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V.18, nº 36 - 2020 (maio-ago) ISSN: 1808-799X


O “NOVO CAMINHO DAS ÁGUAS” DA PARAÍBA E OS CANTOS DE ACAUÃ: EXPROPRIAÇÃO E VIOLÊNCIA EM GRANDES OBRAS HÍDRICAS1

Hugo Belarmino de Morais2 Ana Maria Motta Ribeiro3

Resumo

Este artigo apresenta e convida a uma reflexão crítica sobre a questão hídrica no Nordeste brasileiro, a partir de um estudo de caso no Estado da Paraíba. Apresenta alguns resultados parciais de uma das etapas da pesquisa de campo realizada em julho de 2018, que buscou investigar o “novo caminho das águas” na Paraíba, a partir dos impactos decorrentes da construção do Canal das Vertentes Litorâneas, chamado “Canal Acauã-Araçagi”, considerada a principal obra hídrica do Estado, que visa ao aproveitamento das águas do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco na Paraíba.

Palavras-chave: Expropriação – Pesquisa militante – Canal Acauã-Araçagi – Barragens


EL "NUEVO CAMINO DE LAS AGUAS" DE PARAÍBA Y LOS CANTOS DE ACAUÃ: EXPROPIACIÓN Y VIOLENCIA EN LAS GRANDES OBRAS HÍDRICAS

Resumen

Este artículo presenta e invita a una reflexión crítica sobre la cuestión del agua en el Noreste de Brasil, a partir de un estudio de caso en el Estado de Paraíba. Presenta algunos resultados parciales de una de las etapas de la investigación de campo llevada a cabo en julio de 2018, que tenía por objeto investigar la "nueva forma de las aguas" en Paraíba, a partir de los impactos resultantes de la construcción del Canal de las Vertientes Costeras, denominado "Canal de Acauã-Araçagi", considerada la principal obra hídrica del Estado, que tiene por finalidad el aprovechamiento de las aguas del Eje Oriental del Transvase del Río São Francisco en Paraíba.

Palabras clave: Expropiación - Investigación Militante - Canal Acauã-Araçagi - Represas


THE "NEW WATERWAY" IN PARAÍBA AND THE ACAUÃ SINGS: EXPROPRIATION AND VIOLENCE IN LARGE WATER CONSTRUCTIONS

Abstract

This article presents and invites a critical reflection on the water issue in the brazilian Northeast from a case study in the state of Paraíba. Presentes partial results of one of the stages of the field research carried out in July 2018, which sought to investigate the “new water way” in Paraíba, from the impacts arising from the construction of the Coastal Vents Channel, called “Acauã-Araçagi”, considered the main water work of the State, which aims to take advantage of waters of the East Axis of the Transposition of the São Francisco River in Paraíba.

Keywords: Expropriation - Militant Research - Acauã-Araçagi Canal – Dams


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  1. Artigo recebido em 31/01/2020. Primeira avaliação em 02/02/2020. Segunda avaliação em 06/03/2020. Terceira avaliação em 09/03/2020. Aprovado em 07/04/2020. Publicado em 22/05/2020.

    DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i36.38475

  2. Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense

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    (PPGSD/UFF) - Brasil, na linha de pesquisa “Conflitos socioambientais Rurais e Urbanos”. Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Integrante do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF/UFF). Ex-bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior da CAPES (PDSE/CAPES). E-mail: hugobelmorais@gmail.com, ORCID: 0000-0002-2733-5412.

  3. Professora Associada da Universidade Federal Fluminense - Brasil, vinculada ao Departamento de Sociologia

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    e Metodologia das Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF), na Linha de Pesquisa “Conflitos Socioambientais Rurais e Urbanos”. Coordenadora do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF-UFF). E-mail: anamribeiro@outlook.com, ORCID: 0000-0003-2761-3539.


    Introdução


    Neste artigo objetiva-se discutir os resultados parciais da investigação realizada pelo autor, com o suporte e construção coletiva junto da sua orientadora, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF), que discute os “novos” contornos de grandes obras hídricas no Semiárido Nordestino, a partir de um estudo de caso no Estado da Paraíba.

    Para tal, dividimos este trabalho em três partes. Primeiramente, iremos descrever alguns aspectos essenciais do território estudado, apontando o que caracterizamos neste trabalho como o “novo caminho das águas” na Paraíba, entendido aqui como um novo planejamento hídrico-territorial, decorrente da “integração” de três obras hídricas: o Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco, a Barragem de Acauã e o Canal das Vertentes Litorâneas, mais conhecido como Canal Acauã-Araçagi.

    Após, será apresentada nossa proposta metodológica, baseada nos pressupostos da pesquisa militante (BRINGEL & VARELLA, 2016), que buscou identificar, a partir de um complexo e rico planejamento coletivo, os principais impactos decorrentes da construção do Canal.

    Depois, iremos apresentar alguns dados mais específicos decorrentes das atividades de campo desenvolvidas no final de Julho de 2018, centrando nossa atenção aos aspectos metodológicos e nos achados decorrentes daquela empiria: em especial, decorrentes das entrevistas realizadas com atingidos de “ontem” e de “hoje”, que vivem às margens do canal supracitado, e outra entrevista, realizada com o engenheiro da Secretaria de Recursos Hídricos do Estado da Paraíba, responsável pelas desapropriações que viabilizaram a construção do Canal.

    Cabe ressaltar que a escolha destes materiais se deu em virtude do processo de sistematização que está em curso para a tese de doutorado, motivo pelo qual buscamos alguns materiais do campo que sintetizam questões mais relevantes para o objetivo do dossiê e que foram observadas ao longo do processo da pesquisa. Tais achados se apresentaram fortemente na experiência real e concreta dos atingidos: a expropriação e a violência, como marcas permanentes da acumulação do capital, que se reproduzem nas grandes obras hídricas, de ontem e de hoje. Mas

    também aparecem as lutas e resistências contra as expropriações, às vezes de maneira mais explícita e às vezes de maneira mais singela, como veremos.


    Um território de conflitos: a Barragem de Acauã e o “novo caminho das águas” na Paraíba


    “Barragem de Acauã: inaugurado cemitério para comunidade de Pedro Velho, PB (17/03/2017)”4

    “Lula e Dilma levam multidão à inauguração da transposição do São Francisco, na PB (19/03/2017)”5

    “Canal Acauã-Araçagi a segunda maior obra do nordeste recebe o nome de Celso Furtado (24/03/2017)”6


    As notícias acima, retiradas de diversas fontes jornalísticas e meios de comunicação no ano de 2017, ilustram um contexto extremamente complexo no Estado da Paraíba, Região Nordeste do Brasil. As notícias narram um conjunto de expectativas, estratégias discursivas e os usos políticos ligados à questão hídrica, com os conflitos e contradições inerentes a esse processo.

    A primeira notícia retrata a situação dos atingidos pela Barragem de Acauã7, que foi construída entre os anos de 1999 a 2002 nos municípios de Natuba, Itatuba e Aroeiras, na região Agreste do Estado. Reconhecida nacionalmente como um dos casos mais emblemáticos de violações de direitos humanos aos atingidos por barragens no Brasil, conforme relatório oficial produzido pelo antigo CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), atual Conselho Nacional de Direitos Humanos, no processo de construção – e posteriormente – à Barragem de Acauã foram constatadas violações: ao Direito à informação; Direito ao trabalho;


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  4. MAB, Movimento de Atingidos por Barragem. Barragem Acauã: inaugurado cemitério para a comunidade Pedro Velho, PB. Disponível em: <http://www.mabnacional.org.br/noticia/barragem- acau-inaugurado-cemit-rio-para-comunidade-pedro-velho-pb-0>. Acesso em: 13 de maio de 2017.

  5. BRASIL DE FATO. Lula e Dilma levam multidão à inauguração da tranposição do Velho Chico

    na Paraíba. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2017/03/20/lula-e-dilma-levam- multidao-a-inauguracao-da-transposicao-do-velho-chico-na-paraiba/>. Acesso em: 13 de maio de 2017.

  6. REVISTA FÁCIL. Canal Acauã-Araçagi a segunda maior obra do nordeste recebe o nome de Celso Furtado. Disponível em: <http://www.revistafacil.net/2017/03/canal-acaua-aracagi-segunda- maior-obra.html>. Acesso em: 13 de maio de 2017.

  7. As obras da barragem, no Rio Paraíba, começaram em 14 de Junho de 1999 e foram concluídas

    (construção física da estrutura de barramento) em Agosto de 2002. A barragem, que ocupa uma bacia hidráulica de 1.725 ha, provocou o deslocamento de aproximadamente 4.500 pessoas (900 famílias) que viviam às margens do rio. As águas barradas atingiram, em maior ou menor escala, as zonas rurais das cidades mencionadas acima, inundando completamente 06 povoados (Melancia, Cajá, Ilha Grande, Junco, Pedro Velho e Cafundó) e cerca de 115 imóveis rurais.

    Direito à propriedade e a justa indenização; Direito à moradia; Direito à educação; Direito à saúde; Direito à segurança, Direito cultural; Direito ao meio ambiente seguro e sadio (BRASIL, 2010).

    Como aparece no relatório, a situação de violações de direitos humanos é tão grave que em 2004 dois cemitérios das comunidades atingidas foram alagados (nas comunidades rurais de Cajá e Pedro Velho). Por exemplo, segue uma imagem abaixo, de época, de um desses cemitérios:


    Foto 01 - Cemitério alagado após a construção da Barragem de Acauã


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    Fonte: Acervo do Projeto Universidades Cidadãs, Universidade Federal de Campina

    Grande, 2002.


    A primeira notícia, pois, relata a reinauguração de um desses cemitérios, ocorrida em março de 2017. Estes, passaram muitos anos submersos sob as águas do Rio Paraíba e “reapareceram”, como decorrência do longo período de estiagem na região. Esse reaparecimento – somado à instauração de um novo Procedimento Administrativo no Ministério Público Federal da Paraíba para apurar as violações aos atingidos pela Barragem – promoveu um novo ciclo de articulações junto aos poderes públicos8 . Tal acontecimento nos relembrou aalter Benjamin nas suas teses sobre a história, quando retratava que os mortos não estarão em segurança


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  8. A situação dos atingidos de Acauã já foi objeto de pelo menos dois documentários, um dos quais retrata exatamente a questão do reaparecimento dos cemitérios em 2015, intitulado “Águas para a vida ou para a morte?”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fevOOCMxIHY&t=126s.

O outro documentário é mais antigo e se chama “O canto de Acauã”, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=2XAd6sHhxj0.

se o inimigo vencer e continuarem vencendo. E nos serviu de motivação desde o início da pesquisa de doutorado ainda em curso.

Já a segunda notícia trata da “inauguração popular” da Transposição do Rio São Francisco na cidade de Monteiro-PB, para celebrar a “chegada das águas” – simbolicamente, no dia 19 de março, Dia de São José, que segundo a nossa cultura popular é o dia em que “deve chover para ter uma boa invernada”. Esta inauguração, na verdade, foi um grande ato político, que contou com a presença do ex-Presidente Lula e a Ex-presidenta Dilma Rousseff, já dentro do contexto de disputas políticas após o golpe de Estado ocorrido no ano de 2016 que depôs a Presidenta, e ainda antes da Prisão do ex-Presidente Lula.

Preliminarmente, percebe-se que a “chegada das águas” do Eixo Leste da Transposição aparece nos discursos como um esperança de dias melhores para o exercício de um “direito humano à água” e para garantia da segurança hídrica de diversos municípios, em especial da cidade de Campina Grande, o segundo maior município do Estado da Paraíba e um dos maiores municípios do interior do Nordeste. Aliás, o único momento em que a Transposição do São Francisco realmente funcionou (com bombeamento de água) foi exatamente no ano de 2017, para abastecer o Açude Epitácio Pessoa (Boqueirão), diante da situação de “colapso hídrico” que aquela cidade se encontrava. Aponta-se para um conjunto de disputas acirradas acerca dos “novos rumos da Transposição” após a vitória da extrema direita, podendo, inclusive, ser esta uma das obras a serem privatizadas nas mãos do Ministro da Economia mais neoliberal que o Brasil já conheceu, junto a um Presidente que deliberadamente manifesta preconceito contra nordestinos, e todos os grupos subalternizados.

Ressalte-se que o tema da Transposição já conta, por si, com uma gama muito grande de literatura especializada sobre os conflitos decorrentes da obra. Um ótimo panorama crítico pode ser encontrado no trabalho premiado de Juliana Neves Barros, advogada popular e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que trata exatamente sobre “o conflito em torno da implementação do Projeto de Transposição das águas do Rio São Francisco, no período do Governo Lula (2003-2010), com a pretensão de abastecer de água 12 milhões de pessoas, em 390 municípios do Semiárido nordestino (BARROS, 2017, p. 19)”. Através de vasta pesquisa empírica, a autora procurou mapear o complexo campo

de legitimação social e política da obra bem como os processos de reação e mobilização social ligados a este grande projeto de investimento “em movimento”.

No final do seu livro, a autora indica algumas perspectivas que, em nossa opinião, sintetizam um olhar crítico e reflexivo, dialético, sobre os processos ligados à Transposição e que tomamos como referência para o nosso próprio trabalho de pesquisa:

As possibilidades de intervenção que se abrem sobre o território do Semiárido, ao se analisar mais a fundo os planos oficiais, apontam para uma perspectiva de ampliação do acúmulo de capital mediante a comoditização dos recursos naturais e ampliação das desigualdades sociais. A crise, antes de justificar um possível recuo nos grandes projetos, aparece como uma alavanca na intensidade da exploração. O futuro do Projeto da Transposição abre-se no meio dessa encruzilhada política e econômica que atravessamos. Do ponto de vista do conflito, observam-se algumas iniciativas que refletem esse espírito de disputa sobre os rumos do projeto, como as ocupações das áreas dos canais por famílias atingidas e povos indígenas, carecendo ainda de uma articulação mais ampla (2017, p. 211–212).


Assim, percebemos (e recebemos) as contradições inerentes ao Projeto da Transposição como dados importantes, mas não pretendemos retornar a estes conflitos, dadas as novas complexidades inerentes aos “desdobramentos” da Transposição no caso paraibano.

A última notícia trata, enfim, de uma outra obra hídrica em construção na Paraíba. É sobre ela – e partindo da já consolidada e complexa situação dos atingidos de Acauã – que este artigo tratará mais especificamente. Em virtude da construção do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco, foi justificada a necessidade desta outra obra, o Canal das Vertentes Litorâneas (chamado de Acauã-Araçagi) – obra considerada como a “transposição da Paraíba”, dada a sua magnitude em termos de investimento. É maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC-2) no Estado, que promete “beneficiar 600 mil habitantes e garantir irrigação em 16 mil hectares de terras”. O Canal, segundo a matéria, receberá o nome do economista paraibano Celso Furtado, em sua homenagem.

Neste sentido, este artigo é uma parte preliminar de um estudo mais amplo que está sendo realizado em nossa tese de doutorado, que evidencia territorialidades e discursos conflitantes – somadas às reflexões decorrentes da experiência social dos subalternizados, no sentido que a emprega E. P. Thompson (1981) – quando nos questionamos sobre os sentidos e futuros “resultados” desta

“nova obra hídrica” e seus impactos. Dito isto, tratemos de localizar geograficamente o leitor ou a leitora deste artigo no nosso “universo empírico”:


Mapa 1 - O novo caminho das águas na Paraíba


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Fonte: Aesa, 2018. Editada pelo Pesquisador (2018).


O Mapa indica a localização geográfica dos pontos de interesse. No caso do Eixo Leste da Transposição, as águas entram na Paraíba a partir da cidade de Monteiro - PB (número 1 - seta de cor roxa) e seguem o curso pelo Rio Paraíba até o Açude de Boqueirão (número 2 - seta vermelha), que abastece Campina Grande e toda a sua microrregião.

Após esta fase, o planejamento hídrico realizado pelo Estado da Paraíba é de que as águas retornem ao Rio Paraíba até chegar à Barragem de Acauã (número

3 - seta preta) e, mais especificamente nas proximidades da comunidade de Melancia – uma das comunidades atingidas pela construção da Barragem de Acauã


Foto 3 - Aqueduto em Mogeiro e casas de Assentamento Rural



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Fonte: Imagens feitas pela equipe de pesquisa (2018)


Após contato telefônico, encontramos um dos camponeses, que nos concedeu uma entrevista exatamente em frente ao Aqueduto na cidade de Mogeiro, numa área muito próxima ao Assentamento onde mora. Explicou um pouco da história da luta do Assentamento e destacou que as obras do Canal “chegaram sem

avisar”, em meados de 2013. Desde o início, em virtude da desinformação sobre como seria feita a obra e por onde ela efetivamente passaria, se instaurou um conflito sobre a “metragem” e os limites de área que seriam utilizadas dos dois lados do Canal.


No caso acima é possível perceber o grau de impacto para uma área de assentamento rural, que num pequeno espaço teve doze barreiros destruídos para que o Canal “pudesse passar”. Neste caso, em se tratando de uma área já desapropriada não haveria discussão sobre a indenização da terra, mas tão somente das benfeitorias.

No terceiro dia, percorremos os caminhos das obras do Canal após a margem direita da Rodovia BR-230, na qual foram novamente articuladas entrevistas com assentados e assentadas da reforma agrária, organizados pelo MST e CPT, chegando até o canteiro de obras do Consórcio Acauã-Araçagi na cidade de Mari-PB, a fim de agendar algumas entrevistas que se realizaram no dia seguinte. Destacamos a entrevista realizada exatamente com o servidor responsável pelas desapropriações para, segundo ele, “liberar” as obras. Vejamos o que ele nos respondeu sobre como ocorreram (ou estão ocorrendo) as desapropriações no caso do Canal:


- Eu não faço, eu não faço a mistura... Digamos, tomate, se for o caso... melhor, abacaxi ou cana, que a região aqui é mais abacaxi e cana-de-açúcar... Cana-de-açúcar eu peguei da ASPLAN (Associação de Plantadores de Cana do Estado da Paraíba), o custo de um hectare pra plantar a cana-de-açúcar.

(Depoimento de campo, Servidor da Secretaria de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Ciência e Tecnologia - PB, 2018)


Como retrata o longo trecho acima, nos foi impossível, realmente, compreender qual o padrão e o procedimento legal ou administrativo para o cálculo das desapropriações. É um procedimento surpreendentemente flexível, uma espécie de canivete suíço à disposição do ente expropriador, no uso de diversas “tabelas” para cada tipo de cultura e produção; a ser utilizada conforme critérios de conveniência e oportunidade, mas também – e esse é o elemento sociológico e jurídico relevante – a partir da pressão social, agenciamentos diversos e distinções de classe.

Este processo nos remeteu às considerações trazidas por Levien (2014) sobre o que ele chama de regimes de desapropriação. A partir de uma discussão teórica sobre as relações entre capitalismo e as desapropriações, explica o autor:

O aspecto mais significativo da desapropriação de terra é que ela envolve a intervenção direta e transparente do Estado no processo de acumulação. Do ponto de vista político, essa intervenção direta e extraeconômica na acumulação gera um antagonismo imediato entre o Estado e a população a ser desapropriada. Osfazendeiros reconhecem claramente o que está acontecendo quando o Estado tenta despojá-los de sua terra; a desapropriação de terras é universalmente e imediatamente transparente (De Angelis, 2007: 139) (…) Impedidos de se apoiar na mistificação comum à exploração do trabalho no capitalismo, os Estados são normalmente compelidos a justificar essas expropriações de terra tão evidentes por meio de reivindicações ideológicas: de servirem a "um propósito público" ou ao "interesse nacional"; no século passado, eles costumavam fazê-lo por meio da linguagem do "desenvolvimento". A força de persuasão dessas reivindicações depende consideravelmente da capacidade de alinhar o propósito econômico dessas desapropriações com um conceito amplamente aceito de progresso nacional (LEVIEN, 2014, p. 36).


Aponta o autor, pois, para a importância dos meios políticos pelos quais, atualmente, as desapropriações 13 são desenvolvidas e para a necessidade de


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  1. A tradução do termo desapropriação, em Levien, nos parece que corresponde mais ao termo despojo ou expropriação, no entanto manteremos a tradução do texto em Português, ainda que consideremos que a reflexão trazida pelo autor indica exatamente uma dimensão extra-econômica

ao processo de acumulação que, no caso brasileiro, estaria mais ligado ao termo expropriação do

que ao termo desapropriação (que se revestiria de alguma roupagem legal em virtude da ação “legitimada” do poder estatal).

compreender esse elemento diferenciador ligado à dependência do poder estatal para fazer valer o processo de acumulação (LEVIEN, 2014, p. 35-36).

Conclui-se, assim que contextos e formações sociais específicas acabam por apresentar também configurações específicas – muito menos idílicas ou “objetivas” num sentido legal ou imparcial, como vimos – e que são importantes para a caracterização de uma certa “micropolítica” do que vem sendo realizado pelo ente expropriador estatal, reproduzindo as expropriações e as violências em grandes obras hídricas, mesmo após quase 20 anos entre a construção da Barragem de Acauã e o Canal Acauã-Araçagi.


Considerações finais


Segundo uma das lideranças do MAB, havia nas margens do Rio Paraíba em um local próximo à primeira proposta de Barragem na região – ainda na década de 1980 - uma “curva dos Acauãs”. Este local era referenciado pelos camponeses e ribeirinhos como o preferido dos pássaros Acauãs, ave falconídea comum naquela região e muito conhecida na cultura popular sertaneja e nordestina.

O Acauã é uma das aves mensageiras, que expressa com o seu cantar o mau-agouro, anunciando a seca no sertão ou notícias indesejadas, como a morte de algum ente familiar. Esta narrativa, inclusive, foi eternizada na canção de José Dantas e musicada por Luiz Gonzaga também chamada Acauã: “Acauã, acauã vive cantando / Durante o tempo do verão / No silêncio das tardes agourando / Chamando a seca pro sertão / Chamando a seca pro sertão / Acauã, Acauã, / Teu canto é penoso e faz medo / Te cala acauã, / Que é pra chuva voltar cedo / Que é pra chuva voltar cedo (Canção Acauã, de Luiz Gonzaga e José Dantas, 1952).

Com esta inspiração, derivada de músicas e dos causos sertanejos, entendemos que no contexto paraibano há dois cantos de Acauã: um derivado da Barragem e outro, recente, do Canal Acauã-Araçagi. Em ambos, o canto de Acauã é penoso e faz medo, pois anuncia futuros nada promissores.

Por ora, cabe-nos finalizar este artigo apontando as consequências desta “pesquisa em movimento” num dossiê que busca compreender o Comum na América Latina. É importante observar que nossa intenção na pesquisa do doutorado é “rastrear” o despojo múltiplo como contraface das lutas pelo comum,

que tem se apresentado em diversos contextos na América Latina, seguindo as indicações de Mina Navarro Trujillo (2019).

Isto porque, conforme nos ensina Raquel Gutiérrez (2019), as lutas em curso na América Latina são realizadas contra o despojo capitalista – mecanismo que nega as possibilidades mesmas de produção e reprodução ampliada da vida. Mas também são lutas pela afirmação de outros horizontes, comunitários e/ou populares, em defesa do que é coletivamente possuído e usufruído. Em especial, os elementos essenciais a uma vida digna que são construídos cotidianamente, como o caso da água no Nordeste e no semiárido.

Esta caracterização e sentido do comum, pois, não está determinada pelos sentidos moderno-coloniais da categoria propriedade (privada), que antes de tudo é uma categoria que priva e, portanto, exclui de outros, a possibilidade de uso e/ou usufruto de algo. Mas tal perspectiva também se afasta da chamada “propriedade pública”, buscando fugir de uma perspectiva idílica sobre o que é o “público-estatal”, quando esta caracterização em verdade reforça as expropriações. Ensina a autora que:

[…] o comum pode não ser necessariamente pensado em tais cânones (da dicotomia público-privado). É esse o nó da abertura conceitual na qual eu estou engajada: desligar a compreensão do comum do lastro da propriedade – especificamente, os significados de propriedade sob sua compreensão moderna, isto é, como propriedade privada, que são regulamentados nas leis civis, nos diversos e muito semelhantes códigos civis nacionais – possibilita estar aberto a pensar o comum não apenas como algo dado e que é compartilhado, mas, acima de tudo, como algo que está sendo produzido, reproduzido e reatualizado de maneira contínua e constante. […] O comum, sob essa perspectiva, deixa de ser um objeto ou coisa sob o domínio de alguns para ser entendido como ação coletiva de produção, apropriação e reapropriação do que há e do que é feito, do que existe e do que é criado, do que é oferecido e gerado pela própria Pachamama e, também, do que a partir disso foi produzido, construído e alcançado pela articulação e esforço comum de homens e mulheres situados historicamente e geograficamente. Daí a pertinência da pesquisa sobre a produção do comum, suas lógicas associativas e suas dinâmicas internas, como questão fundamental e cujos horizontes políticos não estão focados no que é estatal - portanto, público e universal (AGUILLAR, 2019, p. 232–233).


Talvez, pois, a contribuição deste artigo seja exatamente a de demonstrar que nem tudo que é “público-estatal” representa o “comum”; e o caso das terras e águas no semiárido nordestino é ilustrativo dessa contradição. O artigo permite, pois, compreender alguns destes conflitos em curso a partir de um estudo de caso, nessa dialética dos territórios que se antagonizam – às vezes de forma explícita e

às vezes de maneira singela. Formas renovadas de acumulação do capital, de um lado, e a luta pela reprodução ampliada da vida, de outro.

Por outro lado, os relatos obtidos durante as entrevistas praticamente impõem uma abordagem multi ou interdisciplinar para sua análise. Ressaltamos este aspecto metodológico no nosso trabalho, que antes de tudo busca compreender as novas fases de acumulação capitalista e sua conflitualidade no tema das águas, tarefa que não é possível de se realizar sem um profundo reconhecimento das limitações das áreas do conhecimento compartimentalizadas, o que aponta para uma contribuição metodológica importante que gostaríamos de ressaltar: todo conflito socioambiental ou territorial exige, por excelência, a interdisciplinaridade.

No caso do Nordeste e do semiárido, considerada região-problema por diversas abordagens (neo) desenvolvimentistas com base num determinismo geográfico ou climático, o desafio para pensar em alternativas é ainda maior. Isto porque lidamos não somente com as dificuldades inerentes aos conflitos socioambientais no Brasil em virtude da concentração de terras e do racismo ambiental, mas também porque dentro do próprio campo da esquerda por vezes se reproduz um discurso que é cúmplice das narrativas do capital, que acaba por ampliar as situações de despojo, através de diversos e complexos regimes de desapropriação, negando a experiência social vivida e invisibilizando o sofrimento e as violações de direitos humanos.

Exatamente por isso encaramos que “o caminho se faz caminhando”, assim como o caminho das águas que realizamos e que ainda irão, por certo, nos trazer novos e diversos outros dados importantes para entender essa complexa e dialética teia de realidades, que não se quer somente compreender, mas transformar.


Referências


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