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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


UNIVERSIDADE E TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS: UMA LEITURA A PARTIR DAS RELAÇÕES DE GÊNERO1.

Paola Cappellin2 Jorge Custodio3

Resumo

O estudo toma como objeto a aproximação por parte de jovens trabalhadores à Universidade pública no período entre 1999-2013. Esta conjuntura brasileira, marcada por frequentes crises econômicas, interfere no mercado de trabalho fragilizando as trajetórias ocupacionais das pessoas. Neste contexto, a busca do diploma universitário representa uma estratégia para enfrentar a ameaça do desemprego. O estudo do quotidiano de homens e mulheres, mostra como não enfrentam os mesmos desafios, já que o tempo dedicado a frequentar a universidade, assistir a família e manter o emprego, faz as respectivas experiências bastante diferentes. Dos resultados, pode-se apontar que entre os dois grupos há diversidade entre inovações e permanência de valores de gênero.

Palavras-chave: gênero e trabalho; trabalho e universidade; gênero e Universidade.


TRAYECTORIAS UNIVERSITARIAS Y PROFESIONALES: UNA LECTURA DE RELACIONES DE GENERO


Resumen

El estudio tiene como objeto el acercamiento de los trabajadores jóvenes a la Universidad pública en el período 1999-2013. Esta situación brasileña, marcada por frecuentes crisis económicas, interfiere en el mercado laboral, debilitando las trayectorias ocupacionales de las personas. En este contexto, la búsqueda de un título universitario representa una estrategia para enfrentar la amenaza del desempleo. El estudio de la vida diaria de hombres y mujeres muestra cómo no afrontan los diferentes retos, dado que el tiempo dedicado a asistir a la universidad, ayudar a la familia y mantener o empleo, hace que las respectivas diferencias sean bastante diferentes. De los resultados, podemos ver que lo que marca las opciones de los dos grupos es la diversidad de innovaciones y la permanencia de los valores de género.

Palabras clave: género y trabajo; trabajo y educación, Universidad y género.


UNIVERSITY AND PROFESSIONAL TRAJECTORIES: A READING FROM GENDER RELATIONS


Abstract

The study takes as its object the approach of young workers to the public University in the period between 1999-2013. This Brazilian situation, marked by frequent economic crises, interferes in the job market, weakening people's occupational trajectories. In this context, the search for a university degree represents a strategy to face the threat of unemployment. The study into daily life of men and women shows how they do not face the different challenges, given that the time devoted to the time dedicated to attend university, to assist the family and to keep their job, it makes the respective differences quite different. From the results, we can see that what marks the options of the two groups is the diversity of innovations and permanence of gender values.

Key words: gender and work; work and higher education; Gender and University


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1 Artigo recebido em 07/10/2020. Primeira avaliação em 12/10/2020. Segunda avaliação em 20/10/2020. Terceira avaliação em 26/10/2020. Aprovado em 30/11/2020. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.46459.

  1. Doutora em Sociologia Urbano-Rural, Université de Nanterre, Paris X, França. Professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenadora de pesquisa em Sociologia no Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro. E-mail: cappellinp@gmail.com

    Lattes: http://lattes.cnpq.br/2835994964894930. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0061-9271.

  2. Doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. Professor da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e professor de sociologia na Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: jorgecustodio13@yahoo.com.br

    Lattes: http://lattes.cnpq.br/4044028651064402. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9313-4849.

    Introdução


    Ressaltamos neste artigo os sentidos que assumem a frequência e a obtenção do diploma universitário na trajetória ocupacional de um grupo de trabalhadores, de ambos os sexos, pertencentes às classes populares cariocas. O estudo foi realizado acompanhando um grupo de jovens trabalhadores, de ambos os sexos, que, após ter frequentado cursos em pré-vestibulares comunitários, conseguiram finalmente se matricular nas universidades públicas cariocas e alcançaram o diploma universitário4. A pesquisa registra, assim, dez percursos de vida de trabalhadores que relataram, em 1999, seu cotidiano em plena frequência aos cursos de graduação, pondo em ênfase as motivações e o interesse pela conquista da formação universitária. Sucessivamente, em 2013, as mesmas pessoas foram reencontradas, já de posse do diploma superior. Nesta oportunidade, o diálogo foi aprofundado para compreender o sentido mais amplo dado à educação universitária no que se refere às novas oportunidades encontradas e à experiência ocupacional quando de posse do diploma. Momentos importantes da nossa interação incluíram os depoimentos de vida pessoal e familiar desses trabalhadores.

    Em síntese, estes percursos se inserem no contexto mais amplo das contínuas crises econômicas e das consequentes fases de reengenharia dos empregos que ameaçam a permanência no mercado de trabalho. A obtenção do diploma superior se transforma, para eles, em uma conquista social. Neste complexo e crítico contexto socioeconômico, a nossa analise se detém em identificar e sublinhar como e quando, nas experiências destes jovens trabalhadores, aparecem assimetrias de significados e valores de gênero.



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    4 A estratégia para selecionar os/as entrevistados faz referência às listas de aprovação de alunos do curso de pré-vestibular do Sindicato dos Trabalhadores da Educação da UFRJ (SINTUFRJ), do Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM), do Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH) e do Centro Comunitário de Capacitação Profissional Paulo da Portela (CCCPP). Outros critérios de escolhas: ter 25 anos de idade frequentando a Universidade, possuir um histórico escolar que inclui uma interrupção dos estudos por três anos no mínimo e ser empregado/a ou ter vivenciado o desemprego durante a década de 1990.

    No Brasil, o diploma superior tem indicado historicamente um privilégio das elites e tornou-se para a classe média um instrumento de distinção social que legitima o esforço individual. No contexto das famílias de classes populares, a formação universitária dos jovens trabalhadores é uma recente referência moral e intelectual, que se amplia atingindo as estratégias sociais para o futuro de todo o núcleo. Nas conjunturas recentes, 1990 - 2000, a motivação de aceder à educação superior é fortalecida pelo interesse de frear a insegurança e superar a ameaça do desemprego ou do trabalho precário, buscando alcançar um percurso estável.

    Assim, para os/as entrevistados/as, obter o diploma superior se transforma numa credencial que possibilita enriquecer e renovar a experiências profissionais e os estilos de vida. Tudo indica que os ganhos individuais relatados pelos entrevistados se espalham, atingindo a reinvenção das perspectivas de vida não só pessoal, mas também do cônjuge e como projeto de criação dos filhos. Torna-se nítida a ampliação deste capital cultural (o diploma) nas relações sociais.

    Hoje, em 2020, com a presente crise plural (sanitária, política e econômica), tudo indica que se reatualizam as experiências e práticas laborais passadas. Desde 2016, o impacto socioeconômico é agravado pelas reformas trabalhista e previdenciária, do congelamento dos gastos sociais, do crescimento do desemprego e do emprego informal. Com efeito, acreditamos que as reflexões aqui apresentadas possam ajudar a acompanhar as escolhas pessoais, o repertório cultural e o imaginário político de trabalhadores antes, durante e depois da pandemia.


    Mercado de trabalho e suas conexões


    A análise sociológica do processo de aproximação à Universidade por parte de trabalhadores brasileiros pretende mostrar a imbricação entre possibilidades, motivações e escolhas. Graças à contribuição da sociologia econômica, esta densa confluência de mecanismos é interpretada como conexão de relações econômicas e culturais. O nosso artigo se propõe refletir sobre a imbricação de diversas dimensões culturais e sociais, além de econômicas, que se manifestam quando jovens trabalhadores buscam atingir o diploma universitário.

    Para os economistas, os indivíduos movimentam-se num mercado perfeito. Para eles, seguindo o modelo do ator racional, demandas e ofertas se encontrariam. Granovetter (1973 e 1998), fundador da nova sociologia econômica,

    estudou as influências e as conexões que embasam a eficiência de achar o emprego (getting a job) graças a diferentes estruturas e dinâmicas de contatos interpessoais, os networks. O autor ressalta os aspectos relacionais que contribuem para enfatizar quanto o olhar do pesquisador deve-se ampliar ao adotar a perspectiva da imersão das práticas econômicas no contexto de relações sociais. Assim, os contatos pessoais e informais (entre familiares, colegas de trabalho, amigos) e os contatos formais e impessoais (instituições de intermediação, anúncios nos jornais etc.) participam enriquecendo as práticas que procuram renovar a inserção no mercado de emprego. Esta busca, expressão das relações econômicas, é imersa num contexto social e cultural. A socióloga Viviana Zelizer (2005) aprofunda essa instigante perspectiva. A economia e a sociedade são esferas que se influenciam reciprocamente, mantendo um continuum de interações. Não há necessária preponderância de uma esfera sobre a outra.

    Através da análise de processos interpessoais, a autora estuda as interações entre atividades econômicas e a esfera íntima, pessoal, dos sentimentos que interferem nas situações de aparentes escolhas econômicas (economic activity and intimacy). Com esses importantes e desafiantes elementos analíticos, renovamos a leitura dos depoimentos dos jovens trabalhadores em três momentos de suas vidas: quando decidem retornar a estudar, quando frequentam o curso pré-vestibular e a universidade e, sucessivamente, após ter obtido o diploma universitário. Este percurso pode ser mais bem percebido se seguimos a sugestão de Granovetter e Zelizer, ampliando a conexão das diferentes interferências. A ênfase atribuída às urgências econômicas não deixa de visualizar a presença das dimensões culturais, em seus valores e sentimentos que fortalecem a inserção na sociedade contemporânea. Enquanto motivações sociais, estas acompanham o agir e o pensar dos trabalhadores que vivenciam a crise do emprego. Esta contingência marca a combinação de resultados econômicos conjuntamente ao futuro sucesso pessoal, como ideário cultural.

    Algumas perguntas têm guiado este artigo. Com quais preocupações as pessoas enfrentam o retorno ao estudo? O único incentivo seria proteger-se da ameaça de desemprego, fruto da conjuntura de contínua reorganização dos lugares de trabalho? Sem dúvida, escolher frequentar a universidade, mantendo o vínculo de trabalho, representa uma estratégia que é, ao mesmo tempo, racional e emotiva. Assim, como se entrelaçam dimensões econômicas e afetivas nos comportamentos

    de homens e mulheres que retornam a estudar? As pessoas, ao iniciar este percurso, deverão conectar e associar os compromissos de trabalho, de família e de estudo na universidade. O ideário cultural de emancipação tem impulsionado a difusão do projeto de autonomia entre as mulheres trabalhadoras. Como se manifesta a superação da assimetria das relações sociais de gênero? Com efeito, o advento da democratização do acesso à universidade, poderia supor a liberalização, entre as mulheres, da responsabilidade doméstica e afetiva, imposta por longo tempo pelos ambientes sociais de procedência?


    O direito à educação universitária no Brasil: breve histórico


    No Brasil, só após a Constituição Federal de 1988 é definido o direito público subjetivo (art. 208, VII, lº) à educação para todos, superando a lógica seletiva. Além disso, em 1990, o período de escolarização obrigatória duplicou, passando de quatro para oito anos5. A inscrição na universidade, como “oportunidade” e “chance” é promovida. (Figura 1, In: GOLDEMBERG, 1993 p.68).


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    O governo Lula (2003-2010) consolidou a progressiva implantação de políticas de financiamento para a educação de jovens e adultos, instituindo um diálogo com a


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    5 Lembramos que no Brasil, em 1950, apenas 36,2% das crianças de 7 a 14 anos tinha acesso à escola (GOLDEMBERG, 1993, p. 93).

    sociedade bem mais aberto em relação aos governos anteriores (1995 –2002). O resultado foi que no período de 1999 a 2006, a média dos anos de estudo da população de 15 anos ou mais, passou de 5,8 para 7,2.

    Ainda que a quantidade de vagas disponíveis nos cursos de ensino superior no Brasil siga sendo insuficiente para o número de jovens e adultos que aspiram a um diploma universitário, a expansão da oferta de vagas, sobretudo a partir da década de 1990, é inquestionavelmente significativa. O incremento da quantidade de universidades e vagas é perceptível ao confrontá-lo com os dados do início do século XX, mais especificamente do ano de 1929.

    De acordo com os dados fornecidos pelo Departamento Nacional de Estatística do Ministério do Trabalho, no ano de 1929, formaram-se 5.558 pessoas dentre as diversas áreas do conhecimento. Se o ínfimo número de graduados chama hoje a nossa atenção, mais gritante é a discrepância do número de mulheres frente aos homens graduados. Como se pode observar na Figura 2, houve 4.257 homens formados dentre as diversas áreas, e apenas 1.301 mulheres. O que significa uma média aproximada de 3,3 homens para cada mulher formada.

    Em contraste, na década de 1990 há um considerável avanço dos concluintes. Mais ainda, as mulheres superam os homens, representando 60% dos graduados. Em 2005, seguindo as estatísticas sobre as universidades, a proporção de mulheres graduadas aumenta para 62%, enquanto as dos homens somente 38%, equivalendo, em números absolutos a 446.724 e 271.134, respectivamente, totalizando 717.858 graduados.


    Figura 2.

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    Fonte: INEP, Ministério da Educação, Brasil, elaboração por Cappellin e Cortez, 2009

    Notamos que, entre os anos de 1997 e 1998, há um aumento considerável. Nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o Brasil presencia uma proliferação de instituições privadas de ensino superior. Podemos concluir, portanto, que a progressão de graduados por sexo, de 1929 até hoje, se inverte: em 1929 as mulheres representavam aproximadamente 30% do total de graduados; em 2005 são os homens que representavam 38%. Todavia, embora as mulheres mais jovens atinjam a educação superior, sua inclusão no mercado de trabalho qualificado não é significativamente presente. Isto é, no mercado de trabalho brasileiro, nos últimos trinta anos, sua inserção não se dá de forma linear e tampouco é definitiva. Pelo contrário, tanto no Brasil quanto na Europa a integração produtiva das mulheres é marcada por avanços e retrocessos. Seguindo Margaret Maruani, (2003, p.21) “pode ser caracterizada por três passos para frente, dois passos para trás”. De acordo com a mesma autora, as mudanças que vêm ocorrendo nos últimos trinta anos nas trajetórias profissionais das mulheres não devem ser compreendidas como rupturas, mas como brechas decisivas que não significam, entretanto, uma garantia de conquistas realizadas.

    Em última análise, “a feminização do mercado de trabalho é real, mas inacabada, incompleta, tanto que se fez sob o signo da desigualdade e da precariedade”. (MARUANI, 2003, p.21).6 Com efeito, há um dado exemplificativo: em 2006, a taxa de desocupação entre as mulheres na faixa de 18 a 24, atingiu 21,6%, enquanto entre os homens foi de 12,9%.


    Frequentar a universidade e progredir socialmente entre 1999-2013.


    O período escolhido para nossa análise é emblemático por suceder a uma marcante readaptação das estruturas organizacionais das empresas, iniciada nos anos 1980. Muda-se a composição das ocupações e aumentam as exigências de competência profissional. De uma estrutura vertical, rígida e claramente hierárquica, muitas empresas tornam-se estruturas horizontais, em muitos casos desativando setores e seções ou mais ainda, expulsando seções e serviços para inaugurar a terceirização. Por outro lado, o trabalho em equipe vai sendo substituído pelo trabalho


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    6 O termo feminização refere-se ao aumento significativo no mercado de trabalho da população feminina em ocupações tradicionalmente designadas aos homens. (BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000, NOGUEIRA, 2004).

    individual, extremamente especializado. A gerência passa a demandar do trabalhador uma pluralidade de especializações e habilidades, muitas vezes não só técnicas ou racionais, mas também comportamentais e emocionais. Nos anos 1990, se aprofunda a desregulamentação e a flexibilização (CASTEL, 1998). Novas formas contratuais surgem, flexibilizando as jornadas e precarizando as relações de trabalho (CESIT, 2007). Ao desemprego estrutural se agrega o desemprego recorrente, a instabilidade dos contratos e, de forma geral, aumenta a incerteza do vínculo de emprego de um sem-número de trabalhadores. São estes os condicionantes da reestruturação que colocam em risco a continuidade do emprego, sobretudo de quem está, como o segmento por nós escolhido, no mercado de trabalho, de posse de diplomas não universitários.

    Entre os anos 1999 e 2013 realizamos os contatos com os trabalhadores, na cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente, foi solicitado externar as motivações que os levam escolher e frequentar a universidade. Sucessivamente, aos mesmos trabalhadores, de posse do diploma universitário, foi sugerido avaliar as mudanças e/ou as substituições de suas posições ocupacionais. Nestes períodos, as configurações e os contornos das estruturas socioeconômicas se espelhavam nas próprias trajetórias individuais dos entrevistados. Com efeito, lidamos com gestões do governo brasileiro bastante distintas: a administração do presidente F. H. Cardoso (1994-2002) e a de Luiz Inácio da Silva (2003-2010). Lembramos que desde 1990 a consciência e a mobilização em defesa do direito à educação superior cresceram entre a população jovem e adulta, fazendo com que aumentasse a demanda por projetos políticos-pedagógicos e políticas públicas a ela destinadas. É efetivamente desde o início do governo Lula, diferentemente do governo anterior, que se promovem políticas de expansão, incrementando o acesso ao ensino superior (em instituições públicas e bem mais em universidades privadas). Assim, paulatinamente, o volume de emprego e o consumo de bens se estendem, proporcionando o aumento real do salário mínimo, além do incremento da transferência de renda.

    Algumas perguntas têm guiado a análise dos percursos de vida de dez jovens que, inseridos no mercado de trabalho, se vincularam às Universidades públicas (federais e estaduais) na cidade do Rio de Janeiro. A sua releitura põe em evidência a riqueza das emoções, a variedade dos comportamentos e a originalidade das estratégias para seguir com o interesse e superar as muitas dificuldades para frequentar a universidade. Todos os entrevistados (homens e mulheres) conseguiram

    obter o diploma, sempre mantendo ativo o vínculo de emprego. Esse sucesso possibilita rearticular carreiras, construir novos estilos de vida e novos retratos identitários? Quais foram os desejos e expectativas destas mulheres e homens trabalhadores cariocas? Que projetos de vida tentaram galgar?

    Para todo o grupo entrevistado a experiência de frequentar a universidade proporciona uma renovada socialização, a possibilidade de apropriar-se de novos gostos, ou seja, nos ambientes de trabalho se redefiniram as profissões e as relações interpessoais; nos espaços domésticos foram reorganizadas as relações entre os membros do núcleo familiar, avaliando as dificuldades e ressaltando os ganhos alcançados.

    Ao colocar em confronto as experiências dos entrevistados, logo se percebe que as condições de entrada e ascensão das jovens mulheres no mercado de trabalho permanecem marcadas fortemente pela desigualdade. Inicialmente, os entraves à equidade de oportunidades são situados no cotidiano de trabalho. Está presente o fenômeno da segregação horizontal, que se relaciona, mais do que a atributos técnicos ou de escolarização das pessoas, a construções sociais e culturais que atribuem ‘lugares’ e valores diferenciados – e hierarquicamente definidos – ao trabalho de homens e mulheres, negros e brancos. É nesse sentido que podemos recuperar, à guisa de introdução, a reflexão feita por MARUANI (2003:24):


    “... As mulheres são globalmente mais instruídas que os homens, mas continuam ganhando menos, ainda concentradas num pequeno número de profissões feminizadas, mais numerosas no desemprego e no subemprego.”


    Por outro lado, no ambiente familiar aparecem algumas especificidades. As mulheres relatam que, ao introduzir a dedicação ao estudo, devem negociar para chegar ao equilíbrio do uso do tempo. Elas, e só elas, devem conciliar, no âmbito do trabalho e na família diversas práticas: permanecer no emprego, dar continuidade aos compromissos da vida familiar, empreender a atividade (noturna) de estudo e frequentar as aulas universitárias. Os homens, ao introduzir o tempo de estudo, mantêm maior espaço de autonomia para poder dedicar-se quase integralmente a uma dupla jornada externa aos lares: trabalhar e estudar. Em síntese, por essas iniciais distinções, a meta central da releitura dos depoimentos da pesquisa é ressaltar como a iniciativa pessoal de obter o diploma universitário envolve homens e mulheres em relações e práticas de vidas nem sempre homogêneas em seus significados.

    A decisão de voltar a estudar


    A infância de todos/as trabalhadores entrevistados (em 1999 e 2013) é marcada pela residência nas periferias urbanas. O analfabetismo, a pouca escolarização dos pais e a pobreza são, muitas vezes, consequências do processo de exclusão social ou de situações precárias de moradia, de trabalho, de equipamentos públicos, sofridas na primeira fase de vida. Os pais foram trabalhadores em serviços manuais (qualificado e não qualificado), ou serviços não manuais de rotina (mecânico, serralheiro, trabalhador autônomo, auxiliar administrativo). Entre as mães, muitas foram donas-de-casa, e algumas foram merendeiras, costureiras ou secretárias em consultório médico (Tabela n. 1).


    Tabela n. 1: Trabalhadores, educação e família de origem


    Trabalhadores (*)


    Família de origem:

    Curso de Escolhido

    Graduação

    Ano de Nascimento

    Estado Civil 1999 – 2013

    Pais Escolaridade

    Mães Escolaridade

    Adriana Química

    1973

    (Parda) (**)

    Solteira Casada

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Filipe

    Ciências Contábeis

    1966

    (Branco)

    Casado Casado (***)

    Ens.Médio (Completo)

    Ensino Médio (Completo)

    Daniel Arquivologia

    1971

    (Branco)

    Solteiro Casado

    Ens. Fundamental (Incompleto)

    Ens. Fundamental (Incompleto)

    Levi Arquivologia

    1969

    (Branco)

    Casado Casado (***)

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Erica

    Ciências Contábeis

    1965

    (Negra) (**)

    Solteira Solteira

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Ens.Fundamental (Completo)

    Claudia Bibliteconomia

    1972

    (Branca)

    Casada Divorciada

    Ens.Fundamental (Completo)

    Ensino Médio (Completo)

    Marcos História

    1971

    (Pardo) (**)

    Solteiro Casado

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Simone Ciências Sociais

    1967

    (Branca)

    Casada Casada (***)

    Ensino Superior (Completo)

    Ens.Fundamental (Incompleto)


    Carmen

    Ciências Contábeis

    1963

    (Negra) (**)

    Solteira - Divorciada

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Pedro Arquivologia

    1969

    (Pardo) (**)

    Casado –

    Casado (***)

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    Ens.Fundamental (Incompleto)

    (*) Os nomes das pessoas entrevistadas são codinomes. (**) Autodeclaração das pessoas entrevistadas.

    (***) Casado com outra pessoa em 2013.


    Todos os entrevistados alcançaram o ensino médio normalmente na adolescência. Alguns deles tentaram o exame vestibular, mas não conseguiram ingressar nas faculdades. Em geral, esta decepção é superada pela urgência de trabalhar e colaborar com o orçamento familiar. Tudo leva a mantê-los afastados dessa ambição, por muito tempo. Nos relatos, na fase adulta, retorna o desejo de estudar, de frequentar a universidade. Por isso, todos frequentam um curso pré- vestibular especificamente dirigido para trabalhadores. As metas enunciadas são precisas: superar a ameaça de desemprego e usufruir de novas condições de inserção profissional. Por estas aspirações, as pessoas entrevistadas se diferenciam da jovem população estudantil que chega à universidade sem ter interrompido os estudos no nível médio e sem, provavelmente, ter procurado uma relação de emprego fixo, ou não ter assumido a formação de uma nova família. Estamos assim acompanhando percursos não de jovens estudantes, mas de jovens trabalhadores-estudantes.7

    Dito isso, podemos chegar ao core da problematização: reconhecer quando e como aparecem interferências que distanciam as experiências entre homens e mulheres.

    A decisão de retornar a estudar numa estrutura pública universitária advém no contexto econômico do fim dos anos 1990. É quando se verificam profundas alterações organizativas e tecnológicas nos locais de trabalho. Reorganizações, desregulamentação e fusões de empresas, recrudescem as condições de trabalho e enfraquecem o reconhecimento dos direitos sociais. No decorrer de todas as entrevistas aparecem evidentes os vários constrangimentos que, naquela época, motivam reativar a trajetória de estudo. Os sentimentos que estão sempre presentes se referem aos fenômenos provocadores de instabilidade e de insegurança que ameaçam a certeza de um vínculo estável no mercado de trabalho. Os trabalhadores



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    7 Várias são as pesquisas e estudos na área de educação que têm enriquecido a análise da aproximação de trabalhadores adultos à universidade. Entre outros, ROMANELLI, (1978) ZAGO (2006), SOUZA E SILVA (2003) COULON (2008).

    acreditam que ativar um percurso de estudo nas universidades públicas lhes proporcionaria maior conhecimento e poder para, assim, conseguir superar o passado. Isso é possível graças à crença difusa que a obtenção do diploma universitário é uma fonte de promissor sucesso (CUSTODIO, 2017).

    Dispor-se a frequentar a universidade demanda um conjunto de escolhas: superar o exame pré-vestibular, identificar instituições acadêmicas válidas, perceber suas novas vocações e interesses acadêmicos, alocar recursos monetários para comprar livros e materiais didáticos, e, finalmente, aprimorar os laços e a divisão do trabalho8, no próprio ambiente familiar para inserir o tempo de estudo.


    Trabalho e estudo: velhas e novas ocupações


    A leitura das entrevistas, realizadas na segunda fase, em 2013, oferece a possibilidade de repensar as experiências de vida profissional. Com efeito, todos eles concluem o percurso de estudo. Estes relatos não evidenciam as mesmas ameaças, nem os mesmos desafios registrados no ano de 1999, quando iniciaram sua aproximação ao mundo universitário. Em 2013, eles apontam dinâmicas e ambientes renovados. Efetivamente, a conjuntura econômica nacional é diferente. Por um lado, em 2013, o mercado de trabalho aponta a redução dos impactos dos ajustes recessivos. Manifestam-se evidências de crescimento e expansão econômica. Por outro, de posse do diploma universitário, o medo e o risco de perder o emprego são substituídos pela satisfação de ter conseguido progredir, vivenciando novas oportunidades, tendo conseguido até fazer avanços ou mudar a inserção profissional e/ou emprego.

    Ao ouvir jovens mulheres e homens em seus balanços de vida, compartilhando satisfações e desafios, fomos levados a aprofundar, com o recorte de gênero, os impactos dessa larga experiência de sociabilidade no ambiente profissional e no núcleo familiar.


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    8 Para KERGOAT (2000, p. 55) “A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é adaptada historicamente e a cada sociedade”.

    Velhas e novas ocupações entre as mulheres


    As mulheres reconhecem, em seus depoimentos, que as condições e o tratamento no mercado de trabalho diferenciam as pessoas. O seu desejo de independência, principal razão em busca do diploma universitário, nem sempre foi correspondido no ambiente familiar, devido ao costume de organizar de forma rígida a divisão sexual do trabalho. (BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000; KERGOAT, 2000; HIRATA, 2002; CAPPELLIN, 2005).

    Algumas delas apontam que estas dificuldades não só tornam insegura a permanência no mundo do trabalho, mas se agravam, enfraquecendo até a perspectiva de crescimento profissional (TONELETO FRANCO de SOUZA, 1998). É sobretudo o marido quem se opõe a que elas conciliem o exercício profissional com o estudo, já na época de frequentar a universidade. Às vezes parece que suas expectativas de emancipação pelo trabalho estimulam reformular a dinâmica familiar, decorrentes das contínuas resistências culturais na esfera privada. As passagens ocupacionais realizadas pelas jovens mulheres são aqui sistematizadas:


    1. De técnica em química de alimentos em empresa nacional, para técnica sênior em empresa americana, conjuntamente com atividade de professora.

    2. De técnica em contabilidade em empresa de telefonia, para contadora sênior em empresa de telefonia terceirizada.

    3. De vendedora de loja e operadora de telemarketing, para representante de vendas em laboratório farmacêutico, conjuntamente à prática de bibliotecária autônoma.

    4. De recreadora numa escola privada na Maré, para professora em escola pública.

    5. De balconista, para técnica sênior em contabilidade na empresa estatal Infraero.


Movimentar-se no mercado de trabalho, após ter obtido um diploma por uma universidade pública do Rio de Janeiro, é uma meta que se torna realidade efetiva para todas as mulheres entrevistadas. Frequentemente, os ganhos individuais podem contrariar ou se chocar com a hierarquia de poder e a divisão sexual de trabalho nos espaços produtivos e reprodutivos. As relações entre os trabalhadores-estudantes e os familiares nesta fase de transição solicitam conciliar o trabalho, o estudo e os compromissos domésticos. Na fase adulta, a decisão de introduzir o tempo de estudo é enfrentar contínuas negociações a fim de ajustar, modificar, inovar, introduzir novas

atividades e aspirações que superam as exigências preexistentes provindas do ambiente do trabalho. Em cada depoimento há exemplos concretos desse contrasto. Adriana, de balconista tornou-se técnica em química de alimentos, conseguindo um emprego num laboratório. “O trabalho é muito duro, produzir mais é impossível (...). Eu sei de uma coisa: o estudo ampliou minhas possibilidades de emprego e carreira, é o que importa para o meu futuro.” (Curso de Química/UERJ).

Erica, jovem auxiliar de costura numa fábrica de roupas, reorientou a própria vida com o diploma universitário. Hoje é analista de contas, trabalhando numa multinacional. “A fábrica tem, no dia a dia, a marca da hierarquia. Entretanto, o estudo me qualificou para buscar uma ocupação melhor. Sentia que eu podia mais (...). Eu hoje sei que, no futuro, terei poder para construir uma carreira estável. Sinto o poder para realizar meus projetos de vida, pessoal e profissional”. (Curso de Ciências Contábeis/ UFRJ).

Claudia, vendedora de loja e operadora de telemarketing, hoje é representante de vendas de laboratório farmacêutico. Lamenta que a escolha de iniciar um percurso de estudo não recebeu nenhum apoio por parte do marido. “Sofri muitas restrições pelo ciúme e pelo machismo do meu marido” (Curso de Biblioteconomia UNIRIO).

Simone, vendedora em loja de roupas e atendente em locadora de vídeo, é hoje professora de Sociologia e de Geografia. “A realidade ensina que sem diploma a pessoa não se impõe nem no trabalho, nem na sociedade. Sou eu mesma desde sempre, mas o estudo reforça minha autoestima e coragem para me impor ao outro. A crença é que tudo é difícil, porque você é pobre, é mulher, tem família. O estudo é um processo da revolução feminista. O estudo reverte a condição da mulher” (Curso de Ciências Sociais UFRJ).

Carmen, nos anos 1990 enfrentou a ameaça de demissão e teve de aceitar emprego informal por causa das privatizações no setor. “Eu superei o medo da demissão ou do desemprego, pois adquiri conhecimento, formação e diploma. É uma reinvenção do eu, sim. Reflete meu esforço em tempo e energia. Eu me sinto na classe média, graças ao estudo. Eu usei muito a educação, estando hoje por isso num emprego estável, além de ter conseguido a casa própria. O diploma me trouxe qualidade de vida” (Curso de Ciências Contáveis UFRJ).

As trabalhadoras entrevistadas têm associado a posse do diploma superior às expectativas de mudanças, a ganhos econômicos, à ampliação de sua autonomia pessoal. Pelas novas posições ocupacionais alcançadas, constatamos que ocorre a

mobilidade, sem por isso chegar a alcançar níveis significativos na hierarquia profissional.


Velhas e novas ocupações entre os homens


Os homens relatam vários momentos da trajetória ocupacional que os incentivam a procurar o ensino superior. Para eles, a meta é reajustar e enriquecer o compromisso designado de trabalhador-provedor. (OLIVEIRA, 2005; CAPPELLIN, 2005). Esta responsabilidade, que lhe é atribuída, é fonte de difusas e contínuas ameaças pela instabilidade do vínculo de emprego no atual cenário do mercado de trabalho. Esta instabilidade é ainda mais forte para o homem que assume, ainda na juventude, a sobrevivência do núcleo familiar. Nos anos 1990 os entrevistados iniciam sua inserção, logo após frequentar o segundo grau de ensino básico, em âmbitos ocupacionais bastante vulneráveis. São posições que sofrem maior instabilidade pela reorganização interna das empresas. Lembramos que no fim dos anos 1990, no governo Fernando H. Cardoso, através de decretos, leis e medidas provisórias, as regras de contratação de emprego são alteradas. Importantes direitos da legislação trabalhista que possibilitam proteger são cancelados ou fragilizados por novas normas. Emerge uma nova configuração dos vínculos de empregos que aumenta as formas precárias de trabalho (BOURDIEU, 1998; POCHMANN, 2001 e 2012; CARDOSO Jr., 2001). O amplo processo de desregulação, a assim chamada insegurança socioeconômica, atinge a vida dos trabalhadores em sua cotidianidade (STANDING, 2005; CUSTODIO, 2015; CARDOSO e AZAIS, 2019). Os trabalhadores

entrevistados citam diferentes constrangimentos, dentre os quais se destacam: o risco de ser expulso do emprego; a possibilidade de retroceder nas condições de trabalho e/ou nos direitos adquiridos; a impossibilidade de progredir na carreira; a ameaça e o medo de ter de enfrentar um longo período de desemprego.

Eles lembram que as motivações para buscar o acesso à universidade provêm de um contexto de premente solicitação para uma mais alta qualificação profissional, aprimorando e atualizando conhecimentos e saberes. Para eles, são empurrados a introduzir estudo ao trabalho, pelas dinâmicas do mercado concorrencial externas ao núcleo familiar. A distribuição do seu tempo, bem mais coeso, solicita, por outro lado, menores exigências de negociação entre a vida profissional e a vida privada, do que acontece com as mulheres. Aos homens não é atribuída qualquer superposição entre

vida pública e vida privada. O compromisso de ordem doméstica não lhe compete socialmente. As dinâmicas, com menores pressões internas ao núcleo familiar, dizem respeito essencialmente à reorganização de sua vida pessoal. As passagens ocupacionais realizadas são aqui sistematizadas:


  1. De pedreiro autônomo, para professor.

  2. De encadernador, para arquivista chefe num escritório de advocacia.

  3. De office-boy, para arquivista no Arquivo Nacional.

  4. De porteiro, para despachante na Marinha.

  5. De auxiliar de serralheiro, a gerente de vendas.


A preocupação que os homens verbalizam diz respeito mais à esperança do que às novas aquisições obtidas, acentuando que a relativa ascensão na pirâmide profissional permite abandonar a baixa qualificação e as contínuas ameaças do desemprego.

Filipe, após uma longa série de ocupações, como office-boy, almoxarife, comerciário, vigia, peão, pedreiro autônomo, hoje é professor de Matemática, dando aula em escolas privadas. “A caneta recebe mais valor na frente do suor Trata-se

da construção de uma vida melhor, estar por cima” (Curso de Matemática UERJ).

Daniel, após dez anos de office-boy, volta a estudar. “O diploma te credencia para um concurso público.” (Curso de Arquivologia UNIRIO).

Levi, após ter sido soldado do Exército, vivencia uma sucessão de subempregos e uma longa situação de desemprego. Ele é hoje arquivista-chefe num importante escritório de advocacia. “Eu não queria a vida de mecânico, sempre sujo de graxa, recebendo muito pouco (...) o diploma se tornou para mim um passaporte social, porque me credenciou social e profissionalmente (. ) Eu vivi uma inversão de papéis. Eu cozinhava, lavava e arrumava (Curso de Arquivologia UNIRIO).

Marcos, de porteiro e zelador, desde 1994, em um prédio militar (Marinha). Ameaçado pelas políticas de terceirização interna às forças armadas, inicia o percurso de estudo universitário. Hoje é despachante na mesma instituição. “Eu tratei de encontrar um pouco mais de estabilidade” (Curso de História UFRJ).

Pedro, após muitos anos como operário numa serralheria na favela, busca novas oportunidades profissionais. Hoje, como executivo na gerência de equipes de vendedores, ressalta: “Retirei força a partir do sofrimento e sacrifício na serralheria. Eu estudei pela coragem e trabalhei pela necessidade (...). Eu notei que somente o estudo me faria melhorar de posição social. A faculdade me daria uma profissão para

fugir do conformismo. O diploma, assim, veio pelo espírito de resistência e esperança” (Curso de Arquivologia UNIRIO).

Nos depoimentos destes trabalhadores é marcante o valor atribuído à ética do trabalho, transmitido pela família, já desde a infância (CUSTODIO, 2017). Se confrontarmos as trajetórias entre os/as entrevistados/as, percebe-se que para as trabalhadoras há situações


“...de contrastes e de paradoxos, de progressos evidentes e de regressões impertinentes, de movimentos e de ventos contrários cujo resultado ainda se avalia mal. É essa situação eminentemente móvel e instável (...) a cartografia das diferenças de sexo no mercado de trabalho.” (MARUANI, 2003, p.23).


Para os homens, a conexão entre trabalho diurno e estudo noturno é parte do compromisso pessoal e coletivo. Pode-se até afirmar que, após a obtenção do diploma universitário, há maior reconhecimento na mudança de posição ocupacional conseguida. A força da atribuição social de homem provedor poderia sugerir até a maior sensibilidade por parte do ambiente de trabalho que o recompensa, com maior poder aliado ao avanço, profissional e econômico (BILAC,1978; OLIVEIRA, 1990).


Estudo e vida familiar: velhas e novas perspectivas de relações de gênero


Nas duas oportunidades de contato (1999 e 2013), as pessoas entrevistadas têm modificado sua vida pessoal e vivência familiar (Tabela n. 2) Sublinhamos, sem nenhuma pretensão de representar a realidade demográfica da população brasileira, as alterações dos dez núcleos familiares que temos conhecido no decorrer da pesquisa.

Entre os entrevistados, só duas mulheres permanecem no seio da família de origem, sem filhos. Quatro (duas mulheres e dois homens) no decorrer do período de estudo universitário, saem do núcleo de origem para constituir um novo núcleo familiar. E constatamos que entre os núcleos das entrevistadas há a presença de um ou dois filhos, enquanto os entrevistados têm um núcleo familiar mais extenso (dois e três filhos).

Tabela n. 2: Trabalhadores, presença de filhos e mudança do estado civil, 1999 e 2013



Família (Estado civil)

Trabalhadores (Filhos)

1999

Anos intermediários

2013

Adriana (Sem filhos)

(Solteira)

-----

(Casada)

Felipe (3 filhos)

(Casado)

(Divorciado)

(Casado)

Daniel (1 filho)

(Solteiro)

-----

(Casado)

Lévi (3 filhos)

(Casado)

(Divorciado)

(Casado)

Érica (Sem filhos)

(Solteira)

-----

(Solteira)

Marcos (Sem filhos)

(Solteiro)

-----

(Casado)

Claudia (2 filhos)

(Casada)

-----

(Divorciada)

Simone (1 filha)

(Casada)

(Divorciada)

(Casada)

Carmem (1filha)

(Solteira)

(Casada)

(Divorciada)

Pedro (2 filhos)

(Casado)

-----

(Casado)


As dinâmicas no seio destes núcleos familiares são frequentemente enriquecidas por arranjos e mudanças que não excluem contradições e ambiguidades, já que cada pessoa está em contínuo amadurecimento cultural e social. Assim, é valido resgatar as situações que têm demandado novos esforços para conciliar a presença do compromisso (frequência a universidade) juntamente ao tempo dedicado à família e ao emprego extra doméstico.

Todos os entrevistados apontam o quanto as relações interpessoais são marcadas por dinâmicas entre gerações diferentes (entre pais e filhos, entre maridos e esposas). Entretanto, como é abordada a conciliação entre família, trabalho e estudo?

A análise do balanço da provisória experiência de articulação trabalho-estudos, solicita predispor duas leituras: a experiência das mulheres e a experiência dos homens. O ideário cultural que impulsiona os processos de modernização das relações de gênero – enfatizado na literatura sociológica e na difusão das propostas dos movimentos feministas nos anos 1990 – apoia-se muitas vezes no pressuposto de que o Rio de Janeiro, como grande centro urbano, é parte dos territórios mais

férteis, acolhedores, permeáveis às inovações de comportamentos igualitários entre as pessoas (ARAUJO e SCALON, 2005; CAPPELLIN, 2004).

Entre as mulheres entrevistadas as dinâmicas nos núcleos familiares são fontes frequentes de contradições e ambiguidades. Quando frequentam a universidade (fase provisória entre trabalho e estudo) elas ressaltam a tensão de ter que manter ativos seus múltiplos papéis. Reiteram, assim, como o sentimento de insegurança e desconforto acompanha sua perene divisão entre o desejo (avançar em seu preparo profissional) e a responsabilidade (compromissos familiares). Mas nenhuma delas abandona a iniciativa de fazer “isto e aquilo”. (ÁVILA e PORTES, 2012). Alcançar e conquistar a autonomia econômica, em busca de auto realização (BECK, 2003 e 2010), atrita com os clássicos compromissos que a família lhes exige (SINGLY, 2012). As pesquisas realizadas sobre o uso do tempo no Brasil (SOARES e SABOIA,

2007; DEDECCA, 2007) respaldam estes desconfortos. Os dados apontam que, nos núcleos familiares das camadas populares, as mulheres são ainda as maiores responsáveis pelo trabalho não remunerado de afazeres domésticos (SOUZA PASSOS e GUEDES ROCHA, 2016). Isso é particularmente evidente entre as entrevistadas. Em seus arranjos familiares não há nunca a menção de contratação ou de ajuda extra, por parte de outras mulheres, para aliviar a densa rede de compromissos. Alguns exemplos são ilustrativos:


Adriana: “O diploma superior me trouxe um choque de felicidade. A reviravolta se expressou na família de origem. Tornei-me a única com diploma superior. Eles têm muitos filhos e até netos, além de viverem pelo subemprego (...). Eu ainda preservo as amizades da favela, do pré-vestibular e da graduação (...). Eu sinto o desejo de engravidar, porém estou amarrada no trabalho pelo tempo. O marido se empolga e sugere que largue tudo pelo desejo. A realidade é dura e o bem- estar exige dinheiro. Sinto que é preciso reorganizar o tempo e as fases da vida.” (Casada sem filhos)

Erica: “Realizei uma revolução pessoal pelo estudo, sobrevivendo ao stress do trabalho e do estudo. Eu influencio muito um sobrinho (...). Transmito na família um sentido de ascensão social pelo estudo. A família reconhece meu esforço e me respeita pela capacidade de fazer o futuro. Sinto que meu sobrinho me ouve e me admira. Ele me procura sempre para conversar e pensar uma futura profissão.” (Solteira sem filhos).

Claudia: “Atingir a formação superior comportou a coragem frente à repressão e ao machismo vividos no seio da família. Eu sinto que o diploma me trouxe liberdade, porque agora possuo uma profissão, sem estar na tutela de marido. Superei limites do casamento na busca de formação superior. Eu hoje estou bancando o divórcio, apesar das dificuldades, porque ainda não saiu o concurso público para a

Biblioteca Nacional, mas eu consigo ganhar meu dinheiro.” (Divorciada com dois filhos).

Simone: “A família reconhece que superei a submissão no trabalho e em casa. Eu seria, se não resistisse pelo uso do estudo, sempre uma balconista, dependendo muito do marido (...). O diploma me trouxe o emprego formal, o que me deu mais liberdade na vida conjugal.” (Casada após um divórcio, com filha).

Carmen: “(...) O diploma superior nasce pela disciplina de estudo, sendo um êxito pessoal. Reflete meu esforço em tempo e energia. O estudo me fez ter outra consciência na criação da minha família. Eu não tenho a visão dos meus pais (...). Transmito novas visões de mundo, esperando que ela seja uma pessoa mais forte. Eu tive muitos complexos, problemas na autoestima e na autoconfiança pelo fato de ser negra, algo que nos impõe pouco a pouco, sem a gente sentir.” (Divorciada com filha).


Essas perspectivas de futuro indicam que entre as mulheres há a formação de contínuas tensões entre papéis atribuídos socialmente (na esfera privada) e a busca de maior qualificação, estimulada para poder concorrer, em breve, no mercado de trabalho com maior qualificação. Estas dinâmicas são fontes de constrangimentos que tencionam a manutenção da complexa rede da identidade feminina: ser mulher, ser trabalhadora, ser mãe, ser esposa.

Para os homens, a introdução do tempo de estudo concomitante ao tempo dedicado ao trabalho parece promover novas reflexões. Os desafios para seguir frequentando a universidade, nem sempre tencionam ou reduzem os compromissos em sua vida. Para eles, superar as dificuldades tem como meta principal ganhos futuros, que se dirigem à próxima geração, os filhos. Isto imprime uma nova ordem moral: ativar o papel de pai-educador (CUSTODIO, 2015, p.110). Enfim, os depoimentos indicam que os trabalhadores usufruem, com menos constrangimentos, do tempo de estudo e de convivência no interior do ambiente universitário. Eles têm a possibilidade de aprimorar seus gostos e posturas. Afinam e apreciam os ambientes urbanos conseguindo ter acesso à cultura urbana da cidade do Rio de Janeiro (cinema, teatro, exposições de arte, etc.). Por último, almejar o sucesso será, para eles, uma oportunidade a ser transmitida, finalmente, aos filhos e às esposas. Alguns exemplos:


Filipe: “A família recebeu o fruto do meu trabalho. As crianças receberam uma ótima criação. Elas estão fazendo hoje Administração, o menino tem 25 e a garota tem 26 anos. Eu agora sou pai novamente. A vida sempre te surpreende pela própria renovação (Casado após um divórcio, três filhos).

Daniel: “Eu cultivarei na criação do meu filho o diálogo, a conversa e o amor, orientando-o para o futuro. Eu uso o diploma e a autobiografia para mostrar o valor da educação e que a mudança é possível... houve uma revolução mental na família” (Casado com um filho).

Levi: “A família tem de continuar o que eu comecei. Eu exijo dos meus filhos muito estudo. Relaciono estudo e futuro, além de explicar a história da família. Meu pai sempre diz que tem um filho que é mecânico (meu irmão) e outro que é inteligente. Eu, no entanto, sou muito grato pelo apoio que recebi da mãe dos meus filhos. Ela me fez acreditar e persistir num futuro. Temos de trazer mais diplomas para a família” (Casado após divórcio, três filhos).

Marcos: “A família me admira e ao mesmo tempo estranha meu comportamento. Eu me casei e formei uma família própria sem filhos.

.... Eu influenciarei sutilmente a educação do meu sobrinho. Torço para criar o gosto pela leitura. Eu reforço sempre a necessidade do estudo para minha esposa. (...) A família e a esposa reconhecem meus êxitos na vida” (Casado sem filhos).

Pedro: “A minha família estava na luta pela sobrevivência e assim eu não tive oportunidades de estudo. Recebi muitas reclamações da esposa. Eu estava muito ausente de casa e nossa filha sentia muito. O tempo da família ficou mais curto, porém minha esposa se acostumou e reconhece que tudo é para o bem da família. Eu e ela sabemos que é necessário se diferenciar pelo nível de formação. Eu hoje priorizo a educação dos filhos (...). Eu lhes deixo como herança a educação, o que lhes dará ascensão social e respeito social. (...) tornei-me sinceramente a inspiração da família. Eu não aceitaria deixar um filho sem estudo” (Casado com dois filhos).


Em muitos desses depoimentos há a reinterpretação do poder da autoridade paterna. Antes, para muitos, em sua família de origem, a fonte da presença educativa do homem junto aos filhos era manifestada exclusivamente através da ética do trabalho. Hoje, a meta principal é fortalecer uma ética de trabalho qualificado. A posse do título universitário (novo capital cultural) é uma manifestação deste recurso simbólico, que eles oferecem como legado aos filhos. Vivenciar um longo período de aprendizado frequentando o ambiente universitário, influencia modificando o poder de pai tradicional, e favorecendo o compromisso por uma paternidade mais ativa, educadora da nova geração. Inaugura-se uma ruptura da reciprocidade homens- mulheres no meio familiar (SARTI, 2003).

Podemos assim enfatizar que, para os/as entrevistados/as, o bom desempenho, a partir do sucesso em obter o diploma universitário, parece ter repercussão diversificada nas dinâmicas de reprodução social do núcleo familiar. Para as mulheres, emergem mais rapidamente os constrangimentos que aumentam suas responsabilidades (domicilio, família e vida pública no trabalho e na universidade), limitando os ganhos e a riqueza de significados futuros, percebidos como projetos,

mas nem sempre alcançados em sua vida. Para os homens, quando descrevem sua renovação de estilos e a incorporação de gostos cotidianos de classe, percebe-se que o projeto de futuro se realiza, aprimorando o amadurecimento individual de sua identidade. O projeto dos homens se estende, incluindo em sua responsabilização, a maior participação ativa na criação dos filhos. A renovação da identidade dos trabalhadores (entrevistados) é, sem dúvida, um ganho positivo que parece poder ampliar o papel da paternidade, no núcleo familiar.


Algumas considerações finais


A crise que estamos vivenciando desde 2019, pela sua natureza plural (sanitária, política e economia), está acelerando as transformações no mercado de trabalho. Por isso, o passado que acabamos de apresentar pode apresentar muitos elementos de continuidade com a atualidade. As transformações que atingem o mercado de trabalho hoje, bem mais que ontem, fomentam a erosão da estabilidade do emprego, acelerando as possibilidades de exclusão. Para a jovem geração de trabalhadores, que tem sido compelida a abandonar prematuramente os estudos, obter um diploma universitário continua representando um valido exemplo dos investimentos pessoais disponíveis para arrestar e/ou se proteger de ameaças de desemprego.

O interesse implícito neste artigo foi realizar uma releitura das potencialidades do acesso ao ambiente universitário público, na modalidade presencial, assumindo a perspectiva do recorte de gênero. O percurso e o êxito em alcançar o diploma universitário colaboram para aproximar as trajetórias e as práticas entre jovens? Como e quando neste percurso de emancipação pessoal se manifestam as tradicionais assimetrias e diferenciações de gênero na cotidianidade de trabalhadores/as?

O acesso às universidades públicas por parte de “alunos não tradicionais” - alunos maiores de 25 anos, com compromissos familiares e de emprego (ALMEIDA et al, 2012), nem sempre é garantia de vivências e experiências homogêneas entre os estudantes. Originários de ambientes familiares com nenhuma tradição de formação acadêmica superior, são todos compelidos a realizar diferenciadas adaptações no quotidiano para não desistir do objetivo final, o diploma universitário.

Temos apresentado os mais importantes resultados, evidenciando as modalidades em conciliar trabalho, família e estudo dos jovens homens e mulheres.

Todos os/as entrevistados/as, pertencendo à primeira geração de longa escolaridade, compartilham a supervalorização do diploma obtido por universidades públicas no Rio de Janeiro. Este é reconhecido como um passaporte que confere, no nível individual, autoestima e a nível coletivo, cidadania. A valorização cultural da educação superior na mentalidade cultural brasileira é parte do legado dos anos 1950 (PAIVA,1997). Esta continua representando o meio que parece contribuir para superar a exclusão social. O diploma continua sendo valorizado como recurso que abre para novas oportunidades, favorecendo a desejada mobilidade ascendente na rígida estrutura de classe brasileira9. Assim, esta perspectiva segue influenciando, fomentando impactos positivos nas vidas desta geração (homens e mulheres) que abandonou prematuramente os estudos para contribuir à formação do orçamento familiar.

Há quem, de posse do diploma universitário, espera poder mudar e/ou crescer na hierarquia ocupacional, quem espera ter condições de investir na compra da casa própria, ou na posse de automóvel, em aumentar o acesso aos bens e serviços de lazer, para si próprio e para os familiares. A pesquisa aponta percursos de sucesso, isto é, todos tiveram a capacidade de superar os desafios na e fora da universidade. Há modalidades diferenciadas entre homens e mulheres, mas a forte motivação e mobilização para projetos futuros, ampara para que todos enfrentem e superem o desgaste físico, aceitem cargas horárias extensas, mesmo não obtendo ajuda econômica complementar, para matricular-se e frequentar as universidades federais. Finalmente, é no núcleo familiar onde registra-se a maior transformação de valores culturais. Sobretudo entre os jovens homens pais-alunos há abertura para renovar até sua autoridade moral quando desenham e projetam o futuro de sua família. Mudam as atenções dadas aos filhos, abre-se também a possibilidade de proporcionar a reinvenção da vida junto aos cônjuges. Aos ganhos materiais se aliam, assim, ganhos também simbólicos. De uma meta individual, instigada pelo medo do desemprego, de causas econômicas, chega-se a ampliar os horizontes culturais. Podemos afirmar que, no início, incorporar a frequência à universidade foi


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9 Lembramos a importância, para o processo de mobilidade social, do nível educacional. Entre as contribuições em sociologia lembramos o estudo de PEUGNY (2014) que renova a análise da dinâmica geracional da mobilidade social nas últimas décadas.

apresentada (em 1999) como uma modalidade individual de luta. No sucessivo contato (em 2013), os depoimentos apontam para um olhar mais amplo, contribuindo para redefinir o destino do coletivo intergeracional de muitas famílias dos estudantes- trabalhadores. (CUSTODIO, 2015).

As mulheres entrevistadas parecem indicar que os ambientes sociais de procedência não sabem apreciar a iniciativa de retornar a estudar, frequentando uma universidade pública. Introduzir no cotidiano esta nova atividade não as libera da centralidade do conjunto de deveres familiares, que ainda aparece como limitação solicitada. Também nas práticas de trabalho, nos depoimentos, elas denunciam persistentes ambiguidades entre tradição e inovação das relações de gênero. Assim, a experiência das jovens-estudantes distancia-se daquela de seus colegas homens. O contínuo apelo à centralidade da solidariedade e do altruísmo familiar, freando assim as motivações de qualificação (entre as mulheres) marca o confronto com o reconhecimento e a exaltação da atividade profissional (entre os homens). Por isso, continua difícil para elas conseguir incorporar e alimentar as perspectivas de aspirações profissionais. Para elas, é ainda um desafio atingir a autonomia e superar as expectativas que continuam a encaixá-las em posição subordinada no ambiente de trabalho, assim como no núcleo familiar. Assim, sua individualidade se renova mais devagar por ter que confrontar-se e negociar com sentidos tradicionais de sua responsabilidade familiar. Mesmo com estas ambiguidades, tudo indica que entre elas, diminui o peso da norma cultural denominada de “realização vicária”, segundo a qual a mulher buscaria o sucesso pelo êxito de sua contribuição para o “feito de outra pessoa, em geral marido ou filhos” (MARKUS, 1987, p.98).

Lembramos que entrevistamos um grupo de trabalhadores admitidos na fase de massificação das instituições universitárias públicas que oferecem o acesso a um conhecimento profissional de qualidade. Hoje é considerado direito público subjetivo completar o ensino fundamental-obrigatório. Mais alto é o salto de qualidade quando se pertence à primeira geração de longa escolaridade, a universitária. A estratégia de acesso (frequentando cursos pré-vestibulares para trabalhadores), a obtenção do diploma universitário em instituições públicas para estes “alunos novos” é fonte de autoestima. Nesse sentido, a condição objetiva do crescimento de oferta de vagas nas universidades públicas (federais ou estaduais), aliada ao crescimento da demanda de estudo (sobretudo por parte de mulheres e homens trabalhadores), é parte das repercussões da assim chamada massificação do ensino superior. Acompanhamos

a literatura (SGUISSARDI, 2015, ALMEIDA et al. 2014) quando sublinha que não há igualdade de oportunidades ao acesso entre esta população de jovens trabalhadores se comparada aos “alunos tradicionais” que se apresentam na faixa etária esperada e têm no meio familiar um background universitário. Finalmente, podemos perguntar: êxitos individuais podem indicar a existência de repercussões sociais difusas? O grupo entrevistado, “alunos novos”, explicitaria que na sociedade brasileira há iniciativas de "massificação" das instituições públicas federais a nível presencial? Não há dúvidas que este processo se realiza numa encruzilhada entre motivações pessoais e dinâmicas objetivas no mercado de trabalho que fomentam contínuas ameaças de desemprego.

Ė de extrema importância não abandonar ou perder o registro destas iniciativas de abertura ao acesso pelas universidades públicas no Brasil durante as primeiras décadas do século XXI. Nos anos atuais, a centralidade de democratização do saber parece estar ameaçada pelos contínuos programas de contingenciamento. Se isto continuar a acontecer, poderá causar um dano irreparável, apagando os caminhos que, durante duas décadas, contribuíram para remodelar um dos objetivos das Universidades Públicas (Federais e Estaduais): acolher sempre mais jovens alunos de ambos os sexos, dos mais diferentes segmentos da sociedade brasileira.


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