TESES E DISSERTAÇÕES



BEMVINDO, Vitor. Por uma história da educação politécnica: concepções, experiências e perspectivas. 2016. Tese de Doutorado em Educação, do Programa de Pós-graduação em Educação (Mestrado e Doutorado), da Faculdade de Educação, da Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ.1 2


Resumo expandido


É comum notar, nos trabalhos do campo Trabalho-Educação, o conceito de educação politécnica ou politecnia associado à concepção marxista de educação. De fato, Marx elaborou esparsas ideias de uma pedagogia na qual a politecnia teria um papel central. No entanto, esse mesmo conceito já havia sido apropriado por distintos grupos, com diferentes sentidos políticos-pedagógicos, associados aos projetos de sociedade defendidos por cada um desses grupos. A tese “Por uma História da Educação Politécnica: Concepções, Experiências e Perspectivas” consiste em um esforço de pesquisa e análise histórica do processo de (re)construção do conceito de educação politécnica.

Admitimos, portanto, que o conceito de educação politécnica está em disputa e remontamos esse processo de disputas às suas origens no século XIX. Observamos que as primeiras instituições a se valerem do termo “politécnico” surgiram na França, pouco tempo depois da Revolução de 1789. As primeiras escolas politécnicas tinham um forte caráter classista e eram voltadas para a

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1 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.16i29.p4645

2 Vitor Bemvindo é Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor substituto do Departamento de Fundamentos de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Tese orientada pela Professora Dra. Maria Ciavatta, defendida no dia 24 de fevereiro de 2016. Foi indicada em 2017, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF, ao Prêmio Capes de Tese e ao Prêmio UFF de Tese.

formação de uma nova elite burguesa que assumira o poder. Além disso, essas escolas tinham uma preocupação fundamental com o desenvolvimento do processo produtivo capitalista na França e se voltavam para a formação de quadros técnicos que seriam responsáveis por dirigir a produção.

A escola politécnica mais representativa da concepção burguesa de politecnia do início do século XIX foi a École Polytechnique (Escola Politécnica de Paris), que desenvolveu um modelo de formação e que foi replicado em diversas outras escolas do mesmo tipo em várias partes da Europa, e até mesmo no Brasil. Entre as principais características das escolas politécnicas burguesas estava o rigoroso processo de admissão que restringia quase que por completo a possibilidade de acesso às classes trabalhadoras. A valorização da cultura e das ideologias da burguesia, a criação de um espírito de corpo (BOURDIEU,1989, p.110-111), com padrões de comportamento e de práticas pedagógicas, a valorização do positivismo e a crença na transformação social através da ciência também estão entre os atributos dessas escolas.

Apesar de haver uma evidente relação entre essas escolas politécnicas e a formação para o trabalho produtivo, as restrições às classes trabalhadoras fizeram com que essas instituições de ensino fossem responsáveis pela formação de uma tecnocracia capaz de dirigir tanto o processo produtivo como o processo político. Esse mesmo “modelo politécnico” foi importado para o Brasil a partir de meados do século XIX, sendo as principais representantes desse modelo as Escolas Politécnicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, hoje incorporadas respectivamente à Universidade Federal do Rio de Janeiro e à Universidade de São Paulo.

O processo de apropriação do conceito de politecnia pelo campo crítico iniciou-se com os socialistas utópicos, que tentaram implementar escolas onde o trabalho produtivo e o ensino tivessem uma relação direta. O socialista utópico que levou essa ideia mais adiante foi Robert Owen, que implementou uma experiência em New Lanark, na Escócia, onde as relações de trabalho fugiam do padrão de exploração capitalista, típico da primeira metade do século XIX e onde os processos de formação a partir do trabalho eram valorizados.

Os anarquistas também construíram sua concepção de educação politécnica, a partir das contribuições de Pierre Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin, Paul Robin, Sébastien Faure e Célestin Freinet. Os socialistas libertários entendiam o trabalho como um elemento fundamental para a formação da classe trabalhadora e, assim como os utópicos, eram críticos dos efeitos da divisão social do trabalho na educação. Defendiam uma concepção de educação que rompesse com a dicotomia entre trabalho intelectual e manual, no entanto, rechaçavam a intervenção estatal nos processos formativos.

As contribuições dos socialistas utópicos e libertários foram importantes para as formulações de Marx e Engels sobre a educação. Ambos defenderam a politecnia como um dos elementos da concepção socialista de educação, que deveria ter no trabalho um elemento central. Assim como os anarquistas, Marx defendia o fim da dissociação do trabalho intelectual e manual e pressupunha a transformação da sociedade.

O marxismo avançou nas formulações sobre a escola única do trabalho a partir das contribuições de Antonio Gramsci e suas reflexões sobre o trabalho como princípio educativo. As proposições do autor italiano apresentam um avanço em relação às ideias de Marx e Engels, pois Gramsci entende o trabalho como um elemento formativo a ser incorporado em todos os níveis de formação e não apenas dentro da fábrica. A proposta de escola única gramsciana rompe com a dualidade educacional imposta pelas propostas burguesas de educação e sugere uma escola desinteressada, na qual o trabalho não será um elemento de formação pragmática, mas sim de caráter emancipador. Há um elemento comum entre todas as concepções de educação politécnicas analisadas no primeiro capítulo da tese: o vínculo entre educação e trabalho.

No segundo capítulo, concentramo-nos no estudo de duas experiências do dito socialismo real, que se apropriaram da concepção marxiana-engeliana de educação politécnica: a União Soviética e Cuba. Em ambos os países, houve uma série de debates e controvérsias em torno das diferentes interpretações sobre o conceito.

Na União Soviética, o tema da politecnia foi alvo de ferozes disputas internas entre pedagogos da primeira geração de líderes revolucionários. Havia

um grande embate entre os defensores de uma educação centrada no trabalho, mas que desse ênfase aos aspectos da formação integral do trabalhador, e os que argumentavam em prol de um modelo formativo mais pragmático, que atendesse às demandas imediatas do desenvolvimento econômico do país. Essa segunda visão da educação foi a que prevaleceu com a ascensão do stalinismo, colocando as ideias de pedagogos como Krupskaia, Pistrak, Shulgin, entre outros, em completo ostracismo.

Por sua vez, em Cuba, a concepção marxista de educação politécnica ganha novo sentido, em especial pela conjugação desse conceito com as ideias de José Martí. O Apóstolo da Independência cubana defendia uma “educação para a vida” e via no trabalho, em seu sentido ontológico, um elemento importante para a formação integral e emancipação dos sujeitos. Após 1961, com a declaração do caráter socialista da Revolução Cubana, a politecnia assume papel primordial na formação dos cubanos. Atualmente os Institutos Politécnicos são exemplos bem-sucedidos da vinculação entre trabalho e educação.

No Brasil, as concepções críticas de educação politécnica só passam a fazer parte do debate educacional a partir dos anos de 1980, durante o processo de redemocratização do país. Os mais de vinte anos de ditadura impediram que esse tema fosse tratado na formulação de políticas públicas para a educação. Durante a Assembleia Constituinte, o conceito de politecnia passa a ser abertamente discutido entre educadores e as forças políticas daquele momento. Um projeto de Leis de Diretrizes e Bases da Educação foi redigido pelo professor Demerval Saviani, contemplando a formação politécnica como elemento balizador do ensino médio. Apesar de o projeto ter sido colocado em discussão, a proposta foi derrotada. Durante os anos de 1990, com a hegemonia do neoliberalismo, os temas relacionados à politecnia voltam a ser negligenciados nas formulações das políticas educacionais, restringindo-se aos debates nos campos políticos minoritários e acadêmicos. A aprovação do Decreto n. 2208, em 1997, robustece a hegemonia neoliberal, ao reforçar o dualismo educacional que desassocia a formação geral da educação profissional.

Somente na primeira década do século XXI as discussões em torno da educação politécnica voltam a tomar vulto, quando dos debates sobre o decreto

que revogaria o decreto 2208/97. Como principal contribuição, decreto 5154/2004 traz, a possibilidade de integração entre a formação geral e profissional, através do ensino médio integrado. No entanto, os efeitos práticos desse decreto são bastante tímidos, já que a maior parte das instituições de ensino promove uma integração meramente burocrática, admitindo na mesma matrícula os cursos de formação geral e profissional.

O caminho para o desenvolvimento de um ensino médio integrado à formação profissional, que realmente articule o trabalho manual e intelectual, os aspectos gerais e específicos da formação, é o caminho da luta e da disputa. É necessário impor ao projeto do ensino médio integrado a dimensão política presente na concepção marxista de educação politécnica.

Um aspecto importante dessa luta é o desenvolvimento de experiências bem-sucedidas de ensino médio integrado referenciadas na politecnia. Os casos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e do Instituto Politécnico da UFRJ em Cabo Frio (IPUFRJ) são emblemáticos na perspectiva de luta para a construção de perspectivas para a formação integrada no Brasil.

A experiência do IPUFRJ, que recebeu especial atenção no último capítulo da tese, aponta para algumas perspectivas que podem ser replicadas, aumentando o alcance das transformações possibilitadas pelo ensino médio integrado à formação politécnica. O Instituto Politécnico da UFRJ em Cabo Frio, desde a sua criação em 2008, acumulou uma considerável experiência em práticas pedagógicas para o ensino médio integrado referenciado na politecnia. Na tese são analisados o processo de elaboração da concepção de educação do Politécnico, em suas dimensões ético-política e teórico-metodológica. Observamos que a concepção de formação humana do IPUFRJ pode ser resumida em: concepção marxista de educação politécnica, trabalho como princípio educativo – materializado e posto em prática a partir da apropriação crítica da metodologia de projetos – e a integração entre os aspectos da formação geral e da educação profissional.

Como vimos, as transformações metodológicas ocorridas ao longo do tempo possibilitaram ao Instituto Politécnico poder contar com uma metodologia de ensino-aprendizagem que viabiliza a materialização, nas práticas pedagógicas,

dos princípios que compõem a formação humana oferecida pela escola. Observamos também que a incorporação de elementos do materialismo histórico- dialético a essa metodologia e a observância do trabalho pedagógico, enquanto totalidade, a partir das suas múltiplas determinações, aproxima muito a proposta da UFRJ do método dos complexos (ou sistema dos complexos) desenvolvido pela Escola-Comuna, a partir da contribuição de Pistrak e Shulgin, nos primeiros anos da Revolução Bolchevique na Rússia. O IPUFRJ recebeu também a influência das experiências de educação politécnica cubanas, devido às contribuições do professor José Cubero2, que durante a elaboração da proposta da escola, bem como da formação dos professores, ao longo desses anos, colaborou para a estruturação de um modelo educativo crítico e de caráter emancipador.

Ainda assim, o movimento de lutas pela sua efetivação definitiva deve servir como exemplo de como é possível, mesmo diante de condições estruturais adversas, pautar debates em torno de perspectivas críticas de educação. A existência do Instituto Politécnico da UFRJ, mesmo que em condições adversas como as atuais, representa um alento na disputa pela hegemonia de projetos político-pedagógicos. A luta e a resistência características desta experiência foram exemplares e deveriam tornar-se um convite para que os intelectuais que se posicionam no campo do pensamento crítico assumam uma postura mais propositiva e combativa na intenção de construir iniciativas que possibilitem a difusão de concepções críticas de educação, como a politecnia.


Recebido em: 01 de fevereiro de 2018. Aprovado em: 25 de março de 2018. Publicado em: 13 de junho de 2018.


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3 José Cubero Allende (1943-2016) é Doutor em Ciências Psicológicas pela Universidade de Havana e foi professor desta mesma universidade entre 1974 e 2003. Foi professor visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordenou o Grupo de Educação Multimídia e foi figura central no desenvolvimento das práticas pedagógicas do IPUFRJ