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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


Tese de doutorado1


GONÇALVES, Scheilla Nunes2. “Mulheres dos escombros”: A condição das mulheres periféricas em tempos de catástrofes. 2018. 208 p. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Serviço Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.


Resumo expandido3


Nos efervescentes debates atuais do feminismo é comum encontrar expressões de assombro com a atualidade do patriarcado – “como é possível tal fato em pleno século XXI?” Parece que numa esquina do progresso deu-se de cara com uma imensa névoa de conflitos atávicos, e na penumbra apareceram imagens misóginas de pura regressão. Ocorre, no entanto, que pensar o quadro em que vivemos exige romper tanto com os ideais de desenvolvimento que giraram em falso no patriarcado capitalista quanto com o próprio. O absurdo e a vantagem do aprofundamento da crise atual concentram-se justamente neste ponto nevrálgico: quanto mais difícil parece ser enxergar em meio a tantas sombras, mais evidente se torna a conjunção de fatores que atestam os limites de um colapso mundial, que mesmo sendo um processo de dimensão e temporalidade imprevisível (no sentido da definição de qualquer marco cabalístico), já nos aproxima de fronteiras concretas imediatas, como a falta mais generalizada de emprego para as novas gerações, o esgotamento dos recursos naturais, e o exacerbado caos das grandes e falidas metrópoles. A brutalidade da crise do patriarcado capitalista parece reconstituir a


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1 Resumo recebido em 31/07/2020. Aprovado pelos editores em 14/08/2020. Publicado em 25/02/2021 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.44361.

2 Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem atuado principalmente nos seguintes temas: crise do capitalismo, feminismo, violência contra a mulher, crítica ao desenvolvimento.

E-mail: scheillanunes@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9368536880355595. ORCID https://orcid.org/0000-0001-6167-8833.

3 Tese defendida em 02 de março de 2018 no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Marildo Menegat.

feminilidade como matéria-prima, evocando os sacrifícios através dos quais esta forma social foi instituída.

As análises em torno das condições em que vivem as mulheres – e a violência a que estão submetidas – no Brasil contemporâneo, em geral, não aprofundam dois pontos que considero fundamentais para tatearmos a complexidade da realidade na qual as questões que envolvem a temática do sexismo se inserem atualmente: os elementos que são constitutivos e, portanto, específicos da determinação patriarcal capitalista; e a sua atual crise estrutural. Sem o aprofundamento destes dois pontos corre-se o risco, creio, de se embarcar mais uma vez em análises desenvolvimentistas, punitivistas e inócuas. Insiste-se na ideia de superação dos “atrasos” históricos da sociedade brasileira, como quem crê num horizonte mais democrático, mais plural e menos violento, de um porvir “civilizatório” sempre adiado, quando na verdade o que se apresenta aos nossos olhos é o sombrio desmoronamento de uma forma social que nada mais pode oferecer – e não é só no território brasileiro.

Afora alguns lampejos de novidades no âmbito de reações ativas, parece ainda bloqueada a abertura para ensaios que procuram se desenvolver sobre bases teóricas e reflexivas não hegemônicas e que, por isso, podem sugerir a retirada do chão sobre o qual ainda pisam nossos pés. Entretanto, apreender o atual aprofundamento da violência misógina na chave histórica de um problema que decorre apenas da exclusão das mulheres dos espaços de poder tradicionais, tal como considerar que se pode solucionar a pauperização que se generaliza apenas com a reivindicação de empregos e desenvolvimento, significa investir energia justamente no motor desta forma social que mais do que nunca atua como uma “máquina de moer gente”. Significa, sobretudo, não levar a sério os resultados objetivos de experiências históricas que levaram ao limite determinadas expectativas de progresso nos termos das categorias da forma-valor, como são os casos emblemáticos da União Soviética e também do Estado industrializado europeu, tanto no que se refere às possibilidades emancipatórias do desenvolvimento das forças produtivas quanto ao intento de igualdade jurídica entre homens e mulheres.

A década de 1990 é um marco para aqueles que a sentiram como um divisor de águas no balanço dos resultados da modernização capitalista. Na contracorrente das explicações pós-estruturalistas de apreensão da pós-modernidade, a crítica do

valor procurou explicar o colapso do bloco soviético com categorias marxistas, indo, no entanto, além dos fundamentos do velho movimento operário, colocando no centro a categoria do valor e lendo Marx desde este ponto de vista. No âmbito das formulações da crítica do valor, que iria desenvolver a partir de então a crítica ao trabalho abstrato e a teoria da crise, Roswitha Scholz, ao observar estas questões sob a lente de preocupações da teoria feminista trazidas desde maio de 19684 – e, dentre outras coisas, da caça às bruxas –, pensa a formulação de “o valor é o homem” e se dá conta da importância de estabelecer uma relação destas elaborações com a “Dialética do Iluminismo” e a lógica da identidade de Adorno. Assim, num sentido diverso das concepções que conformam a desconstrução própria ao relativismo cultural – segundo a qual, por exemplo, o gênero poderia ser entendido não como uma realidade objetiva e fixa, e sim como algo negociável discursivamente, de modo à hipostasiar as diferenças e ignorar o papel da estrutura na determinação da violência

–, Scholz propõe através do valor-dissociação um modo de entender o nexo que une domínio da natureza, opressão da mulher e racismo. E analisando a crise, na perspectiva do valor-dissociação, a autora afirma que a atualidade da pós- modernidade revela que a totalidade fragmentada não leva à emancipação, mas antes à barbárie.

Impulsionada pela impactante tese de Scholz, estive mobilizada no decorrer desta pesquisa, porém, em pensar o aprofundamento da crise civilizacional e da violência sexista, efetivamente desde a periferia do capitalismo, território no qual a constituição e o desenvolvimento do capitalismo representaram uma constante acumulação de escombros. Neste sentido, meu esforço inicial foi estabelecer um nexo entre a contribuição da crítica do valor alemã, notadamente de Kurz e Scholz, com as elaborações de Marildo Menegat que, sintonizadas com este campo do pensamento, foram pensadas do ponto de vista da realidade brasileira. Desde o mesmo marco temporal do fim do bloco soviético, Menegat começou a pensar a barbárie e a crise da modernidade, também influenciado pelo traço contra intuitivo da crítica ao progresso de Adorno e a primeira geração da Escola de Frankfurt. Sua apreensão a respeito da constituição do capitalismo no Brasil, a partir de um balanço da tradição crítica brasileira e o vínculo que estabelece entre uma “crítica da economia política da


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4 Como, por exemplo, integrar marxismo e feminismo, e como estabelecer um nexo entre capitalismo, a repressão das mulheres, a destruição da natureza e os processos de colonização no terceiro mundo.

barbárie” e a particularidade periférica (o que inclui a crítica ao trabalho abstrato e uma leitura da crise), configura no período seguinte – marcado no Brasil pelos governos petistas e pelas fantasias em torno do desenvolvimento – uma análise dissonante do espírito do tempo.

Nessa perspectiva, também procurei evidenciar, através do fio condutor histórico-processual da colonização e da escravidão 5 , sobretudo no contexto brasileiro, a relação violenta entre desenvolvimento das forças produtivas, direitos e punição6, porquanto foi a chamada “exteriorização dos custos” (Mies) que determinou, mesmo no período de ascensão do capitalismo, sobre quem recairia o reverso obscuro da forma valor e da sua aparência civilizatória – no Brasil a condição da mulher negra é a que sintetiza de modo emblemático este quadro de sobrecarga e violência.

No domínio do constructo lógico da teoria crítica, não é possível apontar saídas para uma forma sistêmica que ao mesmo tempo em que desmorona se mantém apoiada em complexos mecanismos de dominação e destruição. Nem seria papel de uma simples pesquisa projetar soluções ou conclusões para os dilemas da humanidade. Contudo, procuro destacar a importância de adquirirmos recursos que nos permitam, no mínimo, discernir o que é urgente negar. Ademais, no âmbito da realidade periférica, a experiência já se encontra profundamente marcada pela necessidade de serem pensadas formas de sobrevivência que não dependam das expectativas no desenvolvimento capitalista, mas que, ao contrário, se coloquem contra este. Não se trata de tornar virtude o que é necessidade, mas de reconhecer que no lugar de nos voltarmos contra o cuidado para buscarmos os espaços destrutivos de poder, talvez seja mais razoável considerar a possibilidade de redimensioná-lo. O que não significa aceitar passivamente a instrumentalização estatal, que atribui às mulheres a tarefa de administradoras bem adequadas do colapso, e sim pensar esta condição no sentido de romper com as aspirações idealistas que giraram em falso na modernidade – nos termos da identidade com esta forma social e dos seus mecanismos de destruição – e assim, quem sabe, limpar o


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5 Neste ponto foram determinantes os estudos das abordagens decoloniais e da crítica formulada pelo feminismo negro que explicam a invenção da raça e seus impactos na realidade periférica.

6 No âmbito da crítica aos mecanismos punitivos, foi importante o esforço de apreensão da criminologia

crítica abolicionista (especialmente através de Malaguti e Batista); configurando-a como um vínculo que procurei, nos limites da incursão que me foi possível, estabelecer enquanto um dos eixos fundamentais da minha elaboração.

campo de visão, de forma a abrir caminho para que possam ser ao menos experimentados novos campos de resistências, preocupados em tornar o cuidado com a vida um critério horizontal.


Referências


MENEGAT, M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2019.


MIES, M.; SHIVA, V. Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.


SCHOLZ, R. O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos. Novos Estudos – CEBRAP, n 45, pp. 15-36, jul.1996.


                 . Escisión del valor, género y crisis del capitalismo. Entrevista com Roswitha Scholz, [Entrevista cedida a] Clara Navarro Ruiz. Constelaciones, revista de teoria crítica, Madrid, n 8/9, pp. 475-502, 2017.