V.18, nº 36 - 2020 (maio-ago) ISSN: 1808-799X
Cristiane Moreira da Silva2 Gabriela Almeida Kronemberger3 Rodrigo dos Santos Borges4
Nos últimos anos, a educação pública brasileira esteve no centro do debate político. A Reforma do Ensino Médio trouxe incertezas quanto a capacidade do novo modelo de garantir uma educação verdadeiramente integral aos estudantes. Além disso, a falta de investimento público na educação, agravada com a aprovação da emenda do teto dos gastos públicos, coloca sob fogo cruzado importantes políticas públicas realizadas no país nas últimas décadas. Buscando entender essas questões, intermediamos um encontro entre discentes do IFRJ, campus Eng. Paulo de Frontin, e nosso convidado: Gaudêncio Frigotto.
En los últimos años, la educación pública brasileña estuvo en el centro del debate político. La Reforma de la Educación Secundaria trajo incertidumbres cuanto a la capacidad del nuevo modelo garantizar una educación verdaderamente integral a los estudiantes. Además, la falta de inversiones públicas en la educación, agravada con la aprobación de la enmienda del techo de los gasto públicos, pone bajo fuego cruzado importantes políticas públicas realizadas en el país en las últimas décadas. En la búsqueda para entender estas cuestiones, mediamos un encuentro entre estudiantes del IFRJ, campus Eng. Paulo de Frontin, y nuestro invitado: Gaudêncio Frigotto. Palabras clave: Educación; Políticas Públicas; Educación Secundaria Técnica; Formación Humana.
Recently, Brazilian public education has been at the center of the political debate. The country’s High School Reform has brought uncertainty about the capacity of this new model to guarantee a truly integral education for students. Besides, the lack of public investment in education, aggravated by the approval of an amendment which establishes a limited budget for public spending, puts important public policies carried out in the country in recent decades under crossfire. Seeking to understand these issues, we arranged a meeting between students from IFRJ, Eng. Paulo de Frontin campus, and our guest Gaudêncio Frigotto.
1 Artigo recebido em 24/04/2020. Primeira avaliação em 06/05/2020. Segunda avaliação em 08/05/2020. Aprovado em 08/05/2020. Publicado em 22/05/2020.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i36.42319
2 Mestre em Engenharia de Telecomunicações no Instituto nacional de Telecomunicações (INATEL) - Brasil; docente do Instituto Federal do Rio de Janeiro, campus Engenheiro Paulo de Frontin (IFRJ/CEPF) - Brasil. E-mail: crismoreirasilvajf@gmail.com ORCID: 0000-0003-1166-6492.
3 Mestre em Sociologia com concentração em Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGSA/UFRJ) - Brasil; docente do Instituto Federal do Rio de Janeiro, campus Engenheiro Paulo de Frontin (IFRJ/CEPF) - Brasil. E-mail: gkronemberger@yahoo.com.br ORCID: 0000-0002-0024-5492.
4 Doutorando em Geografia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGEO/UERJ) - Brasil; docente do Instituto Federal do Rio de Janeiro, campus Engenheiro Paulo de Frontin (IFRJ/CEPF) - Brasil. E-mail: rodrigogeouerj@gmail.com ORCID: 0000-0001-7000-7193.
Nos últimos anos, a educação pública brasileira esteve no centro do debate político, em que diversos projetos e medidas buscaram alterar os rumos do modelo de educação básica ofertado no país. A mudança no ensino médio, inicialmente sancionada por meio de uma Medida Provisória (MP nº 746/2016) e sem consulta à sociedade, gerou vários questionamentos e protestos de diversos segmentos ligados à educação e da sociedade civil em geral. Agora aprovada como Lei nº 3.415/2017, a Reforma do Ensino Médio altera substancialmente essa etapa de formação a partir de mudanças como a flexibilização do currículo, através da criação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e dos chamados itinerários formativos; a perda do status de disciplina para filosofia, sociologia, artes e educação física, que passam a ter seus conteúdos considerados somente como estudos e práticas presentes no currículo; e a obrigatoriedade, ao longo dos três anos do ensino médio, apenas das disciplinas de língua portuguesa, matemática e língua inglesa.
As mudanças instituídas com a Reforma do Ensino Médio deixam muitas incertezas quanto a capacidade do novo modelo de garantir uma educação verdadeiramente integral aos jovens brasileiros. Nesse contexto, as disciplinas da área de ciências humanas se veem, mais uma vez, questionadas enquanto mediações essenciais e necessárias a um processo formativo que tende a priorizar a formação para o mercado, desconsiderando-as como um importante caminho para auxiliar os estudantes na construção de reflexões qualificadas sobre a realidade social em que estão inseridos e suas relações sociais cotidianas.
Ao lado dessa reforma, a aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016 – conhecida como a emenda do teto dos gastos públicos – limitou por 20 anos os gastos públicos do governo federal, agravando um quadro de falta de investimento público na educação, na universidade pública e para a produção do conhecimento científico realizado no Brasil. Essa medida coloca sob fogo cruzado importantes políticas públicas realizadas no país nas últimas décadas, como a institucionalização da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, através da Lei nº 11.892/2008; modelo que se consolidou com a criação de 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia no país – a Rede IF.
Como a Reforma do Ensino Médio impacta na realização de uma educação verdadeiramente integral? Por que é necessário lutar pela manutenção das disciplinas das ciências humanas nos currículos da educação básica? Quais os impactos gerados pelos cortes de verbas na educação para o meio acadêmico e para sociedade como um todo? Essas questões encontram lugar no pensamento, na produção acadêmica e nas ações cotidianas de Gaudêncio Frigotto, com quem queremos conversar. Sua produção é resultado de uma constante luta por um projeto societário que tenha como norte um processo educativo integral, que liberte o povo da subalternidade, em detrimento de um modelo educacional puramente direcionado às necessidades do mercado, em um país que, através de suas classes dirigentes, vêm optando por associar-se de forma dependente aos países centrais, o que tem impacto direto no processo formativo.
Gaudêncio Frigotto é natural do município de Antônio Prado, no Rio Grande do Sul. Graduado em filosofia e pedagogia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (FIDENE), atualmente Universidade de Ijuí (UNIJUÍ), mestre em Administração de Sistemas Educacionais pela FGV/RJ e doutor em Educação: História, Política e Sociedade pela PUC/SP. Frigotto é professor titular aposentado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e, atualmente, é professor adjunto da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Considerado como um dos principais intelectuais brasileiros no campo da educação, Gaudêncio Frigotto tem dedicado sua carreira a analisar a relação entre o sistema capitalista, o trabalho e a educação, com especial atenção para a educação profissional, técnica e tecnológica, assim como trazendo reflexões sobre políticas públicas e o sentido da educação como formação humana.
É autor e coautor de 20 livros e de dezenas de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais. Dentre suas principais obras estão: “A produtividade da escola improdutiva: um (re) exame das relações, entre educação e estrutura econômico-social capitalista” (Cortez Editora, 1984); “Educação e crise do capitalismo real” (Cortez Editora, 1995); “Educação e crise do trabalho: perspectivas de final e século (org.)” (Editora Vozes, 1998). Recentemente, organizou a coletânea “Escola ‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira” (LPP/UERJ, 2017), que reúne artigos de vários autores voltados a analisar a gênese, o contexto,
o sentido político e o significado pedagógico do projeto de lei que visa criar o Programa Escola sem Partido. E em 2018, organizou o livro “Os Institutos Federais e sua relação com o ensino médio integrado e o projeto societário e de desenvolvimento” (LPP/UERJ, 2018), onde dedica-se a discutir o surgimento e o crescimento dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) como espaços inclusivos de educação pública de qualidade a partir do processo de interiorização no país.
Ao longo de mais de 40 anos de carreira dedicados à luta pela educação pública de qualidade, Gaudêncio Frigotto é reconhecido nacionalmente como um intelectual crítico nos pequenos e grandes embates (CIAVATTA, 2012). Este reconhecimento que veio em forma de diversas homenagens e prêmios recebidos por Frigotto. Em 2002, recebeu a “Medalha Hortência Holanda” da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) por sua produção intelectual na área da educação. Em 2011, foi eleito como personalidade educacional no estado do Rio de Janeiro, por uma iniciativa conjunta da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), do Jornal Folha Dirigida e da Associação Brasileira de Educação (ABE). Em 2013, recebeu o Prêmio Cora Coralina pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). Esses são alguns exemplos do reconhecimento público recebido por Frigotto ao longo do tempo.
No centro de sua obra está a análise da relação entre trabalho e educação, mediatizada pelas relações capitalistas de produção. Desde a publicação de seu livro “A produtividade da escola improdutiva”, fruto de sua tese de doutorado, Gaudêncio Frigotto tem destacado a escola enquanto um espaço de luta e disputa pelo saber, e da articulação desse saber com interesses de classe. Contrapondo-se a um modelo de escola que visa legitimar as formas assumidas pelas relações capitalistas de produção e as relações de dominação daí decorrentes, Frigotto atua ativamente na defesa de um modelo educacional centrado na concepção marxista de escola politécnica, onde “o caráter politécnico do ensino decorre da dimensão de um desenvolvimento total das possibilidades humanas. Existência concreta da unidade entre teoria e prática” (FRIGOTTO, 1984, p. 189).
Gaudêncio Frigotto sempre se mostrou um entusiasta sobre a relevância do modelo de educação proposto pela Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Mais que isso, ele foi um dos fiadores de sua concepção teórica e da luta política pela implementação de um modelo educacional baseado em uma
formação integrada, tendo a politecnia como horizonte; uma luta, que sabemos todos, não se encerrou com a organização dos Institutos Federais, através da Lei nº 11.892/2008. No entanto, as inúmeras contradições internas e externas existentes no contexto de evolução da rede nacional de educação profissional se avolumaram em 2016, momento em que a ruptura institucional ocorrida naquele ano reativou planos de enxugamento da rede, que chegava naquela ocasião mais capilarizada e interiorizada do que nunca.
A partir desse momento, passamos a observar a execução de propostas que visam à redução da importância da educação integral para o povo, impossibilitando a superação das injustiças sociais historicamente estabelecidas no país. De um lado, isso se deu pelo aprofundamento da política de cortes orçamentários executada pelo governo federal que asfixiou a já debilitada expansão da rede federal de ensino e colocou em risco a manutenção da qualidade da proposta original: calcada no tripé ensino-pesquisa-extensão, desde a educação básica até a pós-graduação, sendo ofertada em aproximadamente 600 unidades, muitas das quais espalhadas pelo interior do país, configurando-se em um elemento importante de descentralização dos investimentos públicos em pesquisa e formação acadêmica e profissional.
De outro lado, isso se deu através de reformas estruturantes que modificavam a forma como seria ofertado o ensino médio a partir de então. Com uma proposta de redução da obrigatoriedade de diversas disciplinas (especialmente as que estimulam o pensamento crítico e a formação humana) a pretexto de aumento da liberdade de escolha, propôs-se direcionar o ensino secundário para uma escola meramente voltada à formação para o trabalho, o que segundo Frigotto (et al., 2005) evidencia uma visão historicamente centrada na avaliação do trabalhador como mero fator de produção, sendo sua formação unicamente voltada à reprodução do capital. Um modelo totalmente dissonante daquele defendido por ele e boa parte dos educadores, que se preocupam com um modelo integral de formação, voltado ao cidadão, mais que somente ao trabalhador, visando superar a educação centrada na lógica neoliberal, que preza pelo individualismo e valoriza competências puramente voltadas à empregabilidade (ibid.).
No bojo das discussões sobre a luta contra um tipo de ensino médio voltado para o mercado, Gaudêncio Frigotto colocou-se no front de batalha, não só como um grande teórico e pesquisador da educação nacional, mas como aquele que está
disposto a efetivamente inserir-se na prática da luta cotidiana em favor dos que necessitam de uma educação digna, baseada no desenvolvimento integral e emancipador dos educandos.
Em uma constante demonstração de coerência discursiva, Frigotto tem sido ativo na denúncia dos grandes riscos que sofremos com as mudanças estruturais propostas sem diálogo, e que objetivam, em última análise, desarticular uma proposta que tem potencial de oferecer educação de qualidade para parcela relevante da população brasileira. Tal postura concretizou-se em suas últimas obras, resultado de profundas análises sobre projetos antidemocráticos, tais como o “Escola sem partido” (visto no título da obra como a esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira), além de uma avaliação sobre a inserção dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia em um projeto societário de desenvolvimento nacional.
Sua postura coerente não se resume às formulações teóricas. Tem sido comum vê-lo participando de seminários sindicais, palestras, rodas de conversa e eventos de lançamento de suas últimas pesquisas em diversos campi da rede federal. Em todos estes espaços, reafirma sua confiança no modelo que auxiliou a pensar (ainda que sequer plenamente implementado), demonstrando também seu engajamento ético- político como educador, em sua batalha pela construção de novas relações sociais e práticas educativas (FRIGOTTO, 2018). Neste contexto, podemos perceber também sua admiração pelo corpo de profissionais que compõe os Institutos; além de seu orgulho ao ver o desenvolvimento dos educandos que têm a oportunidade de passar pelos campi da chamada Rede IF.
Na conversa, que aqui transcrevemos, Gaudêncio Frigotto nos apresenta a concepção de politecnia, fundamental para compreender uma proposta de educação que visa ser integral ou por inteiro, e analisa como a conjuntura atual brasileira, marcada pela Reforma do Ensino Médio – denominada por ele de “contrarreforma” – somada ao corte de investimentos públicos na educação, prejudica a realização deste modelo de educação. Também analisa a criação e a expansão da Rede dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, que considera ser “a grande política educacional deste século no Brasil”. Diante do atual contexto em que se encontra a educação brasileira, Gaudêncio Frigotto destaca, como estratégia necessária para a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, a luta política e afirma que “a
realidade só se muda com luta e organização”. Recorrendo a autores como Karl Marx, Antonio Gramsci e Florestan Fernandes, autores fundamentais em sua formação intelectual, Gaudêncio Frigotto nos convida a refletir sobre o nosso papel enquanto agentes no processo de mudança social.
A conversa com Gaudêncio Frigotto é o resultado de um dos trabalhos mais bonitos e relevantes que pudemos apresentar aos nossos alunos e ao próprio Gaudêncio. Aos primeiros, pensamos ter sido uma oportunidade de compreender a grandeza da rede da qual fazem parte, e esperamos que tenham percebido, também, a pujança e vida que brota do cotidiano das universidades públicas nacionais, além de poder admirar toda a capacidade de argumentação e simplicidade na explanação dos conhecimentos do professor Gaudêncio Frigotto. Para este, acreditamos ter sido mais uma oportunidade para acompanhar de perto a vitalidade presente nesta rede, que tanto lutou e luta pelo fortalecimento e consolidação, e mais uma perspectiva de que esta possa ser, de fato, propulsora de um modelo educacional que espelhe um outro projeto societário que seja efetivamente democrático e capaz de levar ao indivíduo a autonomia e dignidade.
Em sua obra, o senhor se dedica a analisar a criação e a expansão da Rede dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Como este modelo educacional foi idealizado? Quais são os pilares e ideias fundamentais que constituem a base desse modelo?
Inicialmente, quero dizer da minha alegria em dialogar com vocês sobre temas que nos são comuns no plano do estudo, da pesquisa, do ensino, da extensão e da
5 Em tom de conversa, a entrevista foi realizada no dia 06 de novembro de 2019, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), como parte das atividades componentes do projeto interdisciplinar denominado “Qual a Importância das Humanidades na Educação Básica?”, realizado pelos professores Cristiane Moreira da Silva, Gabriela Almeida Kronemberger e Rodrigo dos Santos Borges, com os alunos do Ensino Médio Integrado em Informática para Internet do IFRJ, campus Engenheiro Paulo de Frontin, que também estiveram presentes durante a realização desta conversa. Nosso convidado, Gaudêncio Frigotto, optou por manter um tom coloquial em suas respostas considerando os seus interlocutores: jovens secundaristas que participavam do projeto e que conduziram as perguntas no momento da conversa. As menções e citações dos autores não são literais, algumas apreendidas em debates, conferências ou entrevistas, como é o caso das referências a Eduardo Galeano, Paulo Freire e Milton Santos.
luta política. Quero destacar, de outra parte, que ao longo dos últimos trinta anos respondi a muitas entrevistas, mas esta conversa é muito particular por inserir-se num projeto interdisciplinar que discute a importância das humanidades na educação básica. Ademais, as perguntas feitas pelos alunos junto aos coordenadores do projeto são muito boas.
Pois bem, os Institutos Federais têm uma longa história. Vocês certamente sabem que a fundação do ensino técnico e profissional no Brasil começou em 1909. Portanto, é secular. Passou por muitas mudanças institucionais, sendo as mais recentes a passagem de escolas técnicas federais para CEFETs (Centros Federais de Educação Tecnológica) e, atualmente, Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Na verdade, os Institutos Federais nasceram de um arranjo político. Com a criação da Universidade Tecnológica do Paraná todo mundo queria transformar-se em universidade tecnológica e, obviamente, não era possível. Por outro lado, havia CEFETs que eram incontroláveis, especialmente alguns das áreas agrotécnicas. Então, o governo sabiamente criou uma instituição que é muito original, porque é única na sua nova institucionalidade. Ela tem a verticalidade, isto é, você pode entrar no instituto no ensino médio, depois graduar-se e, na mediada que se criem mestrados e doutorados, sair com o doutorado. A perspectiva é esta. E é uma instituição que tem uma abrangência nacional. A passagem de CEFETs para IFs determinou uma nova institucionalidade, uma nova regionalidade, e o desafio de construir uma nova identidade, o que é mais complicado, porque você só constrói uma identidade com o passar do tempo.
Mas eu defino a criação dos Institutos Federais como a maior política de educação pública de qualidade, especialmente para o ensino médio e licenciaturas, que o Brasil teve até hoje desde a sua criação. E essa instituição representa cerca de 6% a 7% da população jovem do Brasil que fazem cursos que são padrão mundial e que não devem nada aos cursos da Alemanha ou Itália, por exemplo. Os Institutos são, para mim, a grande política educacional pública deste século no Brasil.
Completamos, recentemente, 10 anos da Lei de Criação dos Institutos Federais (Lei nº 11.892/2008). Gostaria que o senhor fizesse um balanço desses 10 anos. O que destacaria como as principais contribuições, conquistas e avanços realizados a partir dos Institutos Federais? E quais limitações ou possíveis erros cometidos que poderiam ser reavaliados ou corrigidos?
A maior qualidade dos Institutos é, primeiro, a de sua quantidade. Eles estão espalhados por todo o Brasil, são seiscentos e poucos campi. Segundo, é a ampla interiorização. Imagina vocês de Paracambi e região, se não tivesse um campus por lá, o estudante teria que vir para o Rio de Janeiro, passar por uma seleção entre centenas de jovens onde apenas um ou outro poderia competir. Essa é a sua característica maior: a interiorização. Terceiro, o acesso a novos sujeitos, por cotas e outros critérios das instituições. Por exemplo, no Brasil, só de dialetos indígenas há mais de 180, e tem institutos que tem 20 dialetos indígenas dentro do Instituto, como em Roraima. E são escolas que têm laboratórios, que tem espaço, que tem professores qualificados com mestrado, doutorado e especialização. Isso é algo raro no mundo. Então, é uma escola de qualidade e é uma escola que tem um foco em novos sujeitos. Portanto, para mim, a quantidade de campi, sua interiorização e o acesso a novos sujeitos que entraram nas instituições são os aspectos mais importantes.
Atualmente, existe uma noção terrível na moda: a de meritocracia. É cínico imaginar que, em uma sociedade tão desigual econômica, social, cultural e regionalmente, se não há política pública os jovens de classe popular possam ter acesso à educação de qualidade. Mérito se tem quando as condições são similares, mas se as condições são desiguais não há mérito, aí há mesmo desigualdade.
Uma das ideias centrais que busca estar presente nesse modelo educacional é a ideia de “politecnia”. O senhor poderia explicar para gente a concepção de politecnia e como ela se relaciona com a proposta dos Institutos Federais?
Esse termo deriva de outros dois termos. Um que tem a ver com o que é uma educação por inteiro ou integral, que é o termo omnilateralidade, ou seja, uma educação que leve em conta todas as dimensões da vida: físicas, biológicas, sociais, culturais, filosóficas, éticas, estéticas, afetivas. A educação básica teria que dar ao jovem essa oportunidade de um desenvolvimento de todas as suas dimensões. Omnilateral, em Latim, “omni” significa “todos” e “lateral” significa “dimensões”, ou seja, “todas as dimensões”. A outra palavra vem do grego – “poli” e “téchne” – que se a gente traduzir linearmente significa “aprender muitas técnicas”. Mas o sentido não é este. Seria, na verdade, uma educação que desenvolva nos jovens as bases das
ciências da natureza, para entender como funciona a física, a química, a biologia e o corpo humano; e as ciências sociais humanas, para entender como os seres humanos em sociedade produzem os bens materiais para produzirem suas vidas (a economia), como os seres humanos se organizam em sociedade (a sociologia), como é que se distribui a população (a geografia), como funcionam os processos mentais e o comportamento das pessoas (a psicologia), como as pessoas colocam questões significantes na vida (a filosofia), e etc. Isso compõe aquilo que um autor italiano, Antonio Gramsci (1977 apud VIEIRA; DE OLIVEIRA, 2010), chama “da sociedade dos homens e da sociedade da natureza”. Então, uma educação politécnica e omnilateral é aquela que dá ao jovem na sua educação básica, os fundamentos científicos de todos os campos de conhecimento. Se você não aprende fragmentariamente, você não é passível de ser adestrado. Quando você é adestrado, você não aprende a base. Você adestra a um animal, ao ser humano você dá a base. E é a base que é fundamental para que depois você possa se movimentar na sociedade como cidadão e no mundo do trabalho. Então, a educação politécnica e omnilateral é aquela que dá base. Depois eu vou explicar o que é que dá base.
Como o senhor percebe que deve ser a relação entre o ensino técnico e a importância das humanidades nessa formação?
As humanidades são tão ou mais importantes que matemática, física e química, para a vida. O que as humanidades buscam? Fazer com que o ser humano se entenda em sociedade. Nós estamos passando por mudanças muito sérias. Então se o jovem não tem uma base de sociologia, filosofia, geografia e história, ele não vai ter o código para ler o que está acontecendo no país. Ele vai ser alienado, isto é, vai pensar com a cabeça do outro, não criando uma autonomia. As ciências sociais e humanas são para tentar entender como os seres humanos se organizam em sociedade, e a serviço de que e de quem estão os bens da sociedade. Por exemplo, hoje temos o problema do aquecimento global, que é um problema da natureza, mas criado pelos seres humanos. Se você não tem uma análise social, política, cultural, você vai achar que isso é natural. Então, as ciências sociais e humanas, como as próprias palavras dizem, são para que a gente se entenda e analise como os humanos criam a sociedade e as relações sociais. Estas ciências são fundamentais na vida de qualquer pessoa.
Nesse sentido, qual a importância de se propor e de defender a existência de um “ensino médio integrado”?
Esta questão está ligada à questão da omnilateralidade e politecnia comentada acima. O que é integrado? A realidade é integrada. Nós somos ao mesmo tempo um ser que é físico, químico, psíquico, espiritual, etc. Então, a realidade que é integrada. Por isso dizemos que o ensino médio integrado é uma travessia para a educação politécnica, porque a realidade que é integrada. E o que dá base? Aquilo que permite a você, a partir daí, diversificar. Então, você não é adestrado. Da dança balé à ginástica olímpica ou qualquer esporte, só vai longe quem tem uma base que custa muito exercício e muita disciplina. Assim, sem uma base sólida sobre as ciências humanas e da natureza os seres humanos ficam sem instrumentos para entender sua própria existência social e material. Ensino básico assim se denomina porque se supõe que dê esta base.
Pensando um pouco agora sobre o mundo do trabalho, e o ser humano como um ser que trabalha e que produz seus meios de existência e, através disso, relações sociais. Qual a importância das humanidades, num modelo de sociedade onde o trabalho e as relações de trabalho procuram desumanizar o homem?
Essa é uma pergunta central, principalmente para os jovens. Hoje, a tecnologia é uma “faca de dois gumes”. A tecnologia socializada, como bem comum, como bem de todos, nos ajuda em tudo na vida. Por exemplo, hoje eu darei aula à noite e depois vou a São Paulo na cidade de Águas de Lindóia para uma conferência e depois volto para dar aula aqui. O que permite isso? A tecnologia. Mas ela é cara, porque ela é privada. A tecnologia e a ciência não poderiam ser privadas, deveriam ser bens da humanidade. A tecnologia é conhecimento humano, reflexão e pesquisa transformadas em capital morto (máquinas, robôs, internet, etc.). E esse capital morto, hoje, tira milhões de empregos.
De acordo com o historiador Eric Hobsbawm (1999), o maior problema do século XXI é que o trabalho humano direto é o que menos se precisa para produzir. E o grande problema dos jovens está em pensar: “como eu vou construir o meu futuro?”. E aí, as ciências sociais e humanas são fundamentais para discutir que sociedade nós vamos construir e como enfrentar a crise do mundo do trabalho. Hoje, vemos os trabalhadores do Uber e outros aplicativos sem nenhuma proteção social, pessoas
empregadas sem direitos e com salários de fome. Isso não pode continuar dessa forma. Então, Hobsbawn diz o seguinte, que o maior problema do século XXI não é a produção, mas sim a distribuição e o acesso ao direito e ao trabalho. Este é um desenho complicado. Para ele, quem pode fazer essa distribuição não é o mercado, mas o Estado ou uma organização pública. Tudo ao contrário, portanto, das atuais políticas neoliberais para as quais o mercado tem que regular a tudo.
As atuais políticas que minimizam ou eliminam as ciências sociais e as humanidades do ensino básico têm como objetivo não revelado a negação às gerações jovens de bases de conhecimento que os levem a perceber que, sob o neoliberalismo, e mais amplamente sob o capitalismo, não terão futuro.
As ciências humanas estariam perdendo espaço nessa era tecnológica?
Não é a tecnologia em si, isso é importante dizer. Tom Bottomore (1983), em seu Dicionário do Pensamento Marxista, indica que a tecnologia como um valor de uso, como um bem comum é a extensão de membros e sentidos humanos. Então, a tecnologia é fantástica quando está nesta direção. Ela pode nos liberar para o tempo livre, para namorar, para nadar, para dançar ou criar melhor qualidade de vida. O problema é como a tecnologia é apropriada nas relações sociais capitalistas. Nesse sentido, a gente pode dizer que a tecnologia é política. O grande problema hoje é que a tecnologia está na mão de pouca gente, os detentores de propriedade privada (fábricas, bancos, terras, etc.). Ela visa aumentar a riqueza, e não os direitos. Há pessoas que tem determinado tipo de câncer em que há remédios para combater, mas, como um caso que conheço, o remédio custa R$ 1.000 por comprimido, R$
30.000 por mês. A tecnologia existe, mas a serviço de quem e de quantos está a tecnologia? Então, a tecnologia quando é valor de uso é um grande meio para a gente; mas quando é só para gerar lucro para alguns, ela é contra o ser humano.
Já lá no século XIX, Karl Marx dizia que a tecnologia e a ciência na mão do trabalhador é sinônimo de tempo livre, liberdade; na mão de poucos é tortura, é sofrimento, é desemprego. Hoje, a tecnologia desemprega muito. Por isso que até o vocabulário pedagógico mudou. Nós falávamos em emprego, hoje se esconde a palavra emprego e fala-se em empregabilidade; não se fala mais em qualificação, que é um conceito amplo e que está ligado a uma institucionalidade que garantia direitos,
fala-se em competências. Enfim, a tecnologia tem que ser analisada na sociedade pensando a serviço de quem e de quantos ela está. Hoje, é contra a maioria.
Como o senhor enxerga o momento atual do Brasil (e do mundo)? E como esse cenário se relaciona ou traz impactos para a educação no geral, e a educação pública em particular?
Essa é uma pergunta complexa e ampla. O uso privado da tecnologia está dando um nó no mundo. E esse nó no mundo está atingindo especialmente os jovens, e os jovens têm uma sensibilidade muito grande. Vejam o que os jovens estão fazendo no Chile. Refiro-me ao movimento dos secundaristas. Todo aquele movimento que aconteceu no Chile não é algo que aconteceu ontem, vem de longa data. Os jovens secundaristas, sobretudo, se organizaram porque as políticas neoliberais que estavam sendo duras por lá – e que nós estamos copiando agora no Brasil – iriam interditar o futuro deles e, portanto, eles foram se organizando e buscando uma alternativa.
Então, como você vai sustentar o controle social com governos cada vez mais conservadores e autoritários? Para esses governos, lutar por direitos é uma ameaça e, por isso, demonizam o movimento estudantil, o movimento das mulheres, dos indígenas, dos Sem Terra, etc. O cenário que está aí não é um cenário humanamente desejável no mundo. Obviamente, mais ou menos, a sociedade se move. Nós temos um grande desafio no Brasil, sem violência e sem ódio, nós temos que buscar alternativas para que os jovens tenham futuro. Se a juventude não entender que o futuro dela está interditado, será difícil segurar a sociedade sem violência. Veja quantas pessoas são mortas no Rio de Janeiro por dia – jovens – isso tem que ser analisado, não é natural. Outras partes do mundo têm outros problemas, mas não esse, não está se matando a juventude, especialmente o jovem pobre e o jovem negro, como se faz no Brasil.
Isso, mais uma vez, mostra a importância das ciências sociais e das humanidades. Elas permitem ver a realidade como eu estou tentando traduzir para vocês. A tecnologia em si não é boa ou ruim, ainda que a tecnologia que cresce é a tecnologia da guerra e o seu uso para manipular pessoas. Hoje, o controle da tecnologia é um dos três problemas mais sérios do mundo, como colocado por Ignácio Ramonet num texto recente. Segundo Ramonet (2019), esses três problemas seriam: o aquecimento global, as migrações e o desemprego, e quem controla a tecnologia. Pois quem controla a tecnologia, nos controla também. Nós temos que ver que o
mundo caminha para uma regressão, um retrocesso. Mas a história ela não é linear, ela pode mudar. Eduardo Galeano, um grande pensador latino-americano, diz que a história é uma velha senhora que tem segredos. Vamos movimentar os segredos da história por outro horizonte.
Recentemente, foi aprovada a Reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017). Qual a sua leitura sobre o novo modelo de ensino médio que foi proposto? A aplicação real dessa proposta impactaria no modelo idealizado para a educação dos Institutos Federais? Quais suas consequências?
Os Institutos Federais estão reagindo positivamente. Mas tem várias medidas que estão querendo acabar com o que eles têm. Vejam. Uma educação básica é aquilo que expliquei anteriormente, uma educação que é por inteiro ou integral, omnilateral, e uma educação politécnica, que dá a base do conhecimento que está na base de todos os processos de produção.
Então, a contrarreforma do ensino médio acaba com a concepção de educação integral, acaba com a educação básica e acaba com o integrado. Porque se os jovens tiverem que seguir os itinerários formativos, eles podem ser induzidos ao engano: “agora, só vou aprender linguagens”, “só vou aprender matemática”, “só vou para a área das humanas”, “só vou para a área das ciências da natureza”. E o governo diz: “agora o jovem pode escolher”. Pode escolher 3 ou 4 itinerários formativos? Não. A maior parte das escolas vai oferecer um. Os Institutos podem oferecer 2 ou 3. Mas por que desintegrar para depois integrar?
E também, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) você só será obrigado, durante toda a formação, a ter língua portuguesa, matemática e inglês. Onde está a física? Onde está a química? Claro que vai ter, mas estará diluído. E as ciências sociais e humanas: a história, a filosofia, a geografia, a sociologia, as artes? Então, essa contrarreforma vai formar aquilo que Milton Santos dizia: deficientes cívicos e deficientes para entender o mundo da produção hoje. É dizer: “olha quilombola, olha menino e menina de escola pública, olha filho de camponês e de indígena, o teu lugar não é estudar num Instituto Federal, ou você não precisa de uma educação integral.”.
Portanto, os Institutos estão sob o fogo cruzado. Não precisa muita coisa, é só tirar o subsídio da alimentação que muitas pessoas terão a vaga, mas não poderão cursar. Aqui mesmo, à noite na UERJ, as pessoas não vêm se não tiver o bandejão.
Isto que estão fazendo está asfixiando, por várias medidas, a educação pública. A contrarreforma do ensino médio é um ângulo da questão, mas tem a Emenda Constitucional nº 95/2016 – a emenda do teto dos gastos públicos – que não dá nenhum aumento na esfera pública por vinte anos. O impacto é sobre a qualidade do ensino, é sobre o salário do professor, é sobre os laboratórios, é sobre todos os aspectos. É uma terra arrasada o que estão fazendo, uma coisa inimaginável. E o mundo não entende isso: “O que é que está acontecendo com o Brasil? O que estão fazendo com o Brasil? Estão voltando ao século XVIII?”, perguntam-me colegas de países da Europa e da América Latina.
Então, essa contrarreforma junta o que há de pior e que tinha sido vencido nos anos 1940 do século passado, que era a não equivalência, você entrava em um ramo e tinha que seguir esse ramo. Mas, você é jovem, como é que você vai decidir a sua vida aos 13 ou 14 anos? Aí, a sociedade venceu essa não equivalência. Mas, depois veio a Lei nº 5.692/1971 na Ditadura Militar – lei de reforma do ensino que tornou o ensino profissional obrigatório – e foi outro arraso. Depois veio a democratização e uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) razoável, ainda que não aquela que a gente queria. E aí vem a época neoliberal, um decreto que separa de novo a educação técnica e profissional, pelo Decreto nº 2.208/1997 no Governo Fernando Henrique Cardoso. Veio o governo Lula e une de novo, e os Institutos são fruto disso. Com o Golpe de Estado de agosto de 2016 e eleição do governo de extrema direita, a regressão é inimaginável. O cenário é dos piores possíveis. Temos que juntos com os colegas em nossas instituições, junto com os sindicatos e junto com os movimentos sociais, populares e culturais começar a entender o que está acontecendo ao nosso redor e reagir.
O que acha da ideia de retirar matérias como filosofia e sociologia do currículo estudantil? Quais seriam as consequências?
Considero isto um crime, pois trata-se de mutilar um direito, visando à alienação dos jovens. Trata-se de uma cínica estratégica que busca passar a ideia de que filosofia e sociologia não são disciplinas necessárias, e fazer com que os jovens não enxerguem o que estão fazendo com a sociedade, a educação e a cultura no país.
Minha graduação é de licenciado e bacharel em filosofia. Foram seis anos, contando um ano de pós-graduação, que me deu uma base que é muito melhor até
mesmo que meu doutorado, que foi muito bom, mas que eu não teria feito se eu não tivesse tido essa base anteriormente.
Em sua experiência como profissional da área, percebeu que houve alguma melhora ou piora no conhecimento e interesse dos alunos sobre essas áreas ao longo do tempo?
No ensino superior alguns cursos tiveram uma maior demanda, por exemplo, filosofia, história. Mas com as mudanças da lei do ensino médio, existe um cenário em suspenso. Eu diria que o jovem está sendo induzido a não querer essas disciplinas, pois o jovem tem pressa, especialmente o jovem de classe popular, como eu sou. Eu vim do campo, e estou aqui porque fiz uma escola num internato e em tempo integral. Pela manhã fazia o curso clássico cujo foco eram as humanidades, arte, literatura, música etc. e, pela tarde, curso científico. Não fosse isto, eu não estaria aqui conversando com vocês. Dos meus oito irmãos, sete somente tiveram quatro anos de escolaridade. Uma irmã, a mais nova, que eu ajudei a financiar os estudos, fez graduação e pós-graduação. Já os outros, só fizeram quatro anos de escolaridade porque não tinha como estudar, além disso, no campo.
Agora, estão sendo cortadas as possibilidades dos professores de geografia, história, das humanidades no conjunto. E para os jovens, estão sendo induzidos a querer logo afunilar porque o jovem tem pressa de ganhar o seu dinheiro. E isso é uma grande ilusão. A propaganda do MEC diz “agora o jovem pode escolher”. A colega professora Marise Ramos (RAMOS; FRIGOTTO, 2016) pergunta num dos seus textos: “Mas quem educa a escolha?”. Quem educa a escolha é um professor ou uma professora, informações de orientação técnica, ou uma propaganda falsa e desonesta? É preciso ter a oportunidade de pensar. Se os jovens não têm essa oportunidade, eles irão para o que eles ouvem. Como diria Paulo Freire, os jovens são como esponjas, absorvem o que a sociedade lhes dá. Se todos os dias, martelam, martelam, martelam que o grande problema do Brasil é a corrupção, isto passa ser o problema. Mas, na verdade, o problema maior não é a corrupção. Temos a evasão fiscal, perdão de dívidas dos grandes proprietários e a concentração descomunal da renda, que são problemas muito mais graves. Mas grande parte dos brasileiros pensa que a corrupção que é o grande problema. Uma falsa verdade ou mentira construída todos os dias nas grandes mídias.
Por que encara como necessário lutar para manter as disciplinas das ciências humanas nos currículos da educação básica? Quais estratégias poderiam ser utilizadas nesse sentido?
Não há conquista em nossa sociedade sem luta. E neste momento lutar, especialmente para os jovens, é criar a possibilidade de um futuro viável. Quanto à estratégia, vou me valer aqui, mais uma vez, de Antonio Gramsci. Luta política não se resume a estar ligado a um partido político ou sindicato, ainda que sejam espaços importantes e necessários em nossa sociedade. Luta política é a luta daqueles que estão fora de um direito para colocar na agenda o seu direito. Por exemplo: fez luta política aqui no Brasil o movimento negro, tem cotas; fez luta política o MST, criaram o PRONERA, que agora estão arrasando com ele; fizeram luta política os jovens quando ocuparam as escolas; o movimento de mulheres e LGBT... Enfim, é luta por direitos.
Antonio Gramsci dizia que para você modificar algo, você tem que ter três coisas juntas. Primeiro, ler e analisar as forças sociais em disputa para ver para onde que vai a luta. Se eu quero o Brasil armado, ou se eu quero um Brasil com empregos e escolas. Se eu quero o Brasil com mais cadeias como estão prometendo e militares nas escolas, ou se eu quero escolas dignas, que não precisam de militares lá dentro. Segundo, ter vontade de mudar. Terceiro, aí vem o papel da organização, do sindicato, do partido, do grêmio. Organizar, organizar, organizar para a gente poder mudar. A realidade só se muda com luta e organização.
Tem outra coisa importante. Gerações que não conversam entre elas perdem as duas. Se os professores não aprendem com os alunos e os alunos não aprendem com os professores, os dois estão perdendo. Essa que é a beleza de se trabalhar com jovens. É esse diálogo entre as gerações que permite buscar caminhos alternativos.
Outro ataque que tem sido feito às humanidades, diz respeito ao Projeto Escola sem Partido. O senhor poderia nos contar um pouco sobre o que está por detrás desse projeto, como isso tem impactado na prática docente, e como está a discussão sobre a aplicação desse projeto atualmente? O projeto irá avançar ou resistiremos?
Essa é uma questão que tem a ver com o autoritarismo em que nós vivemos. Curto e sem rodeios: Escola sem Partido é um movimento que visa controlar a educação da juventude e, sobretudo, a juventude da classe popular impondo a
mordaça na autonomia e liberdade de pensamento dos professores que trabalham com ela. Não por acaso esse movimento começou justamente quando nós tivemos um governo mais democrático, um governo que tinha base social ampla, das igrejas, dos movimentos sociais, dos sindicatos e etc. E surgiu dentro de uma visão maquiavélica, muito cínica. Porque, na verdade, nenhuma escola tem partido. Tem partido dentro das escolas? Não. Mas, na verdade, eles estão querendo discutir outra coisa: que a escola não pode ter autonomia, que a escola não pode ajudar a pensar e analisar, e que os professores de sociologia, de filosofia, de história seguissem um manual supostamente neutro. Se eu e os professores que desenvolveram o projeto que vos trouxe aqui não tivéssemos autonomia de analisar, nem o projeto sairia e nem daria as respostas que estou dando às vossas perguntas. Então, trata-se de um controle sobre o professor e sobre o aluno. E isso está se espalhando, é um movimento no mundo. Este sim é um partido, é um partido do ódio, colocando o aluno contra o professor, o pai contra o professor. Imaginem vocês se eu pensasse que essa conversa com vocês fosse uma armadilha. Eu perderia toda a liberdade do que eu penso. A escola básica e a universidade são espaços para pensar, analisar, para divergir, e encontrar no debate formas de melhorar a vida das pessoas em todos os aspectos que as afetam.
Então, este é um movimento que defende a elite, porque defende a meritocracia; é um movimento que diz que os pais são donos dos filhos, o que é um absurdo; diz que a escola pública tem que se orientar pelo código do consumidor, então não é mais público. O nó disto é que a relação pedagógica é dialógica e, portanto, não comporta o “dedo duro”. Segundo, não existe pensamento sem autonomia e sem liberdade. No fundo, eles querem matar a autonomia e a liberdade docente e formar gerações bitoladas e alienadas.
E isso, com a eleição do atual presidente do Brasil, ganha força dentro do que a grande mídia tem denominado de "gabinete do ódio", com agentes internos do governo e suas ramificações na sociedade civil. Esta força liga-se ao fato de que se trata de um governo que se afirma em três fundamentalismos principais que orientam seu projeto de poder. Primeiro, o fundamentalismo econômico para o qual tudo é mercado e que as pessoas, numa sociedade tão desigual, devem ter acesso aos bens, à saúde, educação etc., por mérito. Na verdade, só podemos falar em mérito quando as pessoas têm igualdade de condições sociais. Segundo, o fundamentalismo político,
onde o adversário não é adversário, ou seja, alguém com quem você vai debater, analisar e contrapor, mas alguém que tem que ser eliminado, odiado. Por isso, toda a política do ódio do núcleo ideológico do governo. Como é que você vai construir uma sociedade em cima do ódio? O movimento Escola sem Partido está ligado a isso, denunciar o professor. Terceiro, o fundamentalismo religioso. Religião é uma coisa da vida privada. Religião, eu respeito todas elas. Religião é do mundo privado. Então, não podemos julgar a ciência pela crença, e o fundamentalismo religioso está chegando a isso. Oxalá que nós não tenhamos um governo religioso. Misturar política com religião deforma a ambas.
Com as teses do movimento Escola sem Partido, no fundo, querem calar a boca do jovem e calar a boca do professor. Não podemos cair nesta armadilha. Cabe-nos, coletivamente e sem ódio, resistir ativamente. E estamos resistindo.
Recentemente, sofremos cortes do governo em bolsas de pesquisas científicas, nos fundos da educação, abalando profundamente as instituições federais de ensino. Qual o impacto que isso gera no meio acadêmico e para sociedade como um todo?
Primeiro, é inviabilizar, em médio prazo, a entrada de jovens quilombolas, jovens de classe popular nos IFs. Porque se não vai dar o financiamento, com bolsas, bandejão, transporte, você não tem como manter boa parte dos jovens que hoje estão nos IFs e os que poderiam entrar. Por isso que, sem luta, irão desestruturar o que foi conquistado. Tenho dito em palestras e escrito em vários textos que, com estas contrarreformas, duas coisas estão no olho do furacão: os Institutos Federais e o Ensino Médio Integrado. E não precisa criar uma lei para acabar com isso. É só retirar os recursos. E estão retirando velozmente. Os professores que serão contratados a partir de agora irão entrar em condições muito desiguais aos que já estão. Vão entrar absolutamente por baixo, com salários que terão que trabalhar em vários lugares, e não terão mais tempo para estudar. O cenário que se desenha é: vai começar a ter menos turmas, fechar institutos que são mais distantes, vão fechar exatamente onde os jovens precisam mais, no interior. Tudo isso que estou falando não é para ser pessimista, mas para ser realista, e mostrar que a gente tem que se valer das organizações e instituições para resistir e reverter. Os jovens têm que aparecer mais na cena do debate e da luta política. Política no sentido que assinalei acima.
Estamos chegando ao fim da nossa conversa. Resuma para gente como o senhor visualizaria o mundo sem as humanidades.
Um mundo desumano. Um mundo sem arte, não tem graça. Um mundo sem história, não tem futuro. Um mundo sem análise da sociedade, sem filosofia, sociologia, a geografia humana, sem a literatura, vai ser um mundo opaco. Voltaremos à época da pedra lascada. Mais do que nunca nós precisamos da arte, porque ela nos move a vida, ela abrange todos os nossos sentidos. No fundo, a lógica de tudo isso é criar seres humanos, em sua maioria, que não vejam o que está acontecendo no mundo. Mas isso tem limites.
E a mensagem que eu gostaria de deixar para vocês é o pensamento de um autor que faz parte fundamental da minha formação: Florestan Fernandes. Fernandes, no livro “Circuito Fechado”, afirma: “a história nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os homens, em grupos e confrontando-se como classes em conflito, que ´fecham´ ou ´abrem´ os circuitos da história” (FERNANDES, 1977, p.5).
Minha geração passou por vários círculos. No mais longo, eu me eduquei dentro da Ditadura. Fiz o ensino médio, duas graduações, mestrado, doutorado e parte da minha vida profissional dentro da Ditadura. A Ditadura acabou. Só que o que nós estamos vivendo hoje é pior. Porque a Ditadura é pela força e, portanto, ela não cria uma base popular. Hoje, no mundo, e o Brasil é o exemplo mais emblemático junto com a eleição do Trump, está se elegendo governos mediante a manipulação midiática de redes apoiadas em super processadores que bombardeiam vinte e quatro horas por dia mensagens a grupos específicos. Governos contra o povo, paradoxalmente, com o apoio do povo. É a diferença entre hegemonia e dominação. Tem adesão e apoio popular, manipulando as cabeças.
Todas essas questões têm a ver com contrarreformas que querem interditar o olhar de vocês de uma visão crítica, coletiva, solidária, voltada a criar um espaço para todos.
Gostaríamos de agradecer ao Gaudêncio pela disponibilidade em nos receber e por todo o conhecimento que foi partilhado conosco nesta conversa. O senhor gostaria de abordar mais algum ponto ou nos deixar uma mensagem final? Fique à vontade para colocar suas reflexões finais.
O tempo ou o “círculo fechado” que está sendo construído no Brasil, desde o golpe de estado de 2016 e, em especial, com o governo de extrema direita a partir de 2019, não é nada auspicioso. Se não houver resistência ampla e organizada, o futuro das gerações jovens será interditado na educação, na saúde, na casa própria, no emprego, em suma, na vida digna. Assim, minha mensagem, em especial para os jovens que estudam nos IFs, seus mestres e técnicos, é para que não nos rendamos. E esse é o convite do poema “Não te rendas”, atribuído a Mario Benedetti, do qual destaco parte do mesmo.
Não te rendas, ainda estás a tempo de alcançar e começar de novo aceitar as tuas sombras
enterrar os teus medos largar o lastro retomar o voo.
Não te rendas que a vida é isso continuar a viagem,
perseguir os teus sonhos, destravar os tempos, arrumar os escombros,
e destapar o céu.
Não te rendas, por favor, não cedas, ainda que o frio queime,
ainda que o medo morda, ainda que o sol se esconda, e se cale o vento:
ainda há fogo na tua alma ainda existe vida nos teus sonhos.
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