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V.19, nº 40, 2021 (set-dez) ISSN: 1808-799X


EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES - IMPASSES

HISTÓRICOS [Sonia Maria Rummert – Org.] 1


Giovanna Henrique Marcelino2


A pandemia da COVID-19 tem reforçado e escancarado as profundas desigualdades sociais que marcam a realidade brasileira, atreladas a um amplo processo histórico de espoliação de bens, recursos naturais e direitos da classe trabalhadora, que foi intensificado nos últimos anos com a crise capitalista. A ampliação das desigualdades educacionais é um dos graves problemas que compõem esse quadro, contribuindo, de maneira singular, no aprofundamento da precarização das condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora brasileira. Se a ausência sistemática de políticas efetivas na garantia ao direito à educação representa um problema histórico de longa data no nosso país, ele se tornou ainda mais dramático no cenário atual de pandemia, com a falta de investimentos, o fechamento de escolas e creches e o aumento dos índices de abandono escolar em todos os níveis. Diante disso, o tema do direito à educação voltou a estar no cerne não apenas dos debates sobre os sentidos e desdobramentos da atual crise, como também do próprio repertório das lutas populares que acontecem cotidianamente nos territórios e periferias, enquanto mais uma bandeira fundamental ao lado da luta contra a fome, o desemprego, a violência policial, a falta de água, saúde e moradia. Assim, junto a outras atividades e instituições vinculadas à esfera do cuidado e da reprodução social (como hospitais e serviços de saúde) - centrais para a reprodução da força de trabalho e, consequentemente, para a manutenção da vida social como um todo - a



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1 Resenha recebida em 20/07/2021. Aprovada pelos editores em 15/08/2021. Publicada em 11/11/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i40.50936. Obra resenhada: RUMMERT, Sonia Maria (Org.). Educação de jovens e adultos trabalhadores: história, lutas e direito em risco. Uberlândia: Navegando Publicações, 2019.

2Doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8977-4923. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5799491433211576. E-mail: giovannahmarcelino@gmail.com.

educação não só têm sido um dos setores mais atingidos pela atual crise, como também um importante terreno da luta social e política no último período.

O livro Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores: história, lutas e direito em risco, organizado por Sonia Rummert3 é formado por oito artigos que, em conjunto, oferecem um panorama crítico ao leitor interessado em entender como o direito à escolarização básica se constitui propriamente como uma agenda e um objeto de disputa política ao longo da história republicana brasileira. O livro auxilia na compreensão sobre como os problemas que vivemos no tempo presente remontam, na verdade, a toda uma história de negação sistemática de direitos, fruto do constante “progresso do atraso”, próprio da formação social brasileira, em que processos de modernização não superam, mas sim, repõe o arcaico em um novo patamar. Os nossos impasses educacionais, como o analfabetismo, são sintomas desse processo, constituindo-se enquanto um índice bastante concreto de como a promessa moderna de universalização da escola laica, gratuita, pública e universal não se realiza plenamente no Brasil ao se chocar constantemente com uma tendência hegemônica de conservação da nossa estrutura social periférica, marcada pela herança colonial, oligárquica, patrimonialista e escravocrata.

Assim, ao longo do livro, passa-se em revista as tentativas do Estado brasileiro desde a década de 1930 em implementar o direito à educação básica, caracterizando diferentes conjunturas em que isso foi realizado (Estado Novo, ditadura militar e contrarreformas neoliberais), bem como analisando uma gama heterogênea de setores e grupos sociais que estiveram historicamente envolvidos enquanto agentes em cada um desses momentos (como a burguesia empresarial, o setor privado de ensino, a Igreja, os partidos, sindicatos e a sociedade civil). Nesse sentido, um dos principais méritos do livro é promover uma reconstituição histórica, em que são mobilizadas duas visões antagônicas e relacionais implicadas na concepção, elaboração e efetivação da Educação de Jovens e Adultos (EJA) ao longo da história do Brasil: 1) os interesses economicistas das classes dominantes em alfabetizar e educar trabalhadores, em que a EJA é vista como mais uma forma de dominação, enquanto uma via para a formação de uma força de trabalho mais qualificada e


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3 RUMMERT, Sonia Maria (Org.). Educação de jovens e adultos trabalhadores: história, lutas e direito em risco. Uberlândia: Navegando Publicações, 2019. Cabe assinalar que a versão impressa da publicação foi entregue aos autores, pela Editora, em abril de 2000, quando a pandemia já impedia sua divulgação mais ampla, situação que até o momento de escrita desta resenha, permanece.

“domesticada”; e 2) os interesses da classe trabalhadora organizada, que encara o direito à educação básica como um aspecto importante de sua luta por emancipação e autodeterminação.

Assim, o livro apresenta uma série de pesquisas recentes4 que abordam a educação de jovens e adultos à luz da relação Trabalho-Educação e sob o prisma da noção central de luta de classes, confrontando a todo momento essas duas concepções distintas e antagônicas de educação. Nessa perspectiva, a história da EJA é entendida como uma trajetória acidentada de disputas e lutas, avanços e retrocessos, em que se sobressai a concepção dominante de exclusão e não garantia plena efetiva de um direito constitucional básico, que mantém milhões de jovens e adultos trabalhadores à margem, numa situação de exceção dentro do Estado Democrático de Direito. Isso se materializa concretamente na discrepância entre uma alta demanda potencial (visível na manutenção dos níveis de analfabetismo entre os brasileiros desde o primeiro censo realizado nos anos 1920) e a contínua queda nas matrículas na Educação Básica (reforçadas ainda mais no atual período da pandemia).

Para oferecer esse panorama, o livro tem como ponto de partida o contexto de criação da Campanha Nacional de Alfabetização de Adolescentes e Adultos, iniciada durante o governo Dutra. No primeiro capítulo, intitulado "A formação de jovens e adultos trabalhadores na imprensa burguesa do final dos anos 1940: o dito e o não dito pelos jornais", Maria Inês Bomfim analisa especificamente o papel da imprensa empresarial, tomando como objeto de estudo o Diário de Notícias, um dos jornais de mais alta circulação do Rio de Janeiro, e como ele abordou o tema da educação de jovens e adultos trabalhadores entre 1947-1950. A autora estuda o viés altamente ideológico das publicações do jornal, que colaborou na propagação de uma concepção dominante sobre o direito à educação. Segundo Bomfim, a campanha de alfabetização foi à época, retratada pelo periódico como uma "obra cívica" e uma "atitude patriota", humanizadora, reforçando a imagem e o discurso emitido pelas elites brasileiras sobre trabalhadores e moradores das favelas cariocas, associando- os à "malandragem", "preguiça", "falta de higiene" e "promiscuidade". Nesse contexto, portanto, a EJA ganha o sentido civilizatório de preparar um trabalhador de novo tipo,


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4 O livro reúne trabalhos apresentados por pesquisadores durante a VII Jornada EJA Trabalhadores, realizada em 2018, no âmbito do Grupo de Pesquisa Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores (EJATrab - UFF/CNPq) – ou seja, no período anterior a pandemia.

tendo em vista a necessidade de se adequar sua moralidade às necessidades de expansão capitalista postas no Brasil naquele período.

Já os capítulos dois e três se atêm aos exemplos da EJA como parte da resistência e das lutas da classe trabalhadora. Em "Mobilização, organização e capacitação dos setores populares: a experiência dos Comitês Populares Democráticos e da Universidade do Povo", Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro analisa dois empreendimentos impulsionados pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB): os Comitês Democráticos Populares (1945-1947) e a Universidade do Povo (1946), iniciados durante o período de "redemocratização" de 1945-1947. Ambos impulsionaram uma ampla gama de atividades educacionais e culturais - como cursos, conferências, seminários, concertos, exposições, teatro, sessões de cinema, exposições - bem como uma campanha de alfabetização, construída a partir de um novo prisma: o objetivo tanto de auxiliar a estratégia de trabalho de base e enraizamento do partido e das ideias de esquerda numa base social mais ampla, quanto de estimular formas de pressão e organização popular, que dessem voz aos setores marginalizados da vida política naquele período (tendo em vista que em 1945, o direito ao voto ainda era negado aos analfabetos). Já em "Escolas de trabalhadores feitas pelos próprios trabalhadores", Osmar Fávero pontua a ausência de registros na historiografia sobre experiências da educação de jovens e adultos trabalhadores que relacionam educação e formação profissional e resgata o caso das escolas reunidas no Centro das Escolas de Trabalhadores (CET), com destaque para o Centro de Trabalho e Cultura (CTC), entre anos 1970-2000. Surgida durante um dos períodos mais duros da ditadura militar e em meio ao chamado milagre econômico (em que estavam em alta os projetos de Supletivo), a CET representou uma experiência alternativa, levada a cabo por operários, que buscava aliar formação política à educação técnica, com vistas a fortalecer as organizações de base, o pensamento crítico e a reapropriação e recriação do saber expropriado dos trabalhadores, guardando pontos em comum com a pedagogia de Paulo Freire.

No quarto capítulo, "O direito à educação de jovens e adultos trabalhadores pode servir às lutas sociais", interrompe-se a análise de experiências históricas concretas para realizar uma reflexão de cunho teórico sobre a própria noção de direito e sujeito de direito, partindo do marco de que a Constituição de 1988 promoveu uma virada significativa na história da EJA - de ações governamentais compensatórias para

um direito a ser garantido pelo Estado. Para isso, Marcia Soares de Alvarenga e Handerson Fábio Macedo retornam à teoria de Marx, Pachucanis e Gramsci, evidenciando como o pressuposto da igualdade implicado na ideia de direito à educação se encontra não no fenômeno jurídico em si, mas sim, no terreno das próprias relações sociais. Ou seja, em realidade, existe um descompasso entre a conquista de formalização do direito à educação perante a lei e a sua real efetivação, de forma que o direito à educação não pode ser visto apenas por meio do conteúdo abstrato da lei, mas sim, a partir das condições sociais do sujeito de direito - que oferecem, inclusive, uma real aproximação sobre os motivos pelos quais esse direito não se realiza na prática.

Na sequência, são apresentados três capítulos dedicados a analisar a realidade mais recente da EJA, tomando como o foco a análise de casos concretos no estado do Rio de Janeiro, a partir dos anos 2000, em meio a um novo momento da periodização da história da educação de jovens e adultos no Brasil: o das contrarreformas neoliberais (reformas trabalhistas, privatizações, corte de gastos públicos, parceria público-privadas) e do fortalecimento de um modelo gerencial da gestão da educação. Em "Direito à EJA em risco: uma análise da situação da Educação de Jovens e Adultos de nível médio no Estado do Rio de Janeiro", Jaqueline Ventura expõe as condições de oferta da EJA no Rio de Janeiro, entre 2003-2016, abordando o paradoxo aparente implicado no fenômeno de declínio matrículas da EJA e aumento da emissão de certificação (ENCCEJA), num momento em que se fortalece a "indústria do supletivo" e em que a EJA torna-se uma estratégia de correção do fluxo escolar e um meio para mascarar os indicadores negativos da avaliação da Educação Básica, a partir da transferência compulsória do "fracasso escolar" de jovens do ensino médio para as turmas de EJA. Em "O direito à educação de jovens e adultos trabalhadores em municípios da Baixada Fluminense", Gilcilene de Oliveira Damasceno Barão analisa a dificuldade de matrícula e permanência na EJA na Baixada Fluminense, enquanto Ênio Serra e Emílio Reguera promovem uma “geografia da EJA”, abordando a dimensão socioespacial das políticas de Ensino Fundamental na Rede Pública Municipal carioca, no artigo "Análise espacial da relação entre oferta e demanda por Educação de Jovens e Adultos na cidade do Rio de Janeiro". Segundo os autores, o problema da redução da matrícula na EJA deve ser analisado não só à luz da crise econômica e da ausência de escolas dedicadas à

alfabetização, mas também com a distância entre a escola, moradia e trabalho, que também são fatores centrais que interferem na permanência e no acesso. Assim, mostram como a análise da segregação socioespacial colabora tanto no diagnóstico quanto na implementação de políticas mais efetivas, revelando como o direito à educação e o direito à cidade são, nesse sentido, indissociáveis.

O livro se encerra com um artigo de Sonia Rummert, "O capital industrial e a Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores", que se atém a um dos temas mais atuais da EJA, que traduz de maneira bastante concreta a colonização da educação pela lógica da financeirização: o projeto do ensino à distância. Para isso, a autora resgata o papel da Confederação Nacional da Indústria (CNI), representante do pensamento empresarial e ator importante nas discussões sobre a educação da fração industrial da classe trabalhadora, e que em seu último Mapa Estratégico da Indústria (2018-22), defende a implementação de uma Nova EJA à distância, aprofundando a educação de jovens e adultos como um processo de escolarização que deve ser útil, breve, pouco custoso e, portanto, eficaz às necessidades e temporalidades próprias do capital.

Em conjunto, os artigos nos oferecem, assim, uma constelação plural de abordagens sobre a EJA, passando por experiências e momentos decisivos de sua história. Reunidos, oferecem, sobretudo uma visão crítica à concepção da EJA projetada pelas classes dominantes, que historicamente não a concebem como uma forma de sanar o déficit histórico da educação da classe trabalhadora, mas sim, de manter a reprodução precária da força de trabalho e o consentimento ativo da classe sobre sua condição de exploração. Cabe ainda, entretanto, em meio a crise atual, aprofundar como se produz a negação desse processo, ou seja, como é possível se realizar hoje uma educação que visa não a manutenção das relações sociais capitalistas, mas sua transformação radical, abrindo também uma nova etapa da luta por educação de jovens e adultos do ponto de vista do atual estágio das mobilizações da classe trabalhadora, em sua nova configuração, predominantemente pós-fordista.