V.19, nº 39, 2021 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Maria Ciavatta2
Ao manter na Revista Trabalho Necessário um espaço para Memória e Documentos, os editores assumem um fato primordial da vida humana, que é a memória que permite a projeção do futuro. São fundamentais os processos de preservação da memória e sua transmissão às novas gerações como legado de uma visão ampliada do presente sobre as experiências do passado. O antropólogo Gilberto Velho3 articula memória e projeto. A memória é fragmentada, e o sentido de identidade do indivíduo depende, em parte, da organização desses fragmentos. O projeto, expresso através de conceitos, palavras, categorias, seria um instrumento básico de organização desses fragmentos e de negociação da realidade com outros atores sociais, individuais ou coletivos.
A memória dá uma visão retrospectiva, do passado, e o projeto permite uma visão prospectiva, projetando o futuro, ambos contribuindo para situar o sujeito, individual ou coletivo, suas motivações e o significado de suas ações, dentro das conjunturas de vida, na sucessão das etapas de sua trajetória. A sociedade fomenta uma multiplicidade de motivações, produzindo a necessidade de propostas e projetos,
1Texto recebido em 03/05/2021. Aprovado pelos editores em 05/05/2021. Publicado em 27/05/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i39.49869
Doutora em Ciências Humanas (Educação-PUC-RJ). Pós-doutorado na Universitá di Bologna (1995-
96) e na Università di Roma (2017); Professora Titular de Trabalho e Educação, Associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do CNPq. NEDDATE / Coordenadora do Grupo THESE – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde (UFF-UERJ-EPSJV-Fiocruz). E-mail: mciavatta@terra.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5854-6063. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5368554854684382
O autor aborda a noção de projeto a partir das ideias de Alfred Schutz, para quem o projeto é uma
“conduta organizada para atingir finalidades específicas” VELHO, Gilberto. Memória, identidade e projeto. Uma visão antropológica. Revista Tempo Brasileiro, v. 95, n. 125/126, out-dez, 1998, p. 122- 123.
inclusive contraditórios ou conflitantes. O projeto seria um meio de comunicação, expressão, articulação de interesses, objetivos, sentimentos, aspirações.
Memória e Documentos torna presente a importância da memória coletiva construída pelas classes sociais, nas lutas, nas ideias e representações em disputa na formação das ideologias e na defesa de seus interesses de classe, expressos na materialidade dos intercâmbios na produção da vida. Nos discursos, nas leis, nos diversos escritos expressam-se as elaborações ou justificativas de interesses que alimentam as disputas entre as classes sociais, divulgadas por quem tem o poder de divulgação da palavra, poder de mando, de propriedade, de decisão para obter a adesão dos demais ou, nos termos clássicos de Marx e Engels, “as ideias dominantes são as das classes dominantes.”4
Permitem também que se recupere a concepção de tempos múltiplos de Braudel quando fala do tempo longo das estruturas socioeconômicas e sociais e das mentalidades que perpassam gerações com seus valores, ideias e comportamentos; quando fala do tempo médio das conjunturas, as políticas, as tendências na produção artística; e quando se refere ao tempo curto dos acontecimentos, aqueles que podem ter um duração quantificada em dias, horas ou meses, de acordo com a subjetividade com que o presente é vivido pelos sujeitos sociais.
Poderíamos acrescentar que o presente não se esgota em si mesmo. Ele é sempre prenhe da vida anterior, do passado, dos fatos, sujeitos e objetos que lhe deram sentido e significado. Ele se nutre da expectativa do que se deve lhe seguir, do futuro que se espera que se realize, com os meios confessos ou ocultos que as posições sociais, políticas, econômicas ou outras permitirem aos sujeitos sociais em seus intentos.
Neste número de Trabalho Necessário, o documento selecionado é a Exposição de Motivos de 1º. de abril de 1942 (BRASIL, 1942), que antecede a Lei n. 4244 de 9 de abril de 1942 (BRASIL, 1942ª), assinada pelo Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, dirigindo-se ao Presidente Getúlio Vargas. Buscamos recuperar aspectos da Reforma ocorrida há cerca de meio século.
A Exposição de Motivos da Reforma Capanema defende uma “disciplina pedagógica”, “metodização do ensino secundário, isto é, a seriação obrigatória de seus estudos e a introdução nesses estudos de uma disciplina pedagógica”,
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 1999, p. 72.
“formar nos adolescentes uma sólida cultura geral, marcada pelo cultivo a um tempo das humanidades antigas e das humanidades modernas”, “a consciência da responsabilidade diante dos valores maiores da pátria, a sua independência, a sua ordem, o seu destino.”
Tem estado presente, em alguns estudos, a comparação com a Medida Provisória nº 746 de 22 de setembro de 2016, que veio se tornar a atual Lei da Reforma do Ensino Médio, Lei nº 13.215 de 16 de fevereiro de /2017. O contexto da época em que a Reforma Capanema ocorreu não recomenda uma comparação geral com a Lei da segunda década do século XXI, mas permite aproximações em alguns aspectos específicos sobre os quais procuraremos nos deter à vista do texto original da Exposição de Motivos.
“CÂMARA dos Deputados. Legislação. Decreto-lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942. Lei Nº 4.244, de 9 de abril de 1942
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS5
Rio de Janeiro, 1 de abril de 1942. Sr. Presidente:
Tenho a honra de submeter à consideração de V. Ex.ª um projeto de lei orgânica do ensino secundário.
- O sistema vigente do ensino secundário data de 1931. Dentre as vantagens que dele provieram para a educação do país é de notar antes do mais a concepção que lhe serviu de base, isto é, a afirmação do caráter educativo do ensino secundário, em contraposição à prática então reinante de considerá-lo como mero ensino de passagem para os cursos do ensino superior.
Dessa concepção decorreu um corolário de importância fundamental: a metodização do ensino secundário, isto é, a seriação obrigatória de seus estudos e a introdução nesses estudos de uma disciplina pedagógica. Está hoje no hábito dos estudantes e na consciência de todos que o ensino secundário não é um conjunto de preparatórios, que se devam fazer apressadamente e de qualquer maneira, mas constitui uma fase importante da vida estudiosa, que normalmente só pode ser vencida com a execução de trabalhos escolares metódicos, num lapso de sete anos.
Representa, por outro lado, significativo resultado da legislação ora em vigor ter facilitado a generalização do ensino secundário, antes ao alcance de poucos, a todos os pontos do país. Havia no Brasil, em 1931, menos de duzentas escolas secundárias; hoje elas são quase oitocentas.
A lei projetada encontra, assim, terreno amplo e condições favoráveis, que possibilitem o prosseguimento do trabalho de renovação e elevação do ensino secundário do país.
5https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4244-9-abril-1942-414155- 133712-pe.html
- São mais dignos de nota, na presente proposta de reorganização do ensino secundário, os pontos seguintes:
Concepção do ensino secundário - A reforma atribui ao ensino secundário a sua finalidade fundamental, que é a formação da personalidade adolescente.
É de notar, porém, que formar a personalidade, adaptar o ser humano às exigências da sociedade, socializá-lo constitui finalidade de todas espécie de educação.
E, sendo esta a finalidade geral da educação, é por isto mesmo a finalidade única do ensino primário, que é o ensino básico e essencial, que é o ensino para todos.
Entretanto, a partir do segundo grau do ensino, cada ramo da educação se caracteriza por uma finalidade específica, que se acrescenta àquela finalidade geral.
O que constitui o caráter específico do ensino secundário é a sua função de formar nos adolescentes uma sólida cultura geral, marcada pelo cultivo a um tempo das humanidades antigas e das humanidades modernas, e bem assim, de neles acentuar e elevar a consciência patriótica e a consciência humanística.
Êste último traço definidor do ensino secundário é de uma decisiva importância nacional e humana.
O ensino primário deve dar os elementos essenciais da educação patriótica. Nele o patriotismo, esclarecido pelo conhecimento elementar do passado e do presente do país, deverá ser formado como um sentimento vigoroso, como um alto fervor, como amor e devoção, como sentimento de indissolúvel apego e indefectível fidelidade para com a pátria.
Já o ensino secundário tem mais precisamente por finalidade a formação da consciência patriótica.
É que o ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo. Ele deve ser, por isto, um ensino patriótico por excelência, e patriótico no sentido mais alto da palavra, isto é, um ensino capaz dar aos adolescentes a compreensão da continuidade histórica da pátria, a compreensão dos problemas e das necessidades, da missão e dos ideais da nação, e bem assim dos perigos que a acompanhem, cerquem ou ameacem, um ensino capaz, além disto, de criar, no espírito das gerações novas, a consciência da responsabilidade diante dos valores maiores da pátria, a sua independência, a sua ordem, o seu destino.
Por outro lado, seria de todo impraticável introduzir na educação primária e insinuar no espírito das crianças o difícil problema da significação do homem, êste problema crítico, de que depende o rumo de uma cultura e de uma civilização, o rumo das organizações políticas, o rumo da ordem em todos os terrenos da vida social. Tal problema só poderá ser considerado quando a adolescência estiver adiantada, e é por isto que a formação da consciência humanística, isto é, a formação da compreensão do valor e do destino do homem é finalidade de natureza específica do ensino secundário.
Um ensino secundário que se limitasse ao simples desenvolvimento dos atributos naturais do ser humano e não tivesse a força de ir além dos estudos de mera informação literária, científica ou filosófica, que fosse incapaz de dar aos adolescentes uma concepção do que é o homem, uma concepção do ideal da vida humana, que não pudesse formar, em cada um deles, a consciência da significação histórica da pátria e da importância de seu destino no mundo, assim como o sentimento da responsabilidade nacional, falharia à sua finalidade própria, seria ensino secundário apenas na aparência e na terminologia, porque de
seus currículos não proviriam as individualidades responsáveis e dirigentes, as individualidades esclarecidas de sua missão social e patriótica, e capazes de cumpri-la.
Divisão em dois ciclos - A reforma conserva a divisão do ensino secundário em dois ciclos, dando, porém, uma configuração diferente a essa estrutura. O primeiro ciclo compreenderá um só curso: o curso ginasial, de quatro anos. O segundo terá dois cursos paralelos, cada qual com a duração de três anos, sendo qualquer dêles acessível aos candidatos que tenham concluído o curso ginasial.
Da limitação do curso ginasial a quatro anos resultará, por um lado, a vantagem de tornar a educação secundária, na sua primeira fase, ao alcance de um número maior de brasileiros.
Outra vantagem dessa limitação é a possibilidade de uma conveniente articulação do primeiro ciclo do ensino secundário com o segundo ciclo de todos os ramos especiais do ensino de segundo grau, isto é, com o ensino técnico industrial, agrícola, comercial e administrativo e com o ensino normal, servindo de base a essas categorias de ensinos, o que concorrerá para maior utilização e democratização do ensino secundário, que assim não terá, como finalidade preparatória, apenas conduzir ao ensino superior.
Quanto aos dois cursos do segundo ciclo, o clássico e o científico, é de notar que não que não constituem dois rumos diferentes da vida escolar, não são cursos especializados, cada qual com uma finalidade adequada a determinado setor dos estudos superiores. A diferença que há entre eles é que, no primeiro, a formação intelectual dos alunos é marcada por um acentuado estudo das letras antigas, ao passo que, no segundo, a maior acentuação cultural é proveniente do estudo das ciências. Entretanto, a conclusão tanto de um como de outro dará direito ao ingresso em qualquer modalidade de curso do ensino superior.
Esta solução respeita a vocação de cada aluno, que poderá, concluídos os estudos do primeiro ciclo, dar aos seus estudos posteriores, no segundo ciclo, conforme as preferências de sua inteligência, ou uma direção de sentido clássico ou um maior vigor científico, e transfere, para a final conclusão do ensino secundário, para uma época em que cada aluno deva ter atingido a uma suficiente madureza de espírito, a definitiva escolha do seu rumo universitário.
O estudo da língua, da história e da geografia pátrias - O conhecimento seguro da própria língua constitui para uma nação o primeiro elemento de organização e de conservação de sua cultura. Mais do que isto, o cultivo da língua nacional interessa à própria existência da nação, como unidade espiritual e como entidade independente e autônoma.
Na conformidade deste pressuposto, o ensino da língua portuguesa é ampliado, tornando-se obrigatório em todas as sete séries, com a mesma intensificação para todos os alunos.
Com o mesmo objetivo de orientar o ensino secundário no sentido de uma compreensão maior dos valores e das realidades nacionais, a reforma separa a história do Brasil e a geografia geral, para constituírem disciplinas autônomas.
O grego e o latim - O grego é incluído nos estudos do segundo ciclo, entre as disciplinas do curso clássico.
O latim será estudado tanto no primeiro como no segundo ciclo. Figura entre as disciplinas de cada uma das séries do curso ginasial, e continuará a ser estudado, no curso clássico, por mais três anos. Dar-se-á assim de um modo geral a todos os alunos da escola secundária, em quatro anos de estudo, um conhecimento básico da língua latina, suficiente por certo como elemento de cultura geral, e se assegurará àqueles que tiverem revelado
pendor intelectual para as humanidades antigas, isto é, aos alunos do curso clássico, um estudo mais intensivo dessa língua.
Deixemos de parte o argumento, aliás valioso, de que o grego e o latim são necessários à leitura dos autores antigos, portadores de grandes mensagens, e ainda, quanto ao latim, à leitura dos livros de ciência e filosofia escritos nessa língua quando ela era a língua comum da cultura ocidental. Boas traduções não faltam. E é afinal mero preconceito o considerar a tradução como um expediente subalterno.
O ponto essencial do problema é que, por mais que esteja o nosso país voltado para a modernidade e para o futuro, por mais vigorosa que seja a sua participação na vida nova do mundo, não lhe é possível desconhecer a irremovível vinculação de sua cultura com as origens helênicas e latinas. Não seria conveniente romper com essas fontes. Com este rompimento perderíamos o contato e a influência de uma velha cultura que consubstanciou e elevou os valores espirituais maiores da antiguidade e representa uma experiência sem par do destino humano. Perderíamos por outro lado os mais nobres vínculos do parentesco da cultura nacional com as mais ilustres culturas de nosso tempo, todas elas ligadas ao grande tronco mediterrâneo.
É preciso reconhecer, pois, que os estudos antigos não se revestem apenas de um valor de erudição. Êles constituem uma base e um título das culturas do Ocidente; eles serão sempre, conforme o expressivo dizer de um escritor moderno, "um elemento inalienável da dignidade ocidental".
Quanto ao latim especialmente, necessário é ainda estudá-lo com particular cuidado em nossas escolas secundárias, por ser êle o fundamento e a estrutura da língua nacional. Sem o latim, o conhecimento da língua nacional, por mais ilustração que tenha, será sempre um saber marcado de inseguranças e lacunas, e como que envôlto por uma certa escuridade.
O ensino das línguas vivas estrangeiras - O ensino secundário das nações cultas dá em regra a cada aluno o conhecimento de uma ou das línguas vivas estrangeiras. Êsse número é elevado a três pelos países cuja língua nacional não constitui um instrumento de grandes recursos culturais.
A reforma adotou esta última solução. Claro está que o francês e o inglês não poderiam deixar de ser conservados no número das línguas vivas estrangeiras do nosso ensino secundário, dada a importância dêsses dois idiomas na cultura universal e pelos vínculos de tôda sorte que a êles nos prendem.
A reforma introduz o espanhol no grupo das línguas vivas estrangeiras de nossos estudos secundários. Além de ser uma língua de antiga e vigorosa cultura e de grande riqueza bibliográfica para todas as modalidades de estudos modernos, é o espanhol a língua nacional do maior número dos países americanos. Adotá-lo no nosso ensino secundário, estudá-lo, não pela rama e autodidaticamente, mas de modo metódico e seguro, é um passo a mais que damos para a nossa maior e mais íntima vinculação espiritual com as nações irmãs do continente.
Dará, deste modo, a escola secundária brasileira a todos os alunos o ensino de três línguas vivas estrangeiras.
É preciso não esquecer o valor cultural e a importância bibliográfica de outras línguas modernas, notadamente o alemão e o italiano.
Na impraticabilidade de ensiná-las nos limites de tempo e de capacidade pedagógica da escola secundária, será medida sem dúvida útil e de possível adoção introduzir
o seu estudo, pelo menos em caráter facultativo, nos estabelecimentos de ensino superior, ao lado dos estudos científicos e técnicos para os quais elas constituem elemento auxiliar de primeira necessidade.
O estudo das ciências - A reforma coloca o problema do estudo das ciências em termos convenientes.
No curso ginasial, a matemática e as ciências naturais serão estudadas de modo elementar. Seria antipedagógico sobrecarregar os alunos, nessa primeira fase dos estudos secundários, com estudos científicos aprofundados.
Posteriormente, no curso clássico e no curso científico, far-se-á das ciências estudo mais acurado. Terá o estudo da matemática, da física, da química e da biologia, no curso científico, maior desenvolvimento e profundidade do que no curso clássico. Não deverá, porém, êsse estudo ser tão abundante e minucioso no curso científico que possa tornar-se inconveniente demasia, nem de tal modo reduzido no curso clássico, que não baste à formação de uma cultura científica adequada aos fins do ensino secundário.
Ao estudo das ciências, num e noutro caso, orientará sempre o princípio de que não é papel do ensino secundário formar extensos conhecimentos, encher os espíritos adolescentes de problemas e demonstrações, de leis e hipóteses, de nomenclaturas e classificações, ou ficar na superficialidade, na mera memorização de regras, teorias e denominações, mas cumpre-lhe essencialmente formar o espírito científico, isto é, a curiosidade e o desejo da verdade, a compreensão da utilidade dos conhecimentos científicos e a capacidade de aquisição desses conhecimentos.
Está claro que será mais difícil a tarefa de ensinar desse modo as ciências.
No ensino científico, mais do que em qualquer outro, falhará sempre irremediavelmente o processo do erudito monologar docente, a atitude do professor que realiza uma experiência diante dos alunos inexpertos como se estivesse fazendo uma representação, o método de inscrever na memória a ciência dos livros. Nas aulas das disciplinas científicas, os alunos terão que discutir e verificar, terão que ver e fazer. Entre eles e o professor é necessário estabelecer um regime de cooperação no trabalho, trabalho que deverá estar cheio de vida e que seja sempre, segundo o preceito deweyano, uma "reconstrução da experiência".
Se as ciências forem ensinadas assim, sob a influência das coisas concretas, em contato com a natureza e a vida, de um modo sempre ativo, formarão, tanto nos alunos do curso científico como nos do curso clássico, uma conveniente cultura científica, que concorra para definir-lhes a madureza intelectual e que os habilite aos estudos universitários de qualquer ramo.
- Cumpre-me ainda acrescentar as seguintes observações sobre o projeto de lei orgânica do ensino secundário:
É dado especial relevo ao problema da educação moral e cívica, isto é, da formação do caráter e do patriotismo. Adotar-se-á a este respeito a melhor lição pedagógica, isto é, a orientação de que o meio eficiente de atingir a esta modalidade de educação não será a inclusão de um programa instrutivo dos deveres humanos, não será ministrar uma especial preparação intelectual dessa matéria, mas desenvolver nos alunos uma justa compreensão da vida e da pátria e fazer-lhes, desde cedo e em todas as atividades e circunstâncias da vida escolar, efetivamente viver com dignidade e fervor patriótico.
Foi incluída no projeto a declaração constitucional da liberdade de ensino de
religião.
É estabelecida a diferenciação do ensino secundário feminino. Deverá este ensino tomar em consideração a natureza da personalidade feminina e a missão de mulher dentro do lar. Decorrerão naturalmente dessa diferenciação uma diversa orientação dos programas e a separação das classes, sempre que na mesma escola secundária houver alunos dos dois sexos. É claro, porém, que sob o ponto de vista do valor da preparação intelectual, o ensino secundário feminino permanecerá identificado com o ensino secundário masculino.
São instituídos os exames de licença, destinados à habilitação para efeito de conclusão de qualquer curso. Os exames de licença ginasial, ao fim do primeiro ciclo, serão prestados nos próprios estabelecimentos de ensino, pelos seus alunos. Os exames de licença clássica e os de licença científica, terminais dos cursos do segundo ciclo, só poderão ser prestados perante bancas oficiais.
É determinada a adoção, em nosso ensino secundário, da orientação educacional, prática pedagógica de grande aplicação na vida escolar dos Estados Unidos. A orientação educacional deverá estar articulada com a administração escolar e o corpo docente, para cujas organizações o projeto estabelece os preceitos essenciais. O conjunto constituirá, em cada escola secundária, o organismo coordenado e ativo, capaz de assegurar a unidade e a harmonia da formação da personalidade adolescente.
O projeto estabelece o princípio de que as pessoas particulares, individuais ou coletivas, que mantenham estabelecimento de ensino secundário, são consideradas como no desempenho de função de caráter público, cabendo-lhes em matéria de educação os deveres e responsabilidades inerentes ao serviço público. Decorre deste princípio a condenação do interesse comercial que porventura pudesse influir em qualquer organização escolar.
São estabelecidos preceitos destinados à diminuição do custo do ensino secundário e ao desenvolvimento da assistência aos escolares necessitados. A providência tem em mira proporcionar, o mais que for possível, a educação secundária aos adolescentes bem dotados.
Enfim, inspira-se o projeto de um modo geral na fecunda verdade pedagógica de que a educação deve ser vida a fim de que possa ser uma útil preparação para a vida.
- Presidiu à elaboração da presente reforma a preocupação de aproveitar a boa experiência, não só a experiência da última legislação do ensino secundário, mas também a proveniente das legislações anteriores.
Sore o projeto inicialmente organizado, foi ouvida a opinião de representantes de todas as correntes pedagógicas. Procurei conciliar as tendências opostas ou divergentes, notadamente no terreno da velha controvérsia entre os defensores e os negadores da atualidade do estudo das humanidades antigas.
Parece ter a reforma conseguido as mais razoáveis soluções.
Se ela merecer a aprovação de V. Excia., é de crer que o nosso ensino secundário dará um passo a mais no sentido da renovação e da elevação. Possivelmente, dada a extrema dificuldade do problema do ensino secundário, defeitos haverá no sistema proposto. A experiência virá demonstrar o que de futuro será preciso corrigir ou retificar, pois, como disse Bernardo Pereira de Vasconcelos, quando, há mais de um século, declarava abertas as portas do Colégio Pedro II, "um dos meios, e talvez o mais proveitoso, de fazer sentir os inconvenientes de um regulamento é a sua fiel e pontual execução".
Apresento, com o projeto de lei orgânica do ensino secundário, um projeto de decreto-lei que contém as disposições transitórias necessárias à aplicação dessa lei.
O sistema novo de ensino secundário deverá ser desde logo aplicado às quatro séries do curso ginasial. Os alunos, que ora cursam a quinta série do curso fundamental e as duas séries do curso complementar, nos termos da legislação vigente, continuarão os seus estudos, em cada curso, segundo essa mesma legislação.
Por esta forma, sem dificuldades para os estabelecimentos de ensino e sem quebra da conveniente continuidade escolar dos alunos, o novo sistema de ensino secundário, com dois anos de adaptação, poderá estar plenamente adotado.
Apresento a V. Excia. os meus protestos de cordial estima e profundo respeito - Gustavo Capanema.”
O primeiro aspecto a destacar neste documento é o tempo longo das estruturas socioeconômicas e sociais e das mentalidades que perpassam gerações com seus valores, ideias e comportamentos. Na época da Reforma Capanema, estávamos nos anos 1940 e, hoje, estamos em 2021, mas continuamos no tempo longo do capitalismo que se implantou no Brasil colonial desde a acumulação pré-capitalista até a expansão globalizante e financeira do capitalismo dos dias atuais.
No entanto, os tempos múltiplos da concepção de Braudel (1982) não são isolados, são imbricados. Vivemos, simultaneamente, os acontecimentos no tempo médio das conjunturas e no tempo longo das estruturas do sistema capital. No Brasil, este aspecto deve ser examinado com o regime político que se apregoa liberal e se realiza com rupturas autoritárias sempre que os detentores do poder econômico e político se sentem “ameaçados” por avanços, pequenos que sejam, das condições de vida e de organização das classes trabalhadoras.
No exame da “Revolução burguesa”, Florestan Fernandes (1981) fala sobre a burguesia emergente dos setores rurais, com “espírito burguês”. São aqueles que impulsionam a revolução “que pôs em xeque os hábitos, as instituições e as estruturas persistentes da sociedade colonial”, advogam a “modernização” e estabelecem “compromissos tácitos” com as elites agrárias. Mais tarde, “evoluem para opções mais definidas e radicais, embora dissimuladas, pelas quais tentam implantar no Brasil as condições econômicas, jurídicas e políticas que são essenciais à plena instauração da ordem social competitiva” (p. 28-29) e a internacionalização da economia em associação com os grandes capitais externos.
O período do primeiro governo Vargas (1930-1945) situa-se em uma conjuntura em que o poder do Estado fixa metas para a sociedade, dada a “incapacidade do povo” de levá-las adiante para fins do progresso social. É o Estado intervencionista
que está associado ao próprio desenvolvimento do Estado e do capitalismo no Brasil, base das ações políticas das elites brasileiras, mesmo as liberais, desde o século XIX (SANTOS, 1978, apud CIAVATTA-FRANCO; SIMON, 1987, p. 567).
“É o Estado liberal que está sempre intervindo, a fim de afastar qualquer obstáculo ao funcionamento ‘natural’ e ‘autoritário’ do mercado”. Os ideólogos do autoritarismo, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Francisco Campos deram forma política e jurídica à educação e ao trabalho, à transformação das instituições que prepararam a Revolução de Trinta6. Vitoriosa a Revolução, Oliveira Vianna atuou na implantação do sistema de previdência social e do sistema sindical corporativista, junto ao Ministério do Trabalho, criado no governo Vargas em 1930. Francisco Campos atuou “nas reformas do ensino como Ministro da Educação e, depois, como Ministro da Justiça e autor da Constituição do Estado Novo” (CIAVATTA-FRANCO; SIMON, ibid.).
Oliveira Vianna buscava “administrar” a questão social através da legislação e demandava a colaboração do patronato para a educação profissional. Como para os demais ideólogos do período, também para Alberto Torres, a educação fazia parte da questão social e devia ser determinada pelo Estado. Para o autor “era fundamental ‘educar mais do que instruir’ e ‘preparar homens e não doutores’. Ele distingue educação de instrução, entendendo a primeira como formação ligada à sobrevivência e ao trabalho” (id., p. 571-572).
É neste contexto político e ideológico que Vargas acumula forças para decretar o Estado Novo (1937-1945).7 Valendo-nos de fatos e de discursos da época, vemos que Cândido (1978), analisa que para apreender determinado discurso é preciso operar o desmascaramento do que o constitui ideologicamente. Para tanto, as ideologias precisam ser remetidas ontologicamente às suas bases materiais, ou seja, é preciso reconhecer as modalidades da materialidade social que sustentam suas
O termo consagrado “Revolução de Trinta” não se aplica no estrito senso, porque não houve mudança no modo de produção, nem do poder entre as classes sociais. Desde o início do século, a classe operária esteve em lugar subalterno, com escasso acesso aos instrumentos de decisão de seus interesses como trabalhadores. Autores como Paulo Sérgio Pinheiro, no documentário e Sílvio Back (1980), chama a atenção para a ausência do povo em três momentos decisivos da vida nacional em que as elites decidiram “pelo alto” as mudanças políticas: a “Independência do Brasil” decidida pela família real através do príncipe herdeiro português do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1822); a Proclamação da República (1889) articulada pelos setores anti-abolicionistas civis e militares; a Revolução de Trinta (1930) que foi uma troca de grupos no poder das elites agrárias para a nascente burguesia industrial.
Estas considerações sobre o Estado Novo têm por base Ciavatta (2009).
relações de reciprocidade, de determinante e determinado e não apenas conectar ideologia e produção material numa relação exterior a ambas. (CÂNDIDO, apud CHASIN, 1978, p. 24).
A materialidade, que é possível identificar no governo Vargas – que tem um de seus marcos na Revolução de Trinta, e que se aprofunda no sentido do populismo autoritário em 1937, com o Golpe do Estado Novo –, envolve relações econômicas capitalistas submetidas às exigências da II Guerra Mundial; ao avanço na industrialização; à administração da relação capital e trabalho através de abundante legislação trabalhista e de permanente repressão político-policial; à política social para atender o trabalhador também nas necessidades de habitação, cultura, lazer e educação; e à produção ideológica da noção de trabalho pela revalorização do trabalhador.
A Revolução de 1930 viera inaugurar "uma ordem nova, uma nova República", face aos reclamos econômicos, políticos e sociais aos quais o poder oligárquico da Primeira República (ou República Velha) não atendia mais. Desdobra-se de 1930 ao início dos anos 1940 um quadro de ações, medidas e criação de novas instituições que ganham destaque com o Estado Novo, mas cujas origens estão no início dos anos 1930 e na onda de transformações por que passava o mundo.8
Lúcia Lippi de Oliveira (1982) observa que a memória social, representada pela lembrança do homem comum, guarda outros traços do período: a censura e a polícia de Filinto Müller; a construção da usina siderúrgica de Volta Redonda; a legislação trabalhista e as manifestações operárias no Estádio Vasco da Gama; o prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, a construção da Avenida Presidente Vargas sobre a Praça Onze; a figura de Villa-Lobos; a Rádio Nacional; Carmem Miranda; Zé Carioca. (p. 7).
Um dos termos mais eloquentes da Exposição de Motivos do Ministro Capanema, da Lei no.4.244/1942 está na “Concepção do ensino secundário”:
No movimento da história que se inicia em 1930, alguns momentos decisivos devem ser salientados: a Revolução Constitucionalista de 1932; a Constituição promulgada em 1934; as agitações de esquerda que culminam no levante e na repressão desencadeada a partir de 1935; o Golpe de 1937; a Ação Integralista poupada até a repressão e o rompimento com o Governo Vargas, após sua ação armada frustrada, em 1938 (levantes realizados em abril e maio de 1938); a política econômica nacionalista em função dos interesses da burguesia industrial. (SOLA, 1977, p. 269).
É que o ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo (grifos nossos).
Esta concepção expressa o modelo e a destinação do ensino secundário aos filhos das elites que governavam o país e deveriam ser preparadas para dar continuidade “às responsabilidades maiores” do governo. Elementos ideológicos de controle e preservação dos interesses de classe estão implícitos na exaltação desses “homens portadores das concepções e atitudes espirituais”. Os filhos dos trabalhadores são as massas que devem ser habituadas a essa suposta superioridade das “individualidades condutoras”.
Não temos como objetivo, nestes comentários, a análise de todas as implicações político-ideológicas do documento. Vamos nos restringir a duas outras justificativas da Exposição de Motivos que complementam esta concepção. A primeira delas é a presença da ideia de patriotismo nas expressões: “acentuar e elevar a consciência patriótica”, “educação patriótica”, “apego e fidelidade com a pátria”, “patriotismo”, “educação moral e cívica”, o que se entende como ideias comuns àqueles tempos da Segunda Guerra Mundial (1937-1945) e, também, próprias às ideologias do militarismo que, reiteradamente, tem regido o governo do Brasil.9
A mesma ideia reforça a concepção do ensino secundário:
I - “(...)a consciência da significação histórica da pátria e da importância de seu destino no mundo, assim como o sentimento da responsabilidade nacional, falharia à sua finalidade própria, seria ensino secundário apenas na aparência e na terminologia, porque de seus currículos não proviriam as individualidades responsáveis e dirigentes, as individualidades esclarecidas de sua missão social e patriótica, e capazes de cumpri-la.”
O segundo ponto que merece destaque é a divisão do ensino secundário em dois ciclos: “o curso ginasial, de quatro anos. O segundo terá dois cursos paralelos, cada qual com a duração de três anos, sendo qualquer deles acessível aos candidatos que tenham concluído o curso ginasial.”
Capanema fala ao Presidente Vargas e anuncia que o curso ginasial em quatro anos o porá “ao alcance de um número maior de brasileiros”. Também considera
De 1989 aos dias atuais (20210, os períodos de governos civis (democráticos ou autoritários) se intercalam com os governos exercidos por doze presidentes militares.
vantajoso que ele se articule ao “segundo ciclo de todos os ramos especiais do ensino de segundo grau, isto é, com o ensino técnico industrial, agrícola, comercial e administrativo e com o ensino normal,” o que também concorreria para a “democratização do ensino secundário”. E conclui com uma alegação ideológica: “que assim não terá, como finalidade preparatória, apenas conduzir ao ensino superior.” (grifos nossos).
No entanto, tanto quando o Decreto-lei n. 4.244/1942), trata no “Capítulo IV - Das ligações do ensino secundário com outras modalidades de ensino”, no que concerne a passagem do primário para o ginásio, introduziu-se um processo seletivo, o Exame de Admissão, previsto na Lei (Capítulo V – Art. 31, letra c); e, quanto aos cursos dos ramos especiais de segundo grau, o aluno “deverá constituir base preparatória suficiente”.
Entendemos que, neste ponto, a Lei deixa um vazio que é entendido quando se lê a Lei Orgânica do Ensino Industrial, Decreto-lei n. 4.073 /1942 que, no “Capítulo IV – Da articulação do ensino industrial com outras modalidades de ensino”, apresenta uma organização muito diferente do curso ginasial e colegial (clássico e científico), voltada para disciplinas técnicas e práticas: “Os cursos técnicos são destinados ao ensino de técnicas, próprias ao exercício de funções de caráter específico na indústria”. (Art. 10º. par. 1º.).
De forma articulada e complementar, elaboram-se explicações e justificativas para criar o consenso sobre novos fatos gerados, exatamente, para prolongar as formas básicas da dominação. É este o universo claro-escuro da ideologia, de sua ambiguidade. O que não está dito, o que é "lacunar", omite a luta, as contradições da luta; e o que está dito revela a vitória pretendida sobre cada luta - ou em termos gramscianos, o que se pretende que seja o consenso necessário à consolidação da hegemonia de determinadas classes e grupos sociais (CIAVATTA, 2009).
Na conjuntura do governo Vargas, a ideologia do desenvolvimento “cimenta” - nos termos gramscianos (GRAMSCI, 1978) - o desenvolvimento econômico aspirado pelas elites empresariais e aceito pela população pelas promessas de desenvolvimento social. Ao mesmo tempo, obscurece a compreensão de seu verdadeiro sentido, a dialética da reprodução e acumulação do capital (MARX, 1979) Esta restrição de acesso aos níveis superiores de ensino somente será equacionada por pressão popular e equivalência progressiva entre níveis e
modalidades com as Leis de Equivalência, a Lei no. 1.076/1950, a Lei nº 1821/1953 e a Lei nº 3.552/1959 e, finalmente, com a LDBEN, Lei n. 4.024/196110 Assim, Marília Spósito (1984) relatou as lutas sociais pelas mudanças de lei:
A questão envolveu inúmeros interlocutores no âmbito do Estado e da sociedade civil. A expansão da rede de ensino público secundário, em São Paulo, se fez aos poucos, primeiro pelos cursos noturnos nos prédios dos grupos escolares primários, depois pela criação de anexos aos ginásios existentes sob a forma de seções. (...) As solicitações chegavam ao Governo através dos políticos e, mais tarde, através dos movimentos sociais da periferia (SPOSITO, 1984, p. 60).
Se buscarmos aproximações entre a Exposição de Motivos do Decreto-lei no.
4.244 /1944, com a Medida Provisória no. 746 /2016, que veio se tornar a atual Lei da Reforma do Ensino Médio, Lei no. 13.215/2017, devemos atentar para os principais fatos que a contextualizam. São instrumentos legais aprovados logo após o “golpe branco”11 que se iniciou em 2 de dezembro de 2015 e foi concluído em 31 de agosto de 2016, promoveu o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e alçou à Presidência o Vice-presidente Michel Temer.
Ato contínuo, Temer passou à execução de um projeto autoritário que determinou mudanças substantivas na governabilidade em curso, anteriormente, nos governos petistas.12 Fez-se aprovar a Emenda Constitucional nº 95 que, por vinte anos, proíbe despesas do Estado acima da inflação, o que, na prática, suprime investimentos em políticas sociais. Aprovou-se a Reforma Trabalhista pela qual desregulamentaram-se as relações de trabalhos, direitos conquistados desde o governo Vargas nos anos 1940; a Reforma Sindical, que desmontou a estrutura de arrecadação e de representação dos sindicatos de trabalhadores; antirreformas na legislação educacional desmontando décadas de lutas sociais em defesa de recursos, de melhoria das escolas, das condições do trabalho docente, da concepção de educação básica.13
Ver discussão detalhada em II.6. A técnica como um novo humanismo. As Leis de Equivalência (CIAVATTA, 2009).
Referimo-nos ao impeachment como “golpe branco” porque foi consumado pelo Congresso Nacional,
sob a acusação básica de “responsabilidade fiscal” por manobra financeira frente ao teto de gastos do orçamento do Estado, mecanismo de remanejamento de recursos já utilizado por outros governantes, sem serem penalizados.
12 Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010) e Dilma Rousseff (2011-2011 e 2015-2016).
13 No marco do golpe de 2016, fomos surpreendidos com abundante legislação desmontando conquistas das lutas sociais na educação (PASSOS, 2021).
Sob intensa campanha midiática e jurídica, as irregularidades cometidas por empresários resultaram em desestruturação de empresas brasileiras, alavancando um processo de venda de ativos de empresas estatais, privatizações, internacionalização a favor de uma economia de mercado aberto. Denegriram-se todas as iniciativas dos governos petistas, e foi eleito o ex-capitão Jair Bolsonaro. Com o uso de tecnologias multiplicadoras de fake news, implantou-se um projeto neoliberal radical, autoritário, nos moldes do modelo econômico de privatização de serviços públicos do Chile, durante a ditadura que se implantou com o golpe militar de 1973.
O liberalismo econômico mais ambíguo na limitação dos direitos democráticos e sedutor pelo discurso falacioso, sob o rótulo de ultraneoliberalismo, encontrou um adversário (ou um colaborador?) na pandemia do Covid-19. O Estado distanciou-se de suas obrigações na assistência social e à saúde. A população mais pobre, das periferias, sempre penalizada pela ausência de condições de moradia e saneamento, expôs-se ao aumento do desemprego, aos maiores riscos na saúde, no transporte, na carência de recursos para a sobrevivência.
Os termos de uma possível comparação com a Reforma do Ensino do governo nacionalista, de desenvolvimentismo econômico, de políticas sociais trabalhistas de Getúlio Vargas estão no autoritarismo sob a égide do liberalismo. A ideia enganosa de liberdade da etimologia do liberalismo volta sempre no apelo ambíguo às liberdades democráticas. Estas contemplam apenas os detentores do poder econômico e político, as classes médias dos níveis econômicos mais altos, os herdeiros distantes, mas atuantes, das capitanias hereditárias, latifundiários e grileiros, uma direita insensível às necessidades da população.
Em termos específicos de política educacional, a aproximação entre as duas reformas é passível de ser visualizada nos itinerários formativos da lei atual da Reforma da Reforma do Ensino Médio que altera o Art. 36 da LDB (Lei n. 9.394/96) e diz:
“ Art. 36 . O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber: I - linguagens e suas tecnologias; II
Se as áreas I a IV correspondem, reconhecidamente, a áreas do conhecimento, o mesmo não acontece com o item “V – formação técnica e profissional” que é área específica de preparação para o trabalho na indústria, no campo, em serviços. A quem se destina este “desvio” de rota de estudos? A história da educação no Brasil mostra que não diz respeito à formação de políticos e empresários dirigentes, mas a setores subalternos, pobres e médios que precisam do trabalho precoce para sobreviver, para ajudar as famílias e, talvez, tentar, mais tarde, reentrar no sistema para ter acesso aos níveis superiores de ensino, à universidade. Para esta, preparam-se os filhos das elites nas melhores escolas, públicas e privadas, do país.
Se voltamos à Exposição de Motivos da Reforma Capanema, encontramos o que tem sido sempre “inspiração” dos burocratas das elites, “o ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores (...)” (BRASIL, 1942) e, claramente, o curso ginasial (atual Segundo Segmento do Ensino Fundamental) se articularia ao “segundo ciclo de todos os ramos especiais do ensino de segundo grau, isto é, com
o ensino técnico industrial, agrícola, comercial e administrativo e com o ensino normal,” o que também concorreria para a “democratização do ensino secundário”. (BRASIL, 1942, grifos nossos).
Como salientamos anteriormente, tanto a Lei Orgânica do Ensino Secundário, a Lei Orgânica do Ensino Industrial (BRASIL, 1942 a) e, mais tarde, as Leis Orgânicas do Ensino Comercial (BRASIL, 2014), do Ensino Agrícola (BRASIL, 2014 a) e Ensino Normal (formação de professores) (BRASIL, 2014 b) não estabelecem disciplinas e dispositivos de acesso ao ensino superior para seus alunos. Como queriam as elites dos “Tempos de Capanema” (SCHARTZMAN et al., 1984), e como querem as elites empresariais e as classes médias destes tempos sombrios de pandemia e pandemônio do (des)governo atual, mantém-se o sentido dúbio de democratização da educação e da segregação em uma sociedade fundada no racismo estrutural de uma abolição da escravização para os escravos negros africanos e para os trabalhadores livres brancos.
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