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V.19, nº 39, 2021 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


TEMPO POLÍTICO, NOVO ENSINO MÉDIO E CONHECIMENTO1


Henrique da Silva Lourenço2


Resumo

O texto explora o movimento reformista e o lugar do conhecimento no Novo Ensino Médio. A partir de documentos da Fundação Lemann, ANPEd, CONSED e outros, apresenta inferências derivadas da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977) e do Ciclo de Políticas (BALL e BOWE, 1992). Tais inferências relacionam-se a três categorias: nova Filantropia e o aluno desejado, teor super prescritivo e foco na vida cotidiana do aluno. Os resultados indicam uma instrumentalização do currículo e um esvaziamento de sua dimensão processual, bem como uma hipervalorizarão da prática como elemento curricular.

Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular; Ensino Médio; Currículo; Conhecimento.


TIEMPO POLÍTICO, NUEVA ESCUELA SECUNDARIA Y CONOCIMIENTO


Resumen

El texto explora el movimiento reformista y el lugar del conocimiento en la Nueva Escuela Secundaria. Basado en documentos de la Fundación Lemann, ANPEd, CONSED y otros, presenta inferencias derivadas del Analises de Contenido (BARDIN, 1977) y del Ciclo de Políticas (BALL y BOWE, 1992). Tales inferencias se relacionan con tres categorías: nueva Filantropía y el alumno deseado, contenidos super prescriptivos y atención en la vida diaria del alumno. Los resultados indican una instrumentalización del currículo y un vaciamento de su dimensión procedimental, así como una sobrevaloración de la práctica como elemento curricular.

Palabras-clave: Base Curricular Nacional Común; Escuela Secundaria; Currículo; Conocimiento.


POLITICAL TIME, NEW HIGH SCHOOL AND KNOWLEDGE


Abstract

The text explores the reformist movement and the place of knowledge in the New Secondary School. Based on documents from the Lemann Foundation, ANPEd, CONSED and others, it presentes inferences derived from the Content Analysis (BARDIN, 1977) and the Policy Cycle (BALL and BOWE, 1992). Such inferences are related to three categories: new philanthropy and the desired student, superprescriptive contente e focus on the student`s daily life. The results indicate na instrumentalization of the curriculum and an emptying of it´s procedural dimension, as well as na overvaluation of pratice as a curricular element.

Keywords: Common Curricular National Base; High school; Curriculum; Knowledge.


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1 Artigo recebido em 20/01/2021. Primeira avaliação em 20/02/2021. Segunda avaliação 20/03/2021. Aprovado em 08/04/2021. Publicado em 27/05/2021.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i39.169269-1.

2 Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMPINAS) e pesquisador do Grupo de Avaliação, Políticas e Sistemas Educacionais (GRAPSE). Também integra o grupo Políticas Públicas, Gestão e Formação de Professores – vinculado a Universidade Paulista (UNIP). Estuda avaliação, gestão, políticas curriculares e Ensino Médio.

E-mail: lourenco.hs@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1799-792X. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6272727812264853.

Introdução


A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) regula a educação nacional baseando-se em direitos fundamentais definidos na Constituição Federal de 1988. O Ensino Médio, de acordo com a LDB, corresponde a etapa final da Educação Básica, nos termos do artigo 35, caput, redação original e vigente. Com a Medida Provisória (MP) nº 746 de 2016, convertida na Lei nº 13.415 de 2017, instaurou-se intenso movimento reformista que deu origem ao Novo Ensino Médio. Alguns dispositivos foram acrescidos à LDB e outros tiveram sua redação alterada. É o caso de previsões acerca da carga horária mínima, projeto de vida e componentes curriculares diferenciados, representados por itinerários formativos.

Este Novo Ensino Médio está intrinsicamente relacionado a Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCCEM), aprovada e homologada apenas no final de 2018. Por isso mesmo, a Lei nº 13.415 estipulou que a BNCCEM seria responsável por definir direitos e aprendizagens, estabelecendo quatro áreas do conhecimento – é o que diz a redação do artigo 35-A da LDB. Trata-se de arranjos curriculares, itinerários ou percursos formativos, destacados no artigo 36 da LDB e incisos, organizados de acordo com o contexto local e as possibilidades dos sistemas de ensino: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional.

Assim, os sistemas de ensino podem organizar áreas e itinerários de acordo com seus próprios critérios, integrar áreas ou itinerários, permitir que alunos cursem mais de uma área de formação e, ainda, firmar parcerias com instituições de Educação à Distância (EaD), segundo o artigo 36 da LDB e parágrafos. Às escolas, todavia, cabe orientar alunos sobre suas escolhas curriculares no âmbito do projeto de vida.

No bojo do movimento reformista do Ensino Médio, a formação dos jovens alunos adquire acentuado caráter individualizante. A individualização é aqui compreendida como elemento supostamente livre da subjetividade “estatal introdirigida”, que redefine a escola (SIBILA, 2012, p. 94). Essa concepção, se consubstancia por meio do projeto de vida e de competências socioemocionais viabilizadas pela Base. Dessa forma, intensifica-se o lugar de cada um em meio a

“ética empresarial”, especialmente no que se refere à empregabilidade, construção da carreira e de rotas de inserção nas dinâmicas de consumo.

Mas afinal, como será o Novo Ensino Médio? O que de fato ocorrerá nas escolas e salas de aula? Talvez, sem correr muito risco de errar, essas são as perguntas mais frequentes feitas por pais, mães, avós, avôs, alunos, alunas, diretores, coordenadores e professores.

As questões são muitas e podem encontrar respostas em diversos trabalhos como: a-) Ferretti (2018), que problematiza a noção de qualidade do Novo Ensino Médio; b-) Krawczyk e Ferretti (2017), que analisam os impactos das mudanças nas conquistas do Ensino Médio nas últimas décadas; c-) Silva (2018), que associa o Novo Ensino Médio e a BNCC ao “empoeirado” discurso das competências; d-) Costa e da Silva (2019), que apontam para a fragilização do direito à educação, por força do binômio Novo Ensino Médio-BNCC; e-) Kuenzer (2017), que analisa o Novo Ensino Médio à luz do regime de acumulação flexível; f-) Silva (2015), que analisa as políticas para o Ensino Médio e a iminência da BNCC, apresentando pressupostos teóricos para se pensar em base comum e conteúdos mínimos; g-) Quadros (2020), que ajuda compreender a influência de empresários na política educacional, especialmente nas atuais reformas.

Este trabalho, contudo, opta por analisar as reformas em curso para, então, problematizar o lugar do conhecimento na BNCCEM e, consequentemente no Novo Ensino Médio. Para tanto, adota a concepção de conhecimento poderoso (YOUNG, 2011), bem como a perspectiva do currículo como processo e práxis (SACRISTÁN, 2000; 2012). De modo incidental, se apoia em autores que estudam Ensino Médio e Educação e Trabalho (FERRETI, 2018; FERRETI e SILVA, 2017; SILVA, 2018; SILVA, 2019; LEÃO, 2017; AGUIAR, 2018; MOTTA e FRIGOTTO, 2017; KUENZER,

2017; KRAWCZYK, 2014).

Neste sentido, com base em categorias de análise extraídas de documentos referentes ao processo de definição da BNCCEM, apresentam-se inferências provenientes de Análise de Conteúdo (BARDIN, 1997). Tais inferências foram elaboradas a partir de documentos coletados em pesquisa de Iniciação Científica (IC)3. A documentação foi obtida em sítios eletrônicos de diversas instâncias de


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3 Pesquisa desenvolvida no Curso de Pedagogia da Universidade Paulista (UNIP), sob orientação do autor do presente artigo. Os dados foram parcialmente coletados pela orientanda, Amanda Barsottini da Rocha, e analisados posteriormente pelo orientador. Trata-se de análises derivadas do contato com

atuação educacional, inseridas no Contexto de Influência e de Produção de Texto, no âmbito do Ciclo de Políticas estipulado por Stephan J. Ball e Richard Bowe (1992).

Especificamente, tais instâncias educacionais correspondem ao: I. Conselho Nacional de Educação (CNE); II. Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED); III. União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME); VI. Fundação Lemann; V. Instituto Ayrton Senna; VI. Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd); e VII. Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae).


O que está acontecendo com o Ensino Médio?


Nos últimos quatro anos, em nível nacional, há um intenso processo de reformas no Ensino Médio, estrutural e curricular, que afeta sistemas de ensino subnacionais. São reformas arrogantes, como mencionou Süssekind (2018), adotando as concepções de Boaventura Souza Santos. Tais reformas são vendidas como modernizantes e essenciais para tornar a etapa mais atraente, alinhando-a aos interesses dos alunos por meio de um currículo flexível (FERRETTI, 2018).

No limite, adotam a flexibilidade como elemento fundamental relacionado a mecanismos de customização e empregabilidade que permitem a composição de arranjos formativos (SILVA, 2019; SILVA 2017). Para alterar o padrão formativo e imprimir forte aspecto flexível, a BNCC é entendida como o coração das reformas do Ensino Médio, representando um modelo de organização curricular diretamente relacionado à melhoria de indicadores de qualidade e de dados relativos ao fluxo escolar, principalmente em relação à reprovação-evasão.

No entanto, a BNCC sozinha não dá conta de tantas frentes. Segundo Ferretti (2018), apostar unicamente em uma nova organização curricular é um erro perigoso, que esconde objetivos paralelos associados a interesses econômicos e transnacionais. A razão é simples: o currículo e sua organização não resolvem os problemas reais enfrentados no cotidiano, principalmente porque não dão conta de aspectos como a infraestrutura das escolas e ausência de plano de carreira para professores com melhor remuneração e fixação em uma única escola. Eles também


a Professora Dra. Cláudia Valentina Assumpção Galian (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP) e da participação no III Seminário Nacional Sobre a BNCC: uma outra base é possível, sediado na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

não consideram a realidade dos jovens alunos que abandonam a escola para trabalhar e auxiliar a família. Portanto, os desafios do Ensino Médio não se resolvem com arranjos e políticas curriculares, pois são também provenientes da realidade social, econômica e política (KRAWCZYK, 2011).

É preciso, nesse contexto, um olhar histórico sobre a etapa. Convém compreender que não houve ao longo do tempo um processo contínuo de democratização do acesso, garantidor da permanência dos alunos (KRAWCZYK, 2003; KRAWCZYK, 2009; KRAWCZYK, 2011). O baixo número de matrículas e a evasão marcam a história do Ensino Médio. Na prática, foi a última etapa da Educação Básica a ser acessada por brasileiros que, em décadas passadas, sequer chegavam a cursá-la. Contudo, é importante considerar que o Brasil avançou. Hoje em dia, 91,3% dos jovens com idade de 15 a 17 anos estão no Ensino Médio, segundo dados do INEP (2018)4, embora restem, no âmbito regional e local, muitos desafios à universalização-permanência dos alunos e a efetivação da meta 3 do Plano Nacional de Educação (PNE) – Lei Nº 13.004 de 2014.

Contraditoriamente aos fatos, na formação dos cursos de Pedagogia em universidades públicas e privadas, destinam-se ainda poucas energias ao estudo da etapa. As razões dessa desvalorização podem ter explicação no próprio campo de produção do conhecimento. Para se ter uma ideia dessa fratura, lembramos um dos principais eventos científicos da educação nacional, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisas Educacionais (ANPEd), com mais de quatro décadas de tradição, em que não há um grupo específico dedicado ao Ensino Médio. As discussões acerca da etapa, alocadas incialmente no Grupo de Trabalho 1 (GT1), com o tempo, começaram a ser absorvidas pelo Grupo de Trabalho 9 (GT9) - “Trabalho e Educação”. Até os dias de hoje, os GTs da ANPEd iniciam-se pelo de número 2 e não há um grupo destinado especificamente à etapa.

Apesar das contradições apontadas, o interesse pelo Ensino Médio vem aumentando com o avanço do processo reformista. Em movimento recente, sociedade civil, movimentos sociais e pesquisadores estão retomando discussões prévias e tensionando os paradigmas do campo de estudo. Esse fato nos recoloca diante de


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4 Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação – 2018. – Brasília, DF: Inep, 2018. 460 p.: il. ISBN 978-85-7863-061-4 (impresso). – ISBN 978-85-7863-062-1 (on-line) 1. Educação - Brasil 2. Plano Nacional de Educação. I. Título. CDU 37(81).

importantes reflexões a respeito do Ensino Médio, principalmente acerca de sua dualidade histórica, elemento considerado por Krawczyk (2009; 2011; 2014): voltar-se a uma formação propedêutica ou a uma formação para o trabalho?

Por isso mesmo, definir políticas públicas para o Ensino Médio “não é tarefa fácil” (KRAWCZYK, 2014, p. 23). Ao contrário do que se poderia pensar, com a aprovação do Novo Ensino Médio e da BNCCEM, essa discussão não foi resolvida, mas suprimida e desvalorizada. O clima de urgência reformista atropelou as discussões como apontam os autores Motta e Frigotto (2017) e Ferretti e Silva (2017), destacando que o processo não congregou ampla discussão dos grupos interessados e possuidores de visões divergentes. Semelhantemente, Aguiar (2018) dá luz ao caráter autoritário na condução da reforma do Ensino Médio via MP capitaneada pelo Governo Michel Temer.

No entanto, a urgência reformista não pode ser tomada como fenômeno unicamente atrelado à transição de governo Dilma Rousseff para Michel Temer. De modo geral, é fundamental considerar que os líderes do executivo vem assumindo funções do legislativo, no Brasil e no mundo. O desequilíbrio na premissa constitucional da divisão dos poderes é evidenciado por Giorgio Agamben (2004), que descreve as ações excepcionais do executivo ao suspender a ordem jurídica e os mecanismos de controle do poder. Tais ações de exceção viraram regra (medidas provisórias, decretos e outros), e se manifestam como paradigma político de governo destinadas a suprimir o tempo das discussões e a representação democrática do povo.

Especificamente, em paralelo a essa perigosa tendência legislativa e totalitária do executivo, gesta-se há muito tempo um crescente sentimento de crise relativo à etapa, associado a um clima de urgência reformista. Isso significa que ainda antes do atual movimento de reforma, havia um anseio imperativo de mudança a qualquer custo. Esse anseio é perceptível no trabalho de Krawczyk (2014) que trata da ideia de crise associada ao Ensino Médio. Também é perceptível no trabalho de Silva (2015) que destaca a mobilização em torno de uma base comum nacional para Ensino Médio, influenciada pela Meta 7 e estratégia 3.2 do PNE.

Fato é que esse sentimento de urgência e essa tendência legislativa do executivo, promoveram a supremacia do tempo político em detrimento do tempo necessário – no sentido dado por Krawczyk (2014). O tempo necessário envolve

debates e a construção de consensos para superar dualidades e definir identidades. Por outro lado, o tempo político é resultante de espaços e possibilidades de atuação política, no âmbito da disputa por interesses e pela consolidação de agendas de governo. Nesse particular, a controversa transição Dilma-Temer possibilitou o avanço do tempo político. Agendas impositivas suprimiram o tempo necessário, emergiram “soluções rápidas e até mágicas” no âmbito de uma “hiperatividade legal” (KRAWCZYK, 2014, p. 22).

Suprimindo-se o tempo necessário, a crise no Ensino Médio permanece e se intensifica. Grupos opostos entram em disputa sem levar em conta as premissas históricas, na tentativa de fazer prevalecer interesses (discursos). O que de fato está acontecendo com o Ensino Médio é uma ação política planejada e corresponde a uma imposição de discursos, aproveitando-se do tempo político delirante.


As vozes na escuridão


O tempo político (re)produziu vozes que definiram os rumos do Novo Ensino Médio, não sendo elas as vozes necessárias no tempo, as que buscam consensos e saberes. São vozes oriundas do campo político, alinhadas às ações de exceção e alheias à produção histórica de referenciais de estudo e diálogo, que acabaram por alimentar o texto curricular da BNCC. Agora, oportunamente, assediam sistemas de ensino, escolas e salas de aula.

Anos antes da intensificação do movimento reformista no Ensino Médio, em 2014, essas vozes também eram ouvidas. Era possível, desde aquela época, identificar os donos das vozes, aqueles que gritavam mais alto evocando mudanças: os institutos e fundações educacionais. Krawczyk (2014) se atentou a essas vozes e destacou a atuação do setor empresarial no âmbito das secretarias estaduais de educação, por meio de fundações e institutos como Lemann e Ayrton Senna. Tais instituições, atualmente denominadas de nova filantropia (AVELAR e BALL, 2017) ou filantropia capitalista (ADRIÃO, 2017), buscam definir políticas educacionais com o apoio do Estado. Atuam, assim, em conjunto com governos ligados às demandas empresariais, por meio de projetos que alimentam experiências supostamente “viáveis para reprodução em larga escala [...], passíveis de se tornarem políticas públicas” (KRAWCZYK, 2014, p. 25). Despertam, na contemporaneidade, elevado interesse

acadêmico na medida em que estão interessadas em promover e influenciar as políticas do setor público (AGUIAR, 2018, ADRIÃO, 2017, AVELAR e BALL, 2017; BALL, 2014; FREITAS, 2014).

O Novo Ensino Médio é fruto desse trabalho de articulação e participação política da nova filantropia. As vozes presentes no texto da BNCC são as mesmas observadas em 2014, exemplificando a atuação linear e constante por parte de tais entidades. Dessa maneira, é possível perceber que o atual período reformista não emergiu com a fratura do Estado Democrático de Direito, no controverso processo de impeachment de 2016, mas ganhou corpo e se intensificou, aproveitando-se do tempo político instaurado.

Para Ferretti e Silva (2017), a reforma do Ensino Médio por MP evidenciou a retirada da sociedade civil do debate reformista. Com a supremacia do tempo político e a retirada da sociedade civil das discussões, grupos de matriz filantrópica interessados na reforma foram empoderados. Para auxiliar na compreensão sobre a urgência reformista e o protagonismo de grupos ligados ao impeachment, os autores partem dos conceitos de Estado ampliado e de intelectual orgânico de Antonio Gramsci. Constatam, desse modo, que a agilidade imposta e a liderança de grupos associados à troca de poder no executivo, suprimiram discussões naturalmente pertinentes aos movimentos sociais e às comunidades de pesquisa em Ensino Médio e Educação e Trabalho, restando manifesta a responsabilidade do governo em apressar e emparelhar a reforma, favorecendo a adesão de pessoas e órgãos privados, atendendo interesses específicos.

Tais interesses e vozes podem ser sentidos adotando-se a abordagem do Ciclo de Políticas (BALL e BOWE, 1992), que se mostra relevante e possibilita compreender as disputas de poder em blocos de participação-influência na elaboração da BNCCEM, determinando a produção do texto e a atuação de cada instância ou grupo. Admite-se aí a observação da variedade de intenções e disputas que influenciam o processo de formação do discurso e a interpretação ativa do cotidiano dos profissionais, baseando-se em contextos para caracterização do processo político (MAINARDES, 2006). Revela-se ao pesquisador, a natureza complexa e controversa das políticas, enfatizando relações macropolíticas (governos, instâncias educacionais, legisladores) e micropolíticas (atores das redes e instituições educacionais).

Dois contextos destacam-se: Contexto de Influência e Contexto de Produção de Texto. O Contexto de Influência refere-se ao processo de construção de discursos, a partir de grupos interessados em influenciar e definir as finalidades sociais da educação e o que significa ser educado (MAINARDES, 2006). Por outro lado, o Contexto de Produção de Texto está condicionado ao Contexto de Influência, e envolve a elaboração do discurso que irá representar a política em textos e pronunciamentos legais-oficiais (MAINARDES, 2006). Tais textos são produtos de seu tempo e local de produção, resultantes de disputas e acordos determinados nos grupos que atuaram em sua produção.

Deste modo, amplia-se a capacidade de percepção da disputa político-cultural (APPLE, 2011; MOREIRA e SILVA, 2011), tendo em vista que a abordagem do Ciclo de Políticas ajuda a compreender o projeto de cultura comum que pautou a base dos currículos. Por ser um campo de disputas da sociedade, o currículo não está alheio às estratégias de governo e as estratégias de seleção cultural construídas em conjunto com grupos interessados, na medida em que produz sentidos em uma relação intrínseca entre saber e poder (MOREIRA e SILVA, 2011). Para Jean-Claude Forquin (1993, p. 10), “o pensamento pedagógico contemporâneo não pode se esquivar de uma reflexão sobre a questão da cultura e dos elementos culturais dos diferentes tipos de escolhas educativas”, ainda que o tema esteja envolto por tensões semânticas relativas ao emprego da palavra cultura.

Neste trabalho, os Contextos de Influência e de Produção do Texto foram observados a partir do processo de elaboração e definição da BNCCEM, documento curricular que viabiliza o Novo Ensino Médio. Os dados documentais coletados e analisados referem-se a três instâncias de atuação educacional e expressam a representação, a performance e a atuação de cada um deles, conforme tabela abaixo:


Tabela 1 – Atuação das instâncias educacionais no processo de definição da BNCC


I. CNE, CONSED e UNDIME

Representação: Instâncias Educacionais que favorecem o papel do pacto federativo e potencializam a implementação de políticas públicas nacionais.

Performance: Alinharam-se ao Executivo Federal e sua sanha legislativa. Promoveram a escrita do documento com ação privilegiada do CNE – seja para vetar, seja para apoiar discursos.

Atuação na BNCC: Produção do texto;

II. Fundação Lemann e Instituto Ayrton Senna


Representação: Grupos do capitalismo filantrópico ligados a interesses público-privados, a formação de novos quadros profissionais flexíveis e a privatização na educação.

Performance: Assumiram posição privilegiada perante o Executivo Federal – não demonstram incomodo com o processo de impeachment e com a atuação legislativa de exceção do governo.

Atuação na BNCC: Produção do discurso que subsidiou o texto;

III. ANPAE e ANPEd

Representação: Comunidades tradicionais de pesquisa em educação com debates em variadas áreas.

Performance: Associaram-se à defesa da profissão docente e do direito de aprender, com posição marcadamente crítica às propostas da BNCC e do Novo Ensino Médio – destacam a supressão do diálogo plural e democrático.

Atuação na BNCC: Não conseguiram influenciar o discurso e o texto.

Fonte: próprio autor.


Este artigo, todavia, aprofunda unicamente a participação da nova filantropia. A atuação das outras instâncias educacionais será exemplificada em trabalhos futuros.


Categorias de análise: expressão de vozes


Os documentos coletados nas instâncias educacionais foram obtidos na internet por meio do Google. Ao todo, 40 documentos foram coletados nos sítios eletrônicos das instâncias educacionais observadas (FUNDAÇÃO LEMANN, 2018a; FUNDAÇÃO LEMANN, 2018b; CONSED, 2018; ANPEd, 2018; e outros). Trata-se de

material referente ao processo de definição e homologação da BNCCEM.

Tais documentos, além de expressarem a atuação das instâncias educacionais nos Contextos de Influência e Produção do Texto da BNCCEM, possibilitam identificar três (3) grandes mensagens: Nova filantropia e o aluno que queremos; Teor super prescritivo; e Foco na vida cotidiana do aluno. Trata-se de categorias que permitem problematizar o lugar do conhecimento na BNCCEM e, consequentemente no Novo Ensino Médio. Foram, todavia, elaboradas para sistematizar o sentido das comunicações analisadas, possibilitando a produção de inferências ou deduções com base na presença de índices ou indicadores (temas, palavras, personagens etc.). Por isso, representam elementos do texto que merecem ser agrupados, por permitirem a “fragmentação da documentação” (BARDIN, 1977, p. 36).

É possível pensar nas categorias como “espécies de gavetas” (BARDIN, 1977,

p. 37) que ajudam a classificar elementos, dando significado às mensagens e

permitindo a sistematização objetiva dos conteúdos comunicacionais. Como se vê, não se resumem a mera descrição dos conteúdos, pois estão diretamente ligadas à confecção de inferências ou deduções – preponderantes neste tipo de análise. Tais inferências surgem após o tratamento dos dados via procedimentos objetivos e sistemáticos e permitem deduzir de maneira razoavelmente lógica conhecimentos sobre o meio e emissor da mensagem.

Neste texto, as categorias apresentadas derivam da Análise de Conteúdo. O objetivo deste tipo de investigação, realizada em documentos, é entender o conjunto de significações voluntariamente codificadas pelo emissor. Sua principal contribuição é evitar “os perigos de uma interpretação espontânea” (BARDIN, 1977, p. 28). Abaixo, em destaque, apresentam-se as categorias adotadas e respectivas inferências:


  1. Nova Filantropia e o aluno desejado:

    Nas últimas décadas, no âmbito das emergentes relações entre Estado, governo, economia e sociedade civil, destaca-se um novo grupo de influência sob as políticas educacionais, denominado nova filantropia ou redes de governança (AVELAR e BALL, 2017). Trata-se de redes com múltiplos interesses, que vão desde a realização de doações-investimentos, passando pela promoção de uma cultura performática, chegando ao ponto de influenciar a política e a utilização dos recursos públicos.

    A nova filantropia atua no âmbito das políticas públicas, influenciando diretamente no provimento ao direito a educação. Atuando politicamente, busca promover discursos, congregar mudanças estruturais e alterar o padrão de influência exercido na educação. No limite, viabiliza formas de adequação e de parcerias público-privadas, pautando-se em um novo arranjo de base filantrópica.

    Para Adrião (2017), tais instâncias de atuação na educação estão ancoradas em grandes grupos detentores do capital. Conforme descreve Ball (2014), esses grupos e atores observam na política educacional oportunidades de negócios com o setor público. Deste modo, a educação pública passa a ser entendida como uma grande oportunidade de negócios, palco de atuação de diversas corporações de capital privado vinculados ao que se denominou de edu-business.

    Neste particular, há uma série de interconexões que envolvem políticas e negócios, ideologia e prática neoliberal, fluxo de ideias e oportunidades (BALL, 2014). Essas interconexões ou redes permitem visualizar uma interação prática entre um

    padrão de neoliberalismo, que critica a educação do setor público (roll-back), e um padrão de neoliberalismo que observa oportunidades emergentes de estabelecer negócios nos serviços públicos (roll-out). Correspondem a estruturas alternativas que estão observando gulosamente o setor público. São denominadas de “Estado Sombra” (WOLCH, 1990, apud BALL, 2014) e se manifestam via investidores e empresários educacionais que assumem papéis, no passado, limitados ao Estado e ao setor público. Deste modo, é preciso um olhar crítico levando em consideração interesses e futuras práticas que emergiram por parte de grupos filantrópicos, representantes do empresariado (FERRETTI, 2018).

    Tais grupos, atentos a reconfiguração do capitalismo e as pressões impostas ao perfil do trabalhador, defendem pautas relacionadas ao empreendedorismo, empregabilidade, individualização do percurso formativo e protagonismo juvenil. Silva (2019), em texto extremamente oportuno, enfatiza a empregabilidade como princípio curricular no Ensino Médio. Para o autor, citando Pierre Dardot e Christian Laval (2016), há uma “exigência de competitividade” como princípio político das mais variadas reformas curriculares. Isto porque existem formas de “investimento econômico sobre os indivíduos, em geral, e sobre as políticas educativas, em particular, engendrando novas técnicas de regulação (e auto regulação) que promovem a competitividade” (SILVA, 2019, p. 434).

    Segundo Kuenzer (2017), pretende-se atender as demandas do setor produtivo, formando profissionais flexíveis às necessidades das empresas. O foco flexível da formação enfraquece a dimensão intelectual, pois atende ao desenvolvimento de atividades práticas, por força de qualificações rápidas que deem suporte as transformações do mercado de trabalho, assegurando a produtividade.

    Deste modo, a formação do Novo Ensino Médio tem por base qualificações “desiguais e diferenciadas”, voltadas ao trabalho em grupo e abertas às formas de trabalho precário, baseado em metas (KEUNZER, 2017, p. 341). Aglutinam-se, portanto, no processo de formação em nível médio, interesses relacionados ao sucesso de empresas e suas estratégias de produção flexível. Dos alunos, espera-se esforço e capacidade de adaptação, atitudes e valores que recebem destaque, independente das condições de trabalho que serão submetidos no futuro, precárias ou não (KUENZER, 2017).

    Estes elementos retiram a dimensão reflexiva da formação e dão uma dimensão prática ao conhecimento. Direcionam a escolarização para empregabilidade e desenvolvimento aligeirado de mão de obra, sem qualquer qualificação ou especialização que seja de fato direcionada a realidade do mercado de trabalho.

    O grande desafio da BNCCEM se revela: a inserção precária e prematura dos jovens na dinâmica do aprender fazendo, na dinâmica cada vez mais precária do mercado de trabalho. Entram em cena as habilidades e competências destinadas a “trabalhar” a maneira de pensar, agir e se direcionar, garantindo que as ordens do mercado serão seguidas e jamais questionadas. A conquista do primeiro emprego, idealizada pelo projeto de vida, torna-se uma meta a ser alcançada, dando-se destaque ao empreendedorismo e a competitividade como principais habilidades requeridas (SILVA, 2019 p. 435).

    Os projetos de vida são aqui muito importantes, pois ligam-se à proliferação de “surtos individualizatóriosnas políticas curriculares (SILVA, 2019), ajudando a promover uma formação focada no indivíduo para adequá-lo à experiência produtiva de mercado e de consumo. Essa individualização crescente alinha-se também à mudança na própria concepção de infância e, por extensão, de juventudes. Segundo Cristina Corea (2000), lida em Paula Sibilia (2012), tais etapas da vida não são entendidas como apostas estatais para o futuro, na medida em que a desresponsabilização contemporânea do Estado impõe o esforço individual como meta transcendental para o sucesso escolar, inviabilizando projetos coletivos de formação – verdadeiro salve-se quem puder que afeta a função social da instituição escolar e reforça o protagonismo mercantil-individualizante.

    Esse padrão formativo se enquadra na perspectiva da instrumentalização do currículo, apresentada por Young (2011). Isso significa que o currículo tem se adequado às metas econômicas, políticas e sociais, para servir de instrumento garantidor de finalidades alheias à intelectualização e promoção do conhecimento. No caso particular, a organização curricular acaba por reforçar a ausência do Estado como condutor de vidas, via escolarização, vinculando qualquer promessa de futuro unicamente ao indivíduo e ao mercado.

    Apesar de o conhecimento ser inquestionável no âmbito curricular, as políticas curriculares contemporâneas marginalizam essa questão, tornando a função social da escola, que deveria ligar-se ao conhecimento e à intelectualização dos alunos,

    esvaziada de sentido. O currículo passa a servir de alavanca para objetivos alheios à escolarização como melhoria da economia, ou ainda, motivação emocional dos alunos. Para Galian (2016, p. 1005), os conteúdos selecionados para serem ensinados, no âmbito da organização disciplinar dos currículos, são cada vez mais contaminados por uma dimensão instrumental em reforço “a aplicabilidade imediata do conhecimento”, que limita “a compreensão de mundo àquilo que se mostra necessário para aceitar a ordem social vigente”, para então acatar o que “está dado”. No entanto, como adverte Young (2011), quando o currículo se desvia da intelectualização, instrumentalizando-se para focar e resolver problemas emocionais, sociais e econômicos, a probabilidade é que a escola altere substancialmente sua função social e que tais problemas não sejam resolvidos, pois a origem deles situa-se

    fora das escolas e demanda, oportunamente, outro tipo de ação política.


  2. Teor super prescritivo:

    Um currículo instrumentalizado, com foco na formação de trabalhadores flexíveis e alinhado à retomada da economia, precisa de um super texto prescritivo – afinal, afasta-se dos saberes especializados para se aproximar de habilidades e competências que interessam ao mercado. Tal formatação curricular precisa, portanto, de um texto oficial altamente impositivo que subverta a dinâmica da prescrição de conteúdos mínimos e comuns. Para isso, foca em habilidades ligadas ao saber fazer, competências socioemocionais, bem como, atribui importância às competências cognitivas de um universo limitadíssimo de disciplinas como português, matemática e língua estrangeira, verificáveis via sistemas de avaliação de desempenho.

    Isto quer dizer que o trabalho docente se volta à promoção de habilidades cotidianas, que o aluno deve adquirir para alcançar determinadas competências. Mas, também significa um currículo orientador da atuação político-pedagógica das escolas, tensionando a autonomia das instituições no âmbito da gestão democrática e da avaliação institucional – colocando contra a parede a LDB e seu artigo 15 e incisos. O cotidiano da escola, dessa forma, se vê regulado por competências, atitudes e valores dissociados da realidade, do projeto político-pedagógico, dos fatores extraescolares e do conhecimento especializado.

    O currículo, entendido como proposta processual, descentralizada e sujeita a interpretação da prática (SACRISTÁN, 2012), é colocado xeque. Valoriza-se o

    currículo oficial e suas prescrições, supondo que ele tenha mais força que o conjunto de interações cotidianas vividas pelos sujeitos. No limite, opera-se um ataque à autonomia dos indivíduos e não sua promoção. Ataca-se, inevitavelmente, também o docente em sala de aula e o coletivo da escola no âmbito institucional.

    Este tipo de currículo altamente prescritivo, que vai além de estabelecer conteúdos mínimos, está particularmente associado a períodos autoritários, como destacou José G. Sacristán (2012). Na Espanha, segundo o autor, períodos autoritários estão relacionados ao aumento excessivo da prescrição curricular, justamente para fazer valer os objetivos hegemônicos da política e do tempo político

    – eliminação da diferença e da oposição. Em sociedades democráticas e heterogêneas como a nossa, é preciso atribuir autonomia e processualidade ao currículo, principalmente no âmbito da atuação dos professores.

    Entretanto, autonomia curricular não significa ausência de regulação. Não significa ausência de bases mínimas – é necessário evitar tal racionalidade dicotômica. No arcabouço jurídico nacional, por exemplo, certos dispositivos encontrados na LDB, PNE e Constituição Federal, referem-se a expressões como base comum curricular e conteúdos mínimos. Admitem ou sugerem, tais dispositivos, prescrição curricular mínima e básica. Essa prescrição moderada serve para contemplar a dimensão da equidade e assegurar possibilidade mínima de os alunos acessarem conteúdos prescritos previamente.

    O que parece excessivo, todavia, corresponde ao senso de controle e monitoramento da vida social manifesto no currículo. Isto se dá por meio de duas frentes: 1-) Um controle do trabalho da equipe escolar, que direciona o cotidiano de ensino e gestão, e 2-) um controle da formação, promovendo competências cognitivas e emocionais nos indivíduos. Na BNCCEM, a formação dos jovens alunos tem acentuado enfoque em competências emocionais, e representa uma escola do acolhimento e adaptação. Essas competências emocionais concorrem, em padrão de importância, com as competências cognitivas, tendo em vista que os indivíduos devem ter acesso não “apenas às competências cognitivas, mas também as emocionais” (FERRETTI, 2018, p. 34).

    Outro aspecto curricular valorizado e vinculado à prescrição é a avaliação – em outras palavras, a dimensão do currículo avaliado e os sistemas de avaliação de redes reafirmam seus poderosos papéis. Acabam por sujeitar as instituições escolares e

    suas equipes, como efeito da super prescrição cotidiana, ao monitoramento do desempenho e avaliação de rendimento. No entanto, quando sistemas de avaliação ligados a elementos de controle e atores externos a escola assumem o protagonismo pela qualidade, a ideia processual de currículo é quase toda suprimida, com exceção da fase inicial (a prescrição) e da fase final (a avaliação do currículo). Todas as outras fases processuais intermediárias perdem força: a interpretação do currículo, o currículo na prática cotidiana e os efeitos subjetivos do currículo.

    Com as reformas curriculares contemporâneas, a busca por qualidade na Educação Básica intensifica suas apostas nos sistemas de avaliação e responsabilização. A avaliação de redes ganha ainda mais protagonismo, assumidamente influenciada por parâmetros transnacionais como língua nativa (português), matemática e língua estrangeira moderna (nomeadamente o inglês). Neste sentido, o movimento reformista do Ensino Médio apresenta-se frente a uma missão-cruzada: reverter o péssimo desempenho nacional na avaliação internacional PISA (Programme for International Student Assessment), assim como no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) (FERRETTI e SILVA, 2017).

    O desempenho em avaliações de sistemas, entretanto, restringe-se a um rol limitado de disciplinas protagonistas e corresponde à hierarquização dessas disciplinas. Essa hierarquização é prejudicial à intelectualização dos alunos, no sentido dado por Young (2011). O autor faz uma defesa radical do currículo prescrito centrado em disciplinas, mas não estabelece hierarquia entre elas e os saberes. Ele estabelece, ao contrário, que as disciplinas são consideradas comunidades especializadas, responsáveis por introduzirem os alunos em universos de saberes razoavelmente generalizáveis e confiáveis, muito diferente de centrar o currículo em duas ou três disciplinas, ignorando as demais5.

    Segundo Motta e Frigotto (2017, p. 364-365), valoriza-se a visão seletiva e hierarquizante de qualidade da educação defendida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – “[...] ler, escrever, contar e ter noções básicas de ciências”. Trata-se de uma visão que não intelectualiza, uma visão instrumentalizada do currículo, pautada em uma conjunção harmoniosa entre


    image

    5 Galian (2016), ajuda a esclarecer a disputa de poder entre as disciplinas destacando que as ciências naturais, por exemplo, são reconhecidas socialmente, enquanto artes e humanidades são restringidas por uma série de mecanismos no âmbito do currículo real como redução de carga horária.

    educação, crescimento econômico e desenvolvimento social. A definição de qualidade pretendida torna-se ainda mais afinada à construção de indicadores que exaltam limitado rol de disciplinas, com foco em:


    [...] melhorar o desempenho no IDEB e no PISA, flexibilizando o currículo de forma a facilitar as escolhas das disciplinas que os jovens das classes populares teriam menor dificuldade e, com isso, provavelmente, melhorar o desempenho nas avaliações em larga escala [...] (MOTTA e FRIGOTTO, 2017, p. 364-365).


    Silva (2015, p. 369), adotando as contribuições de Theodor W. Adorno, destaca que esse tipo de experiência formativa aprisiona o indivíduo à “condição de semiformação”. O que se assiste, quando a prescrição é elevada como no caso da BNCCEM, é “uma formação de indivíduos sem indivíduos”. A super prescrição e o acentuado aspecto avaliativo do currículo, nessa linha, não estão comprometidos com os alunos-indivíduos, porquanto prestam-se unicamente para viabilizar a instrumentalização curricular colocando o currículo à serviço do setor produtivo.

    Outra consequência importante do currículo altamente prescrito é a confusão entre pedagogia e currículo, descrita por Young (2011). Para o autor, é preciso separar a atuação pedagógica daquilo que seria a prescrição curricular. Dessa forma, o currículo prescrito inaugura a dimensão processual e é um documento oficial que não se confunde com a prática pedagógica. No entanto, quando o currículo é altamente prescrito acaba por justamente neutralizar a dimensão processual, pois atenta contra a ação pedagógica e vai além das determinações do arcabouço jurídico nacional. Dessa forma, o currículo afasta-se da equidade e da ideia de conteúdos mínimos e passa a atender interesses alheios à realidade escolar. Assim, as práticas pedagógicas ficam sujeitas a comandos e determinações que as diminuem.

    Para Young (2011), o currículo prescrito deveria conter o conjunto de códigos que as comunidades especializadas decidiram, resumindo-se a isso, ainda que tais códigos não representem dogmas. Deveria, portanto pretender intelectualizar os alunos, passando conceitos teóricos e apresentando o mundo especializado- intelectual. A pedagogia, por outro lado, teria funções distintas: a pedagogia é tarefa dos professores, escolas e sistemas (via formação e valorização da carreira). Ela é também tarefa que deve se manter autônoma à prescrição, tendo dimensão prática e reflexiva, centrada em recursos pedagógicos destinados ao ensino e à promoção de

    atitudes e valores, considerando a experiência dos alunos para alcançar conceitos teóricos – garantindo, assim, o direito a aprendizagem.


  3. Foco na vida cotidiana do aluno:

O texto da BNCCEM, altamente prescritivo e centrado em uma formação flexível, ambiciona, como mencionado por Ferretti (2018), vender uma ideia de mudança: adequar o currículo às juventudes e tornar a etapa mais atraente. Para apresentar sua proposta, ancora-se em argumentos destinados a repaginar a etapa. São eles: projeto de vida, itinerários formativos, empregabilidade, empreendedorismo, competências socioemocionais e a dimensão prática do conhecimento.

Contraditoriamente, ao invés de se apresentar como catalizador de melhorias e direitos, o Novo Ensino Médio tende a aumentar as desigualdades (FERRETTI, 2018). As motivações reformistas, derivadas do neoliberalismo e do regime de acumulação flexível, não sinalizam para uma mudança social e se voltam à “mera instrumentalização dos trabalhadores e seus filhos” (FERRETTI, 2018, p.35).

A formação passa a contemplar “um processo de semiformação de caráter pragmático” (FERRETTI, 2018, p.35), voltada à manutenção do sistema produtivo e suas demandas. Esse padrão formativo, previamente anunciado por Silva (2015), refere-se à tradição curricular ocidental percebida como treinamento, confinada a uma “semiformação”, que inviabiliza a reflexão e a crítica sem atingir abstração conceitual. Em síntese, a formação pretendida se relaciona à fixação de conceitos e ao treino, reforçada pela dimensão da aplicação prática do conhecimento. Deste modo, relaciona-se à resolução de tarefas cotidianas, de caráter pragmático, atendendo às demandas do mundo do trabalho, das indústrias e do mercado (SILVA, 2015).

Trata-se de operacionalizar o conhecimento de forma pragmática. Neste sentido, é possível retomar aqui o clássico texto A crise na educação, de Hanna Arendt (2016). Nele, a autora apresenta problemas relacionados à concepção de aprendizado ao longo da vida, forma dominante de conceber o aprendizado na modernidade. Para a autora, o aprendizado se tornou algo prático, ou seja, que se aprende fazendo – torna-se necessário “[...] substituir, tanto quanto possível, o aprender pelo fazer” (ARENDT, 2016, p.232):


Considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina porque se pretende compelir o professor ao exercício de uma atividade de constante aprendizagem para que, como se diz, não

transmita um saber morto, mas, ao contrário, demonstre constantemente como se adquire esse saber.


Os professores são convidados à lógica da dimensão prática da aprendizagem e devem unicamente assistir ao progresso das crianças como seres autônomos. Essa lógica sujeita as aprendizagens a um saber-fazer (ARENDT, 2016). Assume protagonismo, ainda mais evidente, a ideia de que não se pode aprender aquilo que não é prático e que não se pode colocar em prática – indicando a existência de um saber morto ou petrificado, ligado aos conceitos teóricos, e de um saber vivo, ligado aos anseios do setor produtivo.

Assim, as instituições de ensino embrenham-se ainda mais nos processos de acumulação flexível e intensificam a formação para a “arte de viver” (ARENDT, 2016,

p. 232), relativa ao comportar-se bem em sociedade que nos remete novamente a ideia de sociedade administrada de Herbert Marcuse, apresentada por Silva (2015). Diante desse modelo formativo e de escola, o trabalho docente será inevitavelmente expropriado e entendido como ferramenta essencial de adaptação às normas, capaz de habilitar massas escolarizadas ao trabalho cada vez mais subjugado. Para Arendt (2016), sob esta fórmula, o aprendizado se torna inoperante para a vida adulta e tende a excluir o aluno do mundo daqueles que dominam e transitam nas comunidades de saber – deixando-os sem acesso ao conhecimento dos poderosos trabalhado por Young (1971).

A BNCCEM reforça a concepção prática do conhecimento, ao passo que precariza ainda mais o trabalho e o cotidiano do professor. Não obstante, chama atenção que discursos relacionados à autonomia dos jovens e significância das aprendizagens são considerados progressistas e bem-intencionados. Tais discursos pretendem libertar os alunos do autoritarismo dos adultos e povoam o campo da pedagogia e da psicologia (ARENDT, 2016). No entanto, em muitos casos, foram apropriados por governos neoliberais e reforçam o projeto educacional pouco reflexivo para a educação de grandes contingentes populacionais, atendendo padrões supranacionais (LIBÂNEO, 2014).

No limite, corresponde a uma formação não comprometida com a intelectualização dos jovens alunos, no âmbito do conhecimento poderoso proposto por Young (2010; 2011). O sentido da expressão conhecimento poderoso é diferente do sentido da expressão conhecimento dos poderosos, embora haja entre os dois conceitos uma relação harmoniosa. Conhecimento dos poderosos refere-se à seleção

de saberes mediante relações de poder, marcadas pela origem social, que instituem e apresentam o conhecimento como dado e exigido (YOUNG, 1971). Conhecimento poderoso, por sua vez, é o conhecimento acessado por alunos mediante à aprendizagem de conceitos teóricos e especializados, provenientes das disciplinas. Os conceitos teóricos são elementos estrangeiros aos alunos e somam-se às experiências cotidianas e subjetivas. Tais conceitos lhes permitem transitar entre áreas específicas do saber, aprender novos conceitos teóricos e expressar saberes razoavelmente generalizáveis e confiáveis – o aluno passa a conviver e se movimentar por comunidades de saber, intelectualizando-se.

Aceitar a importância do conhecimento poderoso é empoderar a escola como instituição que apresenta o mundo estrangeiro. Representa aceitar que o conhecimento poderoso é um conhecimento especializado e adquirido na escola, instituição responsável pelos saberes especializados. Permite aos alunos acessar conhecimentos que eles não conseguiriam ter em casa ou na comunidade, para além de suas realidades e experiências. No entanto, entender a importância do conhecimento poderoso, na luta por definir conhecimentos e democratizar o acesso ao conhecimento dos poderosos, não representa desvalorizar conceitos e experiências cotidianas que servem como ponto de partida para o trabalho pedagógico. Pensar em conhecimento poderoso significa emancipar jovens de camadas populares, dando-lhes oportunidades de tráfego por comunidades especializadas de saber, viabilizando uma formação voltada aos saberes e propensa a ser crítica.


Considerações finais


A análise do Contexto de Influência e de Produção de Texto, no processo de definição e homologação da BNCCEM, permite especular acerca do lugar secundário ocupado pelo conhecimento e pela intelectualização dos alunos no Novo Ensino Médio. O assédio político exercido pela filantropia capitalista impôs um padrão altamente prescritivo ao documento curricular, pautando-o em habilidades e competências (cognitivas e socioemocionais). Materializou-se, então, a proposta de aprendizagem flexível para garantir o desenvolvimento de competências voltadas à ideia de aprender ao longo da vida (KUENZER, 2017).

Significa dizer que a aprendizagem deve ser prática e se relacionar ao cotidiano promovendo-se uma dimensão flexível da aprendizagem, compromissada com processos alheios à escola e sua função social. Nesse cenário, é possível considerar a influência de aspectos ligados a instrumentalização curricular. O currículo prescrito, atendendo a essa lógica instrumentalizada, passa a ser utilizado como instrumento de pautas econômicas, emocionais e sociais. O acesso ao conhecimento poderoso, ligado aos conceitos teóricos de cada disciplina e das comunidades de especialistas, torna-se cada vez mais distante dos objetivos curriculares. Instrumentalizada e articulada a interesses produtivos, a BNCCEM consolida-se como aparato de uma suposta retomada econômica, frente paralela de outros palcos de reacomodação do capital no Brasil: reforma trabalhista, flexibilização da terceirização da atividade-fim, limitação do teto de gastos sociais e extinção do Ministério da Cultura.

Paralelamente, se manifestam no currículo elementos ligados à individualização dos percursos formativos e relacionados à ideia de empregabilidade como tecnologia curricular (SILVA, 2019); querem representar a escolha sofisticada e autônoma, mas constituem-se em caminho solitário e muitas vezes condicionado às limitadíssimas opções disponibilizadas pelas redes de ensino – segundo o artigo 36 da LDB, caput, os arranjos curriculares serão ofertados de acordo com o contexto local e a possibilidade de cada sistema de ensino. A concepção sugerida é de customização do percurso formativo, livre da imposição curricular clássica do Estado: cada aluno deve ser capaz de adquirir um rol de competências emocionais e sociais e, então, superar por conta própria obstáculos e fracassos escolares.

Assim, a dimensão processual do currículo perde força com a super prescrição associada à instrumentalização. Os danos a processualidade curricular geram, por sua vez, entraves à autonomia dos sujeitos envolvidos. Reforça-se o projeto de escola assumidamente inclinado à dimensão prática do conhecimento e a adaptação, na medida em que o conhecimento é valorizado em suas dimensões cotidianas.

Nessa linha, o papel da escola e do currículo contemporâneo, instrumentalizado, super prescritivo e ligado a uma concepção prática (saber-fazer) de aprendizagem, não presta mais contas ao direito dos sujeitos de aprender. Todas essas mudanças e processos ignoram a escola como aglutinadora de saberes exteriores e estrangeiros à vida dos alunos. Como consequência, a escola de nível médio não presta mais contas ao direito de acessar conceitos teóricos que são

estrangeiros aos alunos, posto que oriundos da produção intelectual de comunidades humanas organizadas.

Em questão está o lugar do conhecimento no Novo Ensino Médio e, consequentemente, a definição do que seria direito de aprender e de qual seria a função social da escola. Por essa razão, as reformas do Ensino Médio na contemporaneidade vinculam a escola à manutenção do sistema produtivo e remodelam a compreensão social acerca do trinômio escola-direito-educação. Garantem, no limite, uma formação certificada pelo Estado e pautada em visões complementares acerca das aprendizagens: uma “visão restrita” de aprendizagens, referente a aquisição de competências mínimas, que garante a “sobrevivência social” e, também, uma “visão ampliada” relacionada à “aprendizagem ao longo da vida” e ao “acolhimento da diversidade” (LIBÂNEO, 2012, p.25).


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