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V.19, nº 39, 2021 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


TESE DE DOUTORADO1


OLIVEIRA SILVA, Cássio José de2. A distopia do mérito: desigualdades escolares no ensino médio brasileiro analisadas a partir do ENEM. 2019. 223 p. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2019.


Resumo expandido


Pelo menos desde o final do século XVIII, há uma grande expectativa projetada sobre o potencial da educação pública para fomentar a igualdade de oportunidades entre as diferentes classes sociais de sociedades capitalistas (LOPES, 2008). No entanto, essa tendência não é percebida em muitos países onde o capitalismo se desenvolveu de forma periférica e dependente. Um dos principais impedimentos para a consolidação desse ideal, oriundo da filosofia burguesa do liberalismo, é a influência das desigualdades de origem social sobre as desigualdades educacionais (FRIGOTTO, 2010).

Algumas evidências sobre o Brasil, por exemplo, indicam que as desigualdades escolares em determinados níveis de ensino são persistentes e/ou aumentaram recentemente, mesmo com a maior escolarização da população (BRITO, 2017). Depois de quase um século desde a estruturação de um sistema público de educação de abrangência nacional, o país ainda é marcado por níveis expressivos de exclusão escolar e desigualdades educacionais (SILVA, 2015). Nesse cenário, o ensino médio é, sem dúvidas, a etapa mais crítica. Isso porque são muitos os jovens que ainda estão fora da escola no país (mais de 1,5 milhão poderia estar no ensino médio) e, entre os que estão inclusos, a precarização e o sucateamento das condições gerais da oferta


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1Resumo recebido em 14/01/2021. Aprovado pelos editores em 19/01/2021. Publicado em 27/05/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i39.48130

2Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Analista de Avaliação Educacional no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: cassiosilva.cs@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2248- 1186. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9029030525460803.

escolar reproduzem as desigualdades de origem social para a maioria (KRAWCZYK; FERRETI, 2017).

A despeito de um significativo crescimento das matrículas nessa etapa, ocorrido mais fortemente a partir de 1990 – o que evidencia maior acesso e conclusão dessa etapa pelas classes sociais mais pobres e vulneráveis –, as desigualdades de condições da oferta educacional no país constituem um dos maiores desafios relacionados à sua efetiva democratização (KRAWCZYK; SILVA, 2017). Diante desse cenário, entre 2015 e 2019, desenvolvemos uma pesquisa que serviu de base para a elaboração da minha tese de doutorado, cujo objetivo foi investigar como se estruturam as desigualdades educacionais no ensino médio brasileiro.

A literatura sobre o tema das desigualdades escolares descortina uma tendência histórica que nos parece bastante relevante para analisar o caso brasileiro. Nela, nota-se a existência de pelo menos três propriedades conceituais que podem descrever o modo como as desigualdades escolares se manifestam no interior dos sistemas de ensino, quais sejam, pelas noções de inclusão, progressividade e segmentação (MULLER; RINGER; SIMON, 1987).

Inicialmente, pela noção de inclusão, podemos verificar se o atendimento do sistema público educacional é suficiente frente a uma determinada demanda social em um contexto histórico e geográfico específico. Já a noção de progressividade envolve a capacidade de incluir nesse atendimento educacional a população mais pobre e em condições de vulnerabilidades socioeconômicas, de modo que se garanta não apenas o acesso, mas também a permanência e a conclusão da escolarização para todos os grupos sociais. Por último, a segmentação é um conceito que descreve um determinado tipo de organização interna da oferta de educação, marcada pela subdivisão institucional e/ou formativa do sistema educacional, capaz de influenciar, direta ou indiretamente, as chances de acesso dos estudantes às trajetórias escolares de maior ou menor prestígio e valorização social (VIÑAO, 2002).

A partir desses conceitos, analisamos algumas fontes de dados sobre o ensino médio brasileiro relativas ao período de 1998 a 2014, procurando diagnosticar: I) tendências gerais no crescimento das matrículas para essa etapa e a população em idade escolar que ainda se encontra fora da escola; II) o perfil socioeconômico e cultural dos jovens que realizaram o ENEM e passaram pelo ensino médio nesse período; III) a relação que essa população manteve com o trabalho durante a

escolarização; IV) as tendências de suas trajetórias escolares (tipo de escola, turno, modalidade); e V) a relação desses aspectos anteriores com o desempenho no ENEM. A tese foi estruturada em sete capítulos, sintetizados a seguir.

No capítulo 1, procuramos esclarecer as particularidades do uso de nossos dados, as características mais elementares da população do ENEM e sua relação com o ensino médio brasileiro. Descrevemos também as principais diferenças das versões do questionário usado pelo INEP entre os anos selecionados, bem como as dificuldades e os desafios enfrentados na análise.

No capítulo 2, descrevemos as principais tendências encontradas na constituição dos primeiros sistemas nacionais de ensino na Europa e apresentamos uma parte das discussões sobre as desigualdades escolares a partir das categorias teóricas usadas na pesquisa – inclusão, progressividade e segmentação.

No capítulo 3, à luz do que apresentamos sobre os exemplos europeus, buscamos elencar os principais elementos históricos para a compreensão de especificidades na constituição do sistema educacional no Brasil, assim como algumas das modificações institucionais mais marcantes do seu desenvolvimento.

No capítulo 4, analisamos parte das características do ensino médio no Brasil, as tendências percebidas na expansão de suas matrículas, bem como alguns desafios para sua efetiva democratização. Também fizemos um esforço para evidenciar alguns aspectos das desigualdades sociais no país e como elas afetam as condições de escolarização da juventude. Com base nessas informações, examinamos como as mudanças no formato e na organização dessa etapa, instituídas pela Lei nº 13.415 de 2017, podem impactar as desigualdades escolares.

No capítulo 5, fizemos uma apresentação sobre o desenvolvimento dos principais sistemas de avaliações educacionais no Brasil e analisamos seu papel na gestão dos sistemas de ensino. Abordamos, também, as principais especificidades do ENEM, sua função social e as modificações que o exame sofreu ao longo do tempo, desde a sua criação.

No capítulo 6, investigamos o perfil socioeconômico e cultural dos estudantes, as possíveis vinculações com o trabalho e parte das características de suas trajetórias escolares. Procuramos articular ainda, em conjunto com as informações coletadas via ENEM, as variáveis censitárias (Censo Escolar) e amostrais (PNAD) sobre essa etapa, articulando os dados com as noções de inclusão e progressividade.

Por fim, no capítulo 7, analisamos como a expansão do ensino médio ao longo dos últimos anos e o crescimento da demanda pela realização do ENEM cumprem, de maneira controversa, não só a função de abertura do sistema educacional às classes sociais historicamente segregadas desse direito, mas também a de acentuação da seleção escolar nos níveis mais altos do sistema educacional brasileiro, que é perceptível pelo modo como são produzidas as desigualdades escolares no interior do próprio sistema de ensino.

Nossos resultados evidenciam que, apesar de importantes avanços nos últimos anos, com maior acesso dos grupos sociais mais vulneráveis ao ensino médio e ao ENEM – sobretudo dos mais pobres, negros e moradores das regiões menos desenvolvidas do país –, há que se pautar os inúmeros problemas nas condições gerais de escolarização desses grupos. Os resultados sugerem que variáveis como sexo, renda familiar, cor, escolaridade da família, região de moradia e trajetória escolar (redes públicas estadual, federal e privada) têm um peso determinante nas desigualdades da distribuição social dos conhecimentos escolares. Esse fenômeno é produzido, entre outros fatores, pela crescente segmentação da oferta da educação de nível médio no país entre as redes públicas estaduais, as escolas privadas e a rede pública federal. Essa segmentação se caracteriza pela existência de determinados “circuitos escolares” no ensino médio, que garantem posições de maior ou menor vantagem no desempenho dos estudantes no ENEM. Essa configuração institucional do sistema de ensino brasileiro faz com que a aposta meritocrática para o sucesso escolar seja uma espécie de distopia em países com níveis de desigualdades semelhantes aos do Brasil.


Referências


BRITO, Murillo Marschner Alves de. Novas tendências ou velhas persistências? Modernização e expansão educacional no Brasil. Cadernos de Pesquisa, v. 47, n. 163, p. 224–263, 2017.


FRIGOTTO, Gaudencio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Ed. Cortez, 2010.


KRAWCZYK, Nora; OLIVEIRA, Cássio José de. Desigualdades educacionais no Ensino Médio brasileiro: uma análise do perfil socioeconómico de jovens que realizaram o Exame Nacional do Ensino Médio. Revista Sensos-e PORTO ICRE 17, v. IV, n. 1, p. 12–23, 2017.


KRAWCZYK, Nora; FERRETI, Celso João. Flexibilizar para quê? Meias verdades da “reforma”. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 11, n. 20, p. 19-31, 2017.


LOPES, Eliane Marta Teixeira. As origens da educação pública: a instrução da revolução burguesa do século XVIII. Belo Horizonte, MG: Ed. Argvmentvum, 2008.


MÜLLER, Detlef; RINGER, Fritz; SIMON, Brian. The Rise of the Modern Educational System: estructural change and social reproduction 1870-1920. New York: Cambridge University Press, 1987.


SILVA, Monica Ribeiro da. Direito à educação, universalização e qualidade: cenários da Educação Básica e da particularidade do Ensino Médio. Jornal de Políticas Educacionais, v. 9, n. 17 e 18, jan./jun. e ago./dez. 2015.


VIÑAO, Antonio. Sistemas Educativos, Culturas Escolares Y Reformas: Continuidades Y Cambios. Madrid: Ediciones Morata, 2002.