V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
Editorial
PANDEMIAS, PANDEMÔNIOS E LUTAS ENTRE CAPITAL E TRABALHO NA AMAZÔNIA1
Diz a lenda que há muitos e muitos anos, existiam dois noivos apaixonados que viviam no meio da floresta. Ela se chamava Lua e se vestia de prata. Ele se vestia de ouro, e tinha o nome de Sol. Preocupada, a Pachamama (do quíchua Pacha, "universo", e Mama, "mãe", "Mãe Terra") advertia que os dois não deveriam jamais se casar, pois o sentimento ardente e irradiante do Sol poderia queimar a Terra. E, sendo assim, o mundo poderia, enfim, se acabar! Com a separação dos namorados, a Lua resignada, chorou durante um dia inteiro.... Desconsolada, chorou a noite inteira... Sofrendo de saudades e de amor ausente, as lágrimas derramadas formaram um vale imenso! Também deram à luz um enorme rio, cercado de flora e fauna por todos os lados. Hoje, esse rio se chama Rio Amazonas – rio de alegrias, amarguras, esperanças e lutas.
Na escola, decoramos que o Rio Amazonas é o segundo maior rio do mundo, só perdendo para o Rio Nilo, que nos conta um pouco da história das economias e culturas milenares dos povos do Egito. Depois de atravessar a cordilheira dos Andes, as águas do Amazonas invadem o Brasil, percorrendo 3.165 quilômetros para, então, desaguar na imensidão do Oceano Atlântico. Saber “de cor e salteado” os afluentes da margem esquerda e da margem direita do Rio Amazonas era um dos indicativos de “boa memória” e, também, da necessária disciplina para que, qualquer um de nós, “independente de classe/cor/raça/gênero/etnia pudéssemos requerer o título de “bom aluno” (e se possível, tornar-se o “melhor aluno” da sala. E por que não, da escola?)
Além de não contar histórias que conformam a nossa cultura, os livros didáticos escondiam, diziam e ainda dizem muito pouco sobre o fato de que, por possuir a maior
1Editorial submetido em 17/09/2020. Aprovado em 18/09/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.46226.
biodiversidade do planeta, a floresta tropical é mundialmente considerada como “pulmão do mundo”. Talvez para nós, que buscamos compreender a cultura na perspectiva da concepção materialista da história, ainda esteja pouco claro que, na Região Amazônica (e em outros cantos da América Latina) vivem povos e comunidades tradicionais cujas economias e culturas se distinguem do modo capitalista de produção da existência humana. São indígenas (resistentes ou isolados), quilombolas, castanheiros, seringueiros, babaçueiros, ribeirinhos e outros grupos sociais que repartem o território para garantir sua sobrevivência nas terras da floresta, banhadas por afluentes de muitos rios, riachos e suas fontes de água e de vida. Na acepção de Fals Borda, as culturas de homens e mulheres amazônidas poderiam ser consideradas como “culturas anfíbias”. De acordo com a concepção materialista da história e da cultura, trata-se de homens e mulheres que insistem em preservar práticas sociais não capitalistas.
Historicamente, para preservar seus modos de vida, essas populações têm resistido bravamente à expansão capitalista no campo. No cenário da exploração da força de trabalho e de todas as forças da mãe-natureza estão os atuais projetos de devastação acelerada da Amazônia, o que culminou com um grande incêndio na floresta, em agosto de 2019. São programas de cunho público e/ou privado que requerem tratores, motosserras para derrubar a floresta, agrotóxicos para contaminação do solo e dos rios, além de invasões de terras demarcadas dos indígenas e remanescentes quilombolas.
Em tempos de pandemia e de pandemônio, para “passar a boiada” de Ricardo Salles (Ministro do Meio Ambiente), as frentes de garimpo ilegal caminham a todo vapor, repercutindo no aumento do contágio do vírus. Entre junho e setembro, aproximadamente, foi possível observar diversas “campanhas” virtuais nas redes sociais, nas quais lideranças de comunidades tradicionais exigiam o respeito aos seus modos de vida. Por entender que a Covid-19 é a filha mais nova do capitalismo, as lideranças do povo Yanomami gritam: “Fora garimpo. Fora Covid”. Por terem sido esquecidos pelos governantes, os povos indígenas do Alto Xingu perderam 5 caciques em 20 dias; pediam a contribuição de R$ 1,00 por pessoa para a construção de um hospital. Os Hayô Pataxó organizaram uma rifa para concorrer a um cocar, uma gamela e uma lança, pelo valor de 30 reais. A Rede de Apoio Guarany fez campanha para atingir a meta de comprar 101 cestas, mensalmente, para que as famílias não
necessitassem sair da aldeia, protegendo-se da pandemia. Em síntese, conforme os dados da “Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus”, até o dia 17 de setembro de 2020, o saldo era de 32.017 casos confirmados, 807 mortes e 158 povos afetados (https://covid19.socioambiental.org/).
Com o agravamento das violências aos povos indígenas durante a pandemia, as mulheres indígenas de todo o Brasil realizaram nos dias 07 e 08 de agosto uma assembleia online com o tema O sagrado da existência e a cura da terra. Para elas, nós também somos terra, pois a terra se faz em nós.
Na verdade, estamos chegando ao final de 2020, carregando muitos desafios, não apenas na Amazônia, mas no Brasil. Um deles é decorrente da pandemia do Coronavirus, que insiste em ceifar vidas e deixar sequelas em um contingente enorme de seres humanos, ameaçando a fauna, flora e o próprio planeta. Em um contexto político e ideológico de negacionismo da ciência, outro grande desafio diz respeito ao pandemônio estabelecido pelo poder executivo inconsequente, na figura de um presidente que, como representante da extrema direita, tem absoluto descaso com a preservação da vida. As consequências do racismo estrutural e da necropolítica não poderiam ser outras: desemprego, violência física e simbólica, queimadas naturais e criadas pela ganância exacerbada, assassinatos, instituições militarizadas e miliciadas, abuso de poder, letalidade de jovens negros e negras por policiais, trabalho remoto em detrimento da saúde física e mental de trabalhadores/as. Vidas improdutivas ou pouco produtivas não fazem o menor sentido para o sistema destrutivo do capital.
Espectros do “novo” normal? Quando analisarmos as históricas contradições entre capital e trabalho, entendendo-as como contradições entre capital e vida, não é difícil reconhecer que diversas têm sido as pandemias e pandemônios que, cotidianamente, atormentam homens e mulheres de diferentes rincões do Brasil e do mundo.
Desde a chegada dos europeus e, ao longo da expansão capitalista na América, é possível observar movimentos de resistências e lutas de trabalhadores de diferentes matizes e lugares de pertencimentos, que se contrapõem às relações capitalistas de produção da vida. Assim, Inspirada em uma lenda sobre a paixão e o impossível casamento da Lua com o Sol, que gerou o Rio Amazonas, o número 37 da Revista Trabalho Necessário traz à superfície algumas dimensões da
Apreender a materialidade das relações entre trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia é o desafio deste número. Experiências de outras regiões poderiam ser contempladas, mas privilegiamos a Amazônia por tudo que ela apresenta de diverso e, também, pelos sérios riscos que correm a flora, a fauna e os seres humanos que lá habitam.
Não podemos deixar de registrar que as diferentes seções que compõem o número temático Trabalho, cultura e políticas educacionais na Amazônia são o resultado do trabalho desenvolvido no Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD), envolvendo a Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em articulação com outras universidades públicas e institutos federais.
Outro importante registro é a singela homenagem que a Revista Trabalho Necessário faz ao querido Paolo Nosella, nosso grande mestre!
Um abraço dos editores,
Lia Tiriba, Maria Cristina Paulo Rodrigues e José Luiz Cordeiro Antunes
Setembro de 2020.