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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


Tese de doutorado1


PEREIRA, Célia Barbosa da Silva2. A relação entre movimento feminista e partidos políticos no Brasil no contexto de acirramento da crise capitalista, 2008-2017. 2019. 555 p. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Política Social. Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória.


Resumo expandido3


O trabalho aborda os movimentos sociais contemporâneos, especificamente a sua relação com os partidos políticos no contexto das manifestações massivas e movimentos sociais que começaram a despontar em diferentes países do globo a partir do final da década de 2000. A espontaneidade na origem das manifestações, a recusa de espaços políticos e formas de lutas tradicionais (parlamento, sindicatos, partidos políticos), o perfil jovem dos manifestantes, a horizontalidade na organização, a pluralidade de bandeiras de lutas, a ocupação de espaços públicos e o uso das novas tecnologias da informação e comunicação, foram as principais características destacadas por diversos autores. Essa onda movimentalista trouxe à tona uma crise política expressa ora como crise de legitimidade dos partidos, ora como crise de institucionalidade da função dos partidos e ora como crise da democracia representativa.

A eclosão desta onda foi analisada por autores de diferentes correntes teóricas, como embates contra os efeitos da crise capitalista atual (CASTELLS, 2013; GOHN, 2014a; HARVEY et. al., 2012; BRAGA, 2015). Esta crise é compreendida no trabalho como expressão do desdobramento da crise estrutural do capitalismo de finais dos anos de 1960 (CARCANHOLO, 2017). Tendo em vista que para os movimentos que


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1 Resumo recebido em 23/11/2020. Aprovado pelos editores em 24/11/2020. Publicado em 25/02/21. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.47324

2 Assistente Social. Doutora em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

E-mail: celiabsp@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7662-2197

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9531241164462817

3 Tese defendida em 03 mai. 2019, pelo Programa de Pós-Graduação em Política Social, sob orientação da profª Drª Ana Targina Rodrigues Ferraz, com bolsa FAPES.

surgiram no contexto desta onda, a autonomia e o apartidarismo significam o distanciamento e/ou a negação dos partidos políticos como canais efetivos de representação, perguntamos: esta tendência se aplicaria aos partidos de esquerda e aos movimentos sociais consolidados?

A partir de uma primeira revisão bibliográfica4 do tema sintetizamos três formas possíveis de relações entre movimentos sociais e partidos políticos: 1) relação de distanciamento ou mesmo de negação, 2) relação utilitarista, 3) relação orgânica.

Na primeira, a compreensão dos movimentos sociais sobre o contexto atual os conduz a uma descrença em relação à luta político-partidária pela conquista do poder institucionalizado como via para a universalização de suas conquistas particulares. Há uma compreensão, um tanto fatalista, dos limites do sistema institucional para garantia da democracia real, da corrupção como uma suposta natureza geral dos partidos e dos políticos profissionais, resultando no distanciamento ou mesmo negação dos partidos políticos. Os partidos políticos perdem legitimidade na luta política.

Na segunda, a compreensão dos movimentos sociais sobre o papel do partido na luta política, a partir de um viés utilitarista, gera uma aproximação entre movimentos e partidos focada nas demandas dos movimentos. A relação de aproximação é pragmática. Os movimentos sociais se aproximam de qualquer partido político no poder para o atendimento de suas demandas.

E, na terceira, a compreensão dos movimentos sociais sobre o papel do partido na luta política, a partir de um viés instrumental fundado na orientação ideológica, leva os movimentos sociais a uma maior aproximação dos partidos de esquerda, sobretudo em contextos de crise. Os movimentos sociais demonstram uma compreensão quanto ao papel do partido político como instrumento de mediação na luta política pela transformação social. Os contextos de crise propiciariam uma articulação ainda maior entre estes sujeitos. A relação é caracterizada pelo vínculo orgânico entre estes sujeitos coletivos, que se identificam como parte da mesma luta.

Estas formas de relação entre movimentos sociais e partidos políticos são comuns em diferentes momentos históricos. Assim, questionou-se: que forma de relação (distanciamento/ou negação, utilitarista, orgânica) é hegemônica entre movimentos sociais e partidos políticos de esquerda no Brasil na atualidade? A partir disso, o trabalho busca responder o seguinte problema de pesquisa: Como tem se



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4 Ghiraldelli Jr (1987); Sader (1991); Doimo (1995); Castells (2013); Gohn (2014a) etc.

expressado a relação entre movimento feminista e partidos políticos de esquerda no Brasil no contexto de acirramento da crise capitalista? E toma como objeto de estudo a relação entre movimento feminista e partidos políticos de esquerda no Brasil, no contexto de acirramento da crise capitalista, 2008-2017. Tendo como como objetivo geral demonstrar como tem se expressado esta relação, no período supracitado, propomos a tese de que, no Brasil, a relação atual entre movimentos feministas e partidos políticos de esquerda sinaliza uma relação de novo tipo, baseada na compreensão dos movimentos sociais de que são sujeitos políticos e cumprem a mesma função dos partidos no direcionamento da luta política da classe trabalhadora.

A escolha do movimento feminista deveu-se a inúmeras razões: as mulheres estão entre os segmentos mais afetados pela crise, têm apresentado um protagonismo expressivo no campo das lutas sociais e, historicamente, o movimento feminista fez críticas contundentes aos partidos políticos, inclusive de esquerda. Para a realização da pesquisa empírica elencamos três movimentos feministas de expressão nacional: Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Esses movimentos possuem a peculiaridade de serem movimentos anticapitalistas, auto-organizados, não estão direta e formalmente vinculados a nenhuma organização político-partidária, apresentando-se como autônomos ou não-partidários. São movimentos compostos por outros movimentos cumprindo o papel de articular diversas lutas sociais.

É uma pesquisa social, de natureza qualitativa, que tomou como método o materialismo histórico dialético (KOSIK, 1976) para a análise da realidade. Foi realizado um estudo de caso (CHIZZOTTI, 2001), que utilizou entrevistas em profundidade, guiadas por um roteiro de caráter semiestruturado, com perguntas abertas, realizadas com 14 militantes de referência (7 da MMM, 4 da AMB e 3 do MMC), selecionadas pela técnica "bola de neve”5, e pesquisa documental, realizada


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5 Esta técnica é baseada no método cadeia de referência, que consiste em formar a amostra da pesquisa, usando a indicação de uma ou mais pessoas para se chegar àquelas consideradas por seus pares como potenciais participantes da pesquisa. No caso do estudo apresentado, esta técnica possibilitou chegar às militantes consideradas por outras militantes do mesmo movimento, referência para abordar o tema de pesquisa. A aplicação da técnica começou com nomes indicados por uma pesquisadora dos movimentos em questão e pelos próprios movimentos a partir de seus órgãos ou assessoria de comunicação. Cada militante entrevistada, ao final de sua entrevista, indicava outras militantes do seu movimento, justificando o motivo pelo qual considerava a participação de cada uma delas importante para a pesquisa. A aplicação da técnica foi finalizada quando as indicações chegaram ao ponto de saturação e os nomes começaram a se repetir. O contato foi realizado com todas as mulheres indicadas e as entrevistas foram feitas com todas que aceitaram participar da entrevista.

nos sites oficiais dos movimentos estudados, entre janeiro de 2008 e maio de 2018, a partir da qual foram selecionados 64 documentos (29 da MMM, 16 da AMB e 19 do MMC)6.

O trabalho está estruturado em três partes. A primeira apresenta uma compreensão da crise capitalista atual, abordando seus efeitos sobre as condições de vida e de organização da classe trabalhadora. Aborda as manifestações massivas e movimentos sociais da atualidade como expressões do acirramento da crise capitalista mundial.

A segunda mergulha na temática dos partidos políticos, apresentando o debate da classificação ideológica. Busca nos autores clássicos da teoria marxista e em autores influentes no pensamento socialista e comunista, elementos centrais para entender a teoria da organização política, analisando o papel do partido político em Marx e Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo e Gramsci. Resgata a construção deste campo no Brasil e conclui que os partidos políticos expressam uma orientação ideológica conforme sua posição na luta de classes, contribuindo para a manutenção do sistema ou para sua contestação.

A terceira recupera o desenvolvimento histórico do movimento feminista, resgatando alguns dos debates teóricos que se desenvolveram no seu interior, situando as particularidades desse movimento no Brasil. Apresenta a abordagem teórica do feminismo materialista francófono, que toma a centralidade do trabalho e a divisão sexual do trabalho como pontos de partida para entender as desigualdades decorrentes das relações sociais de sexo.

Para a análise dos dados foram utilizadas as seguintes categorias analíticas: influência ideológica, autonomia financeira, organização, articulação social, articulação política, mobilização, objetivos e luta política dos movimentos estudados. A partir das quais abordamos: a) os desafios e possibilidades reais dos movimentos feministas garantirem sua autonomia política, considerando a dupla militância: mulheres ligadas a partidos políticos que também atuam no movimento; b) a relação estabelecida entre os movimentos feministas e os governos para avanço das suas pautas; c) a compreensão dos movimentos feministas sobre o papel político dos partidos políticos e sobre a prática dos mesmos; d) a relação dos movimentos


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6 Notas públicas, moções de repúdio, textos informativos e de opinião, selecionados a partir das palavras-chaves Movimentos Sociais, Partidos Políticos e Estado, presentes como ideia, conceito ou concepção nos documentos e não somente citada de forma direta.

feministas e outros sujeitos coletivos: movimentos sociais em geral, outros movimentos feministas, igrejas e ONGs; e) os desafios da relação entre movimentos feministas e partidos políticos de esquerda.

Os resultados da pesquisa sustentam a tese defendida. Demonstram que os movimentos estudados no contexto da crise capitalista aproximaram-se mais de partidos políticos no campo da esquerda, estabelecendo uma relação de organicidade, principalmente com a Consulta Popular e o Partido dos Trabalhadores. Esta relação é fundamentada na compreensão de que a transformação social só poderá ser levada a cabo por meio de luta antissistêmica que articule as dimensões do gênero/sexo, da raça/etnia e da classe. O mote “sem feminismo não haverá socialismo” indica o entendimento desses movimentos de que uma sociedade mais igualitária deve se alicerçar na luta pela emancipação da classe trabalhadora, mas também atentar para as especificidades da emancipação da mulher.

A relação estabelecida com a Consulta Popular, PT e PSOL, ainda que em menor medida, é orgânica. A orientação político-ideológica desses partidos influi sobre esses movimentos, mas a relação estabelecida não é a de correia de transmissão. Compartilham princípios, diretrizes e estratégias na construção do processo de organização da classe. Portanto, esses movimentos estabelecem com os partidos do campo da esquerda uma relação de novo tipo, baseada na compreensão de que cumprem a mesma função dos partidos no direcionamento da classe trabalhadora e na organização das massas, ainda que em espaços e formas de organização diferentes. Esses movimentos não negam o partido político como instrumento e espaço importante para a organização da classe trabalhadora.


Referências


BRAGA, R. A pulsão plebéia: trabalho, precariedade e rebeliões sociais. São Paulo: Alameda, 2015.


CARCANHOLO, M. D. Dependencia, super-explotación del trabajo y crisis: uma interpretación desde Marx. Madrid: Maia, 2017 (Colección Claves para compreender la economia).


CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.


CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2001 (Biblioteca de educação. Série 1. Escola; v. 16).

DOIMO, A. M. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Damará: ANPOCS, 1995.


KOSIK, K. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.


GOHN, M da G. Manifestações de Junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014a.


HARVEY, D et al. Occupy: movimento de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo: Carta maior, 2012.


SADER, E. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.