V.18, nº 37, set-dez (2020) ISSN: 1808-799 X
George Amaral2 Anderson Deo3
O artigo propõe uma reflexão sobre a relação entre as categorias Trabalho e Educação. A partir de uma análise exegética e imanente das categorias, buscaremos compreender a função social da Educação no processo de formação humana. A nossa hipótese busca dilucidar os nexos constitutivos entre o processo de formação da sociabilidade, sua ontogênese, fundada no Trabalho, e sua imbricação na Educação. A pesquisa se apoiou na análise produzida por Karl Marx, sobre a categoria Trabalho, e na abordagem de György Lukács, que se desdobra em complexos sociais, tais como a Educação.
El artículo propone una reflexión sobre la relación entre las categorías Trabajo y Educación. A partir de un análisis exegético e inmanente de las categorías, buscaremos comprender la función social de la Educación en el proceso de formación humana. Nuestra hipótesis busca aclarar los vínculos constitutivos entre el proceso de formación de la sociabilidad y su ontogénesis basada en el trabajo, y su imbricación en la educación. La investigación se basó en el análisis de Karl Marx de la categoría Trabajo y el enfoque de György Lukács que se desarrolla en complejos sociales como la Educación. Palabras clave: Trabajo; Educación; Metabolismo social.
The article proposes a reflection on the relationship between the categories Work and Education. From na exegetical and etaboli analysis of the categories, we will seek to understand the social function of education in the etabolism human formation. The hypothesis seeks to clarify the constitutive links between the etabolism sociability formation and its ontogenesis based on work, and its imbrication in education. The research relied on Karl Marx’s analysis of the Work category and György Lukács’s approach that unfolds into social complexes such as Education.
1Recebido em 06/12/2019. Primeira avaliação em 18/05/2020. Segunda avaliação em 16/06/2020 Terceira avaliação em 26/06/2020. Aprovado em 14/08/2020. Publicado: 25/09/2020.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v18i37.38896.
2Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília - São Paulo / Brasil., Professor de história da rede de educação básica do Ceará - Brasil. Bolsista pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP-CE. E-mail: georgeamaralp@gmail.com ORCID:0000- 0002-5685-0579. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5700823644219229.
3 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Marília - São Paulo / Brasil onde
também é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - PPGCS. Pesquisador/colaborador no Instituto Caio Prado Júnior – São Paulo (ICP - SP). E-mail: deoanderson@hotmail.com ORCID: 0000-0001- 6081-3159. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3488579869641105.
O presente artigo é o resultado de um esforço de leitura e sistematização introdutórios ao pensamento de Karl Max4, a partir da ontologia do ser social. Em específico abordamos as reflexões que o autor elaborou sobre a Categoria Trabalho5 e o caráter que tal reflexão ocupa no conjunto de sua obra. Sendo assim, resgatar o caráter ontológico do Trabalho, como fez Lukács, na constituição do ser social, faz-se mister como pressuposto teórico-filosófico de nossa exposição. Uma vez exposta a categoria Trabalho em seus nexos constitutivos, sobretudo de caráter fundante da sociabilidade, apontaremos seu desenvolvimento histórico e assim buscaremos elucidar a relação que se reproduz entre o Trabalho e o complexo da educação enquanto complexos societais de formações históricas.
A análise produzida por Marx sobre a categoria Trabalho aponta para seu caráter ontológico na constituição do ser social, como assinalou György Lukács. Segundo esse autor, a partir do Trabalho complexo fundante se desdobram outros complexos sociais, tais como a Educação. Nessa leitura metodológica, compreender a totalidade de um determinado fenômeno social pressupõe a apreensão da realidade como síntese de múltiplas determinações, como um complexo de complexos. A partir de uma análise exegética e imanente das categorias mencionadas acima, buscaremos compreender as determinações que a Educação reproduz no metabolismo social.
Como o ponto de partida é a centralidade do Trabalho, analisada por Marx, apoiamos nossas reflexões nos Manuscritos econômico-filosóficos (2010) e no Livro I do Capital (2013). Nessas obras, Marx revela os pressupostos essenciais e universais do Trabalho, apreendendo a esfera de constituição do ser social e seu desdobramento histórico em meio ao modo de produção vigente em cada época. Na esteira,
4Essa pesquisa foi desenvolvida através do intercâmbio entre o Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade (GPTREES), da Faculdade de Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC-UECE) e o Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos de Ontologia Marxiana – Trabalho, Sociabilidade e Emancipação Humana (NEOM).
5 Optamos pela grafia Trabalho, com a inicial maiúscula, para indicar seu conteúdo categorial. Em Marx, uma categoria expressa uma forma de ser do real. Assim, utilizamos Trabalho para definir uma característica própria da forma de ser do Homem, diferentemente das formas históricas de reprodução da mão de obra, para a qual utilizaremos a grafia trabalho, com a inicial minúscula. Adotaremos esse procedimento com a palavra Educação.
ressaltamos a relevância da análise de György Lukács, responsável pelo desenvolvimento do caráter ontológico da obra de Karl Marx. Por isso, recorremos a sua obra Para uma ontologia do ser social (2012; 2013).
Seguindo esse roteiro de análise, consideramos a Educação um complexo essencial à existência do ser social6, à reprodução de sua estruturação, bem como sua contribuição na transformação das relações sociais vigentes. Na obra Para uma ontologia do ser social, Lukács aponta o complexo social como um aspecto da totalidade social constituído pelo conjunto das relações que os seres humanos estabelecem para atender a determinadas necessidades.
A Educação possui um vínculo ontológico com o Trabalho, é determinada em última instância por ele, pois como sustenta Lukács (2013), a partir de Marx, é o trabalho o complexo base sobre o qual a práxis social se move, processual e historicamente, na singularidade, particularidade e universalidade. Esses processos são contínuos e não se esgotam jamais as possibilidades da criação de algo novo na realidade humana, pois é o trabalho a mediação ineliminável entre homem (sociedade) e natureza. Assim, o papel da Educação no processo de reprodução social tem um vínculo com o Trabalho, porém sem se limitar a ele. Na medida em que avança e interage com outros complexos que se movem na práxis social a educação se enriquece.
Nessa perspectiva, consideramos o trabalho fundamento do ser social e categoria central na análise da sociedade capitalista. Ao apontar a superação do trabalho alienado e estranhado, Marx apontou à superação da sociedade do capital. Isso porque o trabalho participa da reprodução do homem, enquanto ser social, desenvolvendo atividades que o fazem pertencer a um gênero. A partir dele, a Educação assume a função de acessarmos o patrimônio histórico-cultural da humanidade, abrindo a possibilidade da transformação das relações sociais.
Na tentativa de compreendermos a função social do trabalho e da educação, para além do que é estabelecido pela ideologia capitalista, dialogamos com Tonet (2005, 2011; 2012), Lessa (2012a, 2012b), Jimenez e Lima (2011), Santos e Costa (2012), autores que se debruçam sobre seus estudos no esforço de compreender os pressupostos ontológico-históricos marxianos. Para enriquecer o debate em torno do
6 Importante apontar que o complexo social da Educação, numa leitura marxiana, não se restringe às formas histórico-institucionais reproduzidas pela humanidade. Aprofundaremos essa questão ao longo do artigo.
nosso objeto apoiamos nossa reflexão em Harvey (2011), Braverman (1987), Infranca (2014), vislumbrando suas interpretações sobre o trabalho em Marx.
Ao analisar as obras de Marx, podemos compreender, que não existe ser social sem o trabalho; sua centralidade é a base fundadora da sociabilidade humana, resultante da interação com a natureza e as inter-relações dos sujeitos entre si na produção da existência. Ao converter a natureza em meios de subsistência ou de produção, o homem atua de forma consciente e intencional, controlando e executando sua ação através de seus membros corpóreos, num contínuo intercâmbio e interação com os elementos da natureza, externos ao próprio homem. Vejamos.
Primeiramente o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece ao homem apenas como meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física. A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de um species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. (MARX, 2010, p.84).
O trabalho como atividade vital é base para constituição do ser social. De forma primária, a existência humana é prioridade mediante o conjunto das atividades do meio natural. Para isso, o trabalho atua como mediador entre o ser humano e o meio que possibilitou a produção da existência para além das fronteiras do meio natural. O Trabalho proporcionou um salto ontológico (quantitativo e qualitativo) do ser dominado pela natureza para o ser que pensa e a transforma para garantir sua existência. Delineando a apreensão entre espírito e matéria, sujeito e objeto, homem e natureza, Marx põe no trabalho o acento fundante da existência humana enquanto ser social, a vida produtiva como vida genérica, o autor refere-se ao trabalho como elemento central. O sentido aqui atribuído ao trabalho é o sentido concreto, como meio de atender suas necessidades, produtor de valores de uso. Em um processo de constante absorção/síntese/superação vinculado à relação entre homem e natureza, estabelece-se a reprodução do homem como um ser histórico e partícipe de um gênero. Um ser que, pelo trabalho, saltou ontologicamente para outra dimensão, a societal, capaz de criar sempre e produzir incessantemente um patrimônio histórico- cultural resultante de sua práxis.
Esse processo pressupõe a atuação do ser humano que rompe com a esfera orgânica, pois projeta, ao nível da subjetividade, suas ações concretas, atribuindo- lhes um novo sentido, transformando a natureza. Essa transformação pelo próprio processo de objetivação do trabalho retroage sobre o homem como uma nova realidade. O desenvolvimento desse salto abriu uma nova possibilidade para essa relação, o que impulsionou o surgimento de relações sociais mediadas, isto é, para além das imediatas, mesmo que em níveis e escalas diferenciadas em cada contexto histórico. Conforme Marx (2013, p. 255), “o trabalho é, antes de tudo, um processo entre homem e natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”.
Em uma passagem clássica na obra O Capital, Marx pondera.
Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. (MARX, 2013, p. 255-256).
A centralidade assumida pelo trabalho ocorre pela necessidade humana de produzir sua existência através da transformação da natureza, diferentemente do que ocorre com os outros entes naturais, visto que estes atuam a partir do que está “impresso” em seu código genético. Essa nova forma de atuação diferencia o ser humano, pois o ato de projetar idealmente sua ação sobre o meio, no plano da subjetividade, efetiva, na natureza, os desejos que se quer alcançar, um processo que possibilita ao homem fazer escolhas entre alternativas, pôr fim às suas ações, e operar sobre uma materialidade, uma objetividade. Surge, assim, a interação ininterrupta entre natureza e ser social. Ancorado em Marx, Lukács explica que
a estrutura ontológica básica do trabalho – pôr teleológico com base no conhecimento de um segmento da realidade com o propósito de modificá-la (conservar é um simples momento da categoria modificar), efeito causal continuado que se tornou independente do sujeito pelo ser que foi posto em movimento pelo pôr realizado, retroação das experiências obtidas de todos esses processos sobre o sujeito, efeitos dessas experiências sobre pores teleológicos subsequentes – compõe, de certo modo, o modelo para toda atividade humana. (LUKÁCS, 2013, p. 287).
A necessidade objetiva de existência determina sobre o ser humano uma ação que passa pela consciência e retorna ao meio como produto concreto dessa interação e da necessidade humana. O metabolismo, a ação humana, que age e retroage sobre a natureza, estabelece uma relação que potencializa sempre novas alternativas, novas relações, novas combinações. O importante é notar que ao despertar um conjunto de novas relações, o trabalho projeta outras necessidades sociais e se torna modelo para outras práxis. Com o Trabalho, trata-se de pôr a consciência humana em movimento, cujas consequências, de acordo com Lukács (2013, p. 291), “consistem no fato de que o trabalho e seus produtos confrontam todo homem com novas tarefas, cuja execução, desperta nele novas capacidades”, resultando em “necessidades sempre novas e, até aquele momento, desconhecidas e, com elas, novos modos de satisfazê-las”.
Apenas o ser humano orienta, regula e intervém na natureza de modo que escolhe entre alternativas. O Trabalho é “em primeiro lugar, atividade orientada a um fim, ou ao trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus meios” (Marx, 2013, p. 256). Certamente, esse aspecto não libera o homem de suas necessidades efetivas, biológicas, mas a latente capacidade de planejar e interferir no meio de forma teleológica requer um ser que pensa e imprime sentido a tudo que faz. Ao escolher entre alternativas, analisando as possibilidades, os meios, testando variadas formas e combinações dos objetos em si para atingir o fim posto é a atividade vital e consciente da humanidade.
Nestes termos é que Lukács (2013, p. 53) identifica o pôr teleológico, ou teleologia, prévia ideação: “um projeto ideal alcança a realização material, o pôr pensado de um fim transforma a realidade material, insere na realidade algo de material que, no confronto com a natureza, representa algo qualitativamente e radicalmente novo”. Essa questão expõe o duplo caráter da transformação. “Por um lado, o próprio ser humano que trabalha é transformado por seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza, desenvolve as ‘potências que nela se encontram latentes’ e sujeita as forças da natureza a ‘seu próprio domínio” (LUKÁCS, 2012, p. 286). Desse modo, o trabalho é o fundamento essencial do ser social. Nesse processo estão atuando, de forma interdependente e indissociável, o pôr do fim e seus meios, portanto, dois atos, em um processo de síntese, a práxis humana, ressaltando que somente aí, “nessa nova
vinculação ontológica constitui-se o complexo autenticamente existente do trabalho,” por assim afirmar, que “perfazem o fundamento ontológico da práxis social e até do ser social em seu conjunto” (LUKÁCS, 2013, p. 64).
Em outras palavras, o legado onto-histórico de Marx assinala que é no e a partir do trabalho que o homem – tomado em sua dimensão de gênero – produz na materialidade sua existência, sobrevivência. Através dele o ser humano produz um constante processo de distanciamento das barreiras naturais, porém sempre vinculado à sua natureza físico-biológica (BRAVERMAN, 1987). Os seres humanos são sujeitos ativos em relação ao mundo que os rodeia.
A compreensão do duplo caráter do processo de trabalho leva-nos à diferenciação entre sujeito (homem) e objeto (objetivação do Trabalho), o que possibilita ao homem o domínio de si mesmo e do ambiente a sua volta. Essa diferenciação, de acordo com Lukács (2013, p.65), é “produto necessário do trabalho e, ao mesmo tempo, a base para o modo de existência especificamente humano”. Decerto, a tese de Lukács (2012, p. 286) adverte que não se pode considerar “o ser social como independente do ser da natureza, como antítese”, o ser social pressupõe, em seu conjunto e em cada um dos seus processos singulares, o ser da natureza inorgânica e da natureza orgânica”.
O processo de trabalho exige que o homem desenvolva uma certa apreensão da realidade, própria da relação sujeito-objeto. Ao final do processo de trabalho o produto foi objetivado e existe, a partir daí, independente de quem o produziu, portanto, uma causalidade (INFRANCA, 2014). De acordo com Lukács (2013), a teleologia implica a existência de ação previamente concebida no plano da subjetividade, conduzindo o homem a fazer escolhas entre alternativas, orientando a ação a ser efetivada a alcançar um fim estabelecido, enquanto a causalidade (dada ou posta), segundo Lukács, é o princípio do movimento autofundado e que existe objetivamente, independente do agir humano ou, mesmo que seja fundado por um ato da consciência, ao ser exteriorizado, torna-se também causalidade.
Podemos mencionar, por exemplo, o fato de se utilizar uma pedra para a caça, ou um pedaço de madeira que aumente a extensão do braço humano para a coleta de frutas nas copas mais altas, sem alterar com isso a matéria natural da madeira. Apenas o indivíduo atribuiu um significado diferente ao objeto, transformando-o em um ser distinto de sua natureza, desde que atenda a uma necessidade. É ela que
impulsiona a teleologia, inserindo um novo momento na realidade, uma causalidade posta, pois o meio foi modificado em função de uma ação planejada. A tarefa de conversão da matéria natural em outro objeto, que pode ser mais elaborado, polido ou afiado, depende dos meios e da habilidade humana requisitada pelo fim posto, se a realidade foi apreendida corretamente. Ao experimentar e combinar os elementos naturais, convertendo-os em um novo objeto é atividade especificamente humana.
O trabalho possibilita produzir essa nova objetividade, que a consciência toma como base para refletir e efetivar, na prática humana, uma ação sempre nova (LESSA, 2012a). Certamente, esse aspecto não libera o homem de suas necessidades efetivas e biológicas, porém o torna capaz de planejar e interferir no meio de forma racional, isto é, um ser que pensa e imprime sentido a tudo que faz. Sendo assim, capacidades mentais e físicas são desenvolvidas na elaboração de uma nova materialidade onde “a natureza aparece como sua obra e a sua efetividade” (MARX, 2010, p. 85).
Essas características aparecem como referências dos elementos essenciais e universais do trabalho. De sua natureza essencial emerge, pois, o postulado marxiano de que o trabalho é “protoforma” do ser social. No processo de produzir algo novo, como já enfatizamos, articulam-se teleologia e causalidade cuja práxis é cada vez mais social. Na medida em que as barreiras naturais são afastadas, o ser humano torna-se cada vez mais um ser histórico, ao produzir a sua existência, não somente vive, mas existe enquanto ser histórico que avança e depende cada vez mais do metabolismo social para se reproduzir enquanto ser social. Difere-se, portanto, dos animais, visto que produz a existência e a si mesmo,
A primeira premissa de toda a existência humana, e, portanto, também de toda a história, é premissa de que os homens, para “fazer história”, se achem em condições de poder viver. Para viver, todavia, fazem falta antes de tudo comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a geração dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da vida material em si, e isso é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história (MARX; ENGELS, 2007, p. 40-41).
O desenvolvimento societal e a produção da existência estão balizados pelo Trabalho e, por sua vez, a prévia-ideação que projeta a finalidade desejada tem um caráter ineliminável para a existência humana. Quanto mais os homens se desenvolvem objetiva e subjetivamente, quanto maior o desenvolvimento dos meios de produção da existência, menos ele é limitado pelas amarras da natureza, tornando
assim mais complexo o mundo fundado por ele. Esse afastamento das barreiras naturais pressupõe uma correlação de forças entre objetividade e subjetividade, na qual a segunda não pode ser deslocada da primeira. Precisamos, é claro, da subjetividade, pois o intercâmbio entre ser humano e natureza é mediado pela consciência uma vez que ele reflete, subjetivamente, para fazer escolhas no plano da objetividade. Todavia, o ponto de partida é a objetividade já que, primeiro, os indivíduos precisam existir para depois pensar: a prioridade recai sobre a objetividade. Fundamentalmente ele existe quando satisfaz suas necessidades, produzindo alimento, vestuário e abrigo.
A partir da síntese entre objetividade e subjetividade, surge um mundo fundamentalmente social, o mundo dos homens. Ao inserir nele novos objetos, desperta também “novas capacidades e necessidades cujas consequências trazem ao mundo novas capacidades e necessidades para satisfazê-las” (LUKÁCS, 2013, p. 303). Conforme esse autor, o trabalho põe em movimento, em sua dialética e dinâmica concretas, o afastamento da barreira natural. A criação do novo levanta novas perguntas, não mais a partir do entorno imediato, mas sobre o que já está posto. O novo, além de atender uma necessidade, possibilita uma realidade diferente do momento anterior. Cozinhar o alimento mudou a digestão, potencializou o melhor aproveitamento da digestão e preveniu doenças que antes eram mais letais à saúde humana, por exemplo. Esse processo é o movimento do ser social.
A sociabilidade, como uma realidade fundada pelo trabalho, funciona como uma causalidade posta, “desdobrando o trabalho como modelo da práxis, como um processo que se dinamiza por contradições, envolvendo teleologia e causalidade, cuja superação o conduz a patamares cada vez mais crescentes de complexidade, nos quais novas contradições impulsionam a outras superações” (NETTO e BRAZ, 2012,
p. 31). Essa maior complexidade, salienta Lessa (2012b), é propiciada pelo desenvolvimento crescente das forças produtivas resultando na diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à sua reprodução material. Ao mesmo tempo, consegue-se o afastamento das barreiras naturais, pois uma proporção menor da força de trabalho total da humanidade está envolvida nesse intercâmbio entre homem e natureza.
O que o homem fez para sobreviver não estava escrito no código genético, ele precisou do trabalho para produzir a existência cuja ação permitiu o salto da esfera
orgânica para a esfera social. Nestes termos, o intercâmbio entre homem e natureza, mediado pelo trabalho, efetuou novas objetivações que, por sua vez, são potencializadores do desenvolvimento social. Abre-se, portanto, um campo de possibilidades, exigindo o domínio de conhecimentos corretos da realidade, habilidades para manipular objetos e transformá-los em ferramentas. Desdobra-se desse processo a criação de uma codificação para representar os conhecimentos adquiridos, a linguagem, e um conjunto de formas de apropriações e transmissão para novas gerações do patrimônio historicamente acumulado a fim de perpetuar o ser social.
O “mundo dos homens” se torna cada vez mais um complexo de coisas, a que se refere Lukács (2012) como complexos de complexos, onde os homens criaram as condições históricas cada vez mais possibilitadas pelos seus atos, na correlação de forças entre a objetividade e a subjetividade. O autor assegura o pressuposto marxiano para intrincadas relações entre os complexos sociais, de complementariedade e autodeterminação, que podem ser sintetizadas no plano categorial pela autodeterminação entre universal/particular/singular (LUKÁCS, 2013), mesmo que, em Marx, tal como indica Lukács, a base material se constitui, em última instância, como momento predominante7. Trata-se de considerar que estruturas complexas como a ciência, o direito, a linguagem, a Educação, situem-se com relativa autonomia, porém sempre fundadas ontologicamente pelo complexo do Trabalho, que as determina como complexo particular da totalidade. Por sua vez, a dependência ontológica em relação ao trabalho não significa um limite para o avanço e o surgimento de novas relações. Balizado nessa assertiva marxiana, Tonet (2005) demonstra que o trabalho em sua
[…] dimensão fundante do ser social, não se esgota. Que a partir dele e, às vezes como desdobramento de germes já existentes no seu interior (caso da linguagem, da educação, da ciência, etc.), surgem inúmeras outras dimensões, de modo que o ser social é sempre um complexo articulado que inclui a dimensão fundante e um conjunto de outros campos da atividade humana. Dessa forma, reafirmamos o trabalho como modelo de toda a práxis social. Ele é base sobre a qual a práxis social se move processual e historicamente sem esgotar jamais as possibilidades da criação de algo novo na realidade humana (p.232).
7 Para que se produzam e reproduzam relações sociais é preciso, inicialmente, que os seres humanos existam.
Procuramos até o momento estabelecer os elementos fundamentais da categoria Trabalho como base do mundo dos homens. Através dele o homem “salta” de sua condição natural e inicia um processo histórico, enquanto transforma a natureza, modifica sua própria existência, reproduzindo, para além da esfera biológica, o fenômeno da sociabilidade. Por isso, traçamos um panorama que indica o percurso originário e processual do ser social, constituído de complexos, entre os quais, o da Educação.
Compreender a gênese e processualidade histórica do Trabalho nos permite refletir sobre a função social, o papel do complexo da Educação e no complexo da reprodução social, pois mantém com aquele uma relação de dependência ontológica, autonomia relativa e determinação recíproca (TONET, 2011). A Educação é um instrumento poderoso para a formação dos indivíduos, contudo, precisamos entender o contexto em que está inserida a sua função social, a serviço de quais interesses e se esses interesses atendem às reais necessidades humanas.
Nesse momento trataremos de expor a conexão da Educação8 como prática social das atividades humanas individual e universalmente. Primeiramente, situamos o contexto categorial que envolve as atividades educativas no processo de reprodução social, refletindo a intricada relação da educação com a totalidade social. Nesse caso, traçamos o desenvolvimento da formação dos indivíduos articulado às atividades produtivas, inseridos em práxis sociais, demonstrando algumas particularidades históricas do complexo educativo onde a Educação conserva o seu caráter mais geral no quadro da reprodução social.
Não oneroso é lembrar que a Educação enquanto complexo social abrange um conjunto de relações que os seres humanos estabelecem tendo por base a teleologia de sujeito para sujeito. Seu vínculo ontológico primário é o trabalho, mas ela transita e absorve, influencia e é influenciada, avança e recua conforme o movimento do complexo de complexos, ou seja, conforme o movimento da sociedade. Ao mesmo tempo, em que a história dos processos educativos se desenvolve mediante a práxis social, é com divisão social do trabalho e a sociedade de classes, a propriedade
8 Anotamos aqui a Educação no sentido geral do conceito que não se limita às práticas institucionais.
privada e a exploração do homem pelo homem que se institui a forma stricta da educação.
Na medida em que o trabalho e as forças produtivas se desenvolvem ocorre o recuo das barreiras naturais expressando não só a alteração da natureza, mas também modificações nas condições sociais e humanas. A Educação dentro da complexidade própria e da totalidade social pôde desenvolver no ser humano ações que orientaram para possibilidades sempre novas, desde as primeiras formações sociais até as sociedades mais evoluídas. Nesse sentido, para que os indivíduos se integrem ao gênero humano é imprescindível o processo de educação. A formação da individualidade atende à linguagem, aos hábitos alimentares, ao comportamento desejado pelo grupo social, sua cultura de modo geral. Assim o indivíduo se integra ao meio social, universalizando-se. Na categoria trabalho esse processo de universalização passa pelo intercâmbio entre natureza e homem, “protoforma” da sociabilidade. O complexo da educação, por sua vez, é acionado a fim de assegurar a transmissão dos conhecimentos, habilidades e valores necessários para que o ser humano se torne um sujeito apto a refletir sobre a sociabilidade, para pensar em algo novo sem ter que repetir todo o processo. A Educação preserva, e ao mesmo tempo possibilita, avançar sobre determinados problemas e, ao transmitir conquistas que a humanidade já realizou, projetar a superação das condições que a afligem em sua história.
Todo povo que atinge um certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual [...]. Só o Homem, porém, consegue conservar e propagar sua forma de existência social e espiritual por meio das forças pelas quais a criou, quer dizer, por meio da vontade consciente e da razão. (JAEGER, 1995, p. 3).
Começamos, portanto, pelo plano da generidade onde o trabalho desencadeou um conjunto de ações complexas, cada uma com sua função social específica, compondo nesta perspectiva a práxis social. O processo de complexificação ocorre por meio da criação de algo sempre novo, que tende a organizar outro algo novo, “alargando o horizonte da reprodução humana, criando necessidades e ampliando as formas de satisfazê-las” (LIMA e JIMENEZ, 2011, p. 74).
O processo de reprodução social na sua totalidade “se dá num complexo – composto de complexos - que só pode ser compreendido adequadamente em sua
totalidade dinâmica e complexa” (LUKÁCS, 2013, 170-172). A educação é o complexo que faz parte da vida humana em sociedade, não se limitando a transmitir comportamentos inscritos na base orgânica, mas em promover o desenvolvimento do indivíduo como parte do gênero humano. O processo educativo tanto ocorre no plano da individualidade quanto se articula com a universalidade do ser social. Pressupomos, com base em Lukács (idem), a educação como um pôr teleológico secundário, isto é, a prévia ideação de um sujeito para sujeito que tem como meta influenciar seu comportamento frente a uma práxis social. A Educação9 que influencia o comportamento de um sujeito educa-o, por exemplo, a atravessar uma rua preservando sua integridade, sob determinadas condições de trânsito, conhecendo o modus operandi do tráfego daquele local. Pode também induzir a buscarmos respostas para questões que afligem nossa sociedade, encontrar a cura para determinadas doenças e, tantos outros exemplos, que de fato garantem à humanidade não precisar inventar a roda todos os dias.
Enfaticamente anotamos que os desdobramentos da articulação entre homem e natureza, objetividade e subjetividade, trabalho e teleologia no real, promovem uma complexificação intensa da vida em sociedade. Com efeito, a educação é o complexo da formação humana que se relaciona com a atividade produtiva da existência, com o universo da sociabilidade da produção e transmissão do saber.
Com essas considerações em tela, Tonet (2011), sublinha a primazia ontológica do trabalho sobre os demais complexos.
É, portanto, a partir do trabalho que surgem todos esses outros momentos da realidade social. Cada um com uma natureza e uma função próprias na reprodução do ser social. Deste modo, podemos dizer que entre o trabalho e as outras atividades existe uma relação de dependência ontológica, de autonomia relativa e de determinação recíproca. Dependência ontológica de todas elas em relação ao trabalho, pois este constitui o seu fundamento. Autonomia relativa, pois cada uma delas cumpre uma função que não resulta mecanicamente de sua relação com o trabalho. Determinação recíproca, pois todas elas, inclusive o trabalho, se relacionam entre si e se constituem mutuamente nesse processo (p. 139).
Embasados em tais pressupostos, consideramos os complexos como partes integrantes da totalidade, Lima e Jimenez (2011) embasadas em Lukács, defendem a
9 Exemplos como este revelam a necessidade de uma educação sistematizada, porém ela não passa pela educação escolar em si, propriamente.
tese de que a educação situa-se como um dos complexos sociais surgidos das necessidades e possibilidades produzidas pelo trabalho que mantêm uma dependência ontológica e uma autonomia relativa a essa atividade consciente, devido a sua especificidade. As autoras definem educação como um complexo universal necessário à reprodução do homem como ser social (idem).
Se o ser social é um ser que se constrói, a educação faz parte desse existir inerente à formação humana. Como não nascemos humanos, mas nos constituímos para atender às necessidades de sobrevivência, o complexo da educação deve propiciar a todos os indivíduos a formação que os possibilite ser partícipe do gênero humano, situando-os em uma totalidade societária. Através dela uma série de objetivações pode ser concretizada por meio das atividades realizadas, cotidianamente, retroagindo sempre a novas aprendizagens, habilidades, conhecimentos e valores.
A essência da educação “consiste em influenciar os homens no sentido de reagirem a novas alternativas da vida de modo socialmente intencionado” (LUKÁCS, 2013, p. 178). Na perspectiva do ser social, a formação social do comportamento centra-se na “práxis educativa que intenta produzir individualidades de acordo com as exigências de um determinado tipo de sociedade, o que ocorre pela sua influência sobre o campo das decisões individuais” (SANTOS e COSTA, 2012, p. 99). Essas decisões são assentadas no âmbito teleológico e a partir de uma realidade social, que orienta a ação objetiva e ao mesmo tempo impulsiona, coordena e determina o agir da consciência sobre o que “está-posto”, uma dada realidade. Como o pôr teleológico secundário se dá de sujeito para sujeito, a decisão alternativa de cumprir uma tarefa dada por outro sujeito torna-se uma possibilidade abstrata que depende do sujeito que recebeu a tarefa.
A vivência imediata de tal condição sem dúvida suscita na maioria dos homens a imagem de que o homem está vivendo em um entorno social que o confronta com as mais distintas demandas, às quais ele passa a reagir de modo extremamente diversificado, das quais ele toma conhecimento, a elas se submete, afirma-as ou as nega etc. (LUKÁCS, 2013, p. 292).
Nestes termos, precisamos da educação, como afirma Tonet (2008), porque de modo primário, o trabalho implica em uma teleologia, ou seja, em uma atividade intencional prévia e na existência de alternativas e isto não é biologicamente pré- determinado. Para tanto, o pôr teleológico da educação se difere do pôr do trabalho
em sua forma produtora de valores de uso que é desenvolver/influenciar/formar novos comportamentos perante as necessidades sociais, o que implica compreender o processo de mediação do agir entre sujeitos no plano da sociabilidade; desse modo o pôr teleológico da educação, tendo por base Lukács, é um por teleológico secundário (LUKÁCS, 2013). Tal como se apresenta, a teleologia secundária estabelece uma relação que é de sujeito para sujeito, portanto, no pôr teleológico secundário a subjetividade adquire o caráter social: possíveis decisões alternativas de pessoas onde são preponderantes as relações sociais não dependem apenas de um sujeito. Não se pode prever a reação dos indivíduos diante das alternativas possíveis, mesmo com a práxis educacional induzindo determinadas decisões, pois mesmo com as contradições, o processo educativo não cessa.
Para a continuidade do ser social, de sua forma historicamente produzida, é necessária uma educação que possibilite apreender o modo de vida do grupo, assimilando a linguagem, os costumes, as atitudes, as formas de pensar e as formas de produção que garantem a subsistência. Essas e outras objetivações da esfera do ser social são, direta ou indiretamente, originadas da relação homem e natureza ou das atividades dos sujeitos no plano da sociedade. A continuidade do gênero como ser social e a totalidade no movimento de reprodução do ser social mobilizam o complexo educacional para se apropriar das objetivações de outros complexos da práxis social: linguagem, arte, política, religião, ciência, alimentação, direito, dentre outros.
A educação, enquanto complexo da totalidade social, apropria-se das objetivações de outros complexos da práxis social, de modo que tais objetivações se tornem universais, pertencentes ao gênero humano. Ao mesmo tempo em que se afastam as barreiras naturais, elas enriquecem o ser social. No processo de reprodução social, no plano da totalidade, os indivíduos se apropriam desse patrimônio historicamente acumulado, assim como de suas contradições, para se humanizarem e possibilitarem sua participação nas conquistas alcançadas. É uma possibilidade, porque nem todas as conquistas da humanidade estão acessíveis ao coletivo social. A propriedade privada, a divisão e exploração do trabalho em benefícios de alguns indivíduos, a sociedade de classes, expõem as contradições desse processo. Nesse caso, a necessidade individual de apropriar-se do patrimônio histórico e superar as dificuldades sociais é efetuada tanto pelo processo social
quanto de aprendizagem-ensino-aprendizagem perante um conjunto de relações sociais. Isso pressupõe também um processo educacional que requer uma ação intencional e dirigida pela atividade de sujeito para sujeito, mediante a apresentação e explicitação de conhecimentos já apropriados, do estímulo à elaboração de perguntas e do pensar.
As mediações desse processo integram a práxis educacional possibilitando alargar o horizonte de reflexão dos sujeitos, possibilitando a criação de algo sempre novo frente aos desafios atuais e projetando um maior refinamento das faculdades humanas. Através da práxis social pode surgir uma série de objetivações concretas das atividades realizadas pela humanidade cotidianamente, que produzem sempre novas aprendizagens, habilidades, conhecimentos e valores. Lembrando que nem sempre esse processo ocorre de maneira contínua e satisfatória, pois envolve um conjunto de relações sociais articuladas a outros complexos sociais. Isso porque a educação é um pôr teleológico que se realiza de sujeito para sujeito, mediada por uma série de relações humanas.
Nesse sentido, o complexo da educação, determinado pela dinâmica do metabolismo social, fundado pelo Trabalho, avança se autorrealizando no cotidiano da humanidade, pois a aprendizagem do ser humano é constante, contínua e se vincula a outros complexos da práxis social, intimamente “ligados ao devir do homem socialmente efetuado do homem singular” (LUKÁCS, 2013, p. 295). Isso configura a educação no sentido lato de que as atividades, sejam elas produtivas ou ideológicas, possibilitam situações espontâneas de aprendizagem compondo o conjunto de conhecimentos, habilidades, valores inerentes ao gênero humano. Tomando por base as análises de Lukács (idem), elas assinalam o caráter universal da educação imanente ao processo de reprodução social, pois a educação no sentido lato jamais é totalmente concluída.
A educação do homem é direcionada para formar nele uma prontidão para decisões alternativas de determinado feitio; ao dizer isso, não temos em mente a educação no sentido mais estrito, conscientemente ativo, mas como totalidade de todas as influências exercidas sobre o novo homem em processo de formação. Por outro lado, a menor das crianças já reage à sua educação, tomada em sentido bem amplo, por seu turno igualmente com decisões alternativas, e a sua educação, a formação de seu caráter, é processo continuado das interações que se dão entre esses dois complexos (ibdem, p. 295).
Esse aspecto do complexo educativo revela sua função no processo sociorreprodutivo, evidencia que a educação é um processo continuado e de “formação dos cinco sentidos”, ao longo da vida, diria o jovem Marx (2010). A educação possibilita o refinamento e aprofunda as faculdades humanas, ainda que nela se desenvolvam desigualdades e contradições.
O desenvolvimento histórico das formações sociais está marcado pelo processo de produção dos meios de vida e, com efeito, produz a cultura no intercâmbio com a natureza e os indivíduos na sociedade. Esse desenvolvimento culminou na divisão social do trabalho, no aparecimento da propriedade privada, ocorrendo variadas contradições, na distinção entre homens que estavam livres do labor material e aqueles que eram forçados ao trabalho manual.
A separação em atividades manuais e intelectuais forneceu o caráter classista nas relações sociais, configurando o domínio do conhecimento mais sistemático e refinado às classes proprietárias em cada época histórica. A educação escolar vai se desenvolver como símbolo da classe dominante e, a partir dessas relações, se apoiará no saber sistematizado, na medida do tempo livre de trabalho laboral, articulado à domesticação de animais, à agricultura, à complexificação da produção e desenvolvimento das forças produtivas baseadas no trabalho, primeiramente no escravo, servil e, por fim, no trabalho assalariado, tornando-se determinantes na função social da escola (idem).
Através desse processo de complexificação e diferenciação nas relações sociais, simultaneamente, a Educação no sentido lato se tornara insuficiente aos interesses das classes dominantes, na medida em que o conhecimento stricto, sistemático, dos objetos e forças naturais passou a exercer um papel social para mediar e controlar o processo produtivo. A divisão do trabalho em profissões, por exemplo, apoiada no conhecimento stricto, faz com que as práticas educacionais se tornem mais sistemáticas. O conhecimento historicamente acumulado pela humanidade passa a ser transmitido pela escola. Nessa perspectiva, a educação stricta surge por força da divisão de classes e institui a escola como a esfera responsável pela transmissão do saber sistematizado (LIMA e JIMENEZ, 2011). Esse primeiro rompimento no complexo da educação é verificado quando o trabalho coletivo de caça e coleta nas sociedades primitivas é substituído pelo trabalho escravo, entre outros fatores.
A sociedade de classes, calcada na apropriação do trabalho e dos meios de produção, na exploração do homem pelo homem, promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe livre das atividades laborais apoia-se numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e poder. Desse modo, as classes dominantes determinam uma educação rudimentar que assegure apenas o suficiente para a realização de alguns ofícios e a subordinação da classe ligada às atividades manuais.
A instituição escolar surgiu e se desenvolveu ligada ao modo de reprodução social em cada época histórica. A escola como símbolo da dominação e privilégio de uma parcela pequena de indivíduos realçou a função do conhecimento stricto aos destinados a governar. A origem da escola se relaciona com saber restrito a uma classe, ligada à propriedade privada e dispondo de tempo livre proporcionado pela exploração do trabalho alheio, conforme Saviani (2008), uma evidência histórica daqueles que se libertaram das atividades laborais e se tornaram dominantes na sociedade. Lembramos, contudo, que a escola não é a única esfera de transmissão do saber, uma vez que o conhecimento lato é formado mediante a constante interação dos indivíduos entre si e seus contatos com o meio natural e social ao longo da vida.
Nesse aspecto, a escola já nasce portadora de um dualismo educacional, como nos esclarece Santos (2005).
A escola passa a ser então o local ocupado por quem não precisa trabalhar para sobreviver, ou seja, pelos cidadãos ociosos que não se ocupam com a produção do trabalho. A educação escolar era oferecida aos senhores, por estes disporem de tempo livre para o exercício acadêmico do aprendizado. Para o trabalhador restava o trabalho e através deste o aprendizado na prática do dia a dia que rendia os conhecimentos necessários para melhorá-lo e aprimorá-lo p. 26).
Para o autor, a função social e trajetória da escola é instituída, inicialmente pelas classes dominantes, com finalidade de atender aos seus interesses. O contexto que envolve a escola, suas contradições, possibilidades revolucionárias e conservadoras, como instituição encarregada da transmissão do saber sistematizado, reflete os processos sociais dos quais ela faz parte.
Por sua vez, a sociedade de classes, da exploração do homem pelo homem,
promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e o que deve integrar a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe que se apropriou privadamente dos meios de produção apoia-se numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e poder. Desse modo, determina uma educação rudimentar voltada apenas o suficiente para a realização de alguns ofícios e à subordinação da classe ligada às atividades manuais às classes dominantes.
Através das reflexões desenvolvidas até o momento, percebemos que o dualismo marca a trajetória histórica da educação tendo a divisão do trabalho e sociedade de classes como alguns momentos determinantes. Para Saviani (2007),
a partir do escravismo antigo passaremos a ter duas modalidades distintas e separadas de educação: uma para a classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres, e outra para a classe não proprietária, identificada como a educação dos escravos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimilada ao próprio processo de trabalho (p. 155).
Nas comunidades primitivas, em que prevalecia o trabalho coletivo, não havia divisão de classes. Ao se tornarem mais complexas, tomando como exemplo as sociedades grega e romana, com nítida divisão entre trabalho manual e intelectual, desenvolveram uma educação dual, a partir do momento em que a aristocracia, proprietária de terras se apoiou no trabalho escravo para a produção da existência.
O interesse privado se sobrepôs ao coletivo provocando mudanças no que deveria ser ensinado a cada parcela da sociedade e em função dos interesses das classes dominantes. A educação escolar, apropriando-se do conhecimento elaborado sistematicamente, passou a organizar a transmissão desse saber desenvolvendo elementos próprios da forma escolar. Enquanto isso, a classe explorada, alijada da escola, apropriava-se do saber prático, ligado ao processo de trabalho e às situações cotidianas.
Com o aparecimento da sociedade de classes, a tônica do ideal educativo se voltava para os fins estabelecidos pela classe proprietária. Segundo indica Ponce (2010, p. 37), nesse contexto educativo prevalecia “a inculcação da ideia de que as classes dominantes só pretendem assegurar a vida das dominadas, e a vigilância atenta para extirpar e corrigir qualquer movimento de protesto da parte dos oprimidos”.
A separação das classes provocou uma fratura também no campo das ideias, a fim de preservar a hierarquia social dos privilegiados sobre os trabalhadores manuais. O conhecimento já não podia ser ensinado livremente a todos e ainda estava a serviço da manutenção das desigualdades sociais, explicando à massa trabalhadora que essa desigualdade educacional era natural, pertencente aos destinados a governar.
Com o trabalho dividido socialmente, surgem as diferenciações que germinam da práxis social, onde a função da propriedade privada se torna hegemônica. Esse processo também incide sobre o controle das técnicas produtivas envolvidas no processo de trabalho, diferenciadoras dos que deveriam atuar em atividades que exigiam maior esforço físico e daqueles que exerciam funções de planejamento, administração e controle, isto é, atividades intelectuais. É a propriedade privada a base de poder e controle de um grupo de indivíduos sobre outros, perfazendo a hierarquização social. Funções diferenciadas exigiam, da mesma forma, habilidades distintas e estas eram adquiridas através de processos educativos cada vez mais direcionados às atividades produtivas que cada indivíduo ou grupo deveria exercer.
A sociedade de classes, calcada na apropriação do trabalho e nos meios de produção, na exploração do homem pelo homem, promove também a distinção entre os saberes destinados à classe dominante e a instrução das classes exploradas. Isto é, para manter-se no controle da hierarquia social, a classe proprietária se apoia numa educação sistematizada a partir da evolução das técnicas, dos conhecimentos do meio, da elaboração de formas de controle e de poder. Desse modo, as classes proprietárias, economicamente dominantes, determinam uma educação institucionalizada, controlando a produção do saber que assegure seu status quo, por um lado, por outro, o acesso à escola para massas trabalhadoras é um fenômeno histórico recente em nossa história.
Após a revolução industrial, a dualidade educacional também é transformada em função das novas demandas produtivas. A divisão lato versus restrita, não atendiam as necessidades de formar o trabalhador para o manuseio do maquinário. Foi nessas condições que a educação restrita se divide numa dicotomia configurada pela separação e oposição entre um ensino propedêutico para a classe dominante e um ensino profissionalizante para a classe trabalhadora. O saber apenas para realização de alguns ofícios, subordinado à classe ligada às atividades manuais, tornou-se insuficiente para a classe burguesa em ascensão. Com isso, teríamos uma
dicotomia por dentro da dualidade. Uma primeira divisão entre trabalho manual e intelectual produziu uma dualidade cujo saber era destinado aos privilegiados, próprio de uma sociedade dividida em classes. Para atender às necessidades produtivas promovidas pela industrialização era preciso possibilitar que mais grupos sociais tivessem acesso a conhecimento, porém não o conhecimento que possibilitasse ao trabalhador exercer funções de governo tanto quanto um burguês.
Na sociedade capitalista, a esfera do trabalho passou por profundas transformações. A introdução de máquinas no processo produtivo, o mercado como fim último da produção e das relações que buscam o lucro, a ascensão burguesa como classe dominante e o surgimento do proletariado produziram novas demandas sociais. As lutas políticas entre as classes sociais e a separação entre trabalho manual e intelectual ganhou uma nova forma em meio a industrialização. Esse processo também alterou as relações sociais no meio educativo e a escola passou a assumir novas funções.
A dicotomia educativa, propedêutico versus profissionalizante, por dentro da esfera restricta veio reforçar a dualidade que opõe as classes sociais no âmbito da educação escolar. Uma educação propedêutica para a classe proprietária dominante e outra profissionalizante para os trabalhadores. Essa nova separação na esfera educacional ocorre no conjunto das transformações promovidas pela sociedade burguesa industrializada. Nesse processo, a escola assumiu o papel de educadora oficial do Estado, absorvendo demandas sociais das classes em luta, tendo a classe dominante exercido papel preponderante para encaminhar processos educativos atrelados às suas necessidades sociorreprodutivas.
A educação no horizonte do Movimento de Educação para Todos (UNESCO- ONU, FMI, Banco Mundial), coordenado por Jacques Delors, financiado pelo capital, na “Educação ao longo da vida”, reforça ainda mais o viés dicotômico, unilateral do processo educativo. Enquanto Marx se refere à educação dos cinco sentidos, isto é, uma educação omnilateral, a proposta adotada pelos organismos internacionais multilaterais está atrelada a uma dualidade educacional que reforça a unilateralidade, que se viabilizou nas instituições escolares a reboque das políticas neoliberais, e está assentada no paradigma da pós-modernidade. É uma educação para todos os pobres dos países pobres cujo teto educativo é o ensino básico, preferivelmente profissionalizante no nível médio da escolaridade. Isso condiz com a unilateralidade
do processo educativo, amparada pelo processo de divisão social do trabalho, manual versus intelectual, e seu antagonismo de classes. As instituições escolares que brotaram nele aprofundaram e avançaram no conhecimento stricto, mas também reforçaram ser ela voltada ao domínio de classe.
Para encerramos nossas reflexões, sem esgotarmos o debate – resgatamos sinteticamente a necessidade de considerar a educação como complexo fundado e reproduzido através do Trabalho. Processo que é fundamental para que a humanidade continue seu processo de desenvolvimento mediante as necessidades que se impõem. Entretanto, ressaltamos também o vínculo ontológico que a educação mantém com o complexo do trabalho, cuja determinação dialética e reciprocidade influencia na produção e reprodução do saber.
Nesse processo de reflexão, procuramos demonstrar a relação entre trabalho e educação a partir dos pressupostos ontológicos da teoria de Marx, apoiada nas análises de Lukács. A esfera do ser social é consequência do salto ontológico dado pelo ser humano através do trabalho. Através do trabalho emergiu um novo metabolismo entre homem e natureza que se desdobra num processo constante e contínuo de sociabilidade, fundando novas relações, possibilitando o afastamento das barreiras naturais, sem, contudo, eliminá-las. Esse metabolismo permite ao ser humano social desenvolver novas esferas para garantir sua sobrevivência, a reprodução social de uma práxis social, combinando objetividade e subjetividade na criação de algo novo.
De forma geral, procuramos evidenciar importantes apontamentos, sobre o que cerca a categoria trabalho em Karl Marx, os elementos centrais do complexo que funda o ser social e a forma manifestada na sociedade capitalista. Percebemos o quanto difícil é abordar tal categoria em virtude dos pressupostos e interpretações polêmicas e controversas que ela desperta. O caminho seguido foi balizado pela leitura de autores mais experientes que esboçam maior envergadura nos vários embates já travados nos estudos da obra clássica de Marx. Por isso, longe de esgotar os debates, este trabalho nos ajudou a compreender melhor as nuances do objeto,
sua imprescindível importância, quando se nega que trabalho é uma categoria superada no atual quadro da análise societal.
O resgate ontológico do trabalho, como fio-condutor do processo de autoconstrução do homem, deve ser pautado por uma perspectiva crítica e radicalmente emancipada das concepções burguesas que em si garantem a reprodução do capital. É pela centralidade do trabalho, na perspectiva ontológica, que se situa a natureza e função social da educação. Cabe a ela, enquanto práxis, a tarefa de permitir aos indivíduos a apropriação dos conhecimentos, habilidades, práticas e valores necessários para se tornarem membros do gênero humano. Nesse sentido, a educação, assim como outros complexos, está inserida na realidade social, compondo o quadro da totalidade, para cumprir necessidades humanas estabelecidas.
Como complexo da formação humana que se relaciona com o complexo do trabalho, com a totalidade social e com a esfera do conhecimento, a educação é formadora da individualidade, entretanto, ela é cercada de uma trama social que envolve as mediações historicamente desenvolvidas pelo conjunto da humanidade. As mediações da práxis educacional caracterizam-se por alargar o horizonte de reflexão dos sujeitos, possibilitando a criação de algo sempre novo frente aos desafios atuais, projetando um maior refinamento das faculdades humanas.
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