image

V.19, nº 39, 2021 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


A PROFISSIONALIZAÇÃO GENERALIZADA NA REFORMA DO ENSINO MÉDIO1


Heloise Paula Costa2 Vagno Emygdio Machado Dias3


Resumo

Este artigo visa discutir a respeito da concepção de educação profissional na Reforma do Ensino Médio, no intuito de compreender o sentido da inserção da profissionalização no currículo do ensino médio regular. A metodologia consiste em discussão teórica, análise documental das normativas para o ensino médio e pesquisa de campo de abordagem qualitativa. Como proposta de intervenção, descreve e analisa os dados obtidos com o desenvolvimento de um curso de formação, destinado à discussão a respeito da profissionalização e da especialização no ensino médio regular, realizado com os profissionais da educação de uma escola estadual em Poços de Caldas/MG.

Palavras-chave: Educação Profissional e Tecnológica. Reforma do Ensino Médio. Profissionalização.


PROFESIONALIZACIÓN GENERALIZADA EN LA REFORMA DE LA ESCUELA SECUNDARIA


Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir el concepto de educación profesional en la Reforma de la escuela secundaria, a fin de comprender el significado de la inserción de la profesionalidad en el plan de estudios de la escuela secundaria regular. La metodología consiste en la discusión teórica, el análisis documental de las normas para la investigación de la escuela secundaria y de campo con un enfoque cualitativo. Como una propuesta de intervención, describe y analiza los datos obtenidos con el desarrollo de un curso de capacitación, dirigido a discutir la profesionalización y especialización en la escuela secundaria regular, realizada con profesionales de la educación de una escuela estatal en Poços de Caldas / MG.

Palabras-clave: Educación profesional y tecnológica. Reforma de la escuela secundaria. Profesionalización.


THE GENERALIZED PROFESSIONALIZATION IN HIGH SCHOOL REFORM


Abstract

This article aims to discuss the concept of professional education in the Reform of High School, in order to understand the meaning of the insertion of professionalism in the curriculum of regular high school. The methodology consists of theoretical discussion, documentary analysis of the norms for high school and field research with a qualitative approach. As an intervention proposal, it describes and analyzes the data obtained with the development of a training course, aimed at discussing the professionalization and specialization in regular high school, conducted with education professionals from a state school in Poços de Caldas / MG.

Keywords: Professional and Technological Education. High School Reform. Professionalization.


image

1 Artigo recebido em 16/11/2020. Primeira Avaliação em 20/01/2021. Segunda avaliação em 20/01/2021. Aprovado em 08/03/2021. Publicado em 27/05/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i39.47185.

2Mestre em Educação Profissional e Tecnológica (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de

Minas Gerais, Campus Poços de Caldas. Professora na Rede Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE/MG, Brasil). Área de atuação: Filosofia; Educação. E-mail: costa.heloise@gmail.com;

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4789-4315. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6326044225922447

3Doutor em Educação (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar). Professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais, Campus Poços de Caldas. Área de atuação: Fundamentos de Sociologia e Fundamentos da Educação. E-mail: vagno.dias@ifsuldeminas.edu.br; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9102-4283, Lattes: http://lattes.cnpq.br/1362568409116110.

Introdução


A recente reforma do ensino médio iniciou-se com a promulgação da Medida Provisória (MP) 746/2016, posteriormente convertida na Lei 13.415/2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (Lei 9.394/1996), impactando a discussão a respeito da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), iniciada no âmbito do Plano Nacional de Educação/2014-2024 (PNE), que a partir dos preceitos estabelecidos pelas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), homologadas em novembro de 2018, norteiam o ensino médio no território brasileiro.

As normativas da Reforma do Ensino Médio estabelecem que os currículos sejam elaborados pelos sistemas de ensino e estejam condicionados às competências e habilidades definidas na BNCC. As mudanças mais evidentes em relação ao currículo são: o aumento na carga horária de 2.400 horas nos três anos para 3.000, a ser efetivado até o ano letivo de 2022; a divisão do currículo em formação geral básica (até 1.800 horas nos três anos) e itinerários formativos (até

1.200 horas nos três anos). Os itinerários formativos podem ser divididos em duas categorias: itinerários de especialização (abrange as quatro grandes áreas: linguagens; matemática; ciências da natureza e ciências humanas e sociais aplicadas) e itinerário da profissionalização (abrange o quinto itinerário da formação técnica e profissional).

Ao considerar que a Reforma do Ensino Médio propõe a implantação de itinerários formativos que visam à especialização e à profissionalização em escolas de ensino médio regular, tradicionalmente voltadas para a formação geral, o eixo central deste artigo se situa na investigação das formas pelas quais as normativas que fundamentam a Reforma, abordam a profissionalização no ensino médio regular. Uma vez que as instituições mais afetadas pela Reforma são as escolas de ensino médio regular, buscou-se compreender qual é a perspectiva dos docentes a respeito da inserção da profissionalização e especialização nesta etapa e modalidade de ensino. Como forma de consolidar a proposta do Programa de Pós- graduação em Educação Profissional e Tecnológica4 (PROFEPT), foi desenvolvido


image

  1. Atrelada à pesquisa, o PROFEPT prevê o desenvolvimento de um produto educacional que seja aplicado/aplicável como forma de intervenção/resolução a um problema de pesquisa. Disponível em: https://profept.ifes.edu.br/regulamentoprofept/regu. Acesso em 20 abr. 2020.

    um Curso de Formação5 para professores, com objetivos de: 1) aproximar os docentes que atuam na rede estadual da problemática da inserção da profissionalização no ensino médio regular e 2) identificar como os profissionais da educação concebem a profissionalização no ensino médio, no que concerne à formação profissional dos jovens nas escolas estaduais e ao impacto da Reforma no trabalho docente.

    Cabe ressaltar que, diante da atualidade da Reforma do Ensino Médio, a análise feita nesta pesquisa se fixa no limiar da ocorrência dos acontecimentos, buscando delimitar as consequências do estreitamento entre educação e aspectos de caráter econômico. A seguir, indicamos diversos aspetos da profissionalização do ensino médio regular.


    A Reforma do Ensino Médio e a Pedagogia das Competências


    A Reforma do Ensino Médio trouxe diversas questões no sentido de compreender as motivações da reformulação e a extensão das mudanças em curso. As principais mudanças que fundamentam a Reforma do Ensino Médio envolvem duas dimensões: a curricular e a ideológico-discursiva. A dimensão curricular abrange: a estrutura dos currículos condicionada à BNCC, a expansão da carga horária do ensino médio, a divisão do currículo em uma parte destinada à formação geral e uma aos itinerários formativos. A dimensão ideológico-discursiva, diz respeito à incorporação na educação formal - via Reforma - dos valores, conceitos e finalidades do mundo produtivo e o consequente estreitamento entre a formação dos jovens e as demandas do mercado de trabalho6.

    As justificativas utilizadas pelos reformadores do ensino médio circundam em torno de quatro fatores: 1) o baixo índice de desempenho dos estudantes nas avaliações externas; 2) a extensa estrutura curricular; 3) a necessidade de diversificação e flexibilização do currículo; e 4) o baixo percentual de concluintes do


    image

  2. Da intervenção realizada no curso de formação e como proposta de produto educacional, desenvolveu-se a apostila Curso de Formação Docente - Educação Profissional e Tecnológica na Reforma do Ensino Médio: uma proposta de discussão sobre a inserção da profissionalização no ensino médio regular. Disponível em: http://educapes.capes.gov.br/handle/capes/583657. Acesso em 30 jan. 2021.

  3. Define-se mercado de trabalho, de forma restrita ao processo/ambiente em que se “compra e se

    vende força de trabalho”, ligado à oferta e à demanda de emprego, e, contemporaneamente, à condição de empregabilidade.

    ensino médio que acessam o ensino superior (17%), somado à baixa taxa de matrículas na educação profissional de nível médio (10%), para justificar a introdução de um itinerário voltado à formação técnica e profissional (FERRETTI e SILVA, 2017).

    Com base nestes argumentos, os propositores da reforma adotaram a flexibilização curricular como fundamento do novo currículo do ensino médio, que tem por referência o documento da BNCC para o ensino médio, e é composto de dois eixos: formação geral básica e itinerários formativos. A formação geral básica é composta de quatro macros campos, nos quais os componentes curriculares estão agrupados: linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias e ciências humanas e sociais aplicadas; os itinerários formativos correspondem à parte diversificada do currículo, visam à especialização em temas entre as quatro grandes áreas da formação geral básica, e a inserção de um quinto itinerário, denominado “formação técnica e profissional”.

    Analisando os argumentos utilizados pelos propositores da Reforma, Scheibe e Silva (2017) indicam que as características presentes nos discursos e nos documentos do “Novo Ensino Médio”7, remontam às discussões ocorridas na construção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) de 1996 e dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1998, especialmente no que concerne à função do ensino médio e sua relação com a formação para o mercado de trabalho. De acordo com as autoras, as reformas educacionais da década de 1990 tinham a pretensão de que “a escola se voltasse ao atendimento das demandas oriundas das transformações nos processos de produção de mercadoria e serviços” (SCHEIBE e SILVA, 2017, p. 22), impulsionada pelas mudanças no mundo de trabalho, principalmente com a expansão do modelo de produção baseado no toyotismo.

    O discurso do mercado de trabalho na Reforma do Ensino Médio, “é retomado em meio às mesmas justificativas, de que é necessário adequar a escola a supostas e generalizáveis mudanças do ‘mundo do trabalho’, associadas de modo mecânico e imediato a inovações de caráter tecnológico e organizacional” (SILVA, 2018, p. 11). Demonstrando a proximidade entre a concepção de educação presente nas


    image

  4. A terminologia “Novo Ensino Médio” é a expressão utilizada pelo Governo Federal para referir-se ao conjunto das ações em curso.

    reformulações das normativas na década de 1990 e a Reforma do Ensino Médio, o próprio documento da BNCC8 faz referência às discussões ocorridas no final do século XX, especialmente a respeito do foco no desenvolvimento de competências.

    Para Duarte (2008) a Pedagogia das Competências ou pedagogia do aprender a aprender possui alguns impasses de natureza valorativa em sua formulação, e identifica quatro pontos problemáticos desse modelo pedagógico: 1) aprender sozinho para desenvolver a autonomia em detrimento da aprendizagem coletiva; 2) a preferência pelo aprendizado da forma e não do conteúdo, defendendo que é melhor aprender o método científico do que aprender o conhecimento científico, contribuindo para o esvaziamento dos saberes historicamente construídos;

    3) o caráter utilitário do conhecimento que defende que a aprendizagem de determinado conhecimento deve responder à problemas da vida produtiva; 4) a defesa da tese de que se deve preparar o indivíduo para acompanhar as mudanças sociais, científicas e tecnológicas da sociedade contemporânea. Duarte (2008) assinala o caráter adaptativo da pedagogia do aprender a aprender, pois busca:


    preparar os indivíduos, formando neles as competências necessárias à condição de desempregado, deficiente, mãe solteira etc. Aos educadores caberia conhecer a realidade social não para fazer a crítica a essa realidade e construir uma educação comprometida com as lutas por uma transformação social radical, mas sim para saber melhor quais competências a realidade social está exigindo dos indivíduos (idem, p. 13).


    Considerando o caráter adaptativo da Pedagogia das Competências, outra problemática que surge é a relação que esse modelo pedagógico estabelece com a demanda de formação oriunda do setor produtivo, pois é “marcada pela intenção de adequação à lógica do mercado e à adaptação à sociedade por meio de uma abstrata noção de cidadania” (SILVA, 2018, p. 11). Nesta perspectiva, a formação baseada em competências carrega consigo uma relação estrita com o setor produtivo e tem ressurgido no campo da educação formal através do discurso da “flexibilidade” do ensino.


    image

  5. Consultar: BRASIL, BNCC, 2018a, p. 13.

    Os Itinerários Formativos no contexto da Reforma do Ensino Médio


    De acordo com a BNCC, a implantação de itinerários formativos configura uma estratégia para “a flexibilização da organização curricular do ensino médio” (BRASIL, BNCC, 2018a, p. 477), e podem ser construídos em torno das habilidades e competências de uma área específica, da combinação de áreas ou da formação técnica e profissional. No contexto da Reforma, os itinerários formativos, por servirem aos objetivos da adaptabilidade e da flexibilidade na formação dos jovens, podem ser compreendidos sob duas óticas: 1) da especialização, que abrange as quatro áreas (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas e sociais aplicadas), cuja finalidade é tornar os jovens do ensino médio “especialistas” em uma área de conhecimento específica; e 2) da profissionalização, que é composta pelo quinto itinerário, denominado de “formação técnica e profissional”, que de acordo com as normativas da Reforma visa promover a qualificação profissional dos jovens para ingressarem no mundo do trabalho.

    A Lei 13.415/2017 relega aos sistemas de ensino a responsabilidade pela definição dos itinerários formativos. Analisando o que os documentos da Reforma compreendem por “itinerários formativos”, percebe-se que não há uma definição objetiva e conceitual do termo. Embora a BNCC e a Lei 13.415/2017 não definam “itinerário formativo”, há na BNCC uma ressalva, em nota de rodapé, a respeito do uso do termo no contexto educacional brasileiro:


    No Brasil, a expressão “itinerário formativo” tem sido tradicionalmente utilizada no âmbito da educação profissional, em referência à maneira como se organizam os sistemas de formação profissional ou, ainda, às formas de acesso às profissões. No entanto, na Lei nº 13.415/17, a expressão foi utilizada em referência a itinerários formativos acadêmicos, o que supõe o aprofundamento em uma ou mais áreas curriculares, e também, ao itinerário da formação técnica profissional (BRASIL, BNCC, 2018a, p. 468, nota de rodapé 55).


    Nota-se que a expressão “itinerário formativo” tem antecedentes no contexto e no âmbito da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) e foi adaptada para servir ao objetivo de flexibilizar o currículo e a formação dos estudantes do ensino médio regular, seja como formação/habilitação/qualificação profissional ou aprofundamento curricular (especialização). De acordo com Teixeira et al. (2017) o uso do termo “itinerário formativo” aparece nas normativas educacionais propostas pela

    Resolução CNE/CEB 6/2012 que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. De acordo com a Resolução CNE/CEB 06/2012 os itinerários formativos são:


    o conjunto das etapas que compõem a organização da oferta da Educação Profissional pela instituição de Educação Profissional e Tecnológica, no âmbito de um determinado eixo tecnológico, possibilitando contínuo e articulado aproveitamento de estudos e de experiências profissionais devidamente certificadas por instituições educacionais legalizadas (idem, p. 2).


    A utilização da lógica dos itinerários formativos na Reforma como estratégia para o aprofundamento/especialização e profissionalização no ensino médio regular, parece indicar que há uma tentativa de inserir nas escolas da educação básica, a mesma lógica aplicada às instituições que ofertam cursos na modalidade da EPT. A problemática que surge ao adotar a lógica da EPT para o ensino regular, não diz respeito apenas à tendência à forma de profissionalização precária e aligeirada, mas também questões ligadas às condições de funcionamento das escolas públicas regulares. Para Teixeira et al. (2017) a principal questão a ser pensada, ao adotar a mesma lógica da EPT para as escolas regulares é a de que, para implantar cursos com ênfase tecnológica é preciso investimento em equipamentos, laboratórios, contratação de pessoal, além de outros suportes para desenvolver uma formação que consiga acompanhar as mudanças sociais e do mundo do trabalho, conforme almeja o discurso presente nos documentos da Reforma.

    Em relação à formação/habilitação/qualificação profissional nas escolas de ensino médio regular, possibilitada pela inserção do quinto itinerário formativo “formação técnica e profissional”, a BNCC, ancorada nas DCNEM/2018, propõe que este itinerário ocorra de modo a promover:


    efetivamente a qualificação profissional dos estudantes para o mundo do trabalho, objetivando sua habilitação profissional tanto para o desenvolvimento de vida e carreira quanto para adaptar-se às novas condições ocupacionais e às exigências do mundo do trabalho contemporâneo e suas contínuas transformações, em condições de competitividade, produtividade e inovação, considerando o contexto local e as possibilidades de oferta pelos sistemas de ensino (BRASIL, BNCC, 2018a, p. 478).


    Na BNCC não há indicativos das formas pelas quais o quinto itinerário formativo será implementado nas escolas de ensino regular ou se será efetivamente

    formação profissional ou mera qualificação ou habilitação profissional, há apenas a referência na Lei 13.415/20179 de que os critérios para a implementação deste itinerário ficarão sob a responsabilidade dos sistemas de ensino e que deverá seguir o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNTC). De acordo com as normativas da Reforma, os itinerários podem, inclusive, gerar certificados parciais de qualificação para o trabalho e habilitação profissional, mediante comprovação de realização de cursos em outras instituições que não necessariamente a escola em que o jovem cursa o ensino médio.


    A profissionalização generalizada no ensino médio regular


    Com a reformulação curricular e a implantação dos itinerários formativos, cuja gênese está no contexto e na concepção de EPT, fica evidente a estreita relação entre a formação dos jovens no ensino médio regular e as necessidades de formação oriundas do mercado de trabalho. Neste cenário, o intuito de fornecer uma “formação básica para o trabalho” é incorporado por princípios referentes à nova configuração do mundo produtivo e a necessidade de que as escolas se adaptem a este contexto, independente se a formação do jovem é profissionalizante ou não, dado que os princípios da ”flexibilidade” e da “adaptabilidade” aparecem como fundamentos pedagógicos e formativos também para a modalidade do ensino médio regular. Nas normativas da Reforma, a “preparação para o trabalho” não configura por si uma tendência à profissionalização no ensino regular, visto que esta tendência perpassa diversos aspectos dos documentos, tanto nas finalidades quanto no léxico adotado, e tem relação com a forma como a educação é concebida frente às transformações na reprodução e acumulação do capital.

    A tendência à profissionalização expressa nas normativas da Reforma transforma-se em um mecanismo de profissionalização generalizada, pois se fixa em uma ideologia que converte as políticas educacionais em políticas de adaptação ao mercado de trabalho (LAVAL, 2019). A profissionalização generalizada é caracterizada pela difusão via educação formal, dos valores e comportamentos que os setores produtivos esperam dos futuros trabalhadores. Esse modelo de formação profissional tem acompanhado a lógica neoliberal, e, portanto, não se trata da oferta


    image

  6. Consultar §1º do Art. 3 da Lei 13.415/2017.

    de cursos técnicos ou de formação profissional qualitativa que tenha o desenvolvimento integral do ser humano como norte pedagógico, mas sim de cursos aligeirados e precários de capacitação e aperfeiçoamento profissional, bem como a crescente inserção de “temas profissionais” nos currículos.

    A profissionalização generalizada à qual nos referimos, têm suas raízes em uma concepção restrita de profissionalização, que vem sendo expandida para todo o sistema de ensino, com o que Kuenzer (2017) identifica como pedagogia da acumulação flexível. Kuenzer (2017) indica que na perspectiva da formação flexível propõe-se a substituição da formação especializada, adquirida em cursos de educação profissional e tecnológica, por uma formação mais geral, que poderia ser ofertada no nível da educação básica, à semelhança do proposto pela Reforma do Ensino Médio, que tanto em sua estrutura como em sua finalidade, visa à formação de trabalhadores com subjetividades flexíveis, por meio de uma base de educação geral complementada por itinerários formativos por áreas de conhecimento, incluindo a formação técnica e profissional.

    Para além da relação com a pedagogia da acumulação flexível, a profissionalização generalizada encontra referenciais nos estudos de Laval (2019), segundo o qual no contexto da economia neoliberal as escolas tornam-se espaços de realização da ideologia da profissionalização. Laval (2019), ao analisar as reformas educacionais da década de 1990 na França, conclui que a ideologia da profissionalização é resultado do estreitamento do vínculo entre o “mundo da economia” e o “mundo da escola”, em que a profissionalização, radicalizada pelo contexto neoliberal, torna-se um dos sustentáculos da nova organização escolar a nível mundial.

    Ao analisar a relação entre as políticas educacionais para o Ensino Médio Integrado e a constante absorção dos princípios da educação profissional para a modalidade de ensino médio regular, Dias (2015), assinala que o ensino médio tem sido marcado por um espírito da profissionalização, que desloca os interesses específicos da formação profissional para todo o sistema de ensino. Essa tendência tem se inserido paulatinamente nas políticas educacionais para o ensino médio. Neste sentido, a profissionalização generalizada se apresenta tanto na exortação da profissionalização “direta” (cursos técnicos e profissionalizantes), quanto na inserção de “pedagogias profissionalizantes, empresariais e mercadológicas”, além de “temas

    profissionais” nos currículos, modificando a essência e a institucionalidade escolar, como, por exemplo, a inserção do itinerário da formação técnica e profissional e da cultura empreendedora no “Novo Ensino Médio”.

    Considerando estes aspectos, a profissionalização não fica restrita ao ensino médio com ênfase na EPT, pois, na discussão sobre a profissionalização de nível médio, o ponto central não está no debate sobre as modalidades e cursos profissionais, mas na discussão sobre o sentido desta profissionalização, isto é, “mais importante ainda é a quem se destina esse ensino médio diversificado (ou especializado): aos excluídos, marginais, imigrantes, deslocados, rurais, enfim, aos que ‘necessitam’ antecipar sua vida produtiva” (DIAS, 2015, p. 137). O discurso da “formação para o trabalho” toma a forma do “discurso da empregabilidade”, da formação que tem foco na aquisição de potenciais competências que poderiam tornar os jovens “empregáveis”.

    É neste panorama, que a própria noção de “emprego” é substituída pelo discurso da “empregabilidade”. De acordo com Helal e Rocha (2011), a compreensão do termo “empregabilidade”, pode ser dividida em dois sentidos: “o empresarial (que considera a empregabilidade como a capacidade de adaptação da mão-de-obra [do indivíduo] às novas exigências do mundo do trabalho e das organizações) e o crítico (que trata a empregabilidade como um discurso, transferindo a responsabilidade pelo emprego da sociedade e do Estado para o próprio trabalhador)” (HELAL e ROCHA, 2011, p. 141, grifo dos autores). Em ambos os significados, fica latente a defesa que prevê a responsabilização individual pelo sucesso em criar, garantir e manter um posto de trabalho, ignorando que esta possibilidade é dada pela estrutura social, e não por capacidades individuais de “acumular capital humano10”.

    As normativas da Reforma do Ensino Médio defendem justamente o discurso da empregabilidade, concretizado por meio da difusão dos princípios da adaptação e da flexibilidade dos jovens ao mercado de trabalho. Nesta perspectiva, a profissionalização generalizada torna-se política educacional, denotando que a relação trabalho-educação tem assumido uma nova formatação na educação básica.


    image

  7. A Teoria do Capital Humano foi formulada por economistas na década de 1950 e modificou a percepção da educação, incorporando-a como fator imaterial na engrenagem de reprodução do capital. Ao considerar que o crescimento econômico estava ligado não apenas aos fatores de produção material, mas dependia também da qualidade técnica da mão de obra, era necessário que se investisse em “capital humano” para aumentar o índice de produtividade (LAVAL, 2019).

    Essa nova formatação advoga em nome de exigências econômicas e apoia-se em discursos que defendem a certificação por competências, a flexibilização, a adaptação e a busca pelo potencial de empregabilidade. A relação trabalho- educação contida no “Novo Ensino Médio”, impõe às classes sociais que dependem da educação pública a conformação às exigências formativas demandadas pelo modo de produção flexível, considerando que, para que a reprodução do capital se mantenha é preciso formatar a força de trabalho segundo esse modelo de produção. Na dinâmica da acumulação flexível a educação assume uma função vital, que na atual reformulação do ensino médio, deixa explícita a necessidade de “garantir capital humano” através do ensino formal.

    O discurso em defesa da “adaptabilidade” e da “inclusão” toma outro significado, diferente daquele que, aparentemente e utilitariamente, defende uma formação apoiada na “diversidade das juventudes11”. Ao sugerir que o jovem deva se preparar para adaptar-se frente às transformações, para que possa permanecer incluído no mundo globalizado, se está indicando que o caminho possível para a não exclusão do jovem da vida social produtiva é a capacidade de ser flexível, de acompanhar as mudanças científicas e tecnológicas, e não em promover tais mudanças. Há uma problemática que não se considera: espera-se que os jovens possam adaptar-se às transformações tecnológicas e científicas, mas não se considera que estes mesmos jovens possam ser agentes destas transformações. Promover a autonomia e a inovação - temas tão recorrentes nos documentos da Reforma - seria justamente incentivar os jovens a serem protagonistas das mudanças. Contrário à inovação e à autonomia, o que se constata é a defesa do discurso de que os jovens precisam se adaptar com flexibilidade para não serem excluídos da dinâmica social contemporânea.


    Curso de formação docente


    De acordo com o que foi discutido, a Reforma do Ensino Médio possui correspondências com a Educação Profissional, seja nos objetivos de formação para o mercado de trabalho, seja na utilização dos conceitos da EPT, mas,


    image

  8. No trecho da BNCC que caracteriza o ensino médio e as finalidades desta etapa, resgatou-se a definição estabelecida pelas DCNEM/2012, sobre as características dos jovens que cursam o ensino médio, definindo-os como juventudes, no plural.

    principalmente, na difusão do que denominamos de profissionalização generalizada. Partindo desta constatação, a pesquisa de campo considerou o contexto das escolas estaduais da educação básica que ofertam o ensino médio, uma vez que são nas escolas que as mudanças ocorrerão de forma massiva e decisiva. Neste contexto, foi desenvolvido um Curso de Formação para professores, que teve como objetivos ser tanto um instrumento de informação sobre a temática, quanto uma forma de avaliar coletivamente como os profissionais da educação estão se orientando e se posicionando frente à temática da profissionalização no ensino médio regular.

    O Curso de Formação foi desenvolvido em uma escola estadual no município de Poços de Caldas/MG, que oferta ensino médio regular e as duas fases do ensino fundamental, além do ensino médio na modalidade EJA, no período noturno. A escola situa-se entre a região central e as regiões periféricas do município. De acordo com o Projeto Político Pedagógico 2017-2019 desta instituição, o corpo discente é constituído por estudantes de diversos bairros da cidade, classificando o nível socioeconômico como médio/baixo, constituindo um meio cultural bastante heterogêneo. Em 2019 a escola atendeu 869 estudantes, e contava com 92 funcionários no quadro de pessoal, entre gestores, docentes, técnicos administrativos e auxiliares da educação básica.

    O curso teve duração de 6 horas, divididos em três encontros de 2 horas cada, que ocorreram nos meses de setembro, outubro e novembro de 2019. A participação dos profissionais da escola ocorreu de forma voluntária, contando com a presença de 12 a 18 pessoas no decorrer das etapas do curso. Buscando resguardar a privacidade dos participantes, não será necessário fornecer a identificação dos sujeitos envolvidos, pois basta identificar a categoria na qual a escola se enquadra e situá-la no contexto e na conjuntura da cidade.


    Metodologia e procedimentos


    Considerando que o arcabouço conceitual dos profissionais da educação básica encontra-se, em muitos casos, distante das discussões em EPT, dado a especificidade dos campos de atuação, e considerando o fato de que o novo formato do ensino médio abrirá a possibilidade de inserção da formação técnica e

    profissional nas escolas de ensino médio regular, o percurso realizado no curso de formação teve o intuito de afunilar a temática abrangente da Reforma do Ensino Médio, para a questão específica da profissionalização no ensino médio regular. Sendo assim, os procedimentos no decorrer do Curso de Formação foram dispostos em três etapas: 1) apresentação das principais mudanças propostas pela Reforma do Ensino Médio e diagnóstico via análise SWOT; 2) apresentação, estudo dirigido e realização de grupo focal a respeito da estrutura curricular do ensino médio e a inserção dos itinerários formativos; 3) apresentação da concepção de EPT nos documentos da Reforma e a realização da dinâmica World Café, a fim de aprofundar as discussões das etapas anteriores.

    Como metodologia de coleta de dados na primeira etapa do curso, adaptou- se a ferramenta de planejamento SWOT, a fim de realizar um diagnóstico sobre a percepção dos participantes em relação às mudanças no ensino médio. A ferramenta SWOT foi formulada pela área da administração e é comumente utilizada no planejamento estratégico de uma instituição. A análise SWOT consiste em fazer o levantamento dos pontos fortes e fracos internos a uma instituição, bem como realizar um diagnóstico das oportunidades e riscos externos à organização de um projeto (LEITE e GASPAROTTO, 2018). A análise via SWOT pode ser adaptada para realizar o diagnóstico e o planejamento de qualquer organização, pública ou privada. No contexto do presente trabalho, o uso adaptado desta ferramenta teve por objetivo fazer uma integração entre os elementos internos e externos à Reforma do Ensino Médio, possibilitando que os participantes fizessem conexões entre os aspectos sociais, econômicos e pedagógicos que a motivaram.

    Na segunda etapa, como método de intervenção dialógica e de coleta de dados, adotou-se a técnica de grupos focais, que de acordo com Kind (2004) podem ser definidos como:


    [...] um procedimento de coleta de dados no qual o pesquisador tem a possibilidade de ouvir vários sujeitos ao mesmo tempo, além de observar as interações características do processo grupal. Tem como objetivo obter uma variedade de informações, sentimentos, experiências, representações de pequenos grupos acerca de um tema determinado. (idem, p. 3).


    Para o desenvolvimento do grupo focal foram consideradas as seguintes etapas: abertura, preparação, debate, encerramento, ação posterior. A abertura

    consiste em apresentar e explicar os objetivos do grupo, e assegurar para os participantes que não existem opiniões corretas, que opiniões contrárias são bem- vindas e que não há interesse em nenhuma opinião em particular. A preparação consiste na apresentação dos participantes e das ideias iniciais da temática. O debate consiste na aproximação do grupo com os objetivos da pesquisa, em que perguntas são feitas partindo de um temário12 semiestruturado, em que a inserção de perguntas não previstas pode ser realizada quando houver necessidade. O encerramento é realizado fazendo uma síntese do que foi discutido com o propósito de identificar, de maneira conjunta, os principais temas abordados e consolidar os sentimentos do grupo acerca de algumas questões. A ação posterior visa verificar se as necessidades de informação foram satisfeitas, se será necessário abordar determinado tema de forma mais aprofundada.

    Na metodologia utilizada na terceira etapa, adaptou-se a dinâmica World Café. De acordo com Brown e Isaacs (2008), o World Café capacita líderes e outras pessoas que trabalham com grupos a criar intencionalmente redes dinâmicas de conversação e inteligência mútua em torno de questões críticas. Considerando as características do World Café, a adaptação desta dinâmica para o curso de formação teve um duplo objetivo: como proposta de ação coletiva, possibilitando que os participantes construíssem sugestões e soluções para a problemática da inserção dos itinerários formativos de especialização e profissionalização nas escolas de ensino médio regular; e como forma de verificar a efetividade do curso de formação, analisando se os conceitos abordados nas etapas anteriores haviam sido incorporados na percepção dos participantes a respeito da temática.


    Análise de dados


    A análise de dados segue a proposta de Krueger (2002), em que foram considerados os seguintes pontos: as palavras e seus significados, o contexto profissional dos participantes, a frequência com que determinados tópicos aparecem nas discussões e a especificidade das respostas em relação ao tema.

    As respostas fornecidas pelos participantes na primeira etapa do curso direcionam-se aos aspectos positivos e negativos da Reforma do Ensino Médio, e às


    image

  9. Guia de perguntas a partir de temas.

motivações e limites à sua implantação no Sistema Estadual de Ensino de Minas Gerais, especificamente na escola que foi objeto da pesquisa.

Como aspectos positivos, os participantes apontaram a possibilidade de escolha dos itinerários formativos pelos estudantes; a flexibilidade curricular; a possibilidade da inserção de cursos profissionalizantes na grade curricular do ensino médio regular; a possiblidade de aproveitamento de cursos extraescolares para integralização da carga horária, como, por exemplo, cursos de inglês e cursos fornecidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); alguns participantes apontaram que a Reforma parece acompanhar as necessidades e as mudanças que estão ocorrendo no mercado de trabalho.

Como aspectos negativos, foram apontados: a falta de infraestrutura e de investimento nas escolas públicas; a impossibilidade dos jovens que trabalham, de cursarem o ensino médio em tempo integral, pela necessidade que muitos têm de contribuir com o orçamento familiar; a impossibilidade do itinerário formativo de interesse do estudante ser ofertado nas escolas perto de sua residência; a imaturidade de alguns jovens em escolher uma área de estudo e se especializarem nela (no caso dos itinerários formativos de especialização), bem como a pressão psicológica para escolher de maneira precoce um determinado campo de saber em que poderá atuar profissionalmente (no caso do itinerário da profissionalização).

Em relação às motivações externas à escola para a implantação da Reforma do Ensino Médio, os participantes apontaram que: visa à diminuição da evasão escolar e à melhoria na qualidade de ensino; busca qualificar mão de obra para o mercado de trabalho, por isso há a implantação do quinto itinerário formativo (formação técnica e profissional); a oferta de itinerários formativos em áreas específicas, principalmente no ensino profissional, visa à qualificação de “mão de obra barata”; há uma exigência do mercado de trabalho em melhorar a educação, pois não há profissionais formados em muitas áreas que são novas.

No que diz respeito às dificuldades para implantar a Reforma do Ensino Médio, os participantes apontaram que: a estrutura física das escolas e a falta de financiamento dificultam a implantação do ensino médio de tempo integral; falta de demanda de alunos para cursarem o ensino médio integral em regiões onde há concentração de pobreza, haja vista que a maioria dos jovens em idade escolar já

trabalha; organização da oferta dos itinerários formativos que garanta que todos os estudantes possam escolher efetivamente a área de estudo de seu interesse, considerando aspectos como deslocamento e horário escolar na oferta de tais itinerários (contra turno); organização, mobilização e convencimento dos profissionais em educação dos aspectos positivos da Reforma.

Apesar de o “Novo Ensino Médio” ser defendido pelo Ministério da Educação (MEC) como instrumento capaz de melhorar a qualidade do ensino médio, e ser veiculado nos meios de comunicação como a solução aos problemas do ensino médio, percebe-se pelas respostas dos participantes que há consciência dos diversos aspectos negativos da Reforma. Os participantes também demonstraram que percebem que as motivações para a reformulação do ensino médio excedem as preocupações puramente pedagógicas, pois apontaram que estas vão ao encontro de demandas econômicas. Do mesmo modo, consideram que as dificuldades na implantação da Reforma, irão esbarrar em problemas estruturais e financeiros, que não são exclusividade das escolas públicas mineiras.

Na segunda etapa o tema principal centrou-se na nova estrutura curricular do ensino médio dividida em dois eixos (formação geral básica e itinerários formativos). O objetivo era discutir com os docentes a inserção dos itinerários formativos, para na terceira etapa abordar os itinerários sob a perspectiva da especialização e profissionalização no ensino médio regular.

Em relação às justificativas apresentadas nos documentos oficiais para a implantação da Reforma e sua correspondência com a realidade no cotidiano escolar, as respostas dos participantes expressaram o dissenso em relação ao tema. Alguns participantes apontaram que as justificativas estão incorretas, pois o objetivo da Reforma seria formar mão de obra barata, que percebem que o que está ocorrendo é que “a escola está tomando a responsabilidade da empresa pela formação dos seus empregados” - referindo-se à relação que as competências a serem desenvolvidas no ensino médio têm com as necessidades de formação dos trabalhadores, principalmente nas áreas de tecnologia. Outros participantes apontaram que as justificativas estão corretas, porque “cada vez mais os alunos não tem condições de fazer um vestibular ou passar por um processo seletivo com êxito”, referindo-se à justificativa de que os estudantes do ensino médio são mal posicionados nas avalições externas e nos rankings que medem a aprendizagem.

Sobre os pontos positivos da inserção dos itinerários formativos, os participantes apontaram que melhoraria a formação dos jovens, caso os itinerários fossem ofertados com qualidade, e que no caso de ofertar o quinto itinerário (formação técnica e profissional) auxiliaria os jovens de baixa renda a serem contratados por grandes empresas, pois “na área técnica tem mais emprego e as indústrias contratam mais”. Sobre os pontos negativos da inserção dos itinerários formativos, os participantes apontaram que a possível profissionalização no ensino médio regular, haja vista inserção do quinto itinerário formativo, diminuirá o ingresso no ensino superior, sobretudo dos jovens oriundos da escola pública; a inserção dos itinerários formativos poderá ser voltada para a utilidade de determinado saber gerando “diminuição do pensamento crítico” e aumento na evasão escolar se, por causa dos itinerários o ensino médio for de tempo integral.

Em relação à definição do que compreendem por “educação integral”, de um modo geral, os participantes definiram sob duas perspectivas: por um lado definiram como o domínio de diversos conhecimentos, inclusive conhecimentos necessários à atuação dos jovens no mercado de trabalho (“Educação integral é ter conhecimento de tudo um pouco e também se preocupar com o mercado de trabalho”); e por outro lado, esboçaram uma visão crítica ao definirem a educação integral como o mecanismo pelo qual o governo força os jovens a permanecerem na escola e assim “aprofundar o ensino tecnicista ao invés de humanizar os alunos”.

Os participantes foram solicitados a comparar a proposta de educação integral presente na Reforma do Ensino Médio com a concepção que possuíam de educação integral. As respostas esboçaram o conflito entre a necessidade de uma educação voltada para as demandas do mercado de trabalho e a defesa por uma educação humanista. Os participantes que apontaram que se aproxima, justificaram sua resposta com base na questão anterior, pois têm a compreensão que a oferta do ensino médio por áreas de conhecimento e por itinerários formativos aumenta o arcabouço de conhecimento dos estudantes. Os participantes que apontaram que se distancia, o fizeram por defender que o novo formato do ensino médio visa atender os interesses econômicos.

Questionados sobre de que forma as mudanças da Reforma afetaria o trabalho docente, o principal ponto que os participantes indicaram foi em relação à organização curricular que contemple todos os profissionais formados em

determinadas áreas, o que poderá acarretar que os docentes necessitem atuar em áreas diferentes de sua formação inicial; demonstraram preocupação em relação à contratação de profissionais com “notório saber”, pois compreendem que haverá um descrédito aos profissionais formados em licenciatura; apontaram que a introdução de carga horária EAD também irá diminuir os postos de trabalho; apontaram também que os professores vão precisar se adaptar e se atualizar constantemente devido às inovações tecnológicas que ocorrem na sociedade e a exigência de que a escola acompanhe estas mudanças.

Sobre as dificuldades que a escola enfrentará na reformulação do ensino médio, o principal empecilho apontado pelos participantes foi recorrente em diversos momentos do curso, e diz respeito à precariedade da infraestrutura das escolas públicas e a falta de investimento e materiais e espaços pedagógicos que permitam o desenvolvimento da nova proposta de ensino médio. Também indicaram que há um excesso de conteúdo a ser trabalhado em sala com os alunos, e há diversos fatores que limitam a possibilidade de trabalhar estes conteúdos, com o aumento da exigência devido à reformulação curricular será difícil conseguir “ensinar o básico” (referindo-se ao fato da incorporação dos itinerários formativos no currículo).

Outros pontos que não foram abordadas de modo sistemático nas questões do grupo focal, surgiram na finalização do encontro. Os participantes levantaram questões sobre a possibilidade de o novo formato do ensino médio ter o intuito de diminuir o acesso às universidades públicas, haja vista que haverá a possibilidade de se especializar e/ou adquirir certificados de qualificação para ao trabalho na educação básica, não havendo necessidade de o Estado ofertar educação superior. Outra observação feita pelos participantes tem relação com a obrigatoriedade dos estudantes de cursarem ao menos um itinerário formativo, e exemplificaram que, se em uma determinada escola há apenas o itinerário da formação técnica e profissional, o estudante não deveria ser obrigado a cursá-lo se não for de seu interesse, haja vista que o ensino profissional diz respeito à opção por uma carreira e não deveria servir apenas para integralizar os créditos obrigatórios do ensino médio.

A temática da terceira etapa do curso tem relação específica com a profissionalização no ensino médio regular, e segue a análise de dados proposta por Krueger (2002).

Sobre a escolha dos itinerários na escola em questão e os critérios para realizar tal escolha, os participantes apontaram que: de acordo com o perfil da escola o itinerário adequado seria da formação técnica e profissional, considerando que os estudantes já estão inseridos no mercado de trabalho; também apontaram que os itinerários devem ser escolhidos dentre aqueles componentes curriculares que não são obrigatórios (português e matemática) e que contemplem pelos menos duas áreas distintas. Em relação aos critérios de escolha, apontaram que deveria ser condizente com a realidade sociocultural do contexto em que escola está inserida, com sua infraestrutura e com os possíveis financiamentos realizados pelo poder público; a escolha dos itinerários também deveria ser feita sem prejudicar nenhum docente; também apontaram que não seria possível ofertar os itinerários, pois os estudantes trabalham no contra turno.

Como aspectos positivos da profissionalização no ensino médio, apontaram: a capacitação dos estudantes; “em um cenário ideal” a possibilidade real de escolha do curso técnico; o estímulo aos estudantes que não ingressarão na educação superior. Também apontaram que seria um aspecto positivo para as empresas que reduziriam os gastos com capacitação de profissionais, uma vez que as escolas públicas se encarregarão desta função. A tensão entre interesses econômicos e interesses pedagógicos de uma formação humanista, é evidente em diversos relatos dos participantes, o que demonstra que há por parte de alguns docentes, uma visão crítica a respeito da direção que a educação pública está tomando, bem como percebem que está ocorrendo uma ressignificação da função social da escola e, consequentemente, de seu papel docente.

Como aspectos negativos, apontaram que a formação técnica e profissional nas escolas de ensino médio regular, visa primeiramente à formação de “futuros funcionários” em detrimento da “formação de seres humanos”; o aumento da evasão escolar (ao menos no início do novo formato de ensino); a redução da carga horária destinada aos componentes curriculares básicos (de 800 horas anuais para 600 horas anuais, considerando a carga horária de até 1.800 nos três anos); precarização do ensino profissional, dada a falta de estrutura das escolas públicas de ofertarem cursos técnicos e qualificação profissional com qualidade; a falta de clareza da proposta, que indica a oferta de cursos técnicos, quando na realidade poderá ofertar apenas cursos de qualificação profissional; falta de preparo dos

docentes para atuar na educação profissional.

O aumento da carga horária de permanência dos estudantes na escola, para realização de cursos técnicos e de qualificação profissional aparece tanto como aspecto positivo, quando se refere ao contexto em que a escola está inserida (violência nas ruas, falta de perspectiva dos estudantes etc.) e às oportunidades que um curso técnico gera aos estudantes de baixa renda; quanto como aspecto negativo, na defesa de que o tempo de permanência do estudante na escola pode impedi-lo de trabalhar, aumentando o índice de evasão escolar. Pôde-se perceber um dissenso em relação à escola de tempo integral: por um lado há a compreensão da escola de tempo integral como empecilho na formação dos estudantes, considerando que já são trabalhadores; e por outro lado há a defesa de que a escola de tempo integral poderia ofertar cursos profissionalizantes e assim preparar os estudantes para o mercado de trabalho.

Sobre quais seriam os motivos para a oferta de itinerários formativos em uma área de conhecimento, os principais tópicos apresentados pelos participantes demonstraram a dupla percepção de “educação integral” que apresentaram na segunda etapa do curso. Os pontos recorrentes apresentados foram que os itinerários de especialização serão implantados para aprofundar as habilidades dos diversos componentes curriculares; que os itinerários têm a função de modificar os modelos pedagógicos tradicionais, inserindo a interdisciplinaridade. Em uma visão crítica, apontaram que o objetivo da especialização no ensino médio é criar “proletariado”; também indicaram que o objetivo geral da Reforma do Ensino Médio é diminuir os investimentos públicos nas escolas e abrir a possibilidade de investimentos privados na educação básica, pois as escolas não possuem condições de ofertar os itinerários com qualidade, sendo o “pretexto” para receber auxílio de empresas.

Finalizando esta etapa, os participantes foram perguntados sobre as experiências que já tiveram com a Educação Profissional e Tecnológica em algum momento de suas vidas. Com esta questão sobre os relatos de experiência na educação profissional, buscou-se compreender de que forma os participantes percebem sua relação com a EPT e que limites e possibilidades encontraram no decorrer de suas experiências docentes. As percepções dos participantes variaram entre experiências positivas e bem sucedidas e experiências negativas e frustrantes.

Dentre os relatos de experiências positivas, encontram-se as vivências dos participantes enquanto estudantes do ensino médio concomitante ao ensino técnico, na rede municipal e privada, em que havia condições de infraestrutura para o desenvolvimento das atividades ligadas aos cursos profissionais; a vivência enquanto docente de escola privada que oferta curso técnico, também com boas condições de infraestrutura e materiais para o desenvolvimento do trabalho com qualidade, em que os estudantes são na maioria bolsistas e pelo curso técnico ser uma escolha do aluno, mostram-se interessados e dedicados; a experiência docente em uma instituição pública de ensino voltada à oferta de cursos técnicos para o setor de comércio, em que o participante sentiu necessidade de voltar a estudar para atender as necessidades específicas do curso no qual ministrou uma disciplina.

Os relatos de experiências negativas se relacionam quase em sua totalidade, com aspectos materiais, de infraestrutura e de organização das instituições públicas em que atuaram, por carência de recursos e espaços específicos para as práticas necessárias à formação profissional dos estudantes. Segundo os relatos havia inúmeras dificuldades em relacionar a teoria e a prática nos cursos técnicos, ora por falta de recursos, ora por falta de formação específica. Outro ponto levantado foi que a modalidade de ensino técnico concomitante ao ensino médio, seria o modelo de educação profissional mais proveitoso no qual os docentes atuaram, pois não altera em nada a formação básica dos estudantes e permite que escolham efetivamente seguir uma carreia profissional (em referência a “falsa” possibilidade de escolha proposta pela Reforma do Ensino Médio).

Percebeu-se a partir da fala dos participantes a respeito do quinto itinerário, o cerne da problemática que esta pesquisa buscou evidenciar: a inserção de um itinerário voltado à formação técnica e profissional nas escolas estaduais de ensino regular via Reforma, não representa o modelo de educação profissional que almeja o desenvolvimento integral dos estudantes. Considerando as evidências apontadas pelos participantes, da falta de possibilidades materiais de fornecer uma educação técnica de qualidade nas escolas estaduais de ensino regular, pode-se concluir que o objetivo da Reforma é claro: fornecer um tipo de formação denominada de “profissional”, que, no entanto, se limita a cursos curtos de aperfeiçoamento e de qualificação para ao trabalho, seguindo as necessidades imediatas, produtivas e ideológicas, do mercado de trabalho, sem considerar o que teoricamente defende

que é uma educação preocupada com a diversidade cultural das juventudes e que visa à educação integral dos jovens.


Considerações finais


Da análise das normativas da Reforma, resultou a percepção de que as políticas educacionais para o ensino médio estão mais alinhadas à lógica econômica do que à finalidade ontológica da educação, e o meio pelo qual este alinhamento se define é o discurso em prol da formação dos jovens para o mercado de trabalho, que neste cenário é expresso pela defesa da formação “flexível” e da capacidade de “adaptar-se” às transformações sociais, econômicas e tecnológicas.

Na pesquisa de campo, através do Curso de Formação, percebeu-se que os relatos dos participantes, esboçava uma percepção prévia da relação trabalho- educação e do ensino profissional em nível médio, que foi sendo reelaborada no decorrer do curso. Notou-se que após a terceira etapa do curso os participantes passaram a apropriar-se de determinados conceitos de forma mais elaborada, distinguindo as várias modalidades da profissionalização na educação básica. Outro ponto levantado pelos participantes ao final do curso, que esboça a apropriação dos conceitos relativos à temática da pesquisa, foi o fato de apontarem para uma aparente contradição nos documentos oficiais, em relação ao novo formato do ensino médio, que propõe trabalhos colaborativos ao mesmo tempo em que defende a lógica da competitividade do mercado de trabalho, com o incentivo à qualificação profissional nas escolas de ensino médio regular.

Em decorrência da análise do estreitamento entre a educação pública e aspectos econômicos, a conclusão a que se chega se refere à forma de ensino precário e ilusório que os jovens das camadas populares terão acesso quando da consolidação da Reforma, haja vista que em sua “versão piorada” atingirá negativamente as escolas públicas. O juízo negativo que se faz à proposta da Reforma não é apenas à transposição de valores empresariais para a educação pública, mas uma crítica que é válida para toda forma de ensino que não tenha como fundamento a busca pela autonomia e pelo desenvolvimento do potencial humano em todas as suas dimensões.

Referências


ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.


BRASIL. Lei 13.415/17. Altera as Leis 9.394/96 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e 11.494/07 que regulamenta o FUNDEB e dá outras providências. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2017/lei-13415- 16-fevereiro-2017-784336-publicacaooriginal-152003-pl.html. Acesso em 20 ago. 2020.


             . Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Médio. Brasília, 2018a. Disponível em: http://novoensinomedio.mec.gov.br/#!/saiba- mais. Acesso em 20 ago. 2020.


CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara da Educação Básica. Resolução CNE/ CEB nº 6, de 20 de setembro de 2012. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Brasília, 2012. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=1166 3-rceb006-12-pdf&category_slug=setembro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em 20 de agosto de 2020.


DIAS, Vagno E. M. A educação integrada e a profissionalização no ensino médio. 2015. 239f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/8696. Acesso em 20 de agosto de 2019.


DUARTE, Newton. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? Quatro ensaios crítico-dialéticos em filosofia da educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2008.


FERRETI, Celso João; SILVA, Mônica Ribeiro da. Reforma do Ensino Médio no contexto da Medida Provisória Nº 746/2016: Estado, Currículo e Disputas por Hegemonia. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 38, no. 139, p.385-404, abr.-jun., 2017.


HELAL, Diogo Henrique; ROCHA, Maíra. O discurso da empregabilidade: o que pensam a academia e o mundo empresarial. Caderno EBAPE, Rio de Janeiro, v. 9,

n. 1, p. 139-154, Mar. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679- 39512011000100009&lng=en&nrm=iso. Acesso em 14 de abril de 2020.


KIND, Luciana. Notas para o trabalho com a técnica de grupos focais. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 10, n. 15, p. 124-136, jun. 2004. Disponível em

<http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/202/213> Acesso em 25 de fevereiro de 2020.


KUENZER, Acácia Zeneida. Trabalho e Escola: a flexibilização do Ensino Médio no contexto do regime de acumulação flexível. Revista Educação e Sociedade,

Campinas, v. 38, nº. 139, p.331-354, abr.-jun., 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101- 73302017000200331&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em 03 de setembro de 2019.


KRUEGER. Richard. Designing and Conducting Focus Group Interviews [online] Disponível em: https:// https://www.eiu.edu/ihec/Krueger-FocusGroupInterviews.pdf. Acesso em 25 de fevereiro de 2020.


LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2019.


LEITE, Maykon Stanley Ribeiro Leite; GASPAROTTO, Angelita Moutin Segoria. Análise SWOT e suas funcionalidades. Revista Interface Tecnológica, v. 15, n. 2,

p. 184-195, 30 dez. 2018. Disponível em: https://revista.fatectq.edu.br/index.php/interfacetecnologica/article/view/450/309. Acesso em 26 de fevereiro de 2020.


SCHEIBE, Leda; SILVA, Mônica Ribeiro da. Reforma do Ensino Médio: pragmatismo e lógica mercantil. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 11, n. 20, p. 19-31, jan./jun. 2017. Disponível em: http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/769/721. Acesso em 23 de março de 2020.


SILVA, Mônica Ribeiro da. A BNCC da Reforma do Ensino Médio: o resgate de um empoeirado discurso. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, e214130, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102- 46982018000100301&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 31 de agosto de 2019.


TEIXEIRA, Rosane F. B. et al. Concepções de Itinerários Formativos a partir da Resolução CNE/CEB Nº 06/2012 e da Lei Nº 13.415/2017. In: XIII Congresso Nacional de Educação – EDUCERE, 2017, Curitiba. Disponível em: https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/27280_14159.pdf. Acesso em 03 de setembro de 2019.