araçagi. Em ambos, o canto de Acauã é penoso e faz medo, pois anuncia futuros nada promissores.
Por ora, cabe-nos finalizar este artigo apontando as consequências desta “pesquisa em movimento” num dossiê que busca compreender o Comum na América Latina. É importante observar que nossa intenção na pesquisa do doutorado é “rastrear” o despojo múltiplo como contraface das lutas pelo comum,
que tem se apresentado em diversos contextos na América Latina, seguindo as indicações de Mina Navarro Trujillo (2019).
Isto porque, conforme nos ensina Raquel Gutiérrez (2019), as lutas em curso na América Latina são realizadas contra o despojo capitalista – mecanismo que nega as possibilidades mesmas de produção e reprodução ampliada da vida. Mas também são lutas pela afirmação de outros horizontes, comunitários e/ou populares, em defesa do que é coletivamente possuído e usufruído. Em especial, os elementos essenciais a uma vida digna que são construídos cotidianamente, como o caso da água no Nordeste e no semiárido.
Esta caracterização e sentido do comum, pois, não está determinada pelos sentidos moderno-coloniais da categoria propriedade (privada), que antes de tudo é uma categoria que priva e, portanto, exclui de outros, a possibilidade de uso e/ou usufruto de algo. Mas tal perspectiva também se afasta da chamada “propriedade pública”, buscando fugir de uma perspectiva idílica sobre o que é o “público-estatal”, quando esta caracterização em verdade reforça as expropriações. Ensina a autora que:
[…] o comum pode não ser necessariamente pensado em tais cânones (da dicotomia público-privado). É esse o nó da abertura conceitual na qual eu estou engajada: desligar a compreensão do comum do lastro da propriedade – especificamente, os significados de propriedade sob sua compreensão moderna, isto é, como propriedade privada, que são regulamentados nas leis civis, nos diversos e muito semelhantes códigos civis nacionais – possibilita estar aberto a pensar o comum não apenas como algo dado e que é compartilhado, mas, acima de tudo, como algo que está sendo produzido, reproduzido e reatualizado de maneira contínua e constante. […] O comum, sob essa perspectiva, deixa de ser um objeto ou coisa sob o domínio de alguns para ser entendido como ação coletiva de produção, apropriação e reapropriação do que há e do que é feito, do que existe e do que é criado, do que é oferecido e gerado pela própria Pachamama e, também, do que a partir disso foi produzido, construído e alcançado pela articulação e esforço comum de homens e mulheres situados historicamente e geograficamente. Daí a pertinência da pesquisa sobre a produção do comum, suas lógicas associativas e suas dinâmicas internas, como questão fundamental e cujos horizontes políticos não estão focados no que é estatal - portanto, público e universal (AGUILLAR, 2019, p. 232–233).
Talvez, pois, a contribuição deste artigo seja exatamente a de demonstrar que nem tudo que é “público-estatal” representa o “comum”; e o caso das terras e águas no semiárido nordestino é ilustrativo dessa contradição. O artigo permite, pois, compreender alguns destes conflitos em curso a partir de um estudo de caso, nessa dialética dos territórios que se antagonizam – às vezes de forma explícita e
às vezes de maneira singela. Formas renovadas de acumulação do capital, de um lado, e a luta pela reprodução ampliada da vida, de outro.
Por outro lado, os relatos obtidos durante as entrevistas praticamente impõem uma abordagem multi ou interdisciplinar para sua análise. Ressaltamos este aspecto metodológico no nosso trabalho, que antes de tudo busca compreender as novas fases de acumulação capitalista e sua conflitualidade no tema das águas, tarefa que não é possível de se realizar sem um profundo reconhecimento das limitações das áreas do conhecimento compartimentalizadas, o que aponta para uma contribuição metodológica importante que gostaríamos de ressaltar: todo conflito socioambiental ou territorial exige, por excelência, a interdisciplinaridade.
No caso do Nordeste e do semiárido, considerada região-problema por diversas abordagens (neo) desenvolvimentistas com base num determinismo geográfico ou climático, o desafio para pensar em alternativas é ainda maior. Isto porque lidamos não somente com as dificuldades inerentes aos conflitos socioambientais no Brasil em virtude da concentração de terras e do racismo ambiental, mas também porque dentro do próprio campo da esquerda por vezes se reproduz um discurso que é cúmplice das narrativas do capital, que acaba por ampliar as situações de despojo, através de diversos e complexos regimes de desapropriação, negando a experiência social vivida e invisibilizando o sofrimento e as violações de direitos humanos.
Exatamente por isso encaramos que “o caminho se faz caminhando”, assim como o caminho das águas que realizamos e que ainda irão, por certo, nos trazer novos e diversos outros dados importantes para entender essa complexa e dialética teia de realidades, que não se quer somente compreender, mas transformar.
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