V.18, nº 36 – 2020 (maio-ago) ISSN: 1808-799 X
AMADO, Luiz Henrique Eloy2. Vukapanavo – o despertar do povo Terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2019.
A pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional - UFRJ, sob orientação do professor doutor Antonio Carlos de Souza Lima e propiciou o contato com discussões da antropologia, indispensáveis para se compreender os processos históricos vivenciados e protagonizados pelos povos indígenas.
Quando do desenvolvimento da dissertação de mestrado4, defendi o território tradicional como direito fundamental dos povos indígenas, arrazoando a impossibilidade de abordar qualquer discussão referente a direitos sociais, sem necessariamente falar de seus territórios. Neste ínterim, ficaram questões pendentes que tomei como objetivo para analisar no doutorado, tais como: a) a necessidade de se refletir criticamente sobre a história do povo Terena, tendo em vista vários argumentos utilizados por aqueles que são contrários ao
Resumo recebido em 18/11/2019. Aprovado pelos editores em 08/03/2020. Publicado em 22/05/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i36.38727
Indígena do povo Terena, aldeia Ipegue, Mato Grosso do Sul. Advogado, doutor em
Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Brasil. Atualmente é assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Tese defendida em 11 de março de 2019 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima.
Dissertação intitulada Poké'exa Ûti: o território indígena como direito fundamental para o
etnodesenvolvimento local, defendida no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento local em contexto de territorialidades, da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
reconhecimento formal dos territórios tradicionais do povo Terena, notadamente o argumento levantado nos processos judiciais de que os indígenas Terena não são brasileiros e sim paraguaios. Este argumento muito acionado pelos ruralistas encontra voz soante nos trabalhos acadêmicos, ainda que involuntariamente, de historiadores e antropólogos que escreveram sem o devido cuidado ou mesmo sem uma nota explicativa sobre a conjuntura histórica do povo Terena; b) outro aspecto é entender as relações interétnicas estabelecidas pelos Terena com a sociedade não indígena ao longo do avanço e consolidação das frentes de expansão agrícola e pastoril instaladas no Mato Grosso do Sul e, deixar evidente que os Terena nunca perderam o vínculo com seus territórios. As alianças políticas estabelecidas com outros povos indígenas e até mesmo com os purutuyê5 se deram, acima de tudo, no único intuito de se manter e permanecer como povo, ainda que para isso tivessem que acionar outros símbolos e outros elementos culturais; c) demonstrar como os saberes antropológico e histórico podem contribuir para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas, a saber, exatamente neste momento em que os povos indígenas estão vivenciando uma intensa mobilização por direitos, e não só isso, são notórias também as ameaças concretas a esses direitos e ao trabalho antropológico. Neste sentido, abordo também o processo de retomada levado a cabo pelas lideranças Terena da terra indígena Taunay-Ipegue; e d) por fim, tendo em vista o meu pertencimento ao povo Terena e na condição de antropólogo, foi oportuno (re)pensar a formação e o trabalho do antropólogo. Seguindo também este objetivo, suscito reflexões iniciais sobre estes pontos a partir de minha trajetória pelo curso de antropologia e de igual modo o trabalho de campo.
Na tese repeti parte da justificativa que apresentei na dissertação de mestrado, mas agora, com elementos mais concretos após atuação em vários casos e contato com um número maior de comunidades indígenas. E ainda, digamos também com um olhar mais treinado a partir do contato com os trabalhos etnográficos ao longo do doutorado.
A primeira justificativa da tese é de ordem pessoal. Quando do ingresso no programa de doutoramento me questionaram sobre o porquê de estudar o
Terminologia Terena para designar o homem branco, ou seja, não indígena.
meu próprio povo, já que é corrente e tradicional na antropologia estudar “o outro”. Neste ponto resgatei minha história de vida, calcada na minha origem: não é possível fazer essa dissociação. Para nós, povos indígenas, a única razão de deixar a aldeia e ingressar na academia é ter a certeza que poderemos nos apropriar desses “ditos conhecimentos científicos” e de alguma maneira usá-los em prol de nossa comunidade. A isto se alia a justificativa de ordem acadêmica. É a oportunidade do pesquisador indígena, enquanto representante de seu povo, falar em nome dele. Como é corrente entre nós a expressão “já chega do purutuyê [branco] falar por nós! Nós temos que falar por nós agora, é para isso que enviamos nossos jovens para as universidades, para competir de igual”6. Além disso, é momento oportuno para (re)ver tudo que foi escrito sobre nós pelos antropólogos. A terceira justificativa é de ordem social, pois na tese, refleti criticamente sobre a história do meu povo Terena e sobre as relações interétnicas estabelecidas com o purutuyê, apresentando balizas que demonstram como o saber histórico e antropológico pode contribuir para o reconhecimento de direitos, especialmente o direito originário sobre os territórios tradicionalmente ocupados.
Dito isto, apresentei as contribuições da pesquisa para a antropologia. Primeiramente, olhando para as produções existentes a respeito da etnografia terena, de plano foi possível perceber a colaboração da análise do processo histórico dos Terena para a antropologia. Daí foi possível constatar a importância da investigação antropológica em focalizar os processos históricos a partir da percepção das mudanças culturais pelo qual passam os diversos povos através de suas interações sociais. Em linhas gerais, a literatura etnológica que trata dos Terena é marcada pela ideia de “aculturação”, uma atitude teórica diante do fenômeno da mudança social. Os Terena ficaram conhecidos no âmbito da etnologia brasileira como “um caso limite de ser ou não índio no Brasil” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 07), e por esta condição histórica, é possível abordar o debate antropológico em torno de temas como: identidade, etnicidade, resistência, apropriação e uso político da identidade, urbanização e fronteiras étnicas, entre outras variantes das relações interétnicas. O trabalho debruça
Neste sentido me apoio nas falas das lideranças Lindomar Terena, Célio Fialho, Alberto França, Estevinho Tiago, Simone Eloy, Zuleica Tiago, Manoel Amado, Eder Alcântara Oliveira, Arildo Alcântara, Juciney Alcântara Bernardo e Elvisclei Polidório.
ainda sua reflexão nas relações interétnicas estabelecidas com a sociedade nacional ao longo do avanço e consolidação das frentes de expansão agrícola e pastoril. Procurou-se demonstrar de forma cabal como se deu o relacionamento do Estado brasileiro e seus agentes com os Terena e, como a perda significativa de seus territórios impactou na vida das comunidades. A partir da etnografia dos processos de mobilização política das lideranças foi possível perceber como os Terena resistiram e se rearticularam como povo para se manterem em seus territórios e garantir sua existência.
Assim, defendi que o saber antropológico e histórico pode contribuir para o reconhecimento dos direitos territoriais originários dos povos indígenas no Brasil. Essa defesa foi feita a partir de minuciosa pesquisa que envolveu a coleta de relatos orais, levantamento de documentos junto ao Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio (Funai), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Instituto Socioambiental (ISA), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Museu do Índio, Arquivo Público de Mato Grosso, processos judiciais em trâmite na justiça federal, cartórios, consulta à legislação indigenista desde o período colonial, livros produzidos e relatos de viajantes da época. Este trabalho, talvez muito associado ao campo do historiador e/ou até mesmo de um operador da área jurídica, quando desempenhado por antropólogo, pode até revelar como, do ponto de vista da análise de produção de tais expedientes, e aliado à conjuntura política do momento, pode ser revelador de fatos sociais, políticos e econômicos que influenciaram e impactaram a vida de determinado povo indígena.
A partir disso consignei linhas incipientes a respeito do método de pesquisa ou de técnicas de campo, no sentido tradicional, refletindo sobre aspectos de minha pesquisa de campo, numa ótica particular de um Terena, operador do direito que se meteu a fazer antropologia. Já na década de 70, Gerald Berreman (1975), apoiado inclusive no escrito de Elenore Bowen (1954), suscitou que raramente os etnógrafos “explicitaram os métodos a partir dos quais a informação relatada em seus estudos descritivos e analíticos foi colhido”, afirmando inclusive ser possível que se “suspeite terem os etnógrafos se unido numa conspiração de silêncio sobre esses problemas”. O trabalho de campo é uma experiência humana que como tal está sujeita a implicações de várias ordens e resultados inesperados. Basta lembrar que quando ingressei no programa de pós-graduação em antropologia social do Museu Nacional, meu
pré-projeto de pesquisa era totalmente diferente da tese apresentada. A imersão nos relatos de etnografia, através de puxadas leituras do curso e posterior retorno à minha comunidade indígena, agora já com um olhar “antropologicamente treinado” é que possibilitou refletir analiticamente sobre o papel da antropologia, mas também sobre o papel do “indígena antropólogo”.
Se eu não fosse um Terena, provavelmente iniciaria este trabalho descrevendo como foi minha chegada ao campo, o contato com o grupo pesquisado e a apresentação do etnógrafo7. Mas, indígena antropólogo não vai a campo no sentido tradicional, o processo é inverso. Esta “confrontação de si próprio diante do grupo” de que fala Berreman, é que me chamou atenção. Por isso, na tese, julguei fundamental, antes de refletir sobre este ponto, resgatar minha trajetória pessoal. Onde nasci, a qual família eu pertenço, as relações políticas dentro da comunidade, o movimento indígena e quem são meus “troncos”.
Esta “confrontação” eu senti na pele quando olhei para a posição que ocupava no meu grupo de origem e no movimento indígena. Veio à tona a lembrança que vivi quando criança, de uma importante reunião entre caciques Terena à espera do procurador federal e do antropólogo da Funai. Era um acontecimento importante na comunidade e de repente essas duas figuras estavam reunidas em mim. Após três anos de exercício da advocacia, meu nome era corrente em todas as comunidades Terena como o defensor dos direitos dos povos indígenas. E quando de meu ingresso no Museu Nacional para o doutoramento em antropologia social, o acontecimento foi comemorado por muitas lideranças, pois além de advogado, agora seria também antropólogo. Isso significava mais do que um ganho pessoal, era tido como um reforço à luta coletiva, pois eu estava na “linha de frente” desses conflitos e estaria ganhando um respaldo a mais, dando uma qualificação à defesa das comunidades indígenas. Esta posição que passei a ocupar, refletiu diretamente na pesquisa desenvolvida, desde o acesso a certas informações e documentos até mesmo de confidências particulares de lideranças indígenas.
Neste sentido afirma Berreman (1975, p. 125), “ao chegar ao campo, todo etnógrafo se vê imediatamente confrontado com a sua própria apresentação diante do grupo, que pretende a conhecer”.
Assim, o primeiro capítulo trata da conjuntura histórica do povo Terena no mundo colonial. Numa tentativa inicial de contornar o Chaco paraguaio tão imbricado nos escritos sobre os Terena. Defendo a inserção da história Terena dentro do sistema-mundo indígena vigente naquele momento histórico, reafirmando a condição de povo originário e assentando a invenção do Estado e seus contornos como projeto colonial levado a cabo, valendo-se do colonialismo interno, para promover a invisibilidade dos Terena e subjugando-os como não sujeitos de direitos.
O segundo capítulo que foi construído na etapa final da pesquisa, quando de reflexões finais coletadas na última ida a campo, diz respeito aos puxarará, termo terena utilizado para designar o não indígena, mas também, utilizado para se referir ao barulho produzido pelo trovão, marcando a relação autoritária entre os puxarará e os Terena. No caso, os primeiros puxarará que se relacionaram com os Terena foram os agentes de Estados, seguidos pelos missionários e fazendeiros. Neste mesmo capítulo, tomei por ponto de partida o livro Um grande cerco de paz, de Antonio Carlos de Souza Lima, que já havia lido no primeiro ano do doutorado, mas relendo nesta última etapa, e com base nas reflexões do campo, surge este item da tese que considero primordial para analisar a política indigenista brasileira, nos dias atuais. Neste capítulo, abordo ainda, duas conjunturas históricas que considero fundamentais para compreender a luta atual do Conselho Terena, consistente nos relatos de violações durante a ditadura militar e a participação dos Terena no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988.
O capítulo três considero o núcleo da minha proposta de pesquisa. Cravando o termo vukapanavo (avante), reformulo o denominado “tempo do despertar” do povo Terena, abordando a intensa mobilização e confronto político exercitado pelos Terena nos últimos anos, marcado pela reivindicação por direitos territoriais. As retomadas constituem-se em formas próprias e legítimas articuladas pelos caciques e lideranças indígenas que elegem tais ação como projetos institucionais próprios. A mobilização que surge no campo, nos fundos da aldeia, perpassa variados contextos estatais, chegando aos tribunais e espaços internacionais. Em grande medida, a incidência terena – modo de operar – fazer o lobby Terena, marca os atores sociais desta pesquisa, que
deixam de ser meros informantes e/ou sujeitos pesquisados para assumirem protagonismos e papéis diante do arcabouço teórico antropológico.
O último capítulo onde retomo o termo que utilizei na dissertação de mestrado – poké ` exa utî – que significa nosso território. Refletindo sobre as retomadas terena, processos de territorialização nos dias atuais e de forma incipiente, o impacto da tese jurídica do marco temporal nos territórios Terena. Esta interpretação jurídica foi suscitada pela primeira vez no âmbito do judiciário no ano de 2009, por ocasião do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, no Supremo Tribunal Federal. A abordagem considero mais de cunho informativo, sem aprofundar a análise jurídica e sociológica, tendo em vista que este tema em específico é parte de outra pesquisa que está em fase de conclusão no doutorado em ciências jurídicas e sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ao final, na tentativa de amarrar as reflexões apresentadas naquele trabalho, pondero sobre o isonêuti – pensamento Terena - a partir de elementos que foram colhidos da observação de campo, das leituras do curso e da vivência na academia. Indico dois elementos considerados como fundamentais para o pensamento terena: sentimento de pertença e a alteridade. E, a partir desses, proponho olhar para as comunidades terena como integrantes de um sistema- mundo adverso aos povos indígenas e que exigirá cada vez mais, capacidade de rearticulação, reinvenção e autodeterminação frente aos puxarará.
AMADO, Luiz Henrique Eloy. Poké'exa Ûti: o território indígena como direito fundamental para o etnodesenvolvimento local. 2014. 125 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Local). Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande – Mato Grosso do Sul.
BERREMAN, Gerald. The society of applied anthropology. Rand Hall, Cornell University, Ithaca, Nova Iorque, 1962.
BOWEN, Elenore S. Return to laughter. Harper, Nova Iorque, 1954.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Do índio ao bugre: o processo de assimilação dos Terena. 2. ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1976.
MELATTI, Júlio C. A Antropologia no Brasil: um roteiro. Rio de Janeiro: BIB, 1984.
SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. Um grande cerco da paz: Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, Vozes: 1995.