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V.18, nº 36 - 2020 (maio-ago) ISSN: 1808-799X


Ensaio fotográfico (acessar ensaio)



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Ripper, fotografado por Valda Nogueira, no Vale das Sempre-Vivas, Serra do Espinhaço, Diamantina, MG.


A PEDAGOGIA DO BEM-QUERER NA OBRA DE JOÃO ROBERTO RIPPER1


Dante Gastaldoni - Coletivo Fotografia, Periferia e Memória2


Em seus quase 50 anos de profissão, o fotodocumentarista João Roberto Ripper vem construindo uma trajetória múltipla: foi repórter fotográfico na grande imprensa, líder sindical que contestou o golpe militar, fotógrafo de agências independentes, autor de três livros memoráveis, e fundador de uma escola de


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1 Ensaio recebido em 07/05/2020. Aprovado pelos editores em 08/05/2020. Publicado em 22/05/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i36.42615

2 Jornalista formado pela Universidade Federal Fluminense, com mestrado em Fotografia no Programa

de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Foi repórter, redator e editor no Jornal do Brasil (1976/1983), dirigiu a Editora Gama Filho (1984/2011), atuou como professor de Fotografia no IACS/UFF (1980/2016) e desde 1983 leciona Fotojornalismo na ECO/UFRJ. Entre 2005 e 2015 foi coordenador acadêmico da Escola de Fotógrafos Populares, Maré, RJ, cuja produção ganhou visibilidade em dois livros e inúmeras exposições de fotografia exibidas no Brasil e no Exterior. Em 2015 criou o Coletivo Fotografia, Periferia e Memória, composto basicamente por fotógrafos populares e, desde então, seus integrantes já se apresentaram em mais de 30 cidades de 13 estados brasileiros. Email: degastaldoni@gmail.com

fotografia na favela da Maré, RJ, onde desenvolveu os fundamentos de uma “pedagogia do bem-querer”, conceito que se pretende esboçar nos limites deste texto, para explicar a concepção e o sucesso de um ciclo de oficinas de fotografia que vem sendo oferecido, ao longo dos últimos 10 anos, para um público majoritariamente formado por populações tradicionais que vivem à margem dos grandes centros de decisão.


Um compromisso histórico com o povo brasileiro


As chamadas “populações tradicionais” têm sido ao longo dos últimos 45 anos, a principal pauta da documentação fotográfica que João Roberto Ripper vem realizando pelas entranhas deste nosso imenso e pouco conhecido país. A opção pelo tema, que já lhe rendeu inclusive quatro malárias, atesta não apenas o comprometimento ideológico do fotógrafo, quanto o caráter visionário de sua obra, uma vez que a categoria “populações tradicionais” é relativamente nova, apesar de constatarmos a presença desses povos no meio rural brasileiro desde longa data.

A expressão passou a ser utilizada na esfera governamental em 1992, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) criou o Conselho Nacional de Populações Tradicionais, destinado a desenvolver mecanismos de preservação para áreas tradicionalmente ocupadas por nações indígenas, comunidades remanescentes de quilombos, pescadores artesanais e núcleos extrativistas de maneira geral. Na virada do milênio, a Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, regulamentou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, mencionando as “populações tradicionais” e definindo áreas de proteção ambiental em seus ecossistemas. Em dezembro de 2004, o Governo Federal instituiu a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, órgão encarregado de coordenar a implementação de uma Política Nacional capaz de proteger não apenas as “populações tradicionais” em si, como os recursos naturais renováveis de suas regiões. Cabe ressaltar que o processo de consolidação de tais políticas vêm sendo sistematicamente desmontado nos últimos anos, daí a importância de enaltecermos o esforço desses povos em preservar seus modos de vida, perpetuar relações ancestrais e cuidar do meio ambiente, com a providencial ajuda de abnegados ambientalistas e antropólogos com perfil humanista,

empenhados em defender a integração homem-natureza e minimizar o impacto ambiental provocado pelo agronegócio.

Em certa medida, é como se o Brasil, ao ingressar no terceiro milênio, tivesse começado a olhar para suas comunidades tradicionais movido pelas mesmas preocupações que levaram João Roberto Ripper a iniciar, ainda na década de 1970, uma ininterrupta documentação do tema. E o que esses registros fotográficos do povo brasileiro nos permitem perceber? Para além do domínio técnico e da esmerada composição, as imagens nos tocam pela profunda interação com os fotografados, uma espécie de cumplicidade que se revela no modo com que os personagens das comunidades documentadas recebem o fotógrafo. Tal comunhão vem precedida pela militância combativa do Ripper e pelas relações de solidariedade solidamente estabelecidas ao longo do tempo com o povo brasileiro. Uma história de vida que ajuda a explicar o encantamento que suas fotografias exercem sobre a maioria de nós.


Olhar o próximo como a si mesmo


João Roberto Ripper Barbosa Cordeiro nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 06 de maio de 1953. Foi o segundo dos sete filhos de Seu Thomaz Edson Barbosa Cordeiro, “um cearense forte e romântico, que veio para o Rio de Janeiro num pau de arara”, e de Dona Maria Dinah Ripper Cordeiro, “uma carioca baixinha, magrinha, sempre preocupada em ajudar aos outros”. A fotografia entrou em sua vida meio ao sabor do acaso, quando cursava o ensino médio. Ele lembra de uma aula de Português em que interpelou seu professor sobre a interpretação dada a um poema de Camões e acabou sendo vaiado pela maioria dos alunos da turma. A atitude ousada lhe rendeu a amizade de um colega mais velho, o fotógrafo Júlio César Pereira, com quem Ripper aprendeu os rudimentos da linguagem fotográfica.

Daí para o processo de profissionalização foi um pulo. Aos 19 anos começou a fotografar para o jornal Luta Democrática, ampliando sua experiência como repórter fotográfico nos jornais Diário de Notícias, O Estado de São Paulo, Última Hora e O Globo. Ao longo de sua passagem pela grande imprensa, Ripper desenvolveu agudo senso crítico, progressivamente traduzido em militância política, especialmente durante a primeira metade da década de 1980, período em que liderou um movimento corporativo pela valorização da profissão, com conquistas significativas tais como a

exigência de crédito nas fotografias e a aprovação de uma tabela de preços mínimos para coberturas fotográficas. A luta pela liberdade de expressão também marcou presença nessa época, notadamente em 1984, quando ele mobilizou os repórteres fotográficos para o registro da campanha “Diretas Já!”, ocasião em que milhões de brasileiros foram às ruas clamar pelo fim do regime militar e pelas eleições diretas para a presidência da república.

O mergulho na fotografia documental se deu quando Ripper trocou “a foto da véspera”, típica dos jornais diários, pelos ensaios fotográficos desenvolvidos na F4 (1979/91), agência de fotógrafos independentes que marcou época na história do fotojornalismo brasileiro. Lá, ele começou a desenvolver documentações de longa imersão e foi lapidando seu olhar autoral na convivência com um time respeitável de fotógrafos, entre os quais Ripper destaca a influência de Nair Benedicto, uma das fundadoras da agência. Da passagem pela F4 vieram a inspiração e o amadurecimento necessários para fundar o Imagens da Terra (1991/99), cooperativa de fotógrafos que teve destacada atuação junto aos movimentos populares, em especial na documentação da luta sindical, da questão agrária, das nações indígenas e do trabalho escravo nos confins do Brasil. Com a dissolução do Imagens da Terra surgiu o Imagens Humanas, site criado para veicular e comercializar o acervo do fotógrafo. “Imagens Humanas” (Dona Rosa Produções, Rio de Janeiro, 2009) é também o título de seu primeiro livro, uma antologia fotográfica publicada para celebrar 35 anos de carreira.

Em 2004, Ripper foi convidado por Jailson de Souza e Silva, do Observatório de Favelas (projeto social criado em 2001, no complexo de favelas da Maré), para produzir as fotos que ilustrariam o livro “Favela: alegria e dor na cidade” (Senac Editora, Rio de Janeiro, 2005), escrito em parceria com Jorge Luiz Barbosa, ambos fundadores do Observatório de Favelas e então professores do curso de Geografia da UFF. O convite ganhou desdobramentos insuspeitos quando Ripper sugeriu que as fotos do livro fossem feitas pelos próprios moradores da comunidade, a partir de um curso de fotografia que ele se propunha a oferecer. A ideia, prontamente abraçada pela direção do Observatório de Favelas, era formar fotógrafos capazes de documentar as comunidades populares sob a ótica do pertencimento e, consequentemente, projetar um novo olhar sobre a favela e a cidade. O curso, batizado como Escola de Fotógrafos Populares (EFP), teve sua primeira versão

oferecida ainda em 2004, com 60 horas/aula e duração de quatro meses, ganhando um fôlego adicional, semanas depois, com a inauguração da agência Imagens do Povo, espaço concebido para que os fotógrafos do programa pudessem apresentar seus portfólios on-line e para que eventuais clientes pudessem comprar fotografias no banco de imagens ou encomendar trabalhos de documentação fotográfica.


Por uma Pedagogia do Bem-Querer


A matriz conceitual desta revolucionária experiência pedagógica está ancorada na “beleza dos fazeres das populações mais pobres”, aspecto pouco enaltecido pela mídia hegemônica. No caso das favelas, Ripper percebeu desde cedo que o noticiário costumava produzir uma inversão de valores, ao apresentar os moradores desses espaços como violentos. Na prática, essas pessoas são vítimas de uma violência generalizada, uma vez que suas comunidades são disputadas por traficantes ou milicianos fortemente armados e ficam expostas à ação truculenta de policiais militares que matam em uma escala sem paralelo no mundo. Enfim, um cenário caótico que se mostra naturalizado no imaginário social, o que acaba conspirando para eclipsar a histórica negação de direitos que o poder público impõe à parcela da população com menos recursos financeiros. A veiculação sistemática pela chamada grande imprensa de uma “história única” – no sentido limitador e indesejado que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie atribui à expressão – foi uma pista para que o Ripper percebesse a importância de formar fotógrafos capazes de contar outras histórias sobre os espaços populares, como forma de combater os estereótipos vigentes.

Um aspecto curioso, que ajuda a entender os desdobramentos pedagógicos posteriores, é que em 2004, ao fundar a EFP, Ripper tinha uma percepção clara da potência ali embutida, mas não possuía ainda a prática docente que o curso iria demandar. Bem ao seu estilo agregador, se cercou de renomados fotógrafos e professores, utilizando para tanto seu imenso prestígio junto a tais categorias profissionais. Era muito difícil dizer “não” a um pedido do Ripper, quase sempre formulado em voz mansa e imperativa. Foi assim que um belo dia (aqui não abro mão do “belo dia”) recebi pelo telefone, o convite para dar uma aula sobre História da Fotografia na Casa de Cultura da Maré. A experiência, extremamente gratificante, acabou sendo a primeira das muitas aulas que ministrei durante aquela fase de

implantação do projeto, até que ao final de 2005 assumi o cargo de coordenador acadêmico da Escola. Confesso, em perspectiva histórica, que nem os 30 anos de magistério que eu tinha à época, divididos entre a UFF e a UFRJ, me permitiram antever a expressiva repercussão que aquela iniciativa teria nos anos subsequentes. Em novembro de 2005 preparamos um alentado projeto acadêmico para a Escola, cujo conteúdo programático previa 540 horas/aula e duração de 10 meses. O projeto foi acolhido pelo UNICEF, que garantiu o financiamento da EFP a partir de março de 2006. Em paralelo, solicitamos à Pró-Reitoria de Extensão da UFF que ao final de 2006 os formandos da Escola pudessem receber diplomas similares aos expedidos pela universidade para seus cursos de extensão, prática que vigorou entre 2006 e 2012, ano em que os diplomas passaram a ser expedidos pela UFRJ. Para ilustrar o sucesso da iniciativa, lembro que no ano seguinte os fotógrafos formados pela Escola já tinham participado de exposições no Centro Cultural Banco do Brasil (Esporte na Favela), no Centro Cultural da Caixa (Olhar Cúmplice) e na Canning House (Belonging), em Londres. Para fechar o ano com chave de ouro, a Escola de Fotógrafos Populares recebeu o Prêmio Faz Diferença do jornal O Globo em 2007, cujo troféu foi entregue em março de 2008, durante solenidade no Hotel Copacabana

Palace.

De um modo aparentemente paradoxal, a experiência pedagógica que Ripper desenvolveu na Maré acabou sendo decisiva para transformá-lo em Mestre. A exigência das aulas regulares e o compartilhamento da sua própria prática profissional, predominantemente intuitiva, fizeram com que, aos poucos, o fotodocumentarista fosse reunindo material didático sobre alguns dos mais importantes fotógrafos humanistas, entrando em contato com a obra dos principais teóricos da Fotografia, sistematizando exercícios de sensibilização do olhar desenvolvidos durante as atividades práticas, e, por fim, modelando um modo de ensinar centrado nas relações de afeto e solidariedade que permeavam a sua própria produção fotográfica. Foi assim que, há exatos 10 anos, surgiu a primeira das muitas oficinas “Fotografia do Bem-Querer”, para designar um estilo de fotografia documental na qual “o fotógrafo atua como elo afetivo entre os fotografados e os que verão as fotos”. Oferecidas com cargas horárias e dinâmicas variáveis, seja em função das disponibilidades de agenda, seja pelas características dos distintos públicos, essas oficinas foram inicialmente realizadas nas favelas cariocas, mas, aos poucos,

ampliaram seu raio de ação entre assentamentos do MST, aldeias indígenas, comunidades quilombolas e demais contingentes de populações tradicionais, movidas pela premissa de que cada um desses grupos humanos poderia contar sua própria história e ajudar a combater as limitações da história única.

Como desfecho para o presente relato, acho oportuno enfatizar um aspecto notável do método aqui classificado como “pedagogia do bem-querer”. Trata-se do empenho de João Roberto Ripper em garantir que os fotografados possam exercer um amplo poder sobre os registros fotográficos de suas vidas. Tal poder se manifesta de diversas formas, a começar pelo direito atribuído a cada fotografado de excluir da seleção final as fotos em que não se considere bem representado, ou seja, as imagens veiculadas são fruto de uma edição compartilhada. Digno de registro também é o compromisso de enviar para as comunidades retratadas um conjunto de fotos impressas e um pendrive com os arquivos digitais ali produzidos, para serem indistintamente utilizados como memória pessoal ou em eventuais lutas políticas. Nesse contexto, merece destaque uma cláusula no contrato que formaliza a aquisição de fotos, informando ao cliente que as imagens ali contidas estão liberadas para organizações humanitárias e entidades de direitos humanos. No plano estritamente comercial, outra novidade é posta em prática no “termo de cessão de imagem” (exigência jurídica relativamente recente, atrelada às questões de direito autoral), que as pessoas fotografadas precisam assinar para viabilizar a veiculação das fotos em que aparecem. O documento criado por Ripper tem uma cláusula adicional que garante ao fotografado 50% do valor obtido pela venda de qualquer foto com sua imagem no crescente mercado de fine-art.

O cuidado com o outro, que tais providências deixam entrever, está na raiz da oficina “Fotografia do Bem-Querer”, oferecida dezenas de vezes na última década, em seu formato presencial. Em abril de 2020, a oficina foi, pela primeira vez, realizada no formato on-line, fazendo jus à classificação de “live”, como têm sido chamados os encontros virtuais que proliferaram durante o período de confinamento decorrente do Covid-19. Com uma pedagogia intuitiva, centrada no afeto, tais oficinas têm multiplicado os elos de uma corrente de bem-querer, formada pelos comunicadores populares que João Roberto Ripper vem semeando pelo caminho. Para esse contingente crescente de fotógrafas e fotógrafos oriundos das periferias ou das populações tradicionais, a voz baixa do Mestre ecoa como uma espécie de mantra:

“O fotógrafo é aquele que aprende e reconhece valores em quem fotografa, e transmite isso”.


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Ensaio fotográfico com 12 fotos do Ripper realizadas junto às populações tradicionais brasileiras, acompanhadas pelas respectivas legendas.