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V.19, nº 38, 2021 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


O GÊNERO DO TRABALHO OPERÁRIO: CONDIÇÕES DE TRABALHO, DIVISÃO SEXUAL E PRÁTICAS SOCIAIS EM INDÚSTRIAS METALÚRGICAS DOS SEGMENTOS AUTOMOTIVO E ELETROELETRÔNICO. ¹; ²


Liliane Bordignon3


Qual o lugar do trabalho da mulher na indústria metalúrgica brasileira nos anos 2010? Essa é a pergunta que conduz o livro de Thaís Lapa, recolocando no campo das ciências sociais a importância de se pesquisar as particularidades das condições e da organização do trabalho fabril de mulheres no tempo presente. A autora, que no apêndice do livro mostra-se, ela mesma, filha de metalúrgico de grandes montadoras do ABC Paulista e observadora das mudanças na região brasileira que mais concentrou fábricas e lutas operárias no século XX, apresenta uma relevante contribuição à sociologia do trabalho com essa publicação. Dessa forma, oferece ao leitor(a) dados primários e análises pertinentes àqueles que buscam compreender a sociohistória das metamorfoses do trabalho, sem perder de vista as relações de sexo e classe, entendidas como consubstanciais na conformação das relações sociais.

O livro é resultado de pesquisa de doutorado, realizada entre os anos de 2015 e 2019, por meio da qual a autora coletou e analisou 48 depoimentos de operárias(os) do setor metalúrgico. Uma parte dessas(es) trabalhadoras(es) consultadas(os) estava vinculada às empresas montadoras de veículos de passeio ou às fornecedoras de autopeças do ABC Paulista e, outra parte, às indústrias eletrônicas da linha verde4 no interior de São Paulo. Trata-se de empresas transnacionais “que ocupam posição de ‘ponta’ das cadeias produtivas internacionais”, realizando a montagem final dos produtos no Brasil (p.52). Na década de 1970, o estado de São Paulo detinha


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1 Resenha recebida em 10/02/2021. Aprovada pelos editores em 12/02/2021. Publicado em 25/02/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i38.48727.

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2 Livro publicado por Thaís Souza Lapa, em 2020, pela Editora Lutas Anticapital, Marília/SP (563p). Doutora em Educação - Faculdade de Educação da Unicamp (2020).

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E-mail: lilianebordignon@yahoo.com.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/7691860854267371. ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-2865-3332.

Linha verde se refere a empresas do setor eletrônico que montam telefones celulares e equipamentos de informática. A linha verde “é a responsável pela fabricação de desktops, notebooks, impressoras, servidores e outros periféricos de informática, além de aparelhos de telefonia celular” (p.93).

aproximadamente 60% do valor de transformação industrial do país, concentrada na região do ABC. Atualmente, mesmo que o estado concentre a participação na transformação industrial do país, houve um deslocamento da produção para o interior (Campinas, Taubaté, São José dos Campos, Sorocaba), que em 2004 detinha 62% do valor produzido no estado (p.108-109).

A autora realizou visitas em duas dessas fábricas observando o processo produtivo, o que tem se tornado uma prática científica mais difícil nos últimos anos, devido à resistência das empresas. A partir desses dados, ela traça as semelhanças e diferenças entre o trabalho de homens e mulheres, abordando, principalmente, as relações de trabalho constatadas em quatro dessas empresas: duas automotivas e duas eletrônicas. Com isso, o(a) leitor(a) é capaz de compreender a posição dessas indústrias no setor produtivo brasileiro e a organização do trabalho nas fábricas, as divisões entre os sexos, seus postos, ritmos, movimentos, salários, formação etc.

O texto está organizado em quatro capítulos, além da introdução, conclusão e apêndices. Em resumo, no primeiro capítulo, é apresentada a configuração do trabalho metalúrgico no Brasil; no segundo, as formas históricas de segregação das mulheres no trabalho industrial; e no terceiro e quatro são reveladas as condições de trabalho das operárias nas referidas empresas metalúrgicas e a experiência de trabalho nesse contexto. A partir dessa estrutura, caracterizando as condições de trabalho nas fábricas e as práticas sociais das operárias a partir de dados primários, a autora evidencia “como o trabalho é diferencialmente atribuído e valorado entre os sexos” (p.29), demonstrando que as mulheres estão segregadas nos postos mais desvalorizados, penosos e com baixa remuneração.

Houve deslocamento de parques produtivos pelo mundo, associados às novas formas de organização do trabalho flexível, sob a égide do capital financeiro. A análise chama atenção para as particularidades do Brasil, ressaltando as formas de rebaixamento das condições de trabalho e o forte processo de precarização da indústria. Nesse sentido, posiciona o(a) leitor(a) sobre a situação da classe trabalhadora no país sem homogeneizá-la, demonstrando as particularidades das ocupações e postos de trabalho. Coloca em evidência como as operárias, principalmente no setor eletrônico, são fortemente atingidas pelas mudanças, acometidas pela dupla jornada (trabalho produtivo e doméstico) e pela segregação em postos rebaixados em termos ergonômicos e salariais, submetidas a condições

penosas. Em geral, as trabalhadoras são escolarizadas, a maioria havia cursado o ensino médio, tanto no setor automotivo como no eletrônico, o que não se reflete em seus postos de trabalho.

Thaís Lapa demonstra que no processo de “realinhamento neoliberal” (2016- atual) o setor automotivo está passando por um movimento de precarização, aproximando-se da configuração do setor eletroeletrônico. Afirma a autora: “o segmento automotivo (...) segue o caminho da desnacionalização dos conteúdos fabricados no Brasil que já trilha o eletroeletrônico, o que redunda na redução da participação dessa indústria na economia e na geração de empregos do país” (p.145). Essas transformações estão levando a uma remasculinização do setor automotivo, que só passou a acolher mulheres com muita resistência e foram elas as primeiras a serem demitidas ou colocadas em layoff. Segundo a autora, a mixidade no trabalho metalúrgico é frágil, o que significa que mesmo ocupando postos idênticos, homens e mulheres exercem trabalhos diferentes e recebem salários desiguais.

A forma que assume o trabalho na indústria é revelada pela voz das trabalhadoras(es), no sentido conferido por E. P. Thompson, conformando na pesquisa um diálogo entre a experiência operária e os estudos brasileiros e franceses sobre as relações sociais de sexo no trabalho. Dessa forma, a autora reposiciona a análise do “gênero do trabalho operário” em um contexto histórico no qual grandes montadoras estão fechando suas fábricas no ABC Paulista e aprofundando o processo de desindustrialização da região e aumentando os índices de desemprego. As práticas sociais de operárias são compreendidas e caracterizadas principalmente em diálogo com estudos das sociólogas Danièle Kergoat e Helena Hirata, aportes teóricos da pesquisa. Essas práticas são analisadas considerando o contexto de mudanças na organização do trabalho, no qual elas foram atingidas pelo princípio da flexibilidade, acompanhado por processos de precarização laboral que atingem de forma diferenciada os gêneros. Essas transformações se estabeleceram após um período de desenvolvimento social nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2015), o que as tornou ainda mais complexas. Nesse sentido, uma das contribuições trazidas pelo texto para a análise da divisão sexual do trabalho no Brasil é revelar o movimento de precarização do setor metalúrgico Paulista nesse processo de inflexão neoliberal – um setor historicamente masculino e com forte

atuação sindical – que tem aproximado a experiência de trabalho dos homens das circunstâncias precárias vivenciadas pelas mulheres no trabalho há tempos.

Thaís Lapa demonstra que as relações de conflito entre homens e mulheres, na fábrica e na sociedade, promovem diferentes tipos de violência sexista. Os homens acabam se protegendo em grupos e subjugando as mulheres, que frequentemente não são vistas como trabalhadoras e profissionais, mas “apenas como mulher”, reproduzindo uma ordem patriarcal de gênero. Elas são, em geral, mais qualificadas que os homens, no entanto, segundo os depoimentos, são desvalorizadas e desacreditadas em alguns tipos de postos. No setor eletrônico, marcado pela fragmentação de tarefas, as mulheres são alocadas nos postos com mais repetição de movimentos, bastante taylorizados, sem revezamento e em ciclos curtos, resultando em adoecimento laboral a longo prazo. O setor automotivo também é marcado por essas características, “aqui é bem Chaplin” (p.304), afirma um dos trabalhadores entrevistados, ainda que as condições sejam melhores em comparação ao eletrônico.

Nos depoimentos coletados é possível verificar que as(os) trabalhadoras(es) possuem problemas de saúde decorrentes do trabalho, no entanto, muitos deles não são reconhecidos como laborais. Nas fábricas, elas (e eles) estão submetidas a riscos de acidentes; riscos químicos; adoecimentos relacionados às más posturas, carregamento de pesos e trabalho repetitivo e adoecimentos psíquicos (p.361). O adoecimento de mulheres devido a execução de trabalhos repetitivos ou a tensões e assédios no ambiente laboral são os mais questionados, promovendo um ocultamento dos problemas. Os trabalhadores acidentados e/ou adoecidos são discriminados nas empresas, segundo uma trabalhadora entrevistada: as “pessoas que têm restrição médica, automaticamente o encarregado vê com maus olhos, então, ele tenta dificultar as coisas para eles também” (p.433). A autora ressalta que a sobrecarga promovida pelo trabalho doméstico nas trabalhadoras é completamente desconsiderada.

Os sindicatos representantes de trabalhadores das metalúrgicas, majoritariamente masculinos, são muitas vezes refratários às pautas das trabalhadoras. Os coletivos de mulheres no interior dos sindicatos têm sido um espaço no qual elas têm podido apresentar e discutir suas particularidades e demandas. Em geral, são auto-organizados pelas mulheres em busca de espaços nos colegiados. É ali que as mulheres podem reivindicar direitos específicos, como extensão da licença

maternidade, aumento salarial, reconhecimento do adoecimento laboral, combate ao assédio moral e sexual no trabalho etc. As trabalhadoras têm dificuldade de até mesmo participar do sindicato devido ao peso do trabalho doméstico, nas palavras de uma delas: “a mulher não, ela tem que se preocupar com quem ela vai deixar o filho, como que vai ser na hora do almoço, até que horas vai, como ela vai e como volta. Tem toda uma ‘fábrica paralela’ na cabeça das mulheres” (p.458). O livro de Thaís Lapa contribui com a compreensão dessas “duas fábricas paralelas” nas quais as mulheres trabalham: a metalúrgica e a casa. Por isso, é uma leitura recomendada àqueles(as) que querem compreender a produção de mercadorias e da vida no tempo presente.