V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Leila de Andrade Linhares Barsted2
1 Texto recebido em 14/12/2020. Aprovado pelos editores em 15/12/2020. Publicado em 25/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.47625
2 Advogada, Membro do Comitê de Especialistas do MESECVI - Mecanismo de Monitoramento da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra das Mulheres da Organização dos
Estados Americanos – OEA. Professora Emérita da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Coordenadora Executiva da CEPIA.
Esse texto tem como objetivo resgatar o percurso do movimento feminista no enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres, em especial no que se refere à refutação do argumento da legítima defesa da honra.
Há 40 anos era comum no Brasil a absolvição de homens que assassinavam suas mulheres, crimes que, desde 2015 são considerados feminicídios. De fato, até meados da década de 1970, o argumento da “legítima defesa da honra” era comumente aceito pelo Tribunal do Júri3 para deixar de punir acusados de terem assassinado suas mulheres ou companheiras, apesar de não haver na legislação brasileira a pena de morte. Esse era um direito previsto na lei no período do Império4 e, mesmo abolido posteriormente, manteve-se na cultura, fortalecido pela Código Civil de 1916 que considerava o homem como chefe da família5 e restringia um conjunto de direitos de cidadania para as mulheres6.
O argumento da legítima defesa da honra vinha acompanhado da acusação contra a vítima. De fato, a defesa dos autores de assassinatos sustentava-se na caracterização do crime como um “crime de amor” provocado pelo comportamento da vítima e pelo seu desejo de quebrar as algemas7. Assim, os jurados, na realidade, acabavam julgando o comportamento das mulheres e não o do seu agressor. Expressões e adjetivações humilhantes, como adúlteras, traidoras, messalinas, diabólicas, relapsas no cuidado com a família e com os filhos, eram usadas pelos advogados de defesa para caracterizá-las como agentes provocadoras de homens honestos, bons chefes de família, trabalhadores que, sem outra alternativa, praticavam o crime.
Esses foram os argumentos para absolver os assassinos de Angela Diniz, morta em 1976, no Rio de Janeiro; de Heloisa Ballesteros, morta em 1976, e Maria Regina Souza Rocha, morta em 1980, ambas em Belo Horizonte; de Cristhel Arvid Johnston, morta em 1978, no Rio de Janeiro; de Eliane de Grammont, morta em1981, em São Paulo. Todos os acusados foram praticamente absolvidos por serem primários e de bons antecedentes. No primeiro julgamento do assassino de Angela Diniz, realizado na cidade de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, esses mesmos
3 O Tribunal do Júri é formado por sete juízes leigos, cidadãos comuns, que julgam os chamados crimes dolosos contra a vida e, certamente, decidem de acordo com seus valores e possíveis preconceitos.
4 Ver a esse respeito HERMANN, Jacqueline e BARSTED, Leila Linhares (1995).
5 Cf BARSTED, Leila Linhares e GARCEZ, Elizabeth (1999).
6 Sobre legítima defesa da honra, ver PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria. BELLOQUE, Juliana (2006)
7Cf. ALMEIDA, Suely (1998).
argumentos foram utilizados. Tanto a absolvição do réu como o aviltamento da vítima recrudesceram as manifestações feministas.
Em 1981, grande manifestação reuniu centenas de mulheres, diante da Igreja de São José, no centro de Belo Horizonte, que exibiam as faixas e cartazes com a bandeira que se tornaria o símbolo da luta do novo feminismo que se anunciava no Brasil - "quem ama não mata”.
No Rio de Janeiro, depois da absolvição do assassino de Angela Diniz, as feministas se mobilizaram defendendo a anulação da decisão do Júri Popular. Em segundo julgamento, foram mais uma vez para as ruas e fizeram vigília em frente do Fórum de Cabo Frio durante o julgamento. A condenação do réu, Doca Street, em 1981, representou a vitória não só do advogado da família de Angela Diniz. Em entrevista, o criminalista Heleno Fragoso reconheceu que a sua vitória, em muito foi possível graças à mobilização das feministas. Os chamados “crimes da paixão” ou “crimes passionais” passaram a ser considerados crimes de ódio. É importante destacar que as mulheres anônimas, negras e pobres assassinadas por seus maridos e companheiros continuavam sem visibilidade na grande imprensa8.
As manifestações dos movimentos feministas se espalharam rapidamente e, entre 1975 e 1985 existia, em quase todos os estados brasileiros, grupos de mulheres que ecoaram a necessidade de uma militância ativa na denúncia das diversas formas de discriminação, contra a violência de gênero na sociedade e no Estado9. Em paralelo à mobilização contra esses crimes, grupos feministas criaram os SOS Mulher para atender as vítimas de violência, prestando orientação e apoio10.
A denúncia da violência contra as mulheres incluía também a denúncia da legislação civil que mantinha dispositivos claramente discriminatórios. O espaço da família, regido, até 1988, pelo Código Civil de 1916, legitimava o poder do marido sobre a mulher e permitia a manutenção de uma cultura de violência nas relações entre os cônjuges, naturalizada como um simples conflito familiar a ser tratado na esfera estritamente privada.
Todo o início da década de 1980 foi marcado pela distensão política, e grandes manifestações de setores progressistas, com a expressiva participação de mulheres, exigiam a redemocratização do país. Esse processo político permitiu, em 1982, a eleição livre para governadores de estados, com a vitória de Franco Montoro, em São Paulo, Tancredo Neves, em Minas Gerais, e Leonel Brizola no Rio de Janeiro. Nesses três estados, em especial em São Paulo, muitas feministas conseguiram a criação dos
8Sobre sexismo e racismo ver CARNEIRO, Sueli (2011)
9 A violência política do Estado contra as mulheres foi especialmente destacada, em 2013, quando a Comissão Nacional da Verdade - CNV colheu relatos de mulheres que foram submetidas à prisão, tortura, estupros e assassinato durante a ditadura militar. Também, a Anistia Internacional tem apontado a violência contra mulheres no sistema prisional cometida por agentes do Estado.
10 Ver a esse respeito SORJ, Bila; MONTERO, Paula (1985).
primeiros Conselhos Estaduais da Condição Feminina, de Delegacias de Mulheres e de abrigos para mulheres em situação de risco de vida.
Data marcante para a democracia e para os movimentos feministas foi 1985. Nesse ano, com a eleição indireta para a presidência da república, deu-se a concretização do retorno à democracia política com a posse de um presidente civil que reconheceu o compromisso assumido com as feministas e criou o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres – CNDM, que, no período de 1985-1989 inaugurou a inclusão de uma agenda feminista no cenário político nacional com histórico impacto no texto da nova Constituição de 1988. A atuação do CNDM11 colocou como questão de Estado as demandas dos movimentos de mulheres que, posteriormente, foram consolidadas na "Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes" (anexada ao final do texto) e entregue ao Presidente do Congresso Nacional Ulisses Guimarães. Dentre as inúmeras demandas aprovadas no texto da Constituição Federal de 1988 foi incluído o enfrentamento da violência familiar12. Em publicação do CNDM “Quando a Vítima é Mulher”13 e com a divulgação pelo IBGE dos resultados da PNAD14, de 1988, ficaram explicitadas estatisticamente as características de gênero desse fenômeno: o principal lócus de ocorrência de violência para os homens era a rua, o espaço público e, para as mulheres, era a casa, o espaço privado. A pesquisa do CNDM revelava, assim, que as violências contra as mulheres eram praticadas por pessoas que privavam da intimidade da vítima, em geral maridos e companheiros. Esse padrão se mantém até os nossos dias.
Muitos foram os avanços a partir de então na luta contra a violência de gênero15
contra as mulheres, nas suas diversas manifestações. Na década de 1990, formaram- se as redes e organizações feministas em todo o país, potencializando a defesa dos direitos das mulheres e a luta contra a violência e o uso do argumento da legítima defesa da honra. Essa atuação dos movimentos feministas ecoou no Superior Tribunal de Justiça que, em 1991, rejeitou a legítima defesa da honra. Em 1993, a Declaração da Conferência de Direitos Humanos das Nações Unidas, fortaleceu a luta feminista ao definir que “a violência contra as mulheres é uma violação de Direitos Humanos”.
11 Sobre a atuação do CNDM ver PITANGUY, Jacqueline (2008) e SCHUMAHER, S. (2008).
12 Artigo 226, § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
13 ARDAILLON, Danielle (1987).
14 IBGE/PNAD - Suplemento sobre Justiça e Vitimização, 1988.
15 Sobre o conceito de violência de gênero ver SAFFIOTI, Heleieth. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero disponível em https://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf.
Em 1994, a Organização dos Estados Americanos – OEA, aprovou a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres - Convenção de Belém do Pará. Na década de 2000, as operadoras do direito de ONGs feministas e de outras instituições atuaram de forma decisiva, sob a forma de um consórcio, na elaboração do texto que deu origem à Lei Maria da Penha16, de 2006. Em 2015 foi aprovada a alteração do Código Penal para incluir o crime de feminicídio. Nessas décadas foram ampliadas as Delegacias de Mulheres, abrigos, centros de referência, núcleos da defensoria pública, juizados de violência doméstica. No entanto, houve pouco investimento em ações de prevenção de todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres, incluindo ações voltadas para a mudança de mentalidades e de padrões de comportamento sexistas ainda calcados na dominação patriarcal. Da mesma forma, não se investiu o suficiente para democratizar as instituições de segurança e justiça, com a perspectiva de gênero e étnico-racial, tendo por preocupação o acolhimento e o acesso das mulheres nesses espaços.
Por outro lado, a partir de 2016, iniciou-se o esvaziamento de políticas públicas voltadas para a resposta à violência contra as mulheres. O Estado, e os grupos que nele estão representados17, se afastaram com enorme rapidez do pactuado com os movimentos feministas. Ressurge, com força, uma ideologia familista, tal como a do Código Civil de 1916, com rígidos papéis sociais nas relações conjugais expressos em uma espécie de contrato de submissão das mulheres18. Além disso, grupos conservadores promovem alterações em Leis Orgânicas de diversos municípios brasileiros para proibir a discussão das questões de gênero no sistema de ensino, e que, positivamente, têm sido rejeitadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Da mesma forma, a magnitude da violência contra as mulheres, em especial nas relações interpessoais, revela o quanto a vida privada não se democratizou. Os índices de violência de gênero contra as mulheres, incluindo o de feminicídio íntimo, são extremamente altos, conforme dados do IPEA. E mais preocupante ainda é a retomada do argumento da legítima defesa da honra. O Júri Popular continua absolvendo ou condenando a penas mínimas homens que assassinaram suas mulheres alegando esse argumento. Quando o Ministério Público e os advogados das
16 Sobre o processo de elaboração dessa lei pelas feministas ver CAMPOS, Carmen (org) 2011.
17 Junte-se a isso a liberação de armas, os discursos antidemocráticos, sexistas, racistas e homofóbicos.
18 A esse respeito ver PATEMAN, Carole (1993) e BOURDIEU, Pierre (1999).
famílias das vítimas chegam a recorrer ao Superior Tribunal de Justiça – STJ, esse órgão do Poder Judiciário tem rejeitado o argumento da legítima defesa da honra e determinado a realização de novo julgamento, mas nem todos recorrem. Em uma posição considerada firme, o Ministro do STJ, Rogerio Schietti Cruz, rejeitou recurso de homem denunciado por tentar matar a esposa e foi claro ao destacar que, desde 1991, o STJ rejeita, com veemência, a tese de legítima defesa da honra e que “….Em um país que registrou, em 2018, a quantidade de 1.206 mulheres vítimas de feminicídio, soa no mínimo anacrônico alguém ainda sustentar a possibilidade de que se mate uma mulher em nome da honra do seu consorte (…) Não vivemos mais períodos de triste memória, em que réus eram absolvidos em Plenários do Tribunal do Júri com esse tipo de argumentação. Surpreende ver ainda essa tese sustentada por profissionais do direito em uma Corte Superior”.
No entanto, retrocessos podem ocorrer com muita velocidade. Em 2020, em um caso de tentativa de feminicídio ocorrido em Minas Gerais, o Tribunal do Júri acolheu a tese da legítima defesa da honra e absolveu o acusado. Em sucessivos graus de apelação, o Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal Federal – STF, para a anulação desse julgamento. Em decisão totalmente oposta à do Superior Tribunal de Justiça, a Primeira Turma do STF, por 3 votos a 2, concedeu um habeas corpus para rejeitar o recurso do Ministério Público pela realização de um novo julgamento, considerando que a decisão do Júri Popular é soberana e que os jurados podem decidir pela absolvição do réu a partir de suas convicções íntimas. Os Ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso votaram a favor de um novo julgamento e questionaram a legitimidade da argumentação baseada na honra ferida em pleno século XXI. O caso voltará a ser votado no STF. Em Artigo ao Jornal El País, as feministas dirigem-se ao STF exortando essa Corte para que não vire as costas para a longa luta das mulheres contra a impunidade agasalhada na tese da legítima defesa da honra, não esqueça as milhares vítimas de feminicídio no Brasil, não abandone os estándares internacionais reconhecidos há longo tempo pela Constituição Brasileira de 198819.
19Ver PIMENTEL, Silvia, BARSTED, Leila e SEVERI, Fabiana artigo publicado no Jornal El País 20 de outubro de 2020, disponível em https://cepia.org.br/2020/10/21/defesa-da-honraem-2020-o-stf-nao- pode-vira
Nesse contexto, os movimentos feministas retomam a bandeira lançada na década de 1970 - Quem ama não mata, num claro movimento de que é preciso voltar às ruas.
ALMEIDA, S. Feminicídio: algemas (in)visíveis do público-privado. Rio Janeiro: Ed. Revinter, 1998.
ARDAILLON, D. Quando a vítima é mulher. Brasília, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, 1987.
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HERMANN, J. e BARSTED, L. L. O Judiciário e a Violência contra a mulher: A ordem legal e a (des) ordem familiar. Rio de Janeiro: CEPIA, 1995.
PATEMAN, C. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1993. PIMENTEL, S.; PANDJIARJIAN, V; BELLOQUE, J. “Legítima Defesa da Honra”
Ilegítima impunidade de assassinos. Um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina. In: CORRÊA, M; SOUZA, É. R. de (org.). Vida em família: uma perspectiva comparativa sobre “crimes de honra”. Campinas: Editora da Unicamp, p. 65-134, 2006.
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SCHUMAHER, S. (2008) O lobby do batom, para dar o nosso tom. Cadernos de Crítica Feminista, ano 2, nº 1, dez. 2008. Pernambuco: Edições SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia.
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