V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Thereza Cristina Cardoso Menezes2
O artigo propõe refletir sobre as ações para a promoção de queimadas na região amazônica ocorridas a partir de 2019 e seus efeitos sociais. Busca-se identificar como discursos públicos sinalizaram uma inflexão no imperativo da proteção socioambiental amazônico e legitimaram práticas de devastação ambiental. Examina-se ainda os distintos impactos desta nova dinâmica sobre terras destinadas e não destinadas, buscando apontar que tal processo impacta fortemente pequenos agricultores e comunidades tradicionais. Finalmente, analisa-se como tal configuração está ancorada em um conjunto de transformações recentes no marco legal da regularização fundiária que vem incentivando ocupações ilegais de terras na expectativa futura formalização do estoque de terras públicas da Amazônia.
El artículo propone reflexionar sobre las acciones de promoción de incendios en la región amazónica ocurridas a partir de 2019 y sus efectos sociales. Busca identificar cómo los discursos públicos señalaron una inflexión en el imperativo de protección socioambiental amazónica y prácticas legitimadas de devastación ambiental. También examina los diferentes impactos de esta nueva dinámica en las tierras destinadas y no destinadas, buscando señalar que este proceso tiene un fuerte impacto en los pequeños agricultores y las comunidades tradicionales. Finalmente, analiza cómo esta configuración está anclada en un conjunto de transformaciones recientes en el marco legal de regularización de tierras que ha venido fomentando ocupaciones ilegales de tierras en la expectativa de una futura formalización del stock de tierras públicas en la Amazonía.
1 Artigo recebido em 13/11/2021. Primeira Avaliação em 24/01/2022. Segunda Avaliação em 07/01/2022. Aprovado em 14/02/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52255.
2 Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Agricultura, Sociedade e Desenvolvimento da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ). Email: therezaccm@uol.com.br. ORCID: https://orcid.org/ 0000-0003- 2452-0433. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1961922404233305.
The article proposes to reflect on the actions to promote fires in the Amazon region that occurred from 2019 and their social effects. It seeks to identify how public discourses signaled an inflection in the imperative of Amazonian socio-environmental protection and legitimized practices of environmental devastation. It also examines the different impacts of this new dynamic on destined and non-destined lands, seeking to point out that this process has a strong impact on small farmers and traditional communities. Finally, it analyzes how this configuration is anchored in a set of recent transformations in the legal framework of land regularization that has been encouraging illegal land occupations in the expectation of future formalization of the stock of public lands in the Amazon.
O período compreendido entre agosto de 2019 e julho de 2020 foi particularmente dramático para a preservação da floresta amazônica, registrando um aumento de 85,3% nos índices de desmatamento em comparação com aqueles medidos em 2018 e somando o maior desmatamento registrado na região nos últimos cinco anos. O sul do Pará e do Amazonas, o norte de Rondônia e a área central de Roraima foram drasticamente atingidos, constituindo áreas críticas de concentração de queimadas. Historicamente, o uso do fogo é um dos estágios finais do processo de desmatamento seguindo-se a etapa do corte raso da floresta. Na Amazônia, porém o ano de 2019 representou um divisor de águas no largo emprego desta prática, observando-se um salto de 30% nas queimadas neste bioma, em relação ao ano anterior3.
As cenas da floresta amazônica em chamas ganharam o mundo a partir de julho de 2019 e provocaram comoção e repercussão internacional. A explosão dos índices de desmatamento na região denota uma reorientação da política ambiental brasileira praticada nas últimas décadas e consideradas de relativo sucesso na adoção de iniciativas como o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM), aumento da fiscalização e do monitoramento, que se
3 Total de 68.345 focos registrados em 2018 e 89.178 em 2019, segundo dados obtidos no Portal do Monitoramento de Queimadas e Incêndios Florestais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), fonte de todas as cifras mencionadas adiante. Disponível em http://www.inpe.br/queimadas.
expressaram em uma década de queda acentuada das taxas anuais do desmatamento da Amazônia Legal no período entre 2004 e 20144.
Este artigo propõe apresentar alguns elementos que permitam a compreensão da explosão de queimadas na região amazônica, ocorridas a partir de 2019 e refletir sobre seus efeitos sociais sobre comunidades rurais. Busca-se identificar como os discursos públicos do governo federal promoveu uma narrativa sobre um novo destino para a Amazônia e como esta repercutiu no âmbito local, encorajando uma corrida pela exploração de recursos naturais e o avanço sobre terras públicas. Examina-se ainda os distintos impactos desta dinâmica sobre terras destinadas e não destinadas, buscando-se relacionar tal processo com conjunto de transformações na esfera do desenvolvimento capitalista e nos marcos legais do país na última década.
Os dados apresentados foram obtidos mediante o cruzamento de dados disponíveis publicamente sobre desmatamentos, queimadas e Cadastro Ambiental Rural (CAR) produzidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)5, bem como material publicado pela imprensa e informações coletadas especialmente com agentes sociais residentes ou que acompanham as dinâmicas sociais dos municípios do sul do Amazonas, área que tenho pesquisado desde 2007.
Segundo dados do INPE, onze municípios situados na faixa do Sul do Amazonas, Norte do Mato Grosso e Sudoeste do Pará, concentraram 40,5% do desmatamento alarmante registrado na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020. Liderando a lista da devastação amazônica estão os municípios de Altamira (PA), São Félix do Xingu (PA), Porto Velho (RO), Lábrea (AM), Novo Progresso (PA), Itaituba (PA), Apuí (AM), Pacajá (PA), Colniza (MT), Portel (PA), Novo Repartimento (PA) que ao todo somaram 3.963,75 km² de desmatamento.
Dentre os municípios listados acima constam alguns que reúnem os maiores rebanhos bovinos do país e que vem registrando um aumento muito significativo de
4 A queda do desmatamento entre 2004 e 2014 explica-se por muitas outras variáveis que interferiram ao longo do período relacionadas a dinâmica do mercado (redução no preço das commodities entre 2005 e 2008, mudanças no câmbio com valorização do real frente ao dólar, por exemplo), proibição do Banco Central para a concessão de crédito rural a proprietários com multas por corte ilegal, decreto proibição a compra de gado de áreas ilegalmente desmatadas, aumento do número de multas pelos órgãos ambientais.
5 Os dados utilizados foram obtidos nos portais do INPE: Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (PRODES), Programa Queimadas, Portal TerraBrasillis (Desmatamento/Queimadas e Cadastro Ambiental Rural).
pastagens desde o Censo Agropecuário de 20066. Tal fato aponta para o progressivo avanço da fronteira agropecuária em direção à região amazônica, reproduzindo uma tendência em vigor desde a década de noventa, especialmente no Mato Grosso (expansão dos cultivos de soja, milho, algodão e pecuária bovina) e no Pará (criação bovina), que impactaram os índices de desmatamento na região entre 1990 e meados da década de 2000.
Frequentemente, os municípios com maior número de focos de queimada aparecem também nas listas dos mais desmatados, visto que são etapas de um mesmo processo da dinâmica de avanço da fronteira agropecuária na região amazônica, que se inicia com o desmatamento, exploração madeireira, seguido do uso de fogo para a limpeza, seja para o plantio de pasto e lavouras, seja como estratégia para agregar valor à terra no mercado.
Destaco que as queimadas ocorridas em 2019 anunciaram uma tendência que vem se consolidando. Os dados divulgados em meados de 2021 pelo sistema Deter7 (INPE), apontam para o terceiro ano consecutivo com taxas de desmatamento acumulado da Amazônia, somando cerca de 10 mil km2, uma marca histórica de devastação8.
Alguns dias após a explosão de focos de queimadas na região amazônica em agosto do 2019, o presidente Jair Bolsonaro insinuou no seu twitter em 21 de agosto, que seria das ONGs a culpa pelos focos de incêndio afirmando: “pode estar havendo, não estou afirmando, ação criminosa desses ongueiros” ou mencionando uma conspiração estrangeira interessada nas riquezas da floresta brasileira. A narrativa de representantes do governo federal pautou-se em questionar a credibilidade dos dados oficiais sobre desmatamento divulgados pelo INPE, acusando a entidade de divulgar dados alarmantes e dificultar negociações comerciais brasileira com outros países,
6 Exemplares desta correlação entre desmatamento e aumento de pastagens são os municípios de Altamira, com elevação de 46% de pastagens e Novo Progresso com 64%.
7 O INPE possui dois programas para monitoramento da floresta: o Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia (Prodes), e o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter).
8 O período 2020/2021 totalizou 8.712 km2 desmatados. Em 2021, o Pará foi estado como maior desmatamento no período (1.886,59 km²), seguido do Amazonas (1.237 km²), Mato Grosso (841 km²) e Rondônia (689 km²).
levantando-se inclusive a suspeita de que o diretor do INPE estaria "a serviço de alguma ONG”9.
Uma outra justificativa propagada pelo governo para explicar a multiplicação de focos de incêndio na Amazônia foi uma suposta mudança no ritmo de chuvas. O presidente Bolsonaro ressaltou que “a floresta é úmida, mas que isso não impediria em um ano de muita seca, que o fogo se espalhe pelo chão da floresta”10. No entanto, do ponto de vista meteorológico, o ano de 2019 foi considerado "normal" em relação aos anos anteriores no norte do Brasil. Ressalta-se que o ambiente florestal amazônico é extremamente úmido e incêndios não ocorrem naturalmente, ou seja, precisam ser iniciados pela ação humana11.
Em seu discurso de abertura na 76ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em 2021, o presidente brasileiro afirmou que o Brasil era "vítima" de uma campanha "brutal" de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal e que organizações brasileiras e "impatrióticas" se aliaram com instituições internacionais para prejudicar o país. Para Bolsonaro, tal complô estaria em curso porque o Brasil despontou como o maior produtor mundial de alimentos, existindo muitos interesses em divulgar desinformações sobre o meio ambiente nacional.
Bolsonaro salientou ainda no evento que a floresta amazônica é úmida e “só pega fogo nas bordas” e que os focos de incêndio registrados na região “acontecem praticamente nos mesmos lugares, ou seja, no entorno leste da floresta, onde “o caboclo e o índio” queimam seus roçados para sobreviver avançando sobre áreas previamente desmatadas”.
Narrativas semelhantes foram insistentemente proferidas durante toda a campanha eleitoral de Bolsonaro à presidência em 2018, sinalizando sempre que possível que, caso fosse eleito, haveria uma drástica mudança na política vigente para
9 Apesar das recorrentes bravatas, Bolsonaro cedeu temporariamente às pressões nacionais e internacionais e ameaças de possíveis sanções econômicas resultantes da “crise internacional” na Amazônia e assinou um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), autorizando as Forças Armadas a combater o fogo na Amazônia por um mês.
10 O então ministro do Meio Ambiente em uma interpretação equivocada e tentando atribuir a causas naturais a multiplicação de focos de incêndio na Amazônia, comparou incêndios da região àqueles ocorridos na Sibéria e na Austrália, publicando no seu twitter no início de 2020: “Sibéria queimou 3 vezes mais que a Amazônia. Na Austrália, quase 6 vezes mais. Mas certas ONGs e alguns jornalistas só se importam em falar mal de seu próprio país e, claro, sempre contra o Governo”.
11 Há incêndios motivados por descargas elétricas de raios, ou seja, por causas naturais. Estes costumam ocorrer na transição da estação seca para a estação chuvosa. Na faixa oeste da Amazônia, este período ocorre entre setembro e outubro, e na faixa leste, entre outubro e novembro.
a Amazônia e subversão da pauta ambiental dominante para a região. Sempre que possível, Bolsonaro salientava que a política ambiental e indigenista em curso na Amazônia constituía um entrave ao desenvolvimento do país.
Dentre as promessas de campanha direcionadas aos setores do agronegócio, Bolsonaro salientou que se eleito fosse “não demarcaria nem um centímetro de terra indígena”12 e que considerava “multas e fiscalizações feitas pelos órgãos ambientais federais” uma forma de “sufocar o agronegócio” ou que pretendia “retirar o Brasil do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas”13.
Uma vez vitorioso, Bolsonaro manteve a promessa de campanha de redução de fiscalizações sobre crimes ambientais ao cortar drasticamente os recursos para órgãos ambientais, reinando a partir de então um ambiente de impunidade entre fazendeiros, garimpeiros, madeireiros e traficantes de animais exóticos que atuam na região amazônica. O ambiente de transgressão da ordem motivou ainda práticas cada vez mais recorrentes de ameaça e hostilidade contra funcionários de órgãos ambientais e a depredação do patrimônio de instituições de fiscalização em diversas cidades brasileiras. Tal configuração favoreceu desde o primeiro ano de governo de Bolsonaro, a multiplicação de queimadas, ainda que se observasse ao mesmo tempo uma queda vertiginosa em números de autuações ambientais.
Logo no primeiro mês de seu governo, Bolsonaro extinguiu os colegiados que formavam a base do Fundo Amazônia sem qualquer negociação com os doadores, medida que comprometeu gravemente o seu funcionamento. O desmonte do Fundo teria sido motivado, segundo o então Ministro do Meio Ambiente, pelo questionamento de sua eficácia e a necessidade de mudanças nas regras para coibir supostos “indicativos de irregularidades” de contratos firmados pelo fundo com ONGs. Dentre as mudanças propostas nas regras do fundo, o governo brasileiro sugeriu, por exemplo, a indenização de proprietários que tiveram terras desapropriadas com a criação de unidades de conservação.
12 Afirmação feita na primeira semana de novembro de 2018, no Programa de TV Brasil Urgente apresentado por José Datena.
13 O Presidente Bolsonaro disse “Eu saio do Acordo de Paris se isso continuar sendo objeto. Se nossa parte for para entregar 136 milhões de hectares da Amazônia, estou fora sim". Tal afirmação foi feita a jornalistas em 3 de setembro de 2018, antes de um almoço com empresários do setor de seguros no Rio de Janeiro. https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/reuters/2018/09/03/bolsonaro-diz-que-pode- retirar-brasil-do-acordo-de-paris-se-for-eleito.htm
O Fundo Amazônia foi criado em 2008, tendo como principais doadores a Noruega e a Alemanha. O Fundo tornou-se ao longo de seu período de atuação uma referência em termos de operacionalização, governança e resultados obtidos, tendo se tornado um dos mais importantes mecanismos financeiros da política climática brasileira. Destaco que o Fundo Amazônia contribuiu para a efetivação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no bioma (PPCDAm), através do qual o Brasil instituiu uma política com resultados muito expressivos, alcançando em 2012 a redução de 83% no controle do desmatamento. A estagnação do Fundo Amazônia em 2019 teve a intenção de sinalizar internacionalmente a reorientação da política ambiental da Amazônia, sinalizando a paralisação de parte muito significativa das iniciativas de cooperação internacional para o enfrentamento dos desmatamentos adiante.
Em novembro de 2011, durante discurso oficial na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, em Glasgow, o Ministro do Meio Ambiente do Brasil, Joaquim Leite, afirmou que “onde existe muita floresta também existe muita pobreza” e que "o futuro verde já começou no Brasil”. De fato, no final de 2020, o Ministério da Economia e Banco Central do Brasil publicaram a resolução 4.883, que concede crédito rural para propriedades na Amazônia sobre as quais recaem embargos. A resolução permitiu que fazendeiros com histórico de infrações perante o IBAMA obtivessem empréstimos do BNDES com juros subsidiados para compra de maquinas agrícolas14. Os discursos antiambientalistas em arenas internacionais miram no futuro ano eleitoral e na reafirmação de um compromisso com as elites ruralistas e especuladoras de terras. A reeleição presidencial é uma garantia de manter e aprofundar o modelo desenvolvimentista predatório do meio ambiente para a Amazônia, focado no vetor da privação de terras públicas e desenvolvimento agropecuário. As eleições municipais de 2020 nos municípios da Amazônia repercutiram profundamente os discursos presidenciais e expressaram o empoderamento e apoio ruralista ao governo nos municípios situados na faixa do arco do desmatamento amazônico. Caso exemplar é o do prefeito eleito em Apuí, município do sul do Amazonas campeão em queimadas em 2019. O prefeito eleito Marcos Lise (PSC) é pecuarista, proprietário de 630
14 BNDES e John Deere financiaram R$ 28,6 milhões em maquinário para cinco produtores com embargos em seu nome emitidos pelo Ibama por desmatamento. Ver: https://noticias.uol.com.br/meio- ambiente/ultimas-noticias/reporter-brasil/2022/02/14/bndes-empresta-desmatadores-amazonia- tratores.htm?cmpid=copiaecola
cabeças de gado e de um sítio avaliado em R$ 1,6 milhão, segundo autodeclaração feita ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Marcos Lise foi eleito com 59% dos votos válidos e anunciou em seu Instagram “um novo tempo, uma nova história sendo escrita em Apuí”, apontando mudanças no perfil do município que sediou alguns anos antes ações para a constituição de um importante mosaico de Unidades de Conservação no Sul do Amazonas15. Marcos Lise foi o vice-prefeito na legislatura encerrada em 2019 e possui um histórico de diversas multas por desmatamento.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM, 2020), 71% das queimadas em imóveis rurais ocorridas entre janeiro e junho de 2020 destinavam-se ao manejo agropecuário, sendo que metade dos focos de calor detectados no primeiro semestre deste ano ocorreram em imóveis rurais de médio e grande porte16. Outros 24% foram incêndios florestais e 5% decorrentes de desmatamento recente, ou seja, queima de árvores que foram derrubadas após desmatamento.
A sobreposição de dados disponíveis sobre florestas (Prodes) e do Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas), permite identificar áreas de desmates e perceber que parte significativa de queimadas e desmatamentos decorrem de ampliações de pastos preexistentes ou abertura de novas pastagens, que avançam em áreas que são oficialmente terras públicas, especialmente florestas públicas ainda não destinadas e terras devolutas.
Tal dinâmica torna-se compreensível se resgatamos o episódio que em 2019 ficou conhecido na imprensa mundial como “dia do fogo”, nome atribuído à ação orquestrada de promoção de incêndios criminosos ocorrida nos dias 10 e 11 de agosto de 2019, especialmente no Pará. A organização de uma ação orquestrada de incêndios simultâneos foi anunciada em publicação noticiada no dia 5 de agosto pelo
15 O mosaico de Apuí (AM) possui aproximadamente 2.467.243,619 de hectares, reunindo nove unidades de conservação com diferentes propostas de manejo, tais como parques, reservas de desenvolvimento sustentável e reservas extrativistas.
16 Por lei, as propriedades privadas devem ter uma área destinada a preservação denominada reserva legal. De acordo com o Código Florestal em vigor a partir de 2012, a área de reserva legal na Amazônia é corresponde a preservação de 80% das terras.
jornalista Adécio Piran, do site Folha do Progresso, publicado na cidade paraense de Novo Progresso. Piran relatou a multiplicação de mensagens trocadas entre líderes de produtores rurais da cidade mencionada a respeito da organização coletiva para realizar incêndios florestais no dia 10/8. Cinco dias após a reportagem, o município de Novo Progresso registrou o surgimento de 124 focos de incêndio ativos, um aumento em 300% em relação ao dia anterior17.
“(Os produtores) querem o dia 10 de agosto para chamar atenção das autoridades. (...) Na região, o avanço da produção acontece sem apoio do governo. 'Precisamos mostrar para o presidente que queremos trabalhar e o único jeito é derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo'".18 (Folha do Progresso, 05/08/2019).
A publicação da primeira notícia anunciando um possível "dia do fogo" alertou o Ministério Público Federal, e a Procuradoria em Itaituba (PA) enviou um alerta no dia oito de agosto solicitando urgência ao Ibama no reforço da fiscalização de unidades de conservação. Roberto Lacava e Silva, Gerente Executivo Substituto do Ibama, respondeu ao MPF dois após o início das ações do “dia do fogo”, afirmando que solicitou o reforço da Força Nacional que não respondeu ao chamado. Devido aos diversos ataques simultâneos e à ausência do apoio da Polícia Militar do Pará, as ações de fiscalização no estado foram prejudicadas, sobretudo pelos riscos relacionados à segurança das equipes de campo".19 Cabe ressaltar que Novo Progresso não tem um Corpo de Bombeiros e a brigada mais próxima fica em Itaituba, a cerca de seis horas de viagem.
Após o anúncio do "dia do fogo" no jornal de Novo Progresso, a delegacia da cidade chamou para depor os envolvidos e averiguou a existência da denúncia de ação orquestrada, considerando o enquadramento na lei 9.985 que prevê multa e prisão de dois a cinco anos para quem promover incêndio na mata ou floresta. Dentre os depoentes intimados a depor estavam o jornalista que redigiu a matéria20 e
17 Tal movimento aconteceu em muitos outros municípios do Pará como Altamira que registrou 154 focos de queimadas entre os dias 6 e 8 de agosto e três dias que se seguiram (9 a 11 de agosto) uma elevação de 179% em três dias. São Félix do Xingu também teve aumento importante entre 6 e 8 de agosto, o município registrou 67 focos e nos três dias seguintes, aumento de 329%
18 Trecho reproduzido de https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49453037
19 Informações disponíveis em várias fontes da imprensa, com destaque para a BBC Brasil que acompanhou detalhadamente o dia do fogo.
20 Após a publicação, o jornalista Piran se ausentou da cidade por dois meses devido a ameaças de morte. Em 2020 Piran tornou-se é o Secretário de Meio Ambiente da prefeitura de Novo Progresso.
Agamenon Meneses, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, acusado de liderar os incêndios. Posteriormente, em entrevista telefônica à BBC News, Agamenon negou completamente a existência do "dia do fogo" e descartou qualquer responsabilidade dos agricultores da região sobre tal fato:
"É uma mentira. Um infeliz de um jornaleco, que não gosta da cidade e faz oposição ao governo (Bolsonaro), colocou essa notícia no ar, sem provas. O que houve aqui foram queimadas como ocorrem todos os anos. A seca foi maior esse ano e ocorreram esses incêndios, natural.”
O fato é que nos dias 9 e 10 de agosto, uma rede de grupos de Whatsapp, organizou a jornada de incêndios que se multiplicaram em uma vasta região amazônica do Sudoeste do Pará. Tal ação envolveu centenas de pessoas em vários municípios e, possivelmente, como foi amplamente noticiado pela imprensa paraense, contou com arrecadação coletiva para compra de combustível e contratação de motoqueiros para espalharem as chamas21.
O INPE registrou uma elevação de 1.923% de focos de calor no estado do Pará no mês de agosto de 2019, em comparação com o mesmo período no ano anterior ao do “dia do fogo”. O Greenpeace Brasil analisou os Cadastros Ambientais Rurais (CAR) dos municípios onde se concentram os focos de calor, ou seja, Novo Progresso, São Félix do Xingu, Itaituba, Altamira, Jacareacanga e Trairão e concluiu que aproximadamente metade (49,96%) dos focos de calor registrados durante ocorridos no Dia do Fogo, aconteceram dentro de propriedades rurais cadastradas no sistema fundiário do Pará22. Quase totalidade destas áreas (99,37%), já apresentavam pastagens previamente mapeadas e classificadas pelo MapBiomas em 2018.
Apesar de dados, provas e testemunhos, de acordo com o inquérito concluído pela delegacia de Polícia Civil de Novo Progresso, a explosão de incêndios simultâneos ocorridos nos dois dias do mês de agosto foi resultado do tempo seco. A polícia concluiu que as queimadas são comuns, acontecem todos os anos e o inquérito não aponta suspeitos ou responsáveis.
21 Reportagens do jornalista Ivaci Matias na Revista Globo Rural mostraram que as investigações da Polícia Federal descobriram 3 grupos de WhatsApp nos quais empresários, grileiros e produtores rurais planejaram as queimadas ao longo da BR-163 no Pará.
22Dados obtidos pelo Greenpeace Brasil no sistema público da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas/PA) apresentados em https://www.greenpeace.org/brasil/florestas/dia-do-fogo-completa-um-ano-com-legado-de- impunidade/
As investigações do “dia do fogo” foram conduzidas de formas bastante diversas nos municípios afetados pelos incêndios. Enquanto os investigadores da delegacia de Novo Progresso tomaram depoimentos de fazendeiros e empresários locais, o delegado de um distrito de Altamira chamado de Castelo dos Sonhos, por exemplo, prendeu três trabalhadores rurais residentes em assentamentos rurais durante as investigações, sob alegação de que eles eram suspeitos de serem os responsáveis pelas queimadas florestais.
Em decorrência destas acusações, três trabalhadores rurais ficaram presos por cinquenta dias e só foram libertados por determinação judicial e após uma intensa pressão da imprensa. Na ocasião, uma assentada foi presa e considerada suspeita quando foi realizar uma denúncia sobre a presença de madeireiros no assentamento em que vivia.
Ainda que municípios do Sudoeste do Pará tenham se destacado na deflagração de queimadas durante o “dia do fogo”, fenômenos com características muito semelhantes ocorreram em outros municípios da Amazônia, apontando uma ampla articulação organizada através de redes sociais para queimar a floresta em diversos estados. Exemplar da articulação foi o município de Apuí, no Sul do Amazonas, que no primeiro semestre de 2019 chegou a liderar o ranking dos municípios da Amazônia com maiores concentrações de focos de calor. Segundo dados do INPE, em agosto de 2019, Apuí alcançou cerca de 2.500 focos de calor.
Em Apuí, município de grande expansão agropecuária situado às margens da Rodovia Transamazônica (BR-230) e presença constante nos rankings dos munícipios mais desmatados do Amazonas, as queimadas de 2019 foram também previamente planejadas conforme o modelo de organização do “dia do fogo”. No entanto, Apuí teve seu dia do fogo antes das queimadas do Sudoeste do Pará. Elas aconteceram no dia
24 de julho, ou seja, duas semanas antes dos grandes incêndios de em Novo Progresso. O dia do fogo de Apuí foi noticiado na imprensa e precedido pela vinda de um caminhão-tanque de combustível e a chegada no município de dois ônibus lotados com homens munidos com motosserras. As motosserras derrubaram as árvores nativas e alguns dias depois espalhou-se combustível na área desmatada, iniciando- se em seguida os numerosos incêndios (GALUCH & MENEZES, 2020).
No primeiro semestre de 2020, o município de Apuí voltou a arder, registrando 837 focos de calor, o maior a maior incidência da última década para o período entre
janeiro-junho. Os focos de calor de Apuí atingiram áreas de florestas (51%), seguidas de áreas destinadas à pecuária (31%), segundo dados do IDESAM (2020).
Tem sido apontada com frequência a correlação entre os pronunciamentos de Bolsonaro e a explosão dos incêndios criminosos de 2019. Certamente os discursos presidenciais criticando a ação de ambientalistas ao longo de 2019, combinado a promessa de paralização da demarcação de novas áreas de proteção e terras indígenas e criação de unidades de conservação na Amazônia repercutiram fortemente nos municípios amazônicos.
Os municípios localizados nos limites da fronteira agropecuária amazônica acumulam um enorme passivo de tensões sociais entre as elites fundiárias, instituições e promotores de ações socioambientais. As entidades representativas de comunidades indigenistas, extrativista e de agricultores experimentaram nas últimas décadas um período prolongado de processos de territorialização e grande fortalecimento e empoderamento local como resultado de processos de reconhecimento pelo Estado e investimentos em capacitação promovidos por organizações socioambientais.
Este conjunto de iniciativas alterou radicalmente o histórico equilíbrio de forças entre patronatos locais e populações amazônicas, subvertendo o domínio privado sobre o território. Esta reconfiguração de poder foi constituindo ao longo dos últimos anos um campo fértil para as narrativas autoritárias, ataques às instituições do Estado e legitimidade aos atos de desobediência legal (MENEZES, 2020).
A mobilização e engajamento digital teve também papel relevante. Caetano (2021) investigou, por exemplo, a possível relação entre as palavras de Bolsonaro em suas críticas contundentes à Alemanha e Noruega e seus investimentos no Fundo Amazônia. Os incêndios que culminaram no “dia do fogo” foram precedidos por um aumento significativo de buscas na web por termos relacionados aos ataques do presidente aos financiadores estrangeiros da Floresta Amazônica. O levantamento mapeou palavras-chaves como ‘Alemanha’, ‘Noruega’, ‘Altamira + Fogo + BR-163’, ‘fogo + Amazônia’ através do Google Trends, uma ferramenta que analisa a frequência as palavras que aparecem nas buscas dos usuários da internet. As buscas por esses termos elevaram-se exponencialmente nos dias que precederam as queimadas. Entre os dias 2 e 9 de agosto de 2019, Bolsonaro deflagrou sucessivos ataques contra a
chanceler alemã Angela Merkel e nos dias 10 e 11 de agosto eclodiu o dia do fogo no Sudoeste do Pará.
Destaco ainda o papel que a crise e instabilidades do governo produziram. O ambiente agonístico entre governo e o poder judiciário, o tensionamento permanente da ordem democrática, os constantes rumores de um possível impeachment também produziram efeitos para acelerar práticas de desmatamento. As avaliações locais sobre sucesso ou derrocada do governo Bolsonaro, os boatos sobre a retomada da fiscalização e a criminalização de infrações ambientais, geram um ambiente de incertezas e influenciaram sobre acelerar a marcha do desmatamento.
As queimadas aconteceram em um período dramático da pandemia de Covid- 19, que teve efeitos particularmente devastadores sobre as populações amazônicas, que historicamente tem parco acesso aos serviços de saúde. O processo de mobilização na Amazônia é encarecido por custos e enormes dificuldades de deslocamento, situação que foi agravada pelo medo e as dificuldades de deslocamento impostas pela pandemia. Destaco, sobretudo, a redução substancial de recursos para a circulação de lideranças e a redução de parceiros que apoiam com recursos de projetos socioambientais as associações e mobilizações de comunidades tradicionais.
Decerto houve uma explosão de mobilizações online contra as queimadas que alcançaram repercussão dentro e fora do Brasil e chegaram a interferir pontualmente na marcha do desmatamento23. A decisão de envolver as Forças Armadas para atuar no combate das queimadas, em 2020, ocorreu na sequência de numerosos protestos contra as queimadas na Amazônia. Organizações não governamentais, ambientalistas, estudantes e celebridades brasileiras e internacionais se posicionaram de forma veemente contra a postura de Jair Bolsonaro e multiplicaram mensagens nas redes sociais como a hashtag #PrayforAmazonas (Ore pela Amazônia), que ficou em primeiro lugar nos assuntos mais comentados durante as semanas posteriores ao dia do fogo na rede social Twitter.
23 Houve mobilizações em mais de 60 cidades do Brasil e do mundo após o dia do fogo, particularmente no período 23 e 25 de agosto de 2020, contra as queimadas na região da Amazônia. Houve manifestações agendadas em cerca de 17 cidades de 12 países, tais como Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Itália, México e Uruguai. No topo dos trending topics do Twitter, internautas criticaram duramente a atuação de Bolsonaro usando #ActForTheAmazon.
Entidades como a Comissão Pastoral da Terra (2020) e o Observatório do Clima24, entre outras, publicaram notas contundentes de protesto e denúncia que circularam e obtiveram ampla adesão de dezenas de signatários-representantes de entidades e movimentos sociais. Destaco particularmente a iniciativa “Articulação Agro É Fogo”, que se constituiu como uma reação as queimadas ocorridas no dia do Fogo e dos incêndios que devastaram o Pantanal. A articulação reúne aproximadamente 30 movimentos, organizações e pastorais sociais com longo histórico de atuação na defesa da Amazônia, Cerrado e Pantanal, bem como seus povos e comunidades tradicionais.
Gostaria de lembrar que a multiplicação de incêndios em 2019 e 2020 envolveram também diversas áreas de assentamentos rurais na região amazônica. Em Novo Progresso e Altamira, municípios que tiveram destaque no ranking de municípios paraenses com grande quantidade de focos de calor registrado por satélite, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa (Incra), situado entre os dois municípios acima mencionados foi duramente atingido pelos incêndios criminosos.
Este PDS atualmente abriga 300 famílias e teve seu território atingido por 197 focos de incêndio, uma elevação de 319% em relação a agosto de 2018, quando ocorreram 47 focos. Esta foi a terceira área mais incendiada na região em agosto de 2019, em comparação com outros assentamentos, terras indígenas e unidades de conservação do Pará. Em geral, os incêndios se iniciaram no interior das fazendas situadas dentro ou no entorno do PDA, sobretudo em áreas que ainda apresentavam cobertura vegetal contíguas aos pastos. Porém, as queimadas avançaram e atingiram também as parcelas, pastos e casas de agricultores residentes no PDS. A queima da floresta neste PDA atingiu ainda muitas áreas de babaçuais e castanhais, recursos
24 É uma coalizão de organizações da sociedade civil brasileira direcionada para debates sobre mudanças climáticas, que surgiu em 2001 no Pará e reúne um conjunto expressivo de entidades com importante atuação nas questões ambientais do país.
25 As terras públicas são divididas em terras destinadas como unidades de conservação, áreas militares, terras indígenas, quilombos ou não destinadas como as florestas públicas e demais áreas sob a responsabilidade da União ou dos estados que ainda não foram designadas algum um uso particular.
florestais fundamentais para as atividades extrativas das comunidades e importante fonte de renda para a população da região.
Este PDS está na área de influência da Rodovia Cuiabá (MT)-Santarém (BR- 163), um dos corredores centrais de escoamento de soja do país e região de forte incidência de queimadas no Pará. Em uma vistoria realizada pelo INCRA em 2018, identificou-se 76 fazendas ilegais no interior deste PDS, que já deveriam ter sido retomadas pelo patrimônio da União e redistribuídas para agricultores e que atendem aos critérios para serem beneficiados pela política de reforma agrária.
Outros três projetos de assentamentos localizados no município de Anapu, nomeados Projeto de Assentamento (PA) Pilão Poente II e III, Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança e Virola-Jatobá, no Pará, foram também bastante atingidos por queimadas, registrando respectivamente 155, 102 e 75 focos de calor. Nos três casos, os dados de queimadas detectadas apenas em outubro de 2020 representam cerca de 65% de todos os focos registrados em 2020 nesses assentamentos, conforme dados de satélite da Nasa.
Os conflitos nos assentamentos rurais de Anapu são conhecidos e persistentes no tempo. Foram amplamente noticiados após o assassinato da missionária Dorothy Stang, em 2005, tornando este município um emblema de disputas pela terra na Amazônia. A região é caracterizada por numerosos conflitos violentos motivados por uma ampla rede de grilagem que opera historicamente na região, além de crimes ambientais e dados alarmantes de violência contra lideranças comunitárias. Desde o assassinato de irmã Dorothy houve 21 assassinatos relacionados a conflitos de terra no município, segundo informações da Comissão Pastoral da Terra.
Os atuais incêndios criminosos e a ausência de investigação e punição destes atos estão operando como recurso de intimidação contra os territórios de assentamentos rurais e aqueles que lutam pela reforma agrária nas regiões amazônicas marcadas por conflitos por terra. O caso do PA Pilão Poente é revelador, tendo em vista que as terras deste assentamento chegaram a ser registradas por grileiros no Cadastro Ambiental Rural (CAR), em março de 2020 e em outubro, numerosos incêndios foram usados para queimar residências no assentamento, promovendo-se em seguida práticas violentas de impedimento da circulação de pessoas pelas vicinais do assentamento.
O desmatamento e as queimadas recentes atingiram também os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança e Virola-Jatobá, ambos criados em 2002 e sucessivamente atingidos por invasões, a partir de 2017 e 2018, por pessoas armadas, grileiros e madeireiros que desmatam e demarcam irregularmente a área da reserva legal com objetivos de loteamento e venda.
As queimadas e o desmatamento avançaram também sobre as reservas extrativistas (RESEX) da Amazônia. Destaco o caso da Resex Guariba-Roosevelt situada unidade de conservação no noroeste de Mato Grosso, que abriga cerca de 80 famílias extrativistas de látex e castanha. A Resex vem sendo desmatada há anos e já perdeu 11% da sua área com desmatamentos entre sua criação em 1996 e 2019, principalmente por invasores em busca de madeira e, mais recentemente, para criação de pastos. Em 2020, esta Resex tornou-se a terceira sob gestão estadual com mais focos de calor, em todo o território nacional.
A maior parte desta Resex está no município de Colniza, onde foram contabilizados em 2020, 1.917 focos de calor (3.85% do total de toda Amazônia). Em Aripuanã, município vizinho que também sedia parte desta reserva, somaram-se 1.895 focos (3.81% do total), situando os dois municípios entre os dez com mais alertas de queimadas em toda a Amazônia.
As Terras Indígenas foram também seriamente atingidas pela devastação das queimadas. Em 2019, mais de 300 grileiros invadiram o território indígena Trincheira- Bacajá, situado no Pará e ocupado pelos povos Mebêngôkre Kayapó e Xikrin. O avanço do desmatamento, grilagem e mineração ilegal, somados à multiplicação de queimadas, colocou a TI Trincheira Bacajá no topo do ranking das mais desmatadas na Amazônia em 2019, com aumento exponencial de queimadas após a paralização de ações de fiscalização de órgãos ambientais.
O ano de 2020 manteve este padrão, registrando-se mais de 115 mil focos de incêndio em Terras Indígenas da Amazônia entre janeiro e outubro de 202026. Os dados de satélites apontam que neste período as terras indígenas mais afetadas foram Xingu (MT), Parque do Araguaia (TO) e Kayapó (PA).
Liderando o ranking das queimadas em 2020, com 10.502 registros de focos de incêndio está a TI Parque do Xingu, que reúne 16 etnias em 500 aldeias, registrando um aumento de 251% dos focos de calor em 2020 em relação ao ano
26 O levantamento foi realizado pela Global Forest Watch.
anterior. Ainda que o território conte com cerca de 60 brigadistas treinados, os indígenas do Parque do Xingu assistiram a uma explosão sem precedentes de focos de incêndio provocados por inúmeras fazendas que aumentaram suas áreas sobre os limites do território indígena.
Situação semelhante foi vivenciada pela TI Parque do Araguaia, no Tocantins, que aparece em segundo lugar no levantamento de focos de incêndio acima mencionado, com 8.792 focos provocados para limpar e produzir pastos. A crescente proximidade do fogo das aldeias provocou o abandono de casas e avanço do fogo para territórios vizinhos, no caso, um grupo de indígenas em isolamento voluntário que habitavam a Ilha do Bananal.
Embora, o fogo provocado pelo manejo agropecuário seja o mais frequente na Amazônia, conforme salientado, os focos de calor registrados em áreas recém- desmatadas cresceram, assim como os incêndios florestais. Em 2019, um em cada três focos de queimadas não tiveram relação com a limpeza de pastagens, mas sim com queimadas que sucederam o corte de áreas de floresta. No primeiro trimestre de 2021, estas áreas tornaram-se alvos de 33% do desmatamento.
Analiso a seguir o processo de devastação em terras não destinadas, ou seja, florestas públicas ou áreas da União que não foram delimitadas como unidade de conservação, área quilombola ou terras indígenas e não estão no Cadastro Ambiental Rural (CAR),27 ou seja, áreas cuja situação fundiária se desconhece, porque faltam registros. Estas categorias concentram 28% do bioma amazônico.
Dados do INPE referentes ao período entre agosto de 2019 e setembro de 2020 apontaram que as terras públicas sem destinação foram atingidas por 75.884 focos de queimada, correspondente a 31,7% de todas as queimadas no bioma amazônico, dados que comprovam que esta modalidade de terras vem se destacando e tornando- se um alvo crescente de grilagem. O Amazonas é o estado que mais concentra esse tipo de categoria fundiária e, historicamente, se notabilizava pelos mais baixos índices de desmatamentos na região amazônica. No entanto, recentemente o estado despontou no ranking, assumindo o protagonismo entre estados com maior elevação dos desmatamentos e queimadas avançando por áreas não destinadas.
27 O INPE disponibilizou uma plataforma denominada TerraBrasillis, que permite o cruzamento de dados de desmatamento, focos de queimada e os imóveis rurais do Cadastro Ambiental Rural (CAR), mantido pelo Serviço Florestal Brasileiro.
Recentemente tem se multiplicado a declaração destas áreas públicas como particulares no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar). O Código Florestal de 2012 criou o Cadastro Ambiental Rural (CAR) como uma estratégia de regularização ambiental, prevendo-se o cadastro através de autodeclaração de todas as propriedades ocupadas até 2014 com posterior validação ou cancelamento de registros irregulares. O prazo para finalização do cadastro foi protelado inúmeras vezes, assim como o início da análise das informações depositadas no sistema28. O CAR tornou-se uma ferramenta que permitiu o cadastro irregular de terras públicas como propriedade particular, conferindo uma aparência de formalidade para terras griladas.
Apesar do cadastro em si não significar a titularidade da terra, uma área com CAR cadastrado tem maior valor agregado nas negociações realizadas no mercado informal, com possibilidades para a obtenção de financiamentos, que por sua vez viabilizam o desmatamento. Entre 2016 e 2020, tanto o desmatamento quanto os focos de calor dentro das florestas públicas não destinadas foram mais elevados nas áreas com CAR em comparação às áreas sem cadastro.
Uma investigação da BBC News29 encontrou anunciados na plataforma Facebook, dezenas de anúncios de venda de terras situadas em unidades de conservação, terras indígenas ou em áreas recém-desmatadas da Amazônia, indício de que o mercado ilegal de terras amazônicas está aquecido. As terras eram oferecidas através do Facebook Markeplace, espaço virtual através do qual os usuários podem anunciar a venda de itens das mais diversas naturezas. O documentário mapeou e investigou ofertas de terra situadas, por exemplo, em
28 Até meados de 2021 a análise dos dados do CAR era realizada manualmente por uma equipe técnica e aproximadamente 3% dos cadastros da base do Sicar passaram por algum tipo de análise. Em maio de 2021, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) lançou uma ferramenta desenvolvida pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), em parceria com a Universidade Federal de Lavras, chamada AnalisaCar, que permite a análise dos dados declarados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) de forma automatizada para maior agilidade do processamento de sete milhões de registros cadastrados até o final de 2020.
29 Investigação que originou o documentário Amazônia à venda: o mercado ilegal de áreas protegidas no Facebook, disponível no canal da BBC News Brasil no YouTube.
unidades de conservação como a Floresta Nacional do Aripuanã, no Amazonas ou a Terra Indígena Uru Eu Wau Wau, em Rondônia.
Em Apuí, um hectare de terra com pastagem pode ser avaliado com um valor vinte vezes maior que a mesma área coberta de floresta. A recente supervalorização de terras na região explica-se pelos projetos de infraestrutura, principalmente a repavimentação da rodovia BR-319 (Manaus-Potro Velho), bem como a construção de frigoríficos, significando uma perspectiva de grande transformação para a pecuária local, que comercializa majoritariamente o gado vivo e ainda enfrenta enormes obstáculos para o transporte até Manaus.
Anteriormente, o desmatamento de áreas públicas envolvia maiores incertezas, pois os controles ambientais mais estritos aumentavam os riscos, reduziam a demanda e o valor da terra no mercado ilegal. Com a recente supressão da fiscalização ambiental e o aumento na expectativa de ampliação da flexibilização da legislação ambiental no sentido facilitar a regularização fundiária, a invasão e venda de terras públicas tornaram-se um bom investimento, pois o risco de punição por infração ambiental tornou-se reduzido e a demanda de possíveis compradores aumentou face ao cenário otimista de ampla regularização.
O aquecimento do mercado de terras está fortemente vinculado às expectativas de anistia a punições ambientais e dispositivos que apontam para uma crescente flexibilidade e futuro promissor para a regularização fundiária no curto prazo. Um marco neste processo de mudanças foi a aprovação do novo Código Florestal, sancionado por Dilma Rousseff em 2012 e considerado por representantes dos setores ruralistas como a senadora Katia Abreu como uma lei que colocava “o fim à ditadura ambiental”. A nova lei flexibilizou as normas de proteção florestal com o perdão das multas para quem desmatou até o ano de 2008 e apostas na extensão de anistias.
Resolver o caos fundiário amazônico tornou-se fundamental na agenda dos últimos governos desde 2009, em consonância com o cenário de crescimento da produção de commodities agrícolas na região amazônica e uma progressiva tendência de destinação de terras públicas da União para a administração dos governos estaduais da Amazônia Legal. Tal cenário tornou imperativa aceleração da destinação regularizada das terras públicas e a partir desta perspectiva foi lançado o Programa Terra Legal em 2009, com o objetivo de promover a regularização fundiária de
ocupações baseadas em posses mansas e pacíficas dentro de terras federais na Amazônia Legal. O programa se fundamentava na Lei 11.952, sancionada pelo ex- presidente Lula em 2009.
Imerso em uma trajetória de suspeitas de irregularidade desde o início de sua implementação, em 2014, o Programa Terra Legal tornou-se alvo de uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) e teve sua orientação normativa alterada no sentido de promover uma crescente flexibilização e desburocratização, tornando possível, por exemplo, regularizar as posses consolidadas em glebas sem que os perímetros fossem georreferenciados.
A seguir, a Medida Provisória (MP) 759, conhecida como MP da Grilagem, foi sancionada pelo Presidente Michel Temer como Lei 13.465/2017, atendendo muitas demandas para ampliar significativamente a legalização de terras e recriar um “Programa Terra Legal sem burocracia”. Esta lei dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, permitindo a regularização de áreas contínuas até 2,5 mil hectares e permitindo que ocupações anteriores a julho de 2008 participem do processo.
Em 2021, surgiu uma nova proposta de mudança do marco legal que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União: o Projeto de Lei 510/21, conhecido como PL da Grilagem. A proposta altera a legislação atual sobre a ocupação de terras que não possuem proprietários legais e facilita que terras públicas desmatadas de modo ilegal sejam legalizadas por quem as utiliza.
O Projeto de Lei derivou da Medida Provisória (MP) 910/19, também apelidada como MP da Grilagem, assinada pelo presidente Bolsonaro, no ano de 2019. Entretanto, a medida deveria ser validada pelo Congresso Federal até maio de 2020 e devido a impasses, a MP perdeu a validade e foi reapresentada em 2021 como proposta semelhante, tramitando como Projeto de Lei 2.633/2020 no Congresso e PL 510/2021 no Senado. A PL muda a lei 11.952/2009, que trata da regularização fundiária. O texto estabelece novas regras para a Lei 11.952/09, que valerão para imóveis da União e do Incra em todo o país em vez de apenas os localizados na Amazônia Legal, como ocorria até então.
Dentre as propostas com importantes impactos da PL da grilagem destacam- se: a) dispensa de vistoria presencial do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária para a titulação de médias propriedades rurais, ou seja, aquelas com no máximo 660 hectares ou seis módulos fiscais, exigindo-se do ocupante apenas documentos como o CAR (Cadastro Ambiental Rural), declarações de não existência de imóvel rural no país e que não foram beneficiários de programa de reforma agrária ou de regularização fundiária rural. O relatório da PL cria ainda o conceito de “imóvel em regularização”, legitimando a mera inscrição da posse no CAR como regular do ponto de vista ambiental e permitindo sua futura regularização fundiária. Cabe ressaltar como mencionado anteriormente que a maior parte dos cadastros ainda não foi validada pelos órgãos competentes e sabe-se que um grande número deles é fraudado.
No que que tange às Terras Indígenas, Quilombos e Unidades de Conservação, um novo dispositivo permite que os órgãos fundiários regularizem nestes territórios terras para particulares, quando ainda em processo de oficialização. As regras atuais preveem que quando uma gleba de terra é disponibilizada para regularização e há nela populações indígenas e tradicionais ou demanda por conservação, os órgãos competentes têm de manifestar interesse. Segundo o relator da PL, além da manifestação de interesse, a PL propõe um “estudo técnico conclusivo” para justificá-lo. No caso de não conseguirem apresentar o levantamento sobre a área em até 180 dias, ela poderia ser titulada para terceiros.
As frequentes propostas de mudanças na legislação sobre o tema da regularização fundiária brevemente apresentadas, produziram demandas permanente de produtores rurais e políticos locais para que o Congresso Nacional e o governo mudem a lei de forma a facilitar a legalização de ocupações ilegais. O cenário favorável às reformas legislativas, por sua vez, produz um intenso movimento por novas alterações nas normas sobre o tema.
Este é o caso do marco regulatório para a regularização fundiária no país que vem tendo sucessivas propostas para aumentar o tamanho de módulos fiscais regularizáveis de terras da União sem vistoria prévia e altera as datas de comprovação da ocupação. O marco temporal das regularizações previa que o interessado deveria provar “o exercício da ocupação e exploração direta e pacífica com até 2,5 mil hectares anterior a 22 de julho de 2008. Através da PL 510/2021, propôs-se prorrogar
tal prazo para 25 de maio de 2012”, bem como através da PL 2.633/2020, uma nova proposta foi realizada para alteração do tamanho das terras passiveis de regularização, que passariam de quatro para seis módulos fiscais de terras da União. Conforme salientou Brenda Brito, pesquisadora do em Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON) para a Agência Senado (2021):
“Vamos mover mais uma vez o ciclo da grilagem e desmatamento, com ocupação de terra pública e desmatamento para sinalizar ocupação, pedido de titulação e lobby pra mudança da lei. Esse é o momento que estamos vivendo. E se a lei é alterada, é mais um estímulo para as ocupações.”
A ocupação ilegal e o desmatamento em áreas públicas na Amazônia são impulsionados pela especulação de terras. Para além das dinâmicas políticas particulares e interesses locais, a dinâmica fundiária na Amazônia inscreve-se ainda em uma “corrida mundial por terras”, ou seja, uma reação por parte de países, empresas e fundos de investimentos às crises de alimentos, energética, ambiental e financeira dos anos 2000, que se aprofundaram em 2007/2008.
Sauer e Leite (2012), a partir de dados de relatório do Banco Mundial30, apontam um salto significativo na comercialização de terras, passando-se da média anual de negociações com terras no mundo de aproximadamente 4 milhões de hectares até 2008, para cerca de 43 milhões de hectares 2009. Tal fenômeno vem sendo amplamente pesquisado a partir do conceito de land grabbing (apropriação de terras), noção que segundo White et al. (2012, p. 621), teria sido inspirada em termo empregado por Karl Marx (1985) ao examinar a “acumulação primitiva” e a dinâmica de apropriação privada de largas porções de terra, como deflagrador da agricultura em larga escala e processos de expropriação.
A reprodução ampliada de processos semelhantes de apropriação de terras e trabalho abordadas por Marx examinada por Harvey (2013, p. 121), a partir do conceito de “acumulação por espoliação”, que enfatiza a “mercadificação, a privatização da terra e a expulsão violenta de populações camponesas” e conversão de várias formas de direitos de propriedade comum, coletiva ou do Estado em direitos de propriedade privada. Tal ajuste espacial mitigaria a crise capitalista ao permitir a
30 Relatório de 2010 do Banco Mundial, publicado como Rising Global Interest in Farmland – can it yield sustainable and equitable benefits? (DEININGER et al., 2011). Tal relatório informava a existência de 446 milhões de hectares cultiváveis e não florestais, ou seja, lacunas produtivas.
liberação de ativos a baixo custo tornando-os lucrativos, conforme sugere Boechat et al ( 2017, p.86), apontando “a possibilidade de entender os fenômenos de land grabbing como parte de um ajuste espacial de economias centrais com capitais superacumulados”.
No Brasil, entidades patronais vinculadas ao agronegócio, agentes e instituições que lhes dão suporte formaram uma poderosa coalizão que vem se empenhando em propagar as potencialidades do mercado de comoditities, exaltando a necessidade de remoção de entraves fundiários, tributários e trabalhistas, que impedem o país de cumprir seu potencial agrícola e alimentar todo o planeta. Estas agroestrátégias têm sido bem-sucedidas politicamente, alcançando progressivamente a remoção de obstáculos para a uma expansão territorial da atividade e desconsiderando as lógicas de utilização de recursos naturais da agricultura familiar e comunidades tradicionais (ALMEIDA, 2009, p.105) .
A partir do ano de 2008, observou-se a ampliação da entrada de capital estrangeiro na Amazônia Legal, destacando-se uma elevação importante do volume em hectare em posse de pessoas jurídicas. O Mato Grosso destacou-se como um dos campões de terras apropriadas por estrangeiros, tornando-se uma área muito competitiva para investimentos (PEREIRA, 2016, p. 91)31. No entanto, o Pará tem sido área focal destas iniciativas, registrando uma elevada taxa de aquisição de terras por empresas estrangeiras entre os anos 2007 e 2014 (HERRERA, 2016).
Cabe ressaltar a reprodução na região amazônica do impulso da imobilização do capital em terras produtivas ou improdutivas, ou seja, a terra tem funcionado tradicionalmente como reserva de valor, a partir de apostas futuras no avanço tecnológicos, investimentos públicos, alta do preço de commodities agrícolas, redefinição legal de direitos territoriais e facilidades para a apropriação da terra.
31 Em 2009, um parecer da Controladoria-Geral da União limitou a venda de terras brasileiras para empresas nacionais constituídas ou controladas por estrangeiros. Em 2019, foi aprovado no Senado Federal e enviado para votação na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 2.963/2.019 que pretendia alterar as regras para que estrangeiros possam comprar e arrendar terras no país. O autor da matéria foi o senador Irajá (PSD-TO).
Ao longo deste texto buscou-se situar socialmente as grandes queimadas de 2020 e 2021 na Amazônia. Apontou-se o esforço do governo vigente em “retomar o domínio da narrativa sobre a Amazônia”32, opondo-se ao imperativo da proteção ambiental das políticas territoriais direcionadas para a região em vigor nas últimas décadas, quase sempre objeto de forte oposição por parte das elites fundiárias amazônicas.
O presidente Bolsonaro reiterou a necessidade de exploração econômica da região em consonância e com forte apoio das elites locais, acelerando um processo em curso na última década de flexibilização da legislação fundiária e ambiental, pautada na desburocratização da regularização fundiária e no avanço da formalização do mercado de terras. Tal dinâmica acontece em consonância com um processo de “corrida mundial por terras” e relaciona-se com ajustes espaciais de economias centrais com capitais acumulados.
As queimadas eclodiram em meio a um ambiente pandêmico, que impactou fortemente a população amazônica e impôs fortes limitações as formas tradicionais de mobilização social, que na Amazônia sempre enfrentaram grandes desafios mesmo em tempos normais. A mobilização digital contra as queimadas foi intensa, mas exerceu um impacto pontual e limitado na redução do desmatamento e processos de expropriação em marcha.
Finalmente, examinamos o impacto das queimadas sobre terras destinadas e não destinadas, apontando como estas se traduzem na intensificação de ações violentas e aceleram processos de expropriação de pequenos agricultores e comunidades tradicionais.
32 Em setembro de 2020, em entrevista ao vivo com o professor Carlos Alberto Di Franco, transmitida pelo Youtube, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que o governo federal “perdeu o domínio da narrativa relacionada à Amazônia” por causa da pressão de grupos políticos que se opunham ao presidente Jair Bolsonaro; de grupos econômicos, identificados com interesses internacionais; e de grupos ligados a agricultura e ambientalistas, que, “exacerbam a sua paixão pela questão do meio ambiente”.
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