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V.19, nº 39, 2021 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


OCUPAÇÕES SECUNDARISTAS NO BRASIL EM 2015 E 2016:

“é preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir o que realmente diziam e dizem as e os ocupas”


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Foto: Giórgia Prates, 2016.


Entrevista1 com Luis Antonio Groppo (UNIFAL), realizada por Ronaldo Araújo2 (UFPA) e Mônica Ribeiro da Silva3 (UFPR).


A Trabalho Necessário traz uma entrevista com um jovem pesquisador da Universidade Federal de Alfenas. Professor do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade, Luís Antonio Groppo coordena uma pesquisa nacional, que articula pesquisadores de 12 instituições de


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1 Entrevista recebida em 03/04/2021. Aprovada pelos editores em 06/04/2021. Publicada em 27/05/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i39.49540

2 Doutor em Educação pela UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais. Superintendente de Assistência Estudantil e Professor do Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação Básica da UFPA - Universidade Federal do Pará. E-mail: rlima@ufpa.br;

Lattes: http://lattes.cnpq.br/7901626430586502; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5982-793X.

3 Doutora em Educação. Professora Titular na Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Observatório do Ensino Médio. E-mail: monicars@ufpr.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/1079110450785932. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1729-8742.

ensino superior, sobre as ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016, que foram as primeiras e mais fortes ações de resistência à reforma do ensino médio que ora ganha materialidade nas unidades federativas.

Luís Groppo tem a juventude como principal tema de pesquisa e não foge ao debate. Critica a perspectiva estrutural-funcionalista e as teorias “pós-críticas” sobre juventude e propõe uma perspectiva dialética para pensar a juventude, tomando o conceito de classe social como uma referência importante.

Nessa entrevista, ele discorre sobre o movimento de resistência dos estudantes secundaristas à reforma do ensino médio implementada por meio da Medida Provisória 746/2016, editada pelo Governo de Michel Temer um mês após o golpe dado no Governo de Dilma Roussef. Destaca Groppo que os Ocupas apontaram o caráter impositivo da Reforma, rejeitaram os itinerários formativos e o fim de um único percurso formativo e criticaram o “ensino em tempo integral” proposto e o iminente fim do ensino médio noturno. O entrevistado, além de dar voz aos jovens, se posiciona quanto ao conteúdo da reforma, discute as tendências das pesquisas sobre juventude e procura indicar lições possíveis acerca do movimento de ocupações.

A entrevista foi feita pelos organizadores desse número, Ronaldo Araujo (UFPA) e Monica Ribeiro da Silva (UFPR), no mês de dezembro, realizada à distância em função do isolamento social necessário para o enfrentamento da Pandemia do Covid-19.


Ronaldo e Mônica: Olá. O tema de nosso número temático da Revista Trabalho Necessário é a reforma do ensino médio, em curso nos diferentes estados brasileiros. Você é um pesquisador que tem se ocupado do tema da Juventude e mais recentemente vem coordenando uma pesquisa nacional acerca do movimento de ocupação que ocorreu nas escolas de educação básica a partir do ano de 2016, inicialmente como resistência à Medida Provisória 746/2016, que implementava essa reforma (depois transformada na Lei Federal 13.415 de 2017). Como você avalia a reforma do ensino médio em curso?

Luís Groppo: Olá, Ronaldo e Mônica, é uma grande alegria dialogar com vocês. Parabéns pela iniciativa desse dossiê, tão necessário e certamente revelador dos retrocessos da própria proposta da Reforma e de suas primeiras aplicações. É uma alegria reencontrar a Mônica, com quem pude dialogar e aprender tanto em um evento na Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba, em 2018, sobre o Ensino Médio, afora seus próprios trabalhos, incluindo o belo livro do qual participou da organização sobre as ocupações no Paraná em 2016.4 Também é um prazer reencontrar o Ronaldo, que tem feito parte da pesquisa nacional sobre as ocupações secundaristas, me recebeu com tanto carinho em Belém do Pará em 2019 e, junto com a Verena, sua orientanda, escrevemos um artigo sobre as ocupações no Pará.

O tema da juventude tem marcado minha trajetória como pesquisador, me levando, via os movimentos estudantis, à Educação. A atual pesquisa que coordeno, com financiamento do CNPq, “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: formação e autoformação das e dos ocupas”, tem envolvido 12 Instituições de Educação Superior e entrevistado jovens que ocuparam suas escolas em 2015 e 2016 em 10 estados do país, envolvendo todas as regiões, incluindo o Pará do Ronaldo e o Paraná, da Mônica, além de Ceará, Goiás, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Sobre a Reforma do Ensino Médio, penso que as e os ocupas de 2016 construíram leituras sobre a então MP746 bastante profundas e certeiras, inclusive por meio de muitos estudos e debates, de forma autônoma ou em diálogo com docentes e militantes. Ocupas apontaram, primeiro, o caráter impositivo da Reforma, por meio de uma Medida Provisória, sem diálogo com docentes e discentes, alegando (falso) caráter emergencial. Em resposta, ocupas mergulharam em estudos sobre leis, mecanismos legislativos e processos políticos, conhecendo suas contradições e as formas com que as próprias instituições políticas vinham e vêm se fraudando. Segundo, ocupas rejeitaram os itinerários formativos, por envolverem, primeiro, o fim da garantia da oferta de disciplinas que poderiam munir estudantes de conhecimentos críticos e formativos fundamentais, inclusive as recentemente conquistadas Sociologia e Filosofia. Também rejeitavam o fim de um único percurso formativo no ensino médio, com acesso formal a uma base comum de saberes, o que foi


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4 PRATES et al. (orgs.). Ocupar e resistir. Memórias de ocupação. Paraná 2016. Curitiba: UFPR, Setor de Educação, 2017, 192 p.

interpretado como uma lesão na igualdade formal nas trajetórias escolares na Educação Básica. Os itinerários diversos antecipavam escolhas decisivas sobre o destino escolar, restringindo campos profissionais futuros, afora a percepção de que, dificilmente, todos os locais teriam condições de abrigar escolas que oferecessem os itinerários em sua totalidade, impedindo até mesmo o direito desta escolha precoce. Terceiro, era criticado o ensino em tempo integral e o iminente fim do ensino médio noturno. A proposta do tempo integral se contrasta com a realidade da precariedade das escolas e do trabalho docente, mesmo com o tempo parcial, afora a contradição com a própria Proposta de Emenda Constitucional (PEC)241/2016, depois PEC55/2016 que, tornada Emenda Constitucional n. 55, congelou os gastos sociais por 20 anos – cujo rechaço também se tornou pauta do movimento das ocupações no 2o semestre de 2016. Sobre o fim do ensino médio noturno, mesmo que tenha diminuído a sua procura, ainda é visto como alternativa para quem precisa ou deseja trabalhar enquanto estuda. Há aqui uma nova lesão a jovens das classes populares, ao inviabilizar a opção (e a necessidade) de trabalhar e estudar ao mesmo tempo, ainda que de modo intermitente. Quarto, havia a percepção correta da MP746 como novo passo para reforçar o caráter classista e reprodutor do Ensino Médio, agora de modo formal, pois não haveria mais um único ensino médio, mas vários, cada qual mais “adequado” ao grupo ou classe social da família de origem.

Entre ocupas não havia ainda tanto a percepção de outras armadilhas na Reforma, oriunda da sua formulação por intelectuais orgânicos do capital via fundações empresariais: a venda de horas formativas e material didático aos sistemas públicos por empresas educacionais privadas, algo que a Mônica nos mostrou em nosso debate na UFSCar em 2018.


Ronaldo e Mônica: Há uma pesquisa da Fundação Victor Civita5 em que seus organizadores chegam à conclusão de que os jovens pobres do Brasil “desejam trabalhar” (não que precisem trabalhar) e essa


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5 “Os entrevistados (jovens pobres) parecem compreender o trabalho – antes de completar o ensino médio – como algo altamente desejável, independentemente do que pensam seus pais e de suas necessidades econômicas imediatas” (CEBRAP, 2013, p. 145). CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. O que pensam os jovens de baixa renda sobre a escola. São Paulo: Fundação Victor Civita. 2013. Disponível em https://fvc.org.br/estudos. Acessado em 12 de janeiro de 2017. A Fundação Victor Civita é vinculada ao Grupo Abril, que edita veículos da grande mídia como a Revista Veja. Faz parte do Movimento Todos Pela Educação, que congrega os interesses do grande empresariado para a área de educação no Brasil.

pesquisa serviu para justificar a reforma do ensino médio em curso. Como você avalia essa afirmação? É essa a única alternativa colocada para a juventude brasileira pobre que conclui o ensino médio? A inserção imediata no trabalho?

Luís Groppo: Outra pesquisa mais séria, feita pelo Instituto Cidadania e pela Fundação Perseu Abramo em 2003 e 2004, que forneceu importantes dados para a formulação de políticas públicas de juventude nos anos seguintes no Brasil, apontava então a centralidade do trabalho para as juventudes brasileiras, e não apenas das classes populares.6 O trabalho era a principal preocupação delas, ao lado da educação. A pesquisa concluía que as juventudes brasileiras não pensavam sua condição juvenil como uma moratória em relação ao trabalho, ou seja, como mero adiamento da obrigação de trabalhar, e a própria educação se pautava pelo trabalho futuro. Então, o número de jovens que trabalhavam, bem como os que trabalhavam e estudavam ao mesmo tempo, era proporcionalmente maior do que hoje. Essa redução, em especial na faixa etária adolescente (12 a 17 anos), que está ou deveria estar no Ensino Fundamental II e Ensino Médio, é um dos resultados positivos do surto de crescimento econômico e de dadas políticas públicas nos governos petistas, ao menos até 2013. Esse crescimento e essas políticas possibilitaram que mais indivíduos e famílias das classes populares esboçassem, ao menos, projetos de vida que envolviam investimento maior no aumento da escolarização de adolescentes, com menor pressão para o ingresso imediato no mundo do trabalho. Ou seja, houve uma mudança no padrão clássico da condição estudantil de filhas e filhos das classes populares, que era a de estudantes-trabalhadoras e estudantes-trabalhadores no Ensino Médio, o que se traduziu na grande queda do número de estudantes do Ensino Médio no período noturno, por exemplo.

Ao mesmo tempo, a pesquisa supracitada demonstrou que havia - e ainda há - intermitências de adolescentes e jovens no mundo do trabalho, inclusive para conquistar algum recurso financeiro para desfrutar de certos benefícios supostamente naturais e universais da condição juvenil – como o lazer e formas de diversão e consumo ligadas às sociabilidades juvenis. Ou seja, o trabalho, ao invés de negar a



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6 ABRAMO, H. W. Condição juvenil no Brasil contemporâneo In: & BRANCO, P. P. M. (orgs.). Retratos da juventude brasileira. Análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Perseu Abramo, Instituto Cidadania, 2005, p. 37-72.

condição juvenil, era e é usado para permitir vivências, ainda que provisórias e limitadas, da própria condição juvenil.

Dados mais recentes têm demonstrado a maior evasão de estudantes do gênero masculino, no Ensino Médio, mas também na Educação Superior, em comparação com o gênero feminino. Os meninos têm entrado mais cedo no mundo do trabalho em comparação com as meninas. Assim, há um recorte de gênero relevante quanto às expectativas em relação à escolarização, explicando inclusive o número maior e crescente de mulheres na educação superior.

O que esta pesquisa da fundação empresarial parece ter levantado com correção é a da insuficiência de um ensino médio meramente propedêutico ou preparatório à educação superior para jovens das classes populares. Ou seja, para estudantes do ensino médio, na verdade, não apenas para quem vêm das classes populares, esta etapa também precisa fazer sentido em si mesma e imediatamente. Penso, inspirado por autoras e autores do livro Juventude e Ensino Médio,7 que o ensino médio deve propiciar a leitura crítica de mundo e abrir horizontes sociais, políticos, culturais e econômicos de atuação no local e no espaço público ampliado, o que pode significar também apresentar oportunidades de engajamento produtivo mais ou menos imediato.

Entretanto, isso tem sido interpretado, ou manipulado como argumento, por fundações empresariais e intelectuais orgânicos do capital como formação profissional precoce e ingresso imediato no mundo do trabalho para dados grupos sociais, o que é uma forma rasa ou perversa de compreensão dos dados e uma apressada justificativa da Reforma do Ensino Médio, ou, na verdade, uma revelação de seu verdadeiro sentido: a escolha precoce de carreira via diferentes itinerários formativos visa a profissionalização precoce e apressada de filhas e filhos das classes populares.


Ronaldo e Mônica: Você acompanhou o movimento de ocupações das escolas? Qual o significado delas? Você considera que ele revela uma alternativa de renovação da escola básica brasileira?



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7 DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo; MAIA. Carla Linhares. Juventude e Ensino Médio. Sujeitos e currículos em diálogo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

Luís Groppo: Eu acompanhei o movimento como docente grevista e apoiador da ocupação discente da universidade onde trabalho, no Sul de Minas Gerais, entre outubro e dezembro de 2016. Com o Grupo de Estudos sobre a Juventude, projeto de extensão que coordenava, acompanhamos outras ocupações no Sul de Minas, de escolas do Ensino Médio, escrevemos um artigo durante o próprio movimento que, antes de publicado, foi compartilhado com ocupas da universidade. Oferecemos ainda atividades formativas durante a ocupação da universidade e promovemos em 2017 evento de rememoração do movimento no Sul de Minas.

O movimento das ocupações estudantis ficou marcado, primeiro, entre o final de 2015 e meados de 2016, como resistência de estudantes secundaristas contra políticas educacionais regressivas (de matriz neoliberal) por governos estaduais e/ou como denúncia das condições precárias das escolas, do ensino e do trabalho docente, por vezes ao lado de greves docentes. Depois, no segundo semestre de 2016, o movimento se tornou nacional, originado da reação de estudantes secundaristas do Paraná contra a MP746, que se tornou a Lei de Reforma do Ensino Médio. Desde o Paraná, o movimento se ampliou para quase todas as unidades da federação e incluiu na pauta o rechaço à PEC241, depois PEC55, passando a envolver também estudantes de instituições federais (Institutos Técnicos Federais e universidades), algumas universidades estaduais e, em alguns casos, greves de docentes e técnicas e técnicos de instituições educacionais federais. Nas instituições de educação superior, a pauta da PEC 241 foi mais forte, por vezes eclipsando a luta muito mais ampla e enraizada de secundaristas contra a MP746, que pelos secundaristas foi conjugada à luta contra a PEC 241.

Uma das interpretações possíveis do sentido do movimento entre secundaristas foi a de que, tanto a MP746, reforçada pela PEC241, quanto as medidas regressivas dos governos estaduais, eram atentados contra certos mecanismos que, formalmente, operavam sob a lógica da igualdade, a saber, o sistema e o currículo do ensino médio, bem como o acesso à educação superior, supostamente operando como dispositivos que permitiam alguma chance de ascensão social ou de transição entre classes sociais ou grupos de renda, ainda que, concretamente, esses mecanismos formais funcionem com grande precariedade no acesso ao saber e à educação superior, pouco capaz de promover rupturas na trajetória herdada do grupo familiar. Especialmente a MP746 foi interpretada como uma grave lesão ou um

retrocesso em um dos poucos campos sociais que pareciam oferecer alguma igualdade de trato. Faço essa interpretação inspirada pela que Jacques Rancière fez dos protestos estudantis universitários na França, em 1986, contra um projeto de reforma universitária.8

Temos em nossos relatos, nas entrevistas, uma quase onipresença, mesmo que difusa, deste sentimento de lesão ou dano, interpretado ao mesmo tempo como prejuízo pessoal – pela perda do acesso a saberes vindos da sociologia, filosofia e artes ou o dolo na trajetória de acesso a dadas carreiras na educação superior, ou o simples fato de não ter sua voz ouvida por pessoas e instituições adultas -, como prejuízo coletivo – da escola, do conjunto de estudantes e por vezes até do grupo social (classe popular, periferia, mulheres, pessoas negras) – e até mesmo como prejuízo intergeracional – que justifica a luta, em boa parte por estudantes do 2o e 3o anos do ensino médio, que não sofreriam pessoalmente com a Reforma, em favor de futuras gerações, incluindo irmãs, irmãos, filhas e filhos.

Penso que o movimento revela, sim, alternativas de renovação, principalmente por seu caráter largamente prefigurativo, ou seja, as formas de mobilização anunciavam ou continham as relações sociais, políticas e educacionais desejadas.9 Não se tratou, portanto, apenas ou prioritariamente de ação estratégica, em que a ação coletiva e as formas de protesto são tidos como meios mais apropriados para o fim desejado. Ou seja, mais do que ação estratégica contra as reformas educacionais, MP746 e PEC241, as ocupações contiveram anúncios e vivências da forma de sociedade, política e educação sonhadas. Por exemplo, na sociedade, a igualdade de gênero no trabalho das comissões; na política, a horizontalidade, o assembleísmo e a democracia direta; na educação, via oficinas e aulões, uma concepção educacional mais igualitária e dialógica entre educandas e educandos e educadoras e educadores, com trocas constantes de posição e/ou coeducação entre gerações, bem como participação discente na elaboração do currículo, ligado a questões imediatas da luta política tanto quanto questões existenciais, identitárias e subjetivas (gênero, raça, orientação sexual), formação política e até mesmo preparação para o ENEM.


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8 RANCIÉRE. Jacques. Os usos da democracia. In:           . Nas margens do político. Lisboa: KKYM, 2014, p. 47-68.

9 ORTELLADO, Pablo. A primeira flor de junho. In: CAMPOS, A, M; MEDEIROS, J; RIBEIRO, M. M.

Escolas de luta. São Paulo: Editora Veneta, 2016. p. 12-18.

Ronaldo e Mônica: As ocupações nos estados foram diferentes? Têm especificidades? Se sim, você poderia identificar algumas?


Luís Groppo: O mergulho na bibliografia farta sobre as ocupações (ainda que privilegie alguns estados), bem como as análises das entrevistas, têm apontado, até o momento, mais semelhanças do que diferenças entre os estados, em especial quando se considera a forma do movimento e o uso da tática da ocupação, assim como os agentes apoiadores e os agentes opositores. Houve sim, diferentes dinâmicas que se referem antes ao tipo de escola (periféricas, centrais ou prestigiosas), ao modo como a ocupação se iniciou (com grande preparação ou meramente reativa) e por vezes até à cultura da escola (muito tradicionalista ou rígida, por exemplo, caso em que a própria direção e a docência foram consideradas como algozes desde o início). Essas dinâmicas diversas vão se repetindo no interior de cada estado.

Uma primeira diferença poderia estar no número de escolas ocupadas em proporção ao total de escolas. Nesse caso, não observamos diferenças significativas nas ocupações até meados de 2016, que tiveram pautas estaduais. Já no 2o semestre de 2016, com a pauta nacional, aconteceu a onda mais massiva de ocupações, no Paraná, que não se repetiu nos demais estados, especialmente nos do Norte – que participaram menos de todo o movimento. Mas a principal causa do menor sucesso nas demais unidades da federação no 2o semestre de 2016 se deve à maior capacidade de repressão estatal, judicialização do movimento e formação de contramovimentos que impediram o apoio da sociedade civil.

Outra diferença importante está nos resultados, entre as vitórias iniciais, em São Paulo em 2015, contra a “Reorganização”, em Goiás no início de 2016 contra as Organizações Sociais e Mato Grosso no mesmo momento contra as Parcerias Público-Privadas, vitórias parciais no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, no primeiro semestre de 2016, e derrotas no Ceará em meados do ano e em todo o país no 2o semestre de 2016. As derrotas se relacionaram, primeiro, à reflexividade dos agentes da sociedade política e forças de segurança, que foram preparando melhor a repressão e a contraofensiva, mas também, no caso da onda nacional iniciada em outubro de 2016, pela pauta menos ligada a questões locais e estaduais e à menor

capacidade de angariar apoio na sociedade civil, tendo em vista também o acirramento político crescente desde o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Certamente, pautas denunciando a precariedade material das escolas apareceram mais em estados com menores recursos destinados à educação, como o Pará, que também enfrenta sérios problemas com a improbidade da gestão das escolas, patente nos casos em que ocupas descobriram alimentos que nunca chegaram à merenda ou que estavam estragando. No entanto, mesmo em estados supostamente mais ricos como São Paulo apareceram as denúncias da precariedade material e ocupas descobriram material didático esquecido nos depósitos das escolas.


Ronaldo e Mônica: Que tipo de organizações juvenis e de entidades estudantis participaram desse movimento? Houve um protagonismo de alguma delas?


Luís Groppo: Os processos políticos das ocupações secundaristas foram muito complexos, mas considero que sua grande marca foi a atuação mais marcante, inclusive numericamente, de ocupas independentes, ou como eram chamadas e chamados por militantes, os “não organizados”. Entre as organizações políticas que se aproximaram, apoiaram ou participaram da organização das ocupações, podemos caracterizar dois grupos: o campo autonomista e o campo democrático-popular.10 Ao que parece, o campo autonomista, ainda que minoritário em relação ao democrático- popular, caracterizou melhor a visão política das e dos ocupas independentes, com sua valorização da autonomia, horizontalidade, assembleísmo e democracia direta, ainda que, na maioria das situações, ocupas independentes agiram com grande pragmatismo nas suas relações com entidades estudantis, partidos e sindicatos. Entre coletivos autonomistas, destacou-se o Mal Educado em São Paulo e os antifas em Curitiba, afora a criação de coletivos autonomistas durante o próprio movimento, como o Grupo Autonomista Secundarista na capital paulista, o Comando de Escolas Independentes no Rio Grande do Sul e o CAOS (Coletivo Autonomista de Organizações Secundaristas) em Curitiba. Algumas juventudes partidárias, com as de


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10 MEDEIROS. J.; JANUÁRIO, A.; MELO, R. Introdução. In:       . (Org.) Ocupar e resistir. Movimento de ocupações de escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019. p.19-36.

certas correntes do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), se aliaram ao campo autonomista em alguns estados.

O campo democrático-popular incluiu entidades estudantis como UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas), UNE (União Nacional dos Estudantes), UPES (União Paranaense de Estudantes Secundaristas) e até algumas Uniões Municipais de Estudantes Secundaristas, além da maioria das juventudes partidárias da esquerda (como a União da Juventude Socialista [UJS], ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Levante Popular da Juventude (com relações com o Consulta Popular), Juntos! (ligada a corrente do PSOL) e Juventudes do Partido dos Trabalhadores (JPT).

Temos notado que a tendência foi a de que escolas das periferias e de pequenos municípios, que acabaram conformando a maioria das ocupações e em vários estados deram início ao movimento, além de receberem menor visibilidade na mídia, tivessem menor apoio de entidades estudantis, partidos, sindicatos e militância, em especial depois que escolas centrais e prestigiosas passaram a ser ocupadas.

Em escolas centrais e de bairros de classe média, a tendência foi a das escolas serem acossadas por vários apoiadores, conformando mesmo uma coalizão entre ocupas (com peso decisório decisivo) e entidades estudantis, partidos e sindicatos apoiadores. Houve poucos casos de escolas prestigiosas que tiveram a hegemonia de um grupo ou juventude partidária, como em Minas Gerais pela UJS (casos da Escola Estadual Central em Belo Horizonte e Colégio de Aplicação em Juiz de Fora). Há, enfim, o caso do Colégio Estadual do Paraná, com forte presença de antifascistas. Enfim, é interessante citar o esforço da UJS e da UBES de dar início a ondas estaduais de ocupação, como no interior do Pará e do Paraná em maio de 2016. Foram ocupações em geral bem-sucedidas mas que não tiveram o efeito de contágio como aquelas iniciadas por independentes. A UPES recebeu muitas críticas negativas de ocupas independentes e autonomistas no Paraná, por tentar se colocar como representante das ocupações e mesmo ter sido sua protagonista, ainda que ela e a UJS tenham liderado ocupações em alguns locais, como em Maringá. Mas não se pode negar a importância das entidades, juventudes partidárias e sindicatos em apoio material, orientação política e jurídica e até mesmo estímulo à organização do movimento em diversos estados e locais, em especial no 2o semestre, quando a tática

e o levante secundaristas pareceram a única frente a contestar a nova hegemonia política consolidada com o impeachment de Dilma.


Ronaldo e Mônica: Como as tuas pesquisas revelam as percepções dos jovens sobre as escolas de ensino médio? Qual a escola desejada por eles? Você avalia que a reforma em curso atende essas expectativas?


Luís Groppo: A pesquisa sobre as ocupações secundaristas tem revelado a percepção de parte das e dos jovens do Ensino Médio, já que a totalidade delas e deles não foi ocupa e houve mesmo aquelas e aqueles que se engajaram em contra- movimentos de desocupação. Temos diferentes unidades da geração juvenil no Brasil atual, ao menos em relação à política.11 Uma unidade de teor progressista é a que participou e fez as ocupações secundaristas. O surpreendente é o quanto o viés de gênero parece ser mais importante até que o de classe nesse aspecto, tendo em vista, por exemplo, que a maioria das ocupas foram mulheres, além de que tivemos mais jovens do sexo masculino votantes no candidato da extrema-direita vencedor em 2018, conforme demonstraram estudos de Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco.12

Ou seja, não há uma homogeneidade de percepções e expectativas nas juventudes no ensino médio – e nem mesmo entre ocupas isso aconteceu, já que, como sabemos, todo movimento social é uma coalizão de interesses e demandas, ainda que tenham produzido um horizonte semelhante, que eu descrevi acima, na resposta à questão 3, sobre o caráter prefigurativo das ocupações. Retomando o que foi dito sobre a práxis das ocupações do ponto de vista educacional, tivemos a participação discente na construção curricular, o currículo significativo em relação às questões imediatas da ação coletiva e que afligiam pessoalmente os sujeitos, formação social e política, metodologia de ensino-aprendizagem participativa, dialógica e aberta à coeducação entre as diferentes gerações.


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11 CORROCHANO, M. C.; DOWBOR, M.; JARDIM, F. A. A. Juventudes e participação política no Brasil do século XXI: quais horizontes? Laplage em Revista, Sorocaba, v. 4, n. 1, p. 50 66, 2018. DOI: https://doi.org/10.24115/s2446 6220201841436p.50 66

12 Como o artigo “Da esperança ao ódio”, disponível em inshttp://www.ihu.unisinos.br/78- noticias/583354-da-esperanca-ao-odio-juventude-politica-e-pobreza-do-lulismo-ao-bolsonarismo

A Reforma vai na contramão desse horizonte participativo, democrático e significativo do Ensino Médio desejado pelas e pelos ocupas, a começar pelo modo como foi feita, a partir de um governo de legitimidade pouco convincente, fruto de um impeachment muito irregular e insustentável juridicamente, e a partir de uma medida provisória, ignorando longo debate anterior no próprio Congresso Nacional – ainda que tenha sido proposto um projeto de lei pouco diferente da MP74613 – e as posições de entidades e movimentos educacionais. A Reforma adotou um pacote pré-fabricado por intelectuais orgânicos do capital, defendendo uma concepção economicista e tacanha de educação escolar e apontando para um cenário de novos produtos educacionais ao mercado de empresas educacionais, privatizações de gestões escolares e parcerias público-privadas. Não à toa, a MP746 deu origem ao maior movimento social desde as Jornadas de 2013 no Brasil.


Ronaldo e Mônica: Em artigo recente, em que analisa o movimento de ocupações no Brasil14, você critica a perspectiva estrutural- funcionalista e as teorias “pós-críticas” sobre juventude e propõe uma perspectiva dialética para pensar a juventude, entendendo-a enquanto uma categoria política. Você pode explicar as principais diferenças entre essas perspectivas? A categoria classe social, por exemplo, ainda é tomada como categoria explicativa para a situação da juventude?


Luís Groppo: A perspectiva estrutural-funcionalista orientou, ao longo do século XX, a concepção tradicional ou clássica de juventude, com base em uma noção simplista de socialização (crianças e jovens sob a guia de pessoas adultas), definindo a juventude em função da integração social, em uma visão conformista de sociedade e evolucionista de história, tratando as rebeldias juvenis como disfunção, patologia ou anomia.


13 CORTI, Ana Paula. Ensino médio: entre a deriva e o naufrágio. In: CÁSSIO, Fernando. Educação contra a barbárie. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 47-52.

14 GROPPO, Luís Antonio, & SILVEIRA, Isabella Batista. (2020). Juventude, classe social e política: reflexões teóricas piradas pelo movimento das ocupações estudantis no Brasil. Argumentum, 12(1), 7– 21. https://doi.org/10.18315/argumentum.v12i1.30125.

As perspectivas pós-críticas não conformam um único paradigma, mas têm em comum o reconhecimento de que a concepção clássica de juventude se esgotou na contemporaneidade. A sociedade atual é tratada como “pós-moderna” em vieses pós- estruturalistas e propriamente pós-modernos, considerando que a implosão das categorias etárias da modernidade levou antes a um labirinto de identidades etárias (e sociais) do que a uma relativização. Já as teorias da socialização ativa, com base na ideia de que vivemos em um segundo momento da modernidade, apostam na relativização das categorias etárias e diagnosticam a necessidade de que os indivíduos sejam sujeitos ativos na constituição de suas identidades, de seus percursos de socialização e de suas trajetórias à maturidade, defendendo, por exemplo, políticas públicas e educacionais que fortaleçam os indivíduos e famílias de grupos populares em suas capacidades decisórias e na formulação de projetos de vida.

Ao longo dos meus trabalhos nos últimos anos, tenho considerado que as perspectivas pós-modernas, levadas ao limite, podem nada mais do que tentar fotografar o caos, perdendo muito de sua capacidade explicativa. Mais recentemente, entretanto, tenho recebido com mais simpatia a imagem do rizoma para entender a dinâmica das culturas e movimentos juvenis, assim como assumido uma análise mais preocupada em apresentar como aconteceu um fenômeno – como o movimento das ocupações – do que explicar suas causas, os porquês definitivos ou profundos.

Quanto à perspectiva das socializações ativas, elas tiveram grande importância para informar as políticas públicas de juventude no Brasil durante os governos petistas, representada por sociólogos da juventude como Marília Spósito, Juarez Dayrell e Paulo Carrano. Observados até meados dos anos 2010, ficava mais explícito o quanto não havia se rompido com o neoliberalismo dos anos Fernando Henrique Cardoso. Contudo, observando hoje, no início de uma década e diante da hecatombe das políticas públicas e da própria democracia, fica mais claro o quanto houve de avanço político e mesmo na análise sociológica.

Nesse sentido, considero que hoje o grande trunfo da análise dialética da juventude seja o seu foco nos movimentos e rebeldias juvenis, enquanto as perspectivas pós-críticas tendiam a focar o cotidiano, o fluxo do dia a dia. A dialética da juventude defende a integração sempre imperfeita e incompleta de jovens à estrutura social, ou seja, há sempre a possibilidade de jovens virem a contestar

valores e instituições vigentes, já que não são totalmente comprometidas e comprometidos com tais, pois podem “estranhar” o mundo como está dado e construir alternativas, de forma ou autônoma ou tomada de empréstimo de pessoas adultas heterodoxas. Trata-se do combustível das revoltas das juventudes na modernidade e contemporaneidade, revelando não apenas as contradições e fissuras da sociedade vigente, mas também construindo projetos e alternativas, formuladas de diversas formas, seja como um grande programa revolucionário, seja vivido como insurgências microscópicas – ainda que se multiplicando na forma de contágio ou mesmo rizoma – incidindo contra aspectos pontuais (tal como as ocupações secundaristas).

A dialética da juventude parte do princípio de que não há uma única e homogênea juventude, mas sim que a condição etária juvenil é importante fator social, que orienta condutas e a relação dos sujeitos com o mundo, em combinação com outros elementos sociais que estruturam as experiências, tais como classe social, gênero, etnia, região, religião etc. Esta combinação é largamente orientada pelo contexto sócio-histórico, que pode fazer com que dado elemento estrutural seja mais decisivo que outro em certo momento – tal como o gênero no próprio movimento das ocupações, assim como nas eleições de 2018. A classe social é elemento fundamental para compreender as experiências da condição juvenil no cotidiano e no extra-cotidiano (como os protestos juvenis). Toda análise deve tomar a classe social como possível fator explicativo, o que não é o mesmo que vaticinar seu determinismo, independente dos dados empíricos. A dimensão popular do movimento das ocupações, por exemplo, é inegável, ao se considerar que foi um movimento das escolas públicas e que teve o protagonismo das escolas periféricas – as duas principais ondas de ocupações começaram lá também, como em Diadema, São Paulo, e São José dos Pinhais, Paraná. No entanto, a dimensão do gênero foi outro elemento primaz desse movimento, a ponto de ter originado e disseminado um feminismo popular e secundarista muito significativo, que parece ter sido um dos principais legados das ocupações.

No artigo citado, entretanto, para além desta dimensão econômica e estrutural da classe social, fizemos um exercício teórico, junto a E. P. Thompson e Rancière, de pensar a classe social também como categoria política, forjada nas lutas sociais e no cotidiano de um conjunto de pessoas que, ao ocupar uma dada posição no sistema econômico, elabora politicamente pautas e programas que representam seus desejos

e interesses. Ranciére se baseia na dimensão política da categoria classe social para pensar a noção de sujeito político. O sujeito político e o processo de subjetivação política são capazes de descrever situações em que indivíduos classificados socialmente como inferiores ou exteriores à ordem social e política, pensam e agem como iguais entre si e em relação aos que se veem como seus superiores. Esse processo é capaz inclusive de aglutinar pessoas de diversas procedências e recortes sociais, dado o momento igualitário que inauguram – o momento da política em seu sentido mais verdadeiro, para Ranciére.

Consideramos muito relevante aplicar essas ideias para pensar as ocupações. Mais do que forjar uma identidade coletiva – caracterizando classicamente as ocupações como um movimento social – talvez possamos avaliar que suas ações coletivas foram um momento político produtor de subjetivações políticas potentes, ainda que breves no tempo.


Ronaldo e Mônica: Em outro artigo15 você critica as teorias pós- críticas que propõem a tese das socializações ativas, que tomam o jovem como sujeito social. Você assume que nessa concepção o tema da inclusão/exclusão é colocado no lugar do tema das desigualdades sociais oriundas da estrutura de classes e da exploração pelo capital. Você diz ainda que um risco da adoção desses referenciais é o de se assumir uma concepção despolitizadora de participação ou ação social. Considerando que os documentos normatizadores da reforma do ensino médio trazem o discurso do protagonismo social como um de seus conceitos centrais, você considera que as teorias pós-críticas sejam um dos referenciais da reforma? Que outras consequências para a juventude e o ensino médio a adoção desse referencial pode acarretar?


Luís Groppo: Este artigo trata justamente da análise que citei na resposta anterior: a concepção de socialização ativa e a defesa do jovem como sujeito social de Juarez Dayrell foram descritas tendo em vista suas continuidades com as noções


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15 GROPPO, Luis Antonio, Sentidos de Juventude na Sociologia e nas Políticas Públicas do Brasil Contemporâneo. In: R. Pol. Públ., São Luís, v. 20, n 1, p. 383-402, jan./jun. 2016.

de inclusão social, capital social, protagonismo juvenil e competências que marcaram as políticas sociais e educacionais nos anos FHC. Essa análise crítica é um exemplo dos limites e continuidades da costura lulista na hegemonia do que chamei de “neoliberalismo da 3a Via” esboçado nos governos FHC – mas que FHC praticou imperfeitamente, enquanto Lula e Dilma, sem assumir, praticaram efusivamente. No entanto, hoje é mais claro o quanto essa costura também abriu brechas importantes para que pautas dos movimentos sociais progressistas influenciassem e ajudassem na formulação de legislações e políticas.

Não à toa, o novo arranjo hegemônico, criado contra a reeleição de Dilma Rousseff, tem ido bem para além de tirar um grupo do poder político em favor de outro, já que tem reformulado drasticamente o sentido daquelas políticas e assumido expressamente o desejo de desmontar legislações progressistas e direitos sociais, daí o simbolismo e alcance da PEC241, por exemplo, que congelou os gastos sociais da União por 20 anos e tem colocado governo federal e poder legislativo em colossais imbróglios jurídicos e orçamentários diante da pandemia da Covid-19.

O discurso do protagonismo juvenil e o do jovem como sujeito social tinham algumas fundamentações sociológicas e filosóficas relativamente próximas, como um texto de Alain Touraine deixa patente.16 Mas o discurso do protagonismo juvenil sempre foi engodo ideológico nas mãos de intelectuais orgânicos do capital, um amálgama malfeito de ideias contraditórias e metodologias manipulatórias. As concepções do jovem como sujeito social e das socializações ativas sempre tiveram grande acuidade analítica e enorme capacidade de escuta de jovens. Suas proposições políticas, no espírito do arranjo hegemônico ao qual se perfilaram, nunca sem críticas e conformismo, certamente, abandonava o espírito da transformação revolucionária e abrupta em favor de reformas sociais orientadas por políticas públicas formuladas em consulta à sociedade civil.

O que temos na Reforma do Ensino Médio e na própria BNCC (Base Nacional Comum Curricular) é o protagonismo como engodo ideológico, um discurso o qual, acredito eu, adolescentes em larga escala nas escolas lidarão de modo semelhante ao que fizeram, em pequena escala, jovens “dos projetos”, tidas e tidos como “vulneráveis”: a repulsa ou a adesão meramente formal, com o palavreado do


16 TOURAINE, A. Juventud y democracia em Chile. Última Década, Valparaíso, n. 8, p. 71-87, mar. 1998.

protagonismo como verniz do discurso e da prática. Novamente, tenho esperança na possibilidade da recusa, subversão ou ao menos da adesão superficial a essa ideologia que parece até ofender a perspicácia de nossas e nossos adolescentes – esperança na dialética da juventude.


Ronaldo e Mônica: Que lições podemos tirar das ocupações ocorridas no Brasil?


Luís Groppo: É surpreendente o quanto temos aprendido, desde o início, com o movimento das ocupações e o quanto temos a aprender, na verdade, com quaisquer movimentos sociais, ainda mais quando é levado adiante por jovens.

Desde o começo tentamos aprender com as e os ocupas, e não apenas doar ou “ensinar”, quando visitamos as ocupações das escolas e apoiamos a ocupação da universidade. Esse movimento peculiar teve o papel central de sujeitos no início de sua juventude, a adolescência. Em vários lugares, como São Paulo, Paraná e Minas Gerais, inclusive adolescentes do Ensino Fundamental II, não só do ensino médio. Adolescentes foram o núcleo de ocupas das escolas, que em muitos lugares foram centros de coalizão com estudantes de outras escolas, ex-estudantes, militantes jovens e adultos e às vezes até mães, pais e membros da comunidade. Já temos uma primeira lição aí, a capacidade de congregar autonomia (do movimento) com heterogeneidade (de integrantes, apoiadores, organizações e até vieses político- ideológicos).

Outra lição se refere ao que não devemos fazer, ao que devemos evitar, que talvez não tenhamos aprendido desde o início das ocupações: impor ou forçar nossa visão político-ideológica ou nossa referência teórico-filosófica para orientar ou explicar o movimento das ocupações. Foi e é ainda preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir o que realmente diziam e dizem as e os ocupas. Militantes das entidades estudantis tendiam a dizer que o movimento das ocupações revelou a importância de “se organizar” e das próprias entidades estudantis, seja quando venceu (supostamente pela capacidade de liderança das entidades), seja quando foi derrotado (supostamente porque ocupas e autonomistas rejeitaram a direção das entidades). Por outro lado, pessoas da academia se apressaram em dizer que todas as ocupações eram apartidárias e até mesmo anti-entidades estudantis, quando na

verdade elas tenderam a ser independentes e bastante pragmáticas em suas alianças, aceitando apoio político, jurídico e material dos mais diferentes setores progressistas, desde que não tirassem a autonomia das e dos ocupas.

Outra lição política está presente acima: a capacidade de fazer uma ampla aliança política progressista, confirmando que, na prática, as tendências ativista e militante, tanto quanto a autonomista e a socialista, podem se aliar, se reforçar e retroalimentar.

Para não se alongar ainda mais, talvez a principal lição, a ainda ser melhor aprendida (e esse é o desejo da nossa pesquisa), é entender o sentido da mobilização e da ação política de adolescentes. Adolescentes têm uma leitura de mundo e uma relação com o tempo próprias, inclusive em comparação com jovens de mais idade. Essa leitura e relação parecem levar adolescentes a se engajar em uma ação coletiva desde que ela seja capaz de propiciar uma experiência que se revele como significativa, ao mesmo tempo, pessoal e coletivamente. Para várias pessoas entrevistadas, ter sido ocupa é apontado como a principal experiência, até então, de suas vidas. Para todas, ao que parece, trata-se de uma experiência que ressignificou, em diferentes teores, suas trajetórias pessoais, políticas e educacionais.

É desalentador hoje, no início de 2021, assistir à implementação de escolas cívico-militares no estado que teve o segundo maior movimento de ocupações escolares na história, o Paraná (o primeiro foi na Grécia, em 1990-1991). Pelo que temos conversado, parece haver mesmo perversidade e punitivismo nas escolas escolhidas, várias delas tendo dado o início ao movimento das ocupações em seus municípios ou se destacado. Uma delas foi a escola de Ana Júlia Ribeiro, a corajosa menina que enfrentou deputados conservadores na Assembleia Legislativa. Um deles, como elas nos contou, mandou ela se calar, quando Ana disse que eles tinham as mãos sujas de sangue. Ela não se calou e não se cala.