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V.19, nº 40, 2021 (set-dez) ISSN: 1808-799X


EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM MOÇAMBIQUE - PASSADO, PRESENTE E PERSPECTIVAS:

ENTREVISTA COM BRÍGIDA D’OLIVEIRA SINGO1


Mulher de camisa rosa

Descrição gerada automaticamente


Esta entrevista, feita pelas Professoras Marcia Alvarenga2 e Sonia Rummert3, e que integra o Dossiê Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores: história,


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1 Entrevista recebida em 24/08/2021. Aprovada pelos editores em 24/08/2021. Publicada em 11/11/2021. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v19i40. 51284.

2 Doutora em Educação pela UFRJ. Professora Associada da UERJ, com atuação na graduação e pós- graduação – Processos Formativos e Desigualdades Sociais. Procientista FAPERJ/UERJ. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas e Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores (CNPq) e do Grupo de Pesquisa Vozes da Educação (CNPq). E-mail: msalvarenga@uol.com.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/4672329547292143;

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8686-9844.

3 Mestre em Educação pelo IESAE/FGV/RJ e doutora em Ciências Humanas – Educação pela PUC- RJ. Pós-Doutorado em Formação de Adultos na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Professora Associada da FEUFF, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação. Representante do GT Trabalho e Educação no Comitê Científico da Anped (2010-2012). Coordenadora do GT Trabalho e Educação da Anped (2012-2015). E-mail: rummert@uol.com.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/9928452814893376; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1187-8786.

processos de luta e resistência, da Revista Trabalho Necessário, apresenta aos leitores a Professora Brígida D’Oliveira Singo, Vice-Reitora Acadêmica da Universidade Licungo, a quem, inicialmente, agradecemos a imensa disponibilidade.

A Professora Brígida Singo nasceu em Maputo, Moçambique, em 02 de fevereiro de 1962. Realizou seus primeiros estudos na Escola primária Completa de Missão São Benedito de Macanda, no Distrito de Marracuene e cursou o ensino Secundário na Escola secundária de Namaacha, na Província de Maputo. Formou-se em Matemática/Biologia na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo e, em seguida, completou seus estudos de graduação em licenciatura do curso de Biologia no Instituo de Biologia. Prosseguiu em sua trajetória acadêmica realizando seus estudos de Mestrado e Doutorado na Universidade Técnica de Dresden, Alemanha, na Faculdade de Educação, quando os temas da formação de formadores e a formação profissional constituíram, como constituem até hoje, seu campo de estudos e pesquisas. Em seu profícuo percurso acadêmico-profissional dedicado às atividades de ensino, pesquisa e extensão, a professora Brígida Singo, desde o ano de 2019, exerce a função de Vice-Reitora Acadêmica da Universidade Licungo, universidade pública moçambicana, multicampi, sediada na cidade de Quelimane.

No decorrer da entrevista que nos foi concedida, por escrito, no mês de julho de 2021, a Professora Brígida Singo discorre sobre vários temas relativos à educação em Moçambique, proporcionando aos leitores um panorama da complexidade e da amplitude dos desafios que vêm sendo enfrentados pelo país, após o processo revolucionário de libertação da sujeição imposta pelo colonialismo português. Inicialmente, nos é apresentado o atual Sistema Nacional de Educação em Moçambique (SNE), tal como entrou em vigor em 1983, seguindo-se considerações acerca da Educação de adultos, sobretudo compreendida como o processo de implementação de programas destinados a jovens e adultos, com realce à questão da alfabetização.

A seguir, a entrevistada sublinha a importância atribuída à educação pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que conduziu o processo revolucionário, até a nacionalização da educação ocorrida a partir de 24 de julho de 1975. Ao abordar esse processo, ressalta a importância de Paulo Freire e de Samora Machel (primeiro presidente após a independência, de 1975) para a educação popular, compreendida como educação para todos, tal como empreendida no âmbito

dos espaços escolares e nos espaços não-formais, esses últimos valorizados no país. Também poderemos compreender a importância da educação, cujos princípios foram formulados com grande contribuição de Machel, no processo revolucionário, desde a ação nas Frentes Libertas, bem como sobre o papel do professor/educador até a atualidade.

Nossa entrevistada também aborda as dificuldades que hoje ameaçam os programas educativos da pós-independência, tais como as calamidades naturais e a guerra civil dos Dezesseis Anos, às quais, hoje, vem se somar a pandemia. Finalmente, nesse cenário adverso, nos apresenta considerações acerca dos atuais projetos da Universidade Licungo. Passemos, então, à entrevista que, em muito, contribuirá para um maior conhecimento da realidade e da força de Moçambique.


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Professora, para iniciar nossa entrevista, pedimos que conte, mesmo que brevemente, sobre a situação atual da educação e da formação em Moçambique.


Brígida Singo: Em primeiro, agradeço o convite feito pelas professoras Marcia Alvarenga e Sonia Rummert para realizar este diálogo que integra o Dossiê da Revista Trabalho Necessário e a possibilidade de compartilhar a história da educação em Moçambique. Começo a dizer que o actual Sistema Nacional de Educação em Moçambique (SNE) entrou em vigor em 1983. É composto por cinco subsistemas: Educação Geral, Educação de Adultos, Educação Técnica-Profissional, Formação de Professores e Ensino Superior. A revogação da Lei 4/1983 pela lei 6/1992 e esta pela Lei nº 18/2018 de 28 de dezembro, que veio ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo

178 da Constituição da República, estabelece o regime jurídico do SNE em Moçambique, cuja aplicabilidade abrange todas as instituições públicas e privadas que implementam este sistema. Os princípios gerais do SNE são: (a) a educação, formação inclusiva e equilibrada dos recursos humanos, passa a ser direito de todos moçambicanos; (b) a educação é um direito de qualquer cidadão moçambicano e dever do Estado; (c) promoção da consciência, da responsabilidade e do patriotismo no diálogo para conservação dos valores culturais e da paz; (d) promoção do acesso ao ensino, que garanta o direito e a efectividade de igualdade das oportunidades; (e) organização do ensino integrado, cuja acção educativa conduz ao desenvolvimento sustentável da sociedade, nos termos previstos pela Constituição. Neste contexto, a

escolaridade obrigatória em Moçambique vai da 1ª a 9ª classe e os encarregados de educação devem, obrigatoriamente, matricular as crianças na 1ª classe até 30 de junho, do ano em que a criança completa os 6 anos de idade. Portanto, a frequência de todo o ensino primário, que abrange 2 ciclos (o 1º de 1ª a 3ª classe e o 2º de 4ª a 6ª classe) e o primeiro ciclo do ensino secundário (da 7ª a 9ª classe) é gratuito, isento de qualquer pagamento de propinas4 ou outras taxas escolares e é obrigatório para todos os moçambicanos (educação popular do Paulo Freire). Samora Machel considerava que só a educação generalizada permitirá ao povo moçambicano se apropriar do conhecimento científico-técnico para combater a opressão e a exploração do homem pelo homem. O ensino secundário é nível pós-primário e permite que o aluno continue seus estudos e insira-se na vida social e no mercado do trabalho. Ele organiza-se em 6 classes, dividido em 2 ciclos, o 1º da 7ª a 9ª classe, que é o básico gratuito e obrigatório e o 2º da 10ª a 12ª classes, que condiciona o acesso ao ensino superior. O subsistema de educação de adultos abrange a alfabetização de jovens e adultos, de modo a assegurar a formação geral, que permita o acesso aos diferentes níveis de ensino. O subsistema de educação técnico-profissional é considerado o principal instrumento de formação profissional da força de trabalho qualificada para o desenvolvimento sustentável do país. Finalmente o subsistema do ensino superior, que forma ao mais alto nível nos diversos domínios de conhecimento técnico-científico e tecnológico.

Importante ressaltar que a particularidade da Educação de adultos, em Moçambique, reside na inclusão de programas destinados a jovens fora da escola e a adultos em qualquer lugar de formação considerados em espaço não formal. O termo “alfabetização e educação de adultos” é frequentemente e restritamente usado para realçar o papel que alfabetização funcional deverá desempenhar no desenvolvimento socioeconómico. Em Moçambique o Ministério de Educação, desde o ano de 2003, define oficial a educação não formal, todos os programas ou tipos de actividades educacionais organizados, que estão centrados nas necessidades de um determinado grupo-alvo e que são implementados fora do sistema de educação formal. São, em geral, actividades flexíveis, quanto ao momento, local de realização e adaptação dos conteúdos de aprendizagem em relação ao grupo-alvo escolhido.


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4 Valor a ser pago pelo ano escolar.

Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Considerando o processo histórico de Moçambique nas lutas pela Independência de Portugal, nos fale um pouco sobre a importância atribuída à educação pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), como principal força social.


Brígida Singo: A nacionalização da educação a 24 de julho de 1975, inicia com a proclamação do direito à educação para todos os moçambicanos (principal marco pós-independência), regida pela Constituição da República Popular de Moçambique (20 de Junho de 1975) e a consequente massificação do acesso à educação em todos os níveis de ensino e a criação dos centros de formação de professores primários. A independência trouxe uma nova dinâmica na educação em Moçambique, a qual se reflectia na garantia da educação para todos (educação popular), a expansão da rede escolar pelo Estado, que se baseava na sistematização das experiências de educação nas zonas libertadas, da formação de professores e da revisão curricular contínua.


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Ainda em relação à pergunta anterior, ou seja, no processo de libertação, quais os principais projetos de ação político-pedagógica e quais os principais educadores que influenciaram nas suas formulações?


Brígida Singo: A Educação Popular é um movimento político-pedagógico, onde o Paulo Freire foi um dos principais disseminadores deste método e o principal mentor desta tendência educacional. O surgimento dos ideais de Paulo Freire nos anos 1950 e 1960, deram origem ao trabalho da Educação Popular e, mais tarde, se transformaram em marco das ideias pedagógicas no mundo. O maior desafio nesse período da pedagogia crítica era desenvolver nos oprimidos a capacidade de reconhecer suas opressões e a consciência de si mesmos, possibilitando-lhes reagir a elas. O objectivo principal da educação popular e saúde era a busca de não apenas a construção de uma consciência sanitária capaz de reverter o quadro de saúde da população, mas, sim, a intensificação da participação popular na perspectiva da educação das políticas públicas. Todos esses pressupostos foram também referenciados pelo Samora Machel nas zonas libertadas durante a luta de libertação

nacional e logo após a independência nacional. Enquanto líder da Frelimo, Machel teve a coragem de pôr em prática o trabalho de educação que identifica a alfabetização como um processo de conscientização, capacitando o oprimido tanto para a aquisição dos instrumentos de leitura e escrita, quanto para a sua libertação, esse facto fez dele um dos primeiros presidentes de Moçambique a ser popular. Samora Machel defendia que o maior objectivo da escola é ensinar o aluno a ler e escrever para transformar a sua sociedade, e necessariamente consciencilizar o aluno para se tornar um militante, fundamentos também trazidos por Freire, na pedagogia do oprimido.

Contudo, é a partir do discurso de Samora Machel, com o título “Fazer da escola uma base para o povo tomar o poder” 5 que a educação é alçada como instrumento político pedagógico, formativo no processo de aprofundamento da libertação. Esse discurso ao povo surge no contexto de crise de gestão escolar, verificada no sistema educacional por Samora Machel. As situações encontradas e analisadas com profundidade serviram de lições para, necessariamente, se posicionar e defender nesse período, que a educação e a cultura são prioridades ao serviço do povo oprimido e humilhado pelo sistema de exploração colonial. Para Machel, era imprescindível um combate contra o analfabetismo e contra os pensamentos obscuros de exploração do homem pelo homem. Machel via a escola como uma “arma poderosa” para esse propósito e como uma possibilidade de mobilização do potencial humano para o desenvolvimento e o progresso da sociedade. Machel e Freire como pensadores político-pedagógicos propõem a descolonização das mentes e o processo de conscientização do povo oprimido. Aqui nota-se um alinhamento com o pensamento de Samora Machel relativamente ao papel da educação como um instrumento de libertação e que deveria ser assumido por professores, por alunos e por todos os moçambicanos.

Machel evidenciava e vincava que, para que isso fosse possível, era necessário lutar contra os complexos de inferioridade e de superioridade existentes entre os professores e os alunos, pois impedem a aplicação do nosso princípio de juntos aprendermos, uns dos outros, para progredirmos em conjunto, evitando que ambos (professor/aluno) pudessem colocar em causa o cumprimento pleno das tarefas que


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5 Fac símile apresentado na seção Memória e Documentos, deste número de nossa Revista.

lhes eram confiadas: (a) aprender-ensinando para o aluno e (b) ensinar-aprendendo para os professores.

Pelo mesmo viés, Freire defende que o educador não deve ser o que apenas educa, mas aquele que enquanto educa, é educado, num processo de educação mútua. Assim, reconhece-se a necessidade de se tomar em conta as relações que se estabelecem entre os sujeitos envolvidos no processo de Ensino-aprendizagem. É importante que entre o educador e o educando (Freire), ou o professor e o aluno (Machel), haja diálogo, entendido como um processo de encontro entre os homens para reflectirem sobre uma determinada realidade que lhes diz respeito e que entre eles haja o hábito de se escutarem mutuamente.

Nesse contexto, os projectos prioritários de acção político-pedagógica são: i) Desenvolvimento curricular; ii) Desenvolvimento de materiais adequados; iii) Formação e capacitação de recursos humanos; iv) desenvolvimento de habilidades para a vida, prevenção e combate a doenças endémicas (HIV, Malária, Cólera etc). O projecto político-pedagógico, ao se constituir em processo participativo de tomada de decisões, preocupou-se em instaurar uma estratégia de organização que desvelasse os conflitos e as contradições. Este facto foi observado no discurso de Samora Machel, “Fazer da escola uma base para o povo tomar o poder”, que já mencionamos. Exactamente neste ponto, nota-se um alinhamento do pensamento de Samora Machel relativamente ao papel da educação como um instrumento de libertação e que deveria ser assumido por professores, alunos e por todos os moçambicanos. Na perspectiva de Paulo Freire, o processo educativo tem por objectivo educar as populações para torná-las conscientes do seu próprio “status”, da sua luta de libertação, da sua própria realidade, mediante discussões informais ou formais dos problemas socio- econômicos e políticos que as afectam. Machel evidenciava e vincava que, para que tal acontecesse, era necessário lutar contra os complexos de inferioridade e de superioridade existentes entre os professores e os alunos, pois impedem a aplicação do princípio de juntos aprendermos, uns dos outros para progredirmos em conjunto, evitando que ambos (professor/aluno) pudessem colocar em causa o cumprimento pleno das tarefas que lhes eram confiadas: (a) aprender-ensinando para o aluno e (b) ensinar-aprendendo para os professores. Pelo mesmo viés, como já vimos, Freire defendia que o educador educa mas, enquanto educa, também é educado em diálogo com o educando.


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Que aspectos se destacam no encontro entre Paulo Freire e Samora Machel nas Zonas Libertadas? Tal encontro ocorreu, efetivamente?


Brígida Singo: As zonas libertadas eram mais um espaço de mudança de mentalidade pela transformação das relações sociais de trabalho do que um projecto de transformação material imediata das populações. Era na linha da necessidade que se colocava, entre outras, a questão de organização e administração das populações, fazendo face aos problemas imediatos que apareciam e requeriam resoluções concretas e claras, como afirmava Samora Machel. Para ele, era nesse espaço que se procedia à reforma do ensino e ao seu desenvolvimento, criava-se, difundia-se uma nova cultura e organizava-se um novo tipo de educação. Na organização das zonas libertadas, como espaço cultural dinâmico, as posições tornavam-se mais claras e as contradições mais evidentes. As zonas libertadas constituíram sem dúvida um espaço de construção e de definição da política da Frelimo. Nesse espaço cultural construía- se um mundo de vida dinâmico, de contradições e forjava-se um novo tipo de educação. Desde cedo, a Frelimo insistiu na importância e necessidade da educação para o avanço da própria luta, pois para Eduardo Mondlane6, a educação era uma condição político-ideológica básica para o sucesso da luta. O problema do treino não envolvia apenas o aspecto militar, mas também de configuração das zonas libertadas. Machel defendia as funções políticas, formativas da escola no processo revolucionário, em que considerava cinco pontos fundamentais sobre a escola, onde

  1. a escola era a base da formação da Frelimo, como um Povo organizado para sua libertação e emancipação; (2) a escola foi tida como centro de combate às concepções tradicionais, que aprisionavam a iniciativa e a criatividade, não só de um novo tipo de relacionamento entre homens e mulheres, mas também de uma nova visão sobre o país; (3) a escola tornou-se um centro de difusão de conhecimentos, mesmo que fossem elementares, para introdução de novas formas de trabalho, que orientavam ao aumento da produção e à satisfação das necessidades crescentes da luta; (4) a escola tornou-se também centro de formação de combatentes exigidos pela luta; e (5)


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    6 Um dos fundadores e primeiro presidente da Frelimo. Sociólogo e primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique - FRELIMO), ex-diplomata, ex-professor, cientista e militante político.

    a escola destinava-se ao mesmo tempo à formação de produtores e militares, com estreita ligação entre o trabalho e educação, conforme os I e II Congressos, realizados em Setembro de 1962 e Julho de 1968, respectivamente. A formação do Homem Novo, com nova mentalidade, que lhe permitisse ser capaz de resolver os problemas gerados pela luta de libertação e transformar a sociedade moçambicana, está afirmada no documento do Ministério da Educação e Cultura, de 1980. Neste contexto, o Homem era o sujeito e o objecto do trabalho educativo que se inseria no serviço militar nas zonas libertadas e assumia, desse modo, uma função política de: Criar, desenvolver e consolidar uma sociedade nova, que se orientava para a construção de Moçambique próspero, auto-suficiente e independente. Tratava-se de enquadrar e envolver o povo nas fileiras e tarefas da luta de libertação e criar nos alunos uma personalidade moçambicana, tendo em consideração a sua realidade sócio-cultural, reflectindo sobre as ideias e experiências de outros povos, e afirmada de forma contundente nas obras publicadas por Machel; Criar na mulher uma consciência de responsabilidade e solidariedade colectiva, livre de todo o individualismo e mostrar a necessidade de servir o Povo, de participar na produção, ter iniciativa e capacidade de desenvolver o país; Desenvolver o espírito da unidade do povo moçambicano e promover o conhecimento à sociedade para formar o Homem Novo, conforme afirmava-se na Direção Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos. A Frelimo adotou uma educação que se baseava na experiência utilizada nas zonas libertadas na época da luta de libertação. Esta modalidade de ensino colocava os seguintes parâmetros, que são importantes citar:

    1. o ensino tem que funcionar com os seus próprios recursos, embora quase inexistentes;

    2. todas as pessoas devem aprender com os outros e ensinar outros;

    3. fazer uma ligação entre a teoria e a prática colhida nas zonas libertadas;

    4. lutar contra o tribalismo e racismo entre as diferentes etnias;

    5. estabelecer uma relação e ligação entre a educação, a produção e a comunidade;

    6. tornar e fazer da escola um meio de socialização e de relação politico- pedagógicio.

O convite ao Paulo Freire, permitiu não só consolidar as experiências da Tanzânia, mas também lhe ofereceu a oportunidade de as transferir para outros

países como Moçambique. Embora estivesse ciente que Moçambique, por exemplo, vivia uma experiência socialista, cujo plano centrava-se na consolidação da revolução e da educação de adultos como alternativa metodológica para a implantação de um sistema formal. Neste contexto, o engajamento de Paulo Freire e a palavra de ordem de Samora Machel mostram o quão a preocupação e compromisso as duas personalidades tinham com relação a educação popular. Essa experiência fez com que Freire relatasse no seu livro “Pedagogia da Esperança”, o contacto que teve com o presidente do movimento da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) em Tanzânia. O encontro do Freire com Samora Machel, em Luzaka e Dar es Salaam, marcou-o fortemente e permitiu-o que visitasse os campi de formação nas zonas libertadas. Todavia, o Paulo Freire nunca afirmou em nenhum momento da sua estadia no continente africano, o que teria discutido com Samora Machel no referido encontro e muito menos revelou se teria visitado Moçambique. Acredito que as duas inesquecíveis personalidades constituem a história de Moçambique, e contribuem valiosamente no contexto educativo.


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Em que consistia o método de Espiral implementado na educação nas zonas libertadas?


Brígida Singo: A primeira questão que a pregunta coloca é o que é a espiral do aprendizado? Vários autores definem como conjunto de conteúdos, competências e habilidades que devem ser trabalhados durante a fase da escolaridade e que qualquer instituição de ensino deve promover a utilização deste método durante aprendizagem. A segunda questão que se possa aqui colocar é como funciona o ensino em espiral? E a resposta pode ser orientada no seguinte: Estudos sobre a espiral da aprendizagem demonstram que é possível ensinar qualquer conteúdo para qualquer aluno, independentemente do estágio de desenvolvimento em que ele se encontra, mas na segunda questão se coloca ainda sobre o aspecto de como isso é possível. Provavelmente, a resposta está em que a escola precisa levar em consideração as diferentes etapas de formação de cada indivíduo, qualquer que seja a situação; quando o professor aborda um tema, os alunos precisam ter um conhecimento prévio para conseguir acompanhar a aula. Portanto, é fundamental durante o desdobramento considerar aquele conteúdo que já foi anteriormente

trabalhado em outras classes para facilmente adicionar ao novo trecho de conhecimento. Consequentemente, a revisão de conteúdo é uma parte essencial do ensino espiral, pois é por meio desta que os diferentes conhecimentos são apresentados aos alunos. A terceira questão relaciona-se com os discursos das duas personalidades centrais que são Samora Machel e Paulo Freire e, na minha opinião, educação popular é uma abordagem educacional que analisa colectiva e criticamente as experiências cotidianas e desperta a consciência para a organização e construção de um movimento, que age sobre as injustiças com uma visão política no interesse dos mais marginalizados e oprimidos. Eles apoiam a reflexão e a ação para transformar a sociedade, pois quebram a separação rígida entre professor e aluno – todos são alunos e podem ajudar a facilitar a aprendizagem de outros. As duas personalidades frisam que, (1) comece com a experiência de aprendizagem, (2) procure padrões que se adequem à realidade do sujeito, (3) adicione ou crie novas informações ou teoria, (4) pratique uma acção e desenvolva nova habilidade, elabore plano de acção etc, (5) aplique em acção. Este último ponto foi um dos primeiros cenários seguido e implementado por Samora Machel, durante a luta de libertação nacional (experiência da educação popular nas zonas libertadas).


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Professora Brígida, nos parece ser interessante conhecer a legislação que estrutura a educação do tempo presente em Moçambique.


Brígida: Sim. Atualmente a educação em Moçambique está organizada pela Lei nº 6 de 1992 que modernizou o Sistema Nacional de Educação (SNE) para trazê- lo em linha com os modelos económicos e políticos consagrados na Constituição de 1990, e foi aprovado um Estatuto Orgânico da Direcção Nacional de Literacia de Adultos. Neste período, destacam-se entre outros, como principais marcos, o surgimento da lei 4/1983; da lei 6/1992; e da Lei 18/2018. A lei 4/1983 (1983-1991) criou condições para que houvesse a possibilidade de se proceder com a introdução do Sistema Nacional de Educação (SNE). O surgimento da Lei nº 18/2018 traz as seguintes alterações ao SNE: Introdução da educação pré-escolar; O ensino primário em seis classes; O ensino bilíngue como modalidade do ensino primário; O ensino

básico obrigatório gratuito de nove classes; O ensino secundário de seis classes; O ensino à distância como modalidade do ensino secundário e superior.


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Em sua perspectiva, quais seriam ou são as maiores dificuldades enfrentadas hoje em relação à educação e, em particular, na Educação de Adultos?


Brígida: Em Moçambique, infelizmente, os programas educativos realizados após-independência estão hoje seriamente ameaçados por factores externos ao sistema educativo. O declínio económico que se acentuou a partir de 1981, e caracterizado por calamidades naturais como a seca e as cheias, que se juntaram aos efeitos de uma guerra civil dos 16 anos, afectou severamente o sistema educativo moçambicano. As situações de emergência e as necessidades de defesa trouxeram graves cortes à despesa pública destinada à educação, e determinaram a estagnação do sistema educativo em termos quantitativos e qualitativos. A actual guerra perpetuada pela junta militar da Renamo7 no centro, das províncias de Sofala e Manica e a dos terroristas no norte de Moçambique, especialmente em Cabo Delgado, causou muita deslocação da população e consequentemente das crianças em idade escolar. Esta Guerra esteve aliada à destruição de infra-estruturas escolares e sociais por calamidades naturais e, consequentemente, ao abandono das escolas pelos professores e alunos, podendo, contudo, assistir aulas em condições deterioráveis. O problema do custo elevado da Internet e a falta de infra-estrutura tecnólogica na maioria das Instituições de Educação geral, dificulta grandemente a leccionação remota. Logicamente esta situação apanhou a todos desprevenidos e grandes dificuldades em operar estas tecnologias para a leccionação híbrida. Moçambique deve investir em infra-estruturas e na capacitação dos professores do ensino geral e docentes das diversas universidades.


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: No contexto apontado, qual seria o papel da Educação Popular em Moçambique na atualidade?



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7 Resistência Nacional Moçambicana, o segundo maior partido político de Moçambique.

Brígida: Eu entendo que a educação popular é uma perspectiva de educação que valoriza os saberes do povo e suas realidades culturais na construção de novos saberes. A principal característica da Educação Popular é utilizar o saber da comunidade como matéria prima para o ensino, valorizando todos os sujeitos sociais nesse processo, tornando esse espaço de educação um lugar afectivo, alegre e de amorosidade. Ela preconiza o aprender a partir do conhecimento do sujeito e o ensinar a partir de palavras e temas gerados do cotidiano dele, reconhecendo a importância do saber popular e do saber científico. A Educação popular é vista como acto de aquisição de conhecimento para a transformação social, com um certo cunho político. O resultado desse tipo de educação é observado quando o sujeito consegue se situar no contexto e manifestar seu interesse. A partir da leitura, percebemos que são frequentes duas imagens do educador: o educador como ponte e o educador como mediador. A primeira imagem, o educador como ponte, associa o educador ao papel de apoiante, que é a passagem entre conhecimentos populares e acadêmicos, que subsidia a acção dos sujeitos-educandos, ao mesmo tempo em que facilita reflexões ou é facilitador de aprendizagens. Enquanto educador-facilitador de aprendizagem, é dizer que o processo educativo está centrado no educando, delegando ao educador a função de motivar, estimular e deixar fluírem as motivações do aluno. Todos os sujeitos se transformam, porque tanto os educandos, quantos os educadores mobilizam os próprios saberes e a própria leitura da realidade.


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Diante da grave crise sanitária que o mundo atravessa, quais os projetos da Universidade Licungo e quais os impactos da COVID-19 na formação dos professores e pesquisadores?


Brígida: A entrada do século XXI fez-se acompanhar de várias tecnologias emergentes que estão mudando nossa forma tradicional de fazer educação. Há cem anos, as pessoas chegavam à sala de aula, sentavam enfileirados e ouviam o professor ensinar; há cinquenta anos, a mesma coisa e há trinta anos, também! Para uma avaliação justa, todos devem realizar o mesmo teste: por favor, subam naquela árvore (sujeitos de aprendizagem: macaco, elefante, cão, peixe, pinguim etc.). Na Educação Tecnológica, minha premissa é de que a tecnologia aumenta/melhora a

qualidade do ensino; estimula novas formas de aprendizagem; aproxima professores e estudantes e estabelece uma relação-pedagógica sã. Há diferentes maneiras de se explorar a tecnologia no ambiente de ensino e de aprendizagem. Ela ajuda, também, o professor a realizar um melhor trabalho pedagógico, embora não possa substituir o professor, apenas dá-lhe mais poder pedagógico. O desafio da Universidade Licungo é encontrar uma linguagem pedagógica apropriada à aprendizagem mediada pelas diversas Mídias que permeiam a sociedade; O investimento em tecnologia educacional se tornou uma necessidade nas instituições de ensino; Necessidade de formação contínua de professores para o desenvolvimento de habilidades necessárias para utilização das tecnologias e adaptação aos mais diversos contextos educacionais; O custo de equipamentos tecnológicos continua alto.

Para se ter uma ideia sobre a complexidade desta pandemia para a universidade, em março de 2020, quando fomos forçados a restringir a presencialidade para garantir a segurança durante a actual pandemia, apenas algumas Instituições do ensino superior-IES familiarizadas com modelos híbridos ou que utilizavam a tecnologia educacional em escala conseguiram virar a chave imediatamente. Aprendemos e evoluímos muito nos últimos nove meses de 2020, mas está claro que nosso modelo de ensino remoto está longe de ser o mais adequado para o contexto em que vivemos, precisamos continuar a melhorar! Um olhar no cenário actual, verifica-se que as instituições têm dois tipos de alunos, Digital Natives & Digital Immigrants. Os alunos de hoje não são mais as pessoas para quem o nosso sistema educacional foi desenhado para ensinar.

Eu, ainda, acrescento outra questão, ou seja, quais são, então, os embates e desafios que estamos a enfrentar? E arrisco em dizer que o desafio da Universidade Licungo é encontrar uma linguagem pedagógica apropriada à aprendizagem mediada pelas diversas Mídias que permeiam a sociedade; O investimento em tecnologia educacional se tornou uma necessidade nas instituições de ensino; Necessidade de formação contínua de professores para o desenvolvimento de habilidades necessárias para utilização das tecnologias e adaptação aos mais diversos contextos educacionais; O custo de equipamentos tecnológicos continua alto! E a primeira consequência disso é que o “computador”, o “tablet”, o “smartphone” etc. ainda não são, em Moçambique, objectos tecnológicos democráticos para muitos dos nossos estudantes e como consequência directa, a “Internet” também ainda não é

democrática. Então, pensar uma estratégia de ensino que recorra a meios tecnológicos digitais requer da Universidade Licungo uma reflexão profunda e sob o risco de excluir no lugar de incluir digitalmente! A terminar, eu queria vaticinar que é bem provável que a distinção entre EaD e presencial deva acabar nos próximos tempos, inclusive do ponto de vista regulatório e que o ensino híbrido venha ser a regra.

Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Retornando à questão da Educação de Adultos, pedimos que a professora nos conte um pouco da sua relação com a alfabetização de adultos em Moçambique e o legado deixado pela revolução.


Brígida: Desde a revolução pela independência de Moçambique, a alfabetização e escolarização de adultos era dada aos guerrilheiros que, por sua vez, ensinavam às populações o que aprendiam. A alfabetização de crianças, jovens e adultos funcionava nos centros da Frelimo ou Zonas Libertadas: escolas, centros- piloto, de preparação político-militar, centros de saúde e representações da Frelimo nos países vizinhos. Em minhas memórias que trago para esta entrevista, compreendo o desafio da alfabetização no processo da revolução que deve ser analisada em duas linhas: a generalizada voluntarista e a generalizada globalista, que é a “linha popular ou do povo”. Na perspectiva revolucionalista da “escola de trabalho”, a alfabetização de adultos não pode se limitar à memorização mecânica de palavras e frases. É preciso que a aprendizagem de leitura e da escrita estejam associadas à compreensão e à reflexão crítica do contexto social em que esses se inserem. A aprendizagem da escrita e da leitura deve estar articulada à compreensão da realidade e da prática social em que o indivíduo se encontra inserido. Para tanto, é preciso que o processo de aquisição de conhecimento se baseie no conhecimento anterior - “o Prévio”-, proporcionando-lhe uma gama de variedades de estratégias ou oportunidades para a construção de novos conhecimentos, capazes de desvendar a razão de ser dos factos ou fenómenos ocorrentes na comunidade (problemas, conflitos, guerras etc).

Nesse legado, no qual tivemos participação ativa, a alfabetização e educação básicas constam de vários instrumentos legais e de políticas de desenvolvimento do país. Dentre eles se destacam a Constituição da República de Moçambique que define

a educação como um direito de todo cidadão e como um caminho para a unidade nacional, a erradicação do analfabetismo, o domínio da ciência e da técnica, bem como a formação moral e cívica dos cidadãos.


Marcia Alvarenga e Sonia Rummert: Para concluir nossa entrevista, quais desafios permanecem em Moçambique na atualidade?


Brígida: Sem dúvida, a persistência de altos índices de analfabetismo no país continua a nos exigir reflexão e ação, pois tem muitas causas e pode ser analisada de diferentes maneiras. A mesma análise aponta alguns constrangimentos, tais como pessoal pouco qualificado, falta de garantia de financiamento para a implementação dos programas de Educação de Adultos, insuficiente capacidade do Instituto Nacional de Educação de Adultos (INEA) em desempenhar as suas funções, particularmente no tocante à implementação do Regulamento de Pagamento de Subsídios aos Alfabetizadores. Este facto trava a efectividade da implementação plena dos programas de Educação de Adultos em Moçambique.