V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
UNA SPACCATURA STORICA1
Paolo Nosella2
O texto comprova a afirmação de Pasolini: “A ‘esquerda’ é objetivamente dividida por uma grande spaccatura [divisão] histórica que separa os defensores da cultura humanista dos defensores da subcultura tecnológica”. Pasolini traduz a proposta de Gramsci para o contexto social da segunda metade do século XX, afirmando que só uma “cultura extrema” libertará o proletariado (o lumpemproletariado, os subalternos, o povaréu, a ralé) de sua “extrema” opressão. O trabalho como princípio educativo refere-se à história em movimento, articulando dois lados complementares: o econômico e o político.
El texto comprueba la afirmación de Pasolini: “La izquierda, objetivamente está dividida por una gran fractura histórica que separa a los defensores de la cultura humanística de los defensores de la subcultura tecnológica”. Pasolini traduce la propuesta de Gramsci para el contexto social de la segunda mitad del siglo XX, afirmando que sólo una cultura extrema liberará al proletariado (el lumpen proletario, los subalternos, la multitud, la chusma) de su opresión extrema. El trabajo, como principio educativo, atañe y compete a la historia dinámica, articulando los dos lados complementarios: el económico y el político.
The text proves Pasolini’s affirmation: “The left is objectively divided by a big historic fracture that separates the humanistic culture from the subcultural defenders.” Pasolini translates the Gramsci proposal for the social context of the XX century second half, by affirming that only an extreme culture will free the lumpenproletariat (the subalterns, the mass, the rubble) from its extreme oppression. The labor, as an educational principle, is related and pertinent to the dynamic history, because articulates two complementary sides: economic and politic
1 O texto foi apresentado no VIII Seminário Internacional de Teoria Política - Gramsci, na Universidade Estadual Paulista - UNESP, Marília – São Paulo / Brasil, de 09 a 13/09/2019 e no Minicurso da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd, no Grupo de Trabalho – GT 09 – Trabalho-Educação, na Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói / Rio de Janeiro - Brasil, 23/10/2019; no VI Encontro do Labor, Fortaleza – Ceará / Brasil, 13/11/2019. As traduções do original italiano são de responsabilidade do autor. Traduzir para o português a palavra “spaccatura” foi difícil. Os termos ‘divisão’, ‘diferença’ ‘racha’ se aproximam, mas, nenhum traduz perfeitamente.
2 Doutor em Educação (Filosofia da) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil (PUC/SP). (1981). Professor titular de Filosofia da Educação na Universidade Federal de São Carlos / São Paulo – UFSCar/SP - Brasil, desde 1979. Na mesma instituição, aposentado, atua como colaborador do Programa de Pós-graduação em Educação - PPGE. É pesquisador sênior do CNPq – Conselho nacional de Pesquisa. E-mail: nosellap@terra.com.br. ORCID: 0000-0001-6272-9073. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7159165045266256.
3 Artigo recebido em 24/07/2020. Aprovado pelos editores em 24/07/2020. Publicado em 25/09/2020. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.44266
O título “O princípio educativo do trabalho na formação humana: una spaccatura storica” nos remete ao debate das pedagogias progressistas ou socialistas que colocam a categoria ‘trabalho’ no centro da reflexão pedagógica, porém, com enfoques diferentes.4
Preliminarmente, é importante estarmos cientes de que o trabalho como princípio educativo não é categoria simples e fácil de ser precisada. Talvez, pelo frequente uso, as marcas da historicidade e da complexidade conceitual tornaram-se tênues, quase imperceptíveis. Por isso, frequentemente, a categoria é definida de forma estereotipada, aparentemente óbvia, até mesmo no campo do nosso GT da educação. De fato, o trabalho como princípio pedagógico, na concepção dialética, refere-se à própria história em movimento. Sua apreensão exige reflexão contínua e atenta.
Portanto, não devemos estranhar que entre os educadores progressistas ou socialistas o debate sobre o trabalho como princípio educativo tenha sido marcado por uma divisão histórica, às vezes com tons de polêmica, entre os que priorizam na formação humana a cultura clássica humanista e os que priorizam um ensino politécnico. Nas palavras de Pier Paolo Pasolini: “A ‘esquerda’ é objetivamente dividida por uma grande spaccatura histórica que separa os defensores da cultura humanista dos defensores da subcultura tecnológica.” (2012, p. 1693).5
O debate entre as duas partes, defensores da cultura humanista de um lado e defensores da cultura tecnológico-profissionalizante de outro, foi ficando
4 Portanto, desconsideramos aqui os princípios educativos inspiradores de metodologias pedagógicas utilitaristas, idealistas, conservadoras, reacionárias, místicas ou espiritualistas, por exemplo, o mercado, a pátria, a religião revelada, a evolução científico-tecnológica perene e progressiva, o espírito absoluto, a raça, a nação ‘superior’ ou, até mesmo, o acaso, a irracionalidade etc.
5 Davide Lajolo entrevistando Pasolini. In: Revista semanal Giorni, Vie Nuove, em 30/06/1971, sob o título de Botta e risposta sui fatti che scottano. In: Pasolini, 2012, 1693. Pasolini referia-se, inclusive, ao debate sobre a reforma e implantação na Itália da Escola Média Única (fundamental 2), obrigatória, de 1962. Houve, então, uma grande discussão sobre a abolição do ensino do Latim. Importantes lideranças de esquerda divergiam entre quem defendia uma escola pública de qualidade sem o latim e com o fortalecimento do eixo científico matemático, e quem (inclusive entre os comunistas, como o grande latinista Concetto Marchesi) defendia uma escola de ‘estrutura gentiliana’, mas, para todos, com latim.
historicamente cada vez mais tenso, simplesmente porque, mesmo nascendo da mesma vontade política de unir teoria à prática e, portanto, de propor um percurso formativo unitário da escola básica do trabalho, fundamenta-se em situações histórico- sociais e estratégias de luta hegemônica diferentes.
Este ensaio visa a comprovar o acerto da afirmação de Pasolini, visando com isso a reconhecer o problema e, assim, criar a condição essencial para melhor analisá- lo e, quiçá, tentar superá-lo.
Há 28 anos, foi publicado no Brasil o livro Trabalho, educação e prática social organizado por Tomaz Tadeu da Silva, Editora Artes Médicas, 1991. Para o GT 9 da ANPEd foi um livro marcante, com textos de John Mepham do Brighton Labour Process Group, Edward Palmer Thompson, M.A. Manacorda, Carlos Lerena, Miguel Arroyo, Mariano F. Enguita, Gaudêncio Frigotto, Tomaz Tadeu. Foi um livro que ajudou a estabelecer entre nós o axioma do trabalho como categoria central na análise do modo capitalista de produção e fundamental princípio pedagógico. Comenta Tomaz Tadeu da Silva na Introdução:
A análise do processo de trabalho realizada pelo Grupo de Brighton constitui-se talvez na melhor síntese disponível sobre esse assunto, firmemente ancorada na análise do próprio Marx, e explorando fundamentalmente o Capítulo VI inédito de O Capital. Este ensaio do Grupo de Brighton coloca a categoria “trabalho” no centro da análise do modo capitalista de produção, constituindo-se numa espécie de fundamentação para os ensaios que se lhe seguem. (1991, p. 9).
Manacorda reafirma a mesma tese, sintetizando o pensamento de Marx pela metáfora do filo rosso (fio vermelho):
Eu diria, com Marx, que a base ou o fio vermelho (filo rosso) que costura o conjunto da história é o trabalho do homem, em colaboração com os outros homens, para dominar a natureza e dominá-la, de forma a produzir e aumentar a própria vida material e espiritual. Esta sempre foi a raiz da história, isto é, o trabalho entendido como atividade do homem para produzir a própria vida; é a confrontação com a natureza que só acontece em associação com os outros homens. Naturalmente, aí nascem as contradições maiores da história humana: o trabalho, de manifestação de si, como Marx dizia, torna-se perdição do homem a si mesmo... Esperamos podê-lo recuperar esse homem perdido. (Manacorda, 1DVD, 2007, p. 12).
Karl Marx, portanto, lançou as bases de uma nova concepção educacional recomendando combinar educação e trabalho produtivo. Mas é preciso reconhecer que se trata de um princípio pedagógico amplo, aberto, complexo que se adequa às características de cada momento histórico, abrindo caminho para a escola básica única, melhor, unitária, para todos, integradora da cultura geral humanista e tecnológico profissional. Infelizmente, essa busca não teve ainda pleno sucesso, sobretudo, no Ensino Médio.6
A spaccatura pasoliniana constata-se também em Marx e Engels. Eram grandes amigos, companheiros solidários, mas tinham diferenças teóricas. Eram como o primeiro e o segundo violino7. Em geral, afinados, mas, às vezes, enquanto a música do esplêndido violino de Marx, o primeiro, nos mergulha em profunda reflexão sobre a complexa difícil lógica dialética da história, o segundo, ao simplificar a própria dialética, nos faz pensar, às vezes, que a história é uma ciência ‘exata’. Em outras palavras, se Marx pagou tributo ao positivismo da época, Engels pagou mais.
Após o falecimento de Marx, março de 1883, o segundo violino precisou tomar o lugar do primeiro, porém, “em questões de teorias e violino – escreve o próprio Engels – inevitavelmente haverá erros”. (ENGELS, 2020, p. 191).
Houve erros. Entre esses, destacamos a publicação das Teses sobre Feurbach, manuscritas por Marx em 1845 e publicadas por Engels em 1888 “com algumas mudanças que visavam a esclarecê-las, mas que, em realidade, eram uma interpretação (...), como na XI Tese” (FROSINI, 2017, p. 17). A tese compreende duas orações: “Os filósofos somente interpretaram de forma diversa o mundo, trata-se de transformá-lo”. Ou seja, no original de Marx, as duas orações são unidas por uma vírgula sem recurso às conjunções; gramaticalmente, são independentes, formam uma parataxe. Engels, para ajudar, interliga as duas orações com a preposição adversativa alemã aber (ao contrário, porém, ao invés) isto é, contrapõe “transformar” a “interpretar”. Por que não as interligou com a preposição auch (também)? Melhor,
6 Cfr. Paolo Nosella. Ensino Médio à luz do Pensamento de Gramsci. Alínea Editora, Campinas, SP, 2016.
7 A metáfora do ‘primeiro e segundo violino’ foi utilizada pelo próprio Engels em carta para Johann Philipp Becker, outubro de 1884. Escreve: “Eu passei a vida inteira desenvolvendo uma tarefa para a qual eu estava preparado, tocando o segundo violino e de fato acredito que a desempenhei de maneira razoavelmente bem. Eu era muito feliz por ter que seguir um violino tão esplêndido como o de Marx.”(ENGELS, 1977, p. 101-102, in BITTAR, Marisa e FERREIRA Jr. Amarílio, A Educação Soviética, mimeo. São Carlos, UFSCar., 2020, p. 191).
por que não deixou a Tese na formulação de parataxe como Marx a redigira? Frosini comenta: “É como se para Marx o nexo entre ‘interpretar’ e ‘transformar’ fosse o correspondente a uma mudança de terreno ou de linguagem e não uma aversão crítica direta.” (idem, ibidem).
Gramsci, que considera esse texto “uma das primeiras manifestações maduras do pensamento marxiano” (GRAMSCI, 2007, p. 745), assim traduz a Tese: “Os filósofos somente interpretaram o mundo em modos diferentes; trata-se agora de mudá-lo.” (idem ibidem, p. 814 nota 1).
Ou seja, também Gramsci parece “infiel” à letra marxiana, pois desconsidera a preposição adversativa engelsiana aber, mas acrescenta o termo italiano ora (agora). Entretanto, trata-se de uma infidelidade aparente. Com efeito, traduziu para o italiano o nexo entre “interpretar” e “transformar” à luz do historicismo que o distingue no âmbito do pensamento marxista e que, afinal, caracteriza o próprio Marx. Com efeito, “ora” (agora) conota expressões como “sempre, a cada momento”, negando com isso qualquer identificação institucional burocrática, geográfica e cronologicamente determinada, definitiva, como sendo a única responsável pela missão de transitar do “interpretar” para o “transformar”. Tal passagem8, dentro do historicismo dialético, não denota data cronológica definitiva: deve ocorrer sempre, em todos os momentos e em todos os lugares, conforme se lê no Manifesto Comunista: “O comunismo, como ‘movimento real’, nunca pode ser reduzido a um ‘sujeito’ que o personalize [encarne] por inteiro” (FROSINI, idem, ibidem, p. 18-19). Em outras palavras: os comunistas extrapolam o partido burocrático, o sujeito social identificado e definitivo, “são na pratica a parte mais decidida dos partidos operários de todos os países, a [parte] que sempre empurra [a luta] para frente.” (MARX-ENGELS, in FROSINI, ibidem, p. 19).
Portanto, a tradução de Gramsci da XIª Tese não é uma infidelidade ao texto marxiano, mas a tradução fiel do pensamento historicista de Marx para quem a história não é precisamente uma ciência exata, ao contrário, ele historiciza a própria ciência. Assim, na tradução da Tese XI de Marx, Gramsci, reconhecendo a vitalidade da filosofia passada, propõe e contrapõe outro movimento de cultura,
8 A problemática da transição ou passagem de um momento histórico para outro levanta em Gramsci perplexidade, é o punctum dolens da filosofia positivista. Exemplo, no Caderno 11: “Eis porque a proposição da passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade deve ser analisada com muita finura e sutileza” (GRAMSCI, 1975, p. 1489).
elaborado e proposto na consciência do caráter político da cultura, isto é, do fato que somente elaborando ‘as concepções mais gerais, as armas mais refinadas e decididas’ da cultura (GRAMSCI, 1975,p. 309) pode-se herdar plenamente o passado, propondo-lhe uma alternativa concreta. (FROSINI, idem, ibidem, p. 22).
Demoramos na análise de um exemplo aparentemente pequeno, mas significativo, da contraposição entre o Marx, filosoficamente historicista, aberto às filosofias passadas, e Engels ‘cientificista’, pragmático, ‘desdenhoso’ das filosofias passadas, visando a confirmar que a spaccatura de Pasolini tem raízes longínquas, remonta aos dois ‘violinos’ fundadores do movimento da filosofia da práxis. Eles, sem desafinarem no escopo fundamental de unir teoria e prática, já apontavam justamente para a diferença entre os que priorizam a cultura humanista, extrema, “desinteressada”, dos que priorizam a cultura ‘prática’, científica, profissional, tecnológica.9
Em linha geral, parece fácil responder a Pasolini dizendo que o marxismo é ao mesmo tempo antagonista e herdeiro da tradição burguesa, conforme escreve Mario Alighiero Manacorda:
O marxismo não rejeita, mas assume todas as conquistas ideais e práticas da burguesia no campo da instrução, já mencionadas: universidade, laicidade, estatalidade, gratuidade, renovação cultural, assunção da temática do trabalho, como também compreende o aspecto literário, intelectual, moral, físico, industrial e cívico. O que o marxismo acrescenta de próprio é, além de uma dura crítica à burguesia pela incapacidade de realizar esses seus programas, uma assunção mais radical e consequente destas premissas e uma concepção mais orgânica da união instrução-trabalho na perspectiva oweiana de uma formação total de todos os homens. (2010, p. 357).
A resposta de Manacorda, correta em tese, exala todavia um sabor institucional, político-partidário, burocrático, visando a minimizar a ‘spaccatura’ que, no entanto, tornava-se historicamente cada vez mais profunda à medida em que a prática e o conceito de trabalho tomavam conotações difíceis de serem precisadas e as estratégias de luta pela hegemonia divergiam entre os militantes.
Também Lênin, de rigorosa formação clássico-humanista, viveu essa tensão. Nos seus escritos, percebe-se posicionamento pendular entre a defesa de uma
9 Note-se que a mesma “spaccatura” pasoliniana já aparecia nos debates entre socialistas utópicos, por exemplo, entre Charles Fourier e Robert Owen. Ver, de nossa autoria, A linha vermelha do planeta infância. In Os intelectuais na história da infância. Marcos Cezar de Freitas e Moysés Kuhlmann Jr. (orgs.). Cortez Editora, SP. 2002.
formação técnica, profissionalizante, imediatista e a defesa de uma formação escolar humanista, de longo alcance, profunda, filosófico literária.
Por exemplo, a situação econômico-social da Rússia Soviética forçava Lênin a empunhar a bandeira da formação técnico profissionalizante, até mesmo, precoce. Empenhou-se pessoalmente para que no VIII Congresso do Partido Comunista (bolchevique), de 1919, fosse aprovada a resolução que determinou:
Instrução geral e politécnica gratuita e obrigatória para todas as crianças e adolescentes dos dois sexos, até os 17 anos de idade; 2. Plena realização dos princípios da escola única do trabalho, ensino na língua materna, estudo em comum das crianças dos dois sexos, absolutamente laica, livre de qualquer influência religiosa, que concretize uma estrita ligação do ensino com o trabalho socialmente produtivo, que prepare membros plenamente desenvolvidos para a sociedade comunista. (Apud MANACORDA, 2010, p. 378).
A objetiva necessidade dessa resolução justifica-se, entre outras, pela situação da eletrificação nacional. Em conversa com o correspondente do jornal americano The World, em fevereiro de 1920, diz Lênin:
Supomos, entre outras coisas, que dentro de três anos estarão acesas, na Rússia, 50 000 000 de lâmpadas incandescentes. Suponho que nos Estados Unidos há 70 000 000 dessas lâmpadas, mas para um país onde a eletricidade se encontra ainda na infância, mais de dois terços desse número representam um enorme progresso. Em minha opinião, a eletrificação é a mais importante das grandes tarefas que se nos colocam. (1980, p. 257).
Entretanto, no mesmo ano de 1920, diz: “Só se pode chegar a ser comunista depois de ter enriquecido a memória com o conhecimento de todas as riquezas que a humanidade elaborou”. (1980, p. 389).10
Em 1923, Lênin, no âmbito desse mesmo dilema, acena a uma solução que se identifica com o espírito da XIª Tese marxiana:
Para renovar o nosso aparelho de Estado devemos a todo custo colocar-nos a tarefa de: primeiro estudar, segundo estudar e terceiro estudar, e depois controlar que entre nós o saber não fique reduzido a letra morta ou a uma frase na moda (coisa que, não devemos ocultá- lo, acontece com demasiada frequência entre nós), que o saber se transforme efetivamente em carne e sangue, se torne plena e verdadeiramente um elemento integrante do modo de vida. Numa palavra, não temos que apresentar as exigências que apresenta a Europa Ocidental burguesa, mas aquelas que são dignas e
10 Lounatcharski traduz esse posicionamento de Lênin: “Se nós não assimilarmos toda a cultura do passado, não poderemos avançar.” (LÊNIN, apud LUNATCHARSKI, 1981, p. 132).
convenientes apresentar num país que coloca como sua tarefa desenvolver-se para se tornar um país socialista. (1980, p. 671).
Lênin viveu essa spaccatura dentro de si ao tomar decisões de política educacional; mas a vivenciou também, polemicamente, em debates com as lideranças revolucionárias de sua época. Os nomes de Bogdanov, Lunatchárski e do Proletkult são os mais emblemáticos. Rememoram a feroz disputa entre os intelectuais soviéticos sobre ortodoxia marxista e política cultural e educacional:
De um lado o marxismo dogmático de Lênin, embasado no materialismo dialético, de outro, o empiriocriticismo de Bogdanov, que propunha um novo saber único, baseado na elaboração científica da experiência sensível, que excluía todo tipo de metafísica. A ortodoxia marxista-leninista chocava-se contra a exigência de receber o pensamento de Marx de forma aberta, adequando-o às novas exigências históricas. (GHETTI, 2016, p. 79).
A sensibilidade e inteligência de algumas mulheres pesquisadoras11 conseguiram retratar a dureza dessa disputa:
Das ideias de Bogdanov emergia, portanto, um caminho da transição para o socialismo muito diferente do proposto por Lênin e suas ideias constituíram uma alternativa única dentro do movimento operário internacional, sem dúvida semelhante à oferecida alguns anos mais tarde pelas teorias de Antonio Gramsci.12 (CIONI, Paola. Um ateísmo religioso. p. 47, In: GHETTI, 2016, p. 81).
Bogdanov morreu em 1928. Provavelmente, sua trágica morte esteja relacionada com as perseguições de Stalin que não o teria poupado. Infelizmente, se com Lênin a liberdade ficou constrangida pela necessidade da ditadura do proletariado (de curta duração!) e pelo centralismo democrático, permanecendo, porém, viva no palco da política soviética, infelizmente, com Josef Stalin, que governou a União Soviética de meados da década de 1920 até 1953, aos poucos, a liberdade foi
11 Noemi Ghetti, Paola Cioni, Maria Luisa Righi entre outras. “Sobre o Proletcul’t e o conflito com o Narkom-pròs (Comissariado do povo para a instrução), a instituição oficial que ocupava-se da instrução escolar e da cultura soviética, veja-se S. Fitzpatrick, Rivoluzione e cultura na Russia: Lunacârskij e il Commissariato del popolo per l’istruzione, 1917-1921. Editori Riuniti, Roma, 1976, pp. 124- 32.”(nota 8 in GHETTI, 2016, p. 84).
12 Gramsci combinou com Júlia de traduzir para o italiano o romance de Bogdanov A estrela vermelha. Ele faria a revisão pretendendo publicá-lo na Itália. O projeto não foi a porto, mas evidencia que Gramsci tinha gostado desse romance. (In Noemi GHETTI, citado).
totalmente sufucada no palco político soviético, refugiando-se nos porões da história.13 Sem liberdade, não há dialética14 e sem dialética não há marxismo.
Grande importância na educação soviética reveste, entre outros, o pensador pedagogo russo Moisey Mikhailovsky PISTRAK15 cuja tese é “a realidade atual como princípio educativo”. Gramsci conheceu o pensamento desse autor, em conversas com as irmãs Eugênia e Julia Schucht, colaboradoras militantes no NarComPros. Sua defesa da formação escolar como cultura “desinteressada”, polemiza também a ‘dialética domesticada’ de Pistrak, para quem a vitória da luta entre a revolução comunista russa e o imperialismo capitalista é, historicamente, garantida e conhecida a priori, ou seja, é uma luta que “ocorre como num ‘ring’ convencionalmente regulado” (GRAMSCI, 1975, p. 1221).
A spaccatura pasoliniana visivelmente marcou toda a trajetória de Gramsci. A polêmica existia no Partido Socialista Italiano desde os anos de 1912: enquanto uns acusavam os outros de “economicistas”, estes acusavam os primeiros de “culturalistas”. Do cárcere, escreve:
Relembrar polêmica, antes de 1914, entre Tasca e Amadeu, com reflexos no [jornal] Unitá de Florença. Frequentemente, se diz que o extremismo “economicista” era justificado pelo oportunismo culturalista (e isso é afirmado em toda a área do conflito), mas é possível também dizer o contrário, isto é, que o oportunismo culturalista era justificado pelo extremismo economicista. Na realidade, nem os primeiros nem os segundos podiam ser “justificados”, nem nunca serão justificáveis, pois devem ser “explicados” realisticamente como dois aspectos da mesma imaturidade e do mesmo primitivismo. (GRAMSCI, 1975, p. 1112).
Para Gramsci também a “explicação” desses dois aspectos não foi tarefa fácil: quantas dúvidas didático-pedagógicas na preparação do número especial La cittá
13 Pessoal e intuitivamente, penso que o marxismo difundido na América Latina, não resolveu teoricamente sua relação com o “estalinismo”. Em geral, prefere-se a omissão, reeditando o taticismo político. A maior contraposição, o trotskismo, apresenta-se com enfoque personalista. Ou seja, a questão teórica não foi vista em profundidade, o que Gramsci fez, nos Cadernos.
14 Merleau-Ponty, Maurice. As aventuras da Dialética. Editora Martins Fontes. São Paulo, 2006.
15 De 1918 a 1931 trabalhou no NarKomPros da União Soviética e simultaneamente dirigiu, por 5 nos, a Escola Comuna do NarKomPros. De 31 a 36 atuou no Instituto de Pedagogia no Caucaso e, em 1936, foi Diretor do Instituto Central de Pesquisa Científica de Pedagogia junto ao Instituto Superior de Educação do Partido Comunista. Preso, em setembro de 1937, foi fuzilado por Stalin em 25 de dezembro do mesmo ano.
Maiores dúvidas, ainda, surgiram nos anos do terror fascista (1924-25). Gramsci é o novo Secretário Geral do P.C.d’I. Ao organizar a única forma possível de educação para os militantes, um curso por correspondência para que “os militantes tenham cérebro, além de pulmões e garganta”, reconhece, entretanto, que “Corre-se o risco dos alunos tomarem o conteúdo das apostilas como ouro puro, doutrina infalível e perene.”(GRAMSCI, 1974, p. 23, 58).
Nos primeiros 44 dias de cárcere na ilha de Ùstica, ao organizar uma escola para presos políticos e moradores da ilha, pensando na especificidade cultural e psicológica daqueles ‘alunos’, prioriza conteúdos de cultura geral, discordando dos conteúdos propostos pelo companheiro Berti, excessivamente ideológicos, doutrinários, inadequados a uma escola “desinteressada”. Propõe:
Um panorama resumido de história da filosofia insistindo no estudo de um sistema filosófico concreto, o hegeliano, esmiuçando-o e criticando-o em todos os seus aspectos (...). Dever-se-ia oferecer, inclusive, um curso de lógica [formal] etc. e de dialética. (GRAMSCI, 2005, p. 166-168).
Tão logo conseguiu papel e tinta para trabalhar (escrever), em fevereiro de 1929, elaborou seu plano. Renomeou o marxismo ou o materialismo dialético com filosofia da práxis à luz do lema für ewig, expressão ao mesmo tempo de resistência e liberdade contra o fascismo e contra o desvio teórico-político do estalinismo. Analisa, detalhadamente, a divergência com o Ensaio Popular de N. Bukharin, doutrina ‘oficial’
ou vulgata marxista, da qual, cinco anos atrás, na qualidade de Secretário Geral do P.C.I., utilizará partes no curso por correspondência para os militantes.16
Em todas as páginas dos Cadernos, sobretudo no caderno 12 “Observações sobre a escola: para a investigação do princípio educativo”, defende a ‘fusão’ entre o ‘fato’ e o ‘conceito’ do trabalho. O trabalho é a categoria unificante de ‘informação’ e ‘formação’, de ‘natureza’ e ‘sociedade civil’, da societas rerum e societas hominum, das ciências e convivência humana etc.:
Na escola primária dois elementos prestavam-se para a educação das crianças, as noções de ciência e os direitos e deveres do cidadão. A ciência devia servir para introduzir a criança na “societas rerum”, os diretos e os deveres na “societas hominum”. A “ciência” entreva em luta contra a concepção “mágica” do mundo e da natureza que a criança absorve do ambiente “impregnado” do folclore: o ensino é uma luta contra o folclore, em favor de uma concepção realista na qual se unem [fundem-se] dois elementos: a concepção de lei natural e a de participação ativa do homem à vida da natureza, isto é à sua transformação conforme uma finalidade que é a vida social dos homens. Esta concepção unifica-se no trabalho, que se embasa sobre o conhecimento objetivo e exato das leis naturais para a criação da sociedade dos homens. [Assim], o conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente na escola primária, uma vez que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. (GRAMSCI, 1975, p. 1541). [negrito meu]
Todavia, mesmo na redação final do Caderno 12 Per la ricerca del princípio educativo (GRAMSCI, 1975, p. 1540-1551), ou seja, no momento de concluir sua proposta pedagógico educativa baseada no Trabalho como Princípio Pedagógico, quantas perplexidades! É o caso do ensino do latim. Sabemos que Gramsci, na proposta curricular da Escola Única do Trabalho, renunciou às disciplinas do Grego e Latim, princípio educativo da escola tradicional,
expressão de um modo tradicional de vida intelectual e moral, de um clima cultural difuso em toda a sociedade italiana por antiquíssima tradição. (...) ( GRAMSCI, 1975, p. 1543).
Um atento leitor percebe, entretanto, que não foi fácil para ele concordar sobre a eliminação do currículo escolar dessas duas disciplinas. Nas linhas (e são várias) que dedica à análise da eficácia pedagógica do ensino de latim e grego na escola
16 Antonio Castronuovo, La questione del für ewig, in Envoi Gramsci, cultura filosofia e humanismo.
(obra citada). Angelo D’Orsi, Una nuova biografia. Editore Feltrinelli, Milano, 2017, pp. 229-231.
tradicional17, essa tensão emerge claramente, ao ponto que, para muitos companheiros defensores de um currículo mais tecnológico, não era tranquilo que Gramsci tivesse desistido dessas duas disciplinas. Precisou a intervenção esclarecedora e definitiva de Togliatti para testemunhar e confirmar que Gramsci havia admitido
ser necessário substituir o latim e o grego como fulcro da escola formativa e que esta substituição será feita; mas [confessa] não será fácil dispor a nova matéria ou a nova série de matérias numa ordem didática que dê resultados equivalentes no que toca à educação e à formação geral da personalidade, partindo da criança até chegar aos umbrais da escola profissional. (GRAMSCI, 1975, p. 1546).
Gramsci permanece um autor, entre os mais conhecidos e significativos do pensamento pedagógico progressista do século XX, que vivenciou fortemente e, às vezes, dolorosamente, a tensão entre os defensores da cultura humanista e os da cultura tecnológica. De um lado, em sintonia com o Marx defensor da Grande Indústria, pressuposto histórico da revolução proletária, defende o trabalho como princípio educativo na formação dos jovens colocando-se aos antípodas do posicionamento rousseauniano, saudosista de um inexistente idílio entre o mundo agreste e o trabalho artesanal18, de outro lado, a sintonia com Marx não era perfeita. Em geral, Marx
coloca fora do trabalho o reino da liberdade (o que lhe foi censurado por Della Volpe como se fosse uma aporia); enquanto Gramsci aparece, por assim dizer, mais marxista do que Marx, pois coloca o crescimento da personalidade não fora, mas sim dentro do trabalho. (In, TOMAZ, 1991, p. 138).
Em suma, trabalho, para Gramsci, não é um lado ou um polo de uma hipotética relação dialética escola-trabalho, mas é a própria relação, é a integração do fato e do princípio, é a tradução da unidade dialética proclamada por Marx entre escola e produção. Isto significa que, para ele, só em abstrato existem formas autônomas de prática e de teoria; em concreto, existe o trabalho, fusão das duas.
17 “O estudo gramatical das línguas latinas e grega, junto com o estudo das respectivas literaturas e histórias políticas era um princípio educativo enquanto o ideal humanista, que se impersonificam nas cidades de Atenas e Roma antigas, era difuso em toda a sociedade, era um elemento essencial da vida e da cultura nacional. Até mesmo a mecanicidade do estudo gramatical era informada desta perspectiva cultural.” (idem, ibidem).
18 Permito-me aconselhar de assistir ao filme dos irmãos Vittorio e Paolo Taviani Pai patrão (1977), baseado no livro homônimo, autobiográfico, de Gavino Ledda, para compreender emocionalmente o antirousseaunismo de Gramsci.
Assim, trabalho é sempre integração, mesmo que desequilibrada, desproporcional, de teoria e prática. Portanto (e é isso que, sobretudo, o interessa), a atividade do estudo sendo trabalho, é integração de corpo e mente, de esforço muscular nervoso e disciplina mental, é integração de direção moral, de insight, memória, vontade, nervos e músculos.
Essa tese de Gramsci, contundente e repetida, evidencia indiretamente a spaccatura entre diferentes posições ideológico-políticas, inclusive, no campo socialista e comunista, uns priorizando no processo formativo o ‘trabalho produtivo’, a dimensão tecnológico profissional em perspectiva economicista e determinista (ou, até mesmo, defendendo a mera vivência na condição de classe) e outros priorizando a formação cultural humanista “desinteressada”, enfim, o trabalho-do-estudo que só pode se realizar seriamente por meio de um amplo e exato conhecimento das leis naturais e sociais e, com isso, realizar sua potencialidade produtiva:
Pode-se dizer, portanto, que o princípio educativo que fundamentava as escolas primárias era o conceito de trabalho que não pode se realizar em toda sua potencialidade de expansão e de produtividade sem um conhecimento exato e realista das leis naturais e sem uma ordem legal que regule organicamente a vida dos homens entre si, ordem que deve ser respeitada por convicção espontânea e não somente por imposição exterior, por necessidade reconhecida e proposta para si mesma como liberdade e não por mera coerção. (GRAMSCI, 1975, p. 1541).
Enfatizando: a unidade de ensino e trabalho produtivo proposta por Marx, nas escolas de formação, realiza-se exatamente no próprio trabalho-do-estudo.
Corolário: a disputa entre diferentes currículos jamais é uma disputa entre currículos integrados e outros não integrados, mas, entre diferentes formas de integração: a forma das escolas de elites, a das escolas públicas tradicionais, a das escolas técnicas, a das assistenciais etc. Priorizar uma forma de integração sobre outras, é decisão política determinada pela estratégia da luta hegemônica definida à luz da filosofia da práxis.
Observação: Gramsci realça que a dialética escola e vida se processa, inclusive, no nexo entre os conteúdos (informações sobre ciências da natureza e direitos e deveres dos cidadãos) e a vida do mestre, isto é, no testemunho existencial do mestre dentro e fora da sala de aula: “A verdade é que o nexo instrução-educação é representado pelo trabalho vivente do mestre.” (Gramsci, 1975, 499).
Sintetizando: Gramsci, pressionado entre os defensores da cultura humanista clássica de um lado, e os da cultura tecnicista profissional de outro, estabeleceu um princípio educativo e pedagógico complexo, individuando dois lados complementares, compenetrados dialeticamente: o primeiro de caráter econômico19; o segundo de caráter político20. São faces da mesma medalha, isto é, da superação da divisão entre dirigentes e subalternos no contexto produtivo existente. (Baldacci, 2019, 6). É a Filosofia da Práxis, equação de filosofia e política, de pensamento e ação revolucionária, integração como desafio histórico que permanece aberto.
O debate didático pedagógico sobre a formação dos trabalhadores (educação popular no sentido amplo) entre quem prioriza o currículo de cultura geral e quem o de formação técnico profissionalizante continuou durante todo o século XX e na contemporaneidade. A busca pela integração entre os dois percursos formativos, que não fosse mera justaposição legal, burocrática, arquitetônica etc., envolveu todos os pensadores progressistas e continua hoje. São defensores da necessidade de instruir as massas populares integrando cultura geral e profissional.
Dewey se destaca nesse debate que ocorre na maioria dos Estados nacionais empenhados em programas de reformas, sobretudo, do ensino básico. (META, 2019,
p. 21). Há quem rotula Dewey de liberal, excluindo-o desse debate. Pessoalmente, o considero um intelectual de esquerda, empenhado nessa luta, conforme afirma Joel Martins:
Democracia e Educação é o livro fundamental de Dewey, é o livro básico, é a coluna mestra de todo o pensamento de Dewey. Ele não faz citações das obras ou do pensamento marxista, mas se você fizer uma exegese do texto, uma hermenêutica você vai encontrar as ideias marxistas ali presentes. (...) Conheço bem toda a história do progressivismo nos Estados Unidos (...). Tive oportunidade de ouvi-lo, de conversar com ele e com todo seu grupo. (...) Tiveram que enfrentar a Suprema Corte dos Estados Unidos por serem socialistas. (MARTINS, 2019, p. 15-16).
A descoberta da dimensão social da pessoa humana, eixo central do pensamento desse importante intelectual americano, o levou a participar do debate
19 Destaque-se o Caderno 22, Americanismo e fordismo. (Gramsci, 1975, 2137-2181).
20 Destaque-se o Caderno 12, Storia degli intellettuali. (Gramsci, 1975 1513-1551).
entre os que priorizam currículos de “estudos científico-técnicos” e outros que priorizam “estudos literários” (META, 2012, p. 36). Com vistas à necessidade de superar esse dilema, Dewey aposta no progresso técnico e científico como elemento de democratização. Em outras palavras, pensa que o lastro positivo, a densidade intelectual da cultura industrial, quase ‘osmoticamente’, realizaria a integração entre a cultura técnico científica e a cultura literário humanista, eliminando, assim, a barreira cultural que separa dirigentes e subalternos na sociedade. Gramsci, em outra posição quanto a isso, considera que o progresso técnico científico jamais poderá superar a contradição entre a relação de produção e a relação de propriedade, pois esse é tema historicamente próprio da filosofia da práxis. (META, 2012, p. 37).
Outra dissonância entre os dois é representada pela proposta de Gramsci para que, nas sociedades em que os privilégios imperam brutalmente, o Estado assuma as despesas do sistema escolar básico, unitário e público, inclusive, se necessário for, em regime de internato ou semi-internato, hoje a cargo das famílias. (GRAMSCI, 1975, p. 1534). Nesse tópico, comenta Chiara Meta, a “assonanza” entre Dewey e Gramsci parece forte, moral e eticamente (META, 2019, p. 23).
Todavia, não resta dúvida que tanto Dewey como Gramsci defendem o valor da democracia, mesmo que, enquanto Gramsci considera que a democracia liberal representativa é apenas uma forma histórica da organização política contemporânea, Dewey considera a democracia liberal dos países mais avançados do mundo do século XX, representada pelo americanismo, a forma política definitiva da história.21
Dewey, para a manutenção desse axioma democrático,
estabelece a necessidade de uma continuidade das instituições liberais americanas e a exigência de uma correção, gradual e progressiva, somente da organização econômico-produtiva a qual, polemizando com o socialismo, mascara visões palingenéticas de mudanças da sociedade. (META, 2019, p. 25).
Gramsci, ao contrário, não engessa ‘metafisicamente’ nenhuma forma histórica de poder e de economia (por isso, autodenomina-se historicista absoluto), priorizando a direção política (filosofia da práxis) na formação e organização da vontade coletiva dos subalternos ao realçar “a íntima dependência entre os elementos ‘materiais’ da
21 Para Gramsci, esse posicionamento filosófico de Dewey sobre democracia representativa resvala (da mesma forma como resvalou em Croce) numa concepção metafísica da história.
estrutura e os elementos linguísticos, simbólico-culturais da ‘superestrutura” (Meta, idem ibidem). Em outras palavras:
Disso conclui-se a importância que tem o “momento cultural” também na atividade prática (coletiva): (...). Uma vez que assim acontece, emerge a importância da questão linguística geral, isto é, de como alcançar coletivamente o mesmo “clima” cultural. (...) Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica que se dá não somente no interior de uma nação, entre as diferentes forças que a compõem, mas no universo campo internacional e mundial, entre complexos de civilizações nacionais e continentais. (GRAMSCI, 1975, p. 1331).
Todos os pedagogistas progressistas do século XX, entre esses, os Pioneiros da Educação brasileira, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Maria Nilde Mascellani (experiência dos ginásios vocacionais), Escolas da Pedagogia da Alternância, Ensino Médio em Tempo Integral e muitos outros, incluindo os atuais defensores do Ensino Médio Integrado à Formação Profissional dos Institutos Técnico Profissionais etc., todos estavam e estão conscientes dessa contradição. Por isso, buscam integrar a prática profissional com a cultura geral, rejeitando a injusta dualidade do sistema educativo. Mas, a spaccatura continua: enquanto uns priorizam nessa luta a formação de cultura geral, extrema, clássica, desinteressada, outros priorizam a formação técnico profissionalizante.
Certamente, no caso de Gramsci, a experiência escolar do Liceu Clássico de Cagliari e, sobretudo, as aulas na importante Universidade de Turim, trincheira de elevados estudos de linguística e da luta cultural contra o positivismo, influenciaram- no no privilegiar a formação clássico literária, básica, para todos
Gramsci enfrenta os problemas da educação defendendo a necessidade de preservar e reforçar a escola clássica. É necessário combater -sublinha- aquela concepção aristocrática que considera o patrimônio literário humanista âmbito reservado a limitadas elites, conforme uma visão abstrata e ‘esnobe’ em relação à prática. (META, 2012, p. 27).
Com efeito, desejava ele, de coração, que todos e, por que não? Sobretudo, os proletários percorressem semelhante percurso formativo, quando alternava as aulas do grande ateneu de Turim à participação nas manifestações dos operários nos portões das fábricas. Nessa alternância operou sua catarse político-cultural. Foi quase mudança antropológica.
Pasolini defende a mesma tese de Gramsci, mas percebe que a cultura consumista da 2ª metade do século XX desnaturou a forma e as lutas de classe: E eis-me aqui eu mesmo... pobre, vestido/com roupas que os pobres espiam nas vitrines/de grosseiro esplendor, enfim perdido” (PASOLINI, 2009, p. 819).
O poeta traduz a proposta de Gramsci para o novo contexto, defendendo que só uma ‘cultura extrema’ libertará o proletariado (o lumpemproletariado, os subalternos, o povaréu, a ralé) de sua histórica “extrema” opressão.22
Trata-se, diz o poeta, de uma cultura que pouco ou nada tem a ver com o seco academicismo que os intelectuais hoje produzem, uma vez que estes mistificam a base social, pensando-a de forma abstrata, falsamente unitária, avulsa de sua concretude, consistência e problemática. O que eles escrevem, comenta, é uma “base social” vista de longe, por meio de teorias, quase uma metafísica sociológica. Para esses acadêmicos de esquerda o povo é sim a realidade e o motor da história, mas de uma história diferente, quase de outra humanidade que acreditam (acreditamos), com uma ponta de vergonha suspeita, ser igual à nossa (afinal, somos todos trabalhadores), mas, no fundo, duvidam (duvidamos) que assim seja.
Pasolini traduz Gramsci (dois intelectuais ‘inconvenientes’) penetrando em sua alma como sabem fazer os poetas. Percebem, por exemplo, a grande diferença entre os mestres da filosofia da práxis, representados por Francisco de Sanctis e os conservadores, representados por Benedetto Croce “cujo modo de ser consiste na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões” (Gramsci, 1975, 1551). Cuja motivação mais importante é a carreira individual.
Pasolini, talvez, seja a consciência mais autocrítica das esquerdas da II metade do século XX. Suas análises doem e, por isso, há ‘companheiros’ preferindo negar seu pertencimento à esquerda. Como sempre. Sua afirmação sobre a spaccatura storica das esquerdas, que separa os defensores da cultura humanista dos defensores da subcultura tecnológica, nos coloca um sério problema: se a fórmula da filosofia da práxis “especialista + político” é tão clara, por que falar em divisão?
22 Sobre o conceito de ‘cultura extrema’, ver artigo de minha autoria, “Le ceneri di Gramsci”, poema de Pier Paolo Pasolii: a crise de 1956 e a proposta da cultura extrema. REBE, v.24 Rio de Janeiro 2019.
Talvez, porque muitos, mesmo da esquerda, não acreditem de verdade no direito de todos os jovens adolescentes (de 13 a 18 anos) à indefinição profissional.23 Defendem, envergonhados, a formação profissional antecipada para o ensino médio, porque socialmente conveniente para os mais necessitados que, obviamente, haverão de sacrificar parte dos estudos de cultura geral.
Ou, ainda, porque não acreditem bastante no dever do jovem adolescente aplicar-se ao trabalho do estudo com afinco, disciplina, integralmente. São pedagogicamente “tolerantes” quando os adolescentes abandonam a escola ou migram para o turno noturno “para trabalhar de dia”, justificando essa ‘opção’ pelo fato (inconteste, mas não definitivo) deles “precisarem” de algum salário ou porque as escolas públicas são didaticamente indigentes, semi abandonadas e “chatas”. Em suma, não acreditam, de verdade, que o estudo seja o verdadeiro trabalho do adolescente, seu dever e obrigação que deve ser avaliado e remunerado.
Ou, ainda, porque muitos não acreditem, de verdade, que os subalternos possam se tornar realmente dirigentes da sociedade, bastando-lhes, sindicalistamente, garantir-lhes parcela do poder e alguns direitos.
Mas, então, com Pasolini, sacrifica-se a unidade política da esquerda?
A unidade da esquerda é um valor e deve ser preservado enquanto possível (Pasolini, 2012, 1693). Além de tudo, é confortável se aconchegar, unidos, em instituições onde recebe-se identificação, proteção, fraternidade. A divisão enfraquece a luta e os heréticos são, no mínimo, incômodos. Todavia, na história, heréticos determinaram importantes viradas e funcionaram como antibióticos para muitas instituições que, na fase de se constituírem, eram pela mudança, mas, uma vez instaladas no poder, tornam-se conservadoras: “As instituições são, portanto, sempre fatalmente de direita e por isso eu não posso deixar de me opor a elas” (PASOLINI, ibidem, p. 1690).
Difícil é perceber o momento e a forma para assim se posicionar. Em todo caso, a lição histórica dos heréticos vale para nos ensinar a não eliminá-los, mas a discutir com eles.
23 Letícia Lenzi, em recente tese de doutorado: Ensino Médio na berlinda: adolescência e o direito à indefinição profissional ilustra com abundantes dados essa difusa antinomia existente entre muitos educadores progressistas brasileiros.
Significativo24 é o fato de Gramsci, no Caderno 4, redigir um original e único comentário (sete páginas) à Divina Comédia de Dante e justamente ao Cântico X do Inferno, círculo dos hereges. No comentário, defende que o principal personagem do Cântico, do ponto de vista estético e lírico, não seja Farinata (como parece, e todos os principais comentaristas afirmam) e sim Cavalcante, em aparência, personagem secundário, humilde: “Cavalcante não aparece ereto e viril como Farinata, mas humilde, abatido, talvez ajoelhado e perguntando com perplexidade e dúvidas sobre o filho”. (GRAMSCI, 1975, p. 518).
Pesquisadores se perguntam: quem representaria Farinata e quem Cavalcante no comentário de Gramsci? Seriam essas páginas uma comunicação política em código? O nome de Stalin e dele próprio, naturalmente, surgem como hipótese.
Giuseppe Cospito, no livro Introdução a Gramsci25, afirma ser importante na história do marxismo a atuação militante “aberta, antidogmática, heterodoxa e até mesmo herética”:26
Na lista dos 250 autores da literatura de todos os tempos mais citados no mundo, aparecem somente cinco italianos, um deles é Antonio Gramsci. Sobre ele acumulou-se uma imensa literatura crítica que hoje [2015] ultrapassa os 19.000 títulos em quase todas as línguas modernas. Entre as razões dessa fortuna, há sem dúvida o caráter aberto, antidogmático, heterodoxo e para alguns até mesmo herético de seu marxismo, o que favoreceu sua difusão inclusive em espaços relativamente impermeáveis, quando não hostis, a essa doutrina, como os Estados Unidos e, sobretudo, permitiu-lhe, antes de sobreviver à crise do próprio marxismo, em seguida, ao término da experiência histórica do assim chamado socialismo real. (COSPITO, 2015, p. 5).
Sobre instituições e heresias, Pasolini continua: a unidade pode significar também estagnação política institucional. Como defender a integração entre subcultura tecnológica com a elevada cultura humanista clássica quando sabemos que o verdadeiro opositor da cultura humanista não é propriamente a cultura tecnológica em si, mas o que ela ‘exala’, isto é, nada mais do que uma alienada cultura de mercado, consumista, uma subcultura que,
esta sim, está unificando-nos com uma rapidez e regularidade nunca vistas antes na história. E o terrível é que sua subcultura unificante unifica também, apesar de sua intenção, muitas formas da nova esquerda.” (PASOLINI, 2012, p. 1693).
24 Ghetti, Noemi. Gramsci nel cieco cárcere degli erétici. Ed. L’Asino d’Oro. Roma, 2014.
25 Edição Il Melângolo. Genova, 2015.
26 Espero que os leitores não entendam o texto como apologia à heresia, mas como tentativa de resgate da original ortodoxia marxista.
Em direção oposta, pela cultura ‘desinteressada’, ‘clássica’, ‘extrema’, ‘aparentemente inútil’, alternada à participação em movimentos renovadores, o jovem pode (mesmo arriscando) ou tomar consciência disso ou aceitando a linguagem do mundo na forma como se organizou ou rejeitando-a para criar uma nova linguagem27, uma nova racionalidade, nova organização, novos valores. A subcultura técnico- profissional é orgânica ao mercado, ao utilizo dos combustíveis fosseis (petróleo, carvão, gás) que fazem pensar em soluções a curto prazo, de mercado e, por isso, exulta vendo a mão triunfante de um Presidente da República encharcada de óleo. A subcultura técnico-profissional inflama a esperança, enquanto a cultura humanista acende a utopia. (PASOLINI, idem ibidem) 28.
Nosso objetivo foi transmitir a ideia de O princípio educativo do trabalho na formação humana levanta uma problemática bastante complexa. Acho que alcançamos esse objetivo. Querendo ser didáticos e sistemáticos, diremos que esse princípio compõe-se de, pelo menos, cinco fatores que deverão ser analisados detalhadamente:
As necessidades histórico-objetivas do desenvolvimento das forças produtivas: Fordismo, Taylorismo, Toyotismo etc..
A natureza e dinâmica históricas das Instituições Educativas;
Os alunos, suas faixas etárias e sua inserção social;
Os docentes e sua didática;
A direção política ou a filosofia da práxis.
27 Linguagem é costume, é modo de comportar-se, conforme uma determinada ordem é, em suma, práxis social. Ao definir o ‘como da revolução’, Gramsci utiliza a categoria linguagem (não território), afirmando a “importância da questão linguística” (1331). Obviamente, não se trata precisamente e pontualmente da língua, linguagem relaciona-se com a memória, individual e coletiva, com valores, gostos, preferências, concepções, emoções, forma de vida social no seu conjunto. Nesse sentido, revolução não é propriamente conquista militar de territórios ou golpe político (insurreição), mas equivale à criação de uma nova ordem, de nova linguagem.
28 Ver o inacabado romance de Pasolini, Petrolio , cerca de 600 páginas de anotações/fichas, que, no projeto do autor, se tornariam uma “Suma de todas as minhas experiências, de todas as minhas memórias.” Edição Oscar Mondadori, Milão, 2014. Nas entrelinhas, identificamos no romance a teoria Gramsciana de revolução passiva regressiva. O autor considera que a industrialização movida a petróleo é certamente uma revolução passiva regressiva.
Mas, então, ao encerrar a exposição, percebemos que, na verdade, fizemos apenas uma introdução à temática. A resposta sistemática e completa iniciar-se-ia agora, ilustrando e comentando os cinco fatores aqui elencados.
Será tarefa para outra oportunidade.
BALDACCI, M. La scuola come antítese. In: Articolo 33. Universidade Roma 33. Roma, maio, 2019.
COSPITO, G.. Introduzione a Gramsci. Edição Il Melângolo, Genova, 2015. ENGELS, Friedrich. Apud, Bittar, Marisa e Ferreira Jr. Amarílio, A Educação Soviética, mimeo, São Carlos, UFSCar, 2020, 191.
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MANACORDA, M. A. Mario Alighiero Manacorda, aos educadores brasileiros.
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. História da Educação-da antiguidade aos nossos dias. Cortez Editora, 13ª edição. São Paulo, 2010.
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