V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


CONTRARREFORMA AGRÁRIA, VIOLÊNCIA E DEVASTAÇÃO NO BRASIL1


Paulo Alentejano2


Resumo

O presente artigo apresenta um balanço da contrarreforma agrária em curso no Brasil na última década e aprofundada no governo Bolsonaro, com métodos violentos de intimidação de povos do campo e movimentos sociais, bem como a proposição de um conjunto de medidas legais que incentivam a grilagem de terras e a devastação ambiental, favorecendo a expansão do agronegócio. Por sua vez, os movimentos sociais inventam novas formas de resistência enquanto aguardam uma virada na conjuntura que permita a recuperação de direitos conquistados a duras penas e que estão sendo destruídos em ritmo acelerado.

Palavras-chave: Reforma agrária; agronegócio; conflitos no campo.


CONTRARREFORMA AGRARIA, VIOLENCIA Y DEVASTACIÓN EN BRASIL


Resumen

Este artículo presenta un balance de la contrarreforma agraria en marcha en Brasil en la última década y profundizada en el gobierno de Bolsonaro, con métodos violentos de intimidación a los pueblos rurales y movimientos sociales, así como la propuesta de un conjunto de medidas legales que incentiven la ocupación ilegal de tierras y la devastación ambiental, favoreciendo la expansión del agronegocio. A su vez, los movimientos sociales inventan nuevas formas de resistencia a la espera de un cambio de situación que permita la recuperación de derechos ganados con tanto esfuerzo que se están destruyendo a un ritmo acelerado.

Palabras clave: Reforma agraria; agronegocio; conflictos en el campo.


AGRARIAN COUNTERREFORM, VIOLENCE AND DEVASTATION IN BRAZIL


Abstract

This article presents a balance of the agrarian counter-reform underway in Brazil in the last decade and deepened in the Bolsonaro government, with violent methods of intimidation of rural peoples and social movements, as well as the proposal of a set of legal measures that encourage the illegal occupation of land and environmental devastation, favoring the expansion of agribusiness. In turn, social movements invent new forms of resistance while awaiting a change in the situation that allows for the recovery of hard-won rights that are being destroyed at an accelerated pace.

Keywords: Agrarian reform; agribusiness; field conflicts


1Artigo recebido em 30/11/2021. Primeira Avaliação em 06/01/2022. Segunda Avaliação em 19/01/2022. Aprovado em 01/02/2022. Publicado em 28/03/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52451

2 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professor Associado do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DGeo/FFP/UERJ). E-mail: paulinhochinelo@gmail.com.

Lattes: https://lattes.cnpq.br/9607379381524239. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0630-8164.

Introdução


O objetivo do presente texto é fazer um balanço das disputas em torno da reforma agrária no governo Bolsonaro, apontando como esta tem sido cada vez mais convertida em contrarreforma pelo governo e como os movimentos sociais do campo estão se movimentando em meio a uma conjuntura tão adversa.

Por definição, reforma agrária é um processo através do qual ocorre a democratização da distribuição da terra numa sociedade, com a transferência de terras até então sob o controle do latifúndio para trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra. Este processo produz também distribuição da riqueza e do poder, com a melhoria das condições de vida e o fortalecimento político do campesinato frente aos latifundiários. São várias as modalidades de reforma agrária implementadas mundo afora nos últimos séculos (STÉDILE, 2020)

Quando, ao contrário, a política agrária fortalece o latifúndio, aumenta a concentração da terra e amplia a expropriação de camponeses, indígenas e quilombolas, estamos diante de seu oposto, a contrarreforma agrária, processo em curso no Brasil na última década e que se acentuou sob o governo Bolsonaro (ALENTEJANO, 2020).

Consideramos que o cenário no Brasil atual, do ponto de vista da questão agrária, aponta para uma nova rodada expropriatória (FONTES, 2010; BARTRA, 2014), através da qual o capitalismo em crise visa, através de processos espoliativos (HARVEY, 2004), recuperar fôlego. Sob a hegemonia do agronegócio, processos históricos como a concentração fundiária, a expansão da monocultura, a prioridade conferida à agroexportação, a superexploração do trabalho, a devastação ambiental e a violência são exacerbadas (ALENTEJANO, 2020a), reforçando a inserção subordinada do país na divisão internacional do trabalho e bloqueando a superação de sua condição dependente e periférica (FERNANDES, 2020; MARINI, 2012).

Na contramão deste processo, movimentos sociais do campo, indígenas e quilombolas buscam resistir à barbárie, construir laços de solidariedade e buscar formas de preservar as condições mínimas de sobrevivência enquanto almejam uma virada na conjuntura que favoreça suas lutas (MEDEIROS, 2020).

Este artigo, além desta Introdução e da Conclusão é composto por duas partes. Na primeira apontamos os elementos que caracterizam a contrarreforma agrária em marcha no Brasil, enfocando, sobretudo, as políticas do governo Bolsonaro, sem

deixar de apontar as continuidades em relação a governos anteriores. Na segunda parte indicamos algumas ações dos movimentos sociais do campo na tentativa de se contrapor a tais políticas num cenário extremamente adverso para as lutas sociais no campo. Na Conclusão buscamos apontar possibilidades de desdobramento do cenário atual.


As dimensões da contrarreforma agrária


Mais do que nunca, sob o governo Bolsonaro, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) faz valer um dos apelidos a ele atribuído por militantes dos movimentos sociais do campo, o de Instituto Nacional de Contrarreforma Agrária3. A contrarreforma agrária envolve quatro dimensões que analisaremos neste item do texto: (1) paralisação total das desapropriações; (2) relutância em criar assentamentos (3) titulação privada das terras dos assentamentos;

(4) avanço da grilagem de terras.

Os números evidenciam o total abandono desta política. Segundo dados oficiais do Incra (2021) foram apenas 11 assentamentos criados em mais de 2 anos e meio de governo, o que dá a ridícula média de um assentamento a cada 3 meses e menos de 4 assentamentos por ano, distribuídos por sete (7) unidades da federação: Bahia, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Norte e Sergipe.

Porém, quando olhamos mais detidamente esses números vemos que ainda são inflados, pois quatro (4) deles são ações de reconhecimento4, sendo três deles territórios quilombolas que a justiça obrigou o Incra a reconhecer. Apenas sete (7) foram criados a partir de processos de desapropriação, sendo que nenhum iniciado no governo Bolsonaro. Ou seja, o presidente cumpriu à risca a promessa feita durante sua campanha de não desapropriar um hectare sequer para destinar à reforma agrária. A maioria desses processos de desapropriação foi iniciada na década de 2010, três no governo Dilma e dois no governo Temer, mas um foi iniciado ainda no governo Lula e um no governo FHC, na década de 1990, ou seja, se arrastava há décadas.


3“Incravado” é outro apelido comum, relacionado à morosidade das ações do órgão. 4Reconhecimento é uma ação do Incra atestando a condição de assentamento rural de uma área criada por outro órgão, como os institutos estaduais de terra, por exemplo.

Os cinco assentamentos criados na Bahia foram resultados de processos de desapropriação iniciados em 2004, 2010, 2011, 2012 e 2016, respectivamente. Os assentamentos criados em Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Norte são resultados de desapropriações iniciadas, respectivamente, em 1998 e 2016. Já os assentamentos do Distrito Federal, Goiás, Paraná e Sergipe, não foram criados pelo Incra, mas reconhecidos, sendo que os dos três últimos são territórios quilombolas.

A comparação do número de famílias assentadas por governo demonstra que a política de reforma agrária – que já vinha definhando na última década – praticamente foi abandonada no atual governo.


Gráfico 1 – Famílias Assentadas por Governo – Brasil – 1985-2020


Fonte: Incra – Organização do Autor.


Há ainda dados mais impressionantes. Uma comparação entre os dados divulgados pelo Incra em 2019 e 2021 na sua página eletrônica (Tabela 1) revela que o número de assentamentos diminuiu de 9.478 para 9.432, ou seja, 46 assentamentos desapareceram. Ainda mais espantosos são os dados relativos à área dos assentamentos que caiu de 89.502.605 hectares para 87.535.184 hectares, uma redução de quase 2 milhões de hectares. E a redução do número de famílias assentadas é ainda mais impressionante, pois caiu de 1.349.689 para 966.115, ou seja uma diminuição de 383.574 famílias. É como se mais de ¼ das famílias tivesse evaporado dos assentamentos.

Tabela 1 – Assentamentos, Área e Famílias Assentadas – 2019- 2021



2019

2021

Diferença

Assentamentos

9.478

9.432

- 46

Área (ha)

89.502.605

87.535.184

- 1.967.421

Famílias Assentadas

1.349.689

966.115

- 383.574

Fonte: Incra 2019 e 2021 – Organização do Autor.


A redução do número de assentamentos, da área total destes e do número de famílias é um mistério para o qual não há uma só explicação na página do Incra.

Outro indicativo da paralisação completa da reforma agrária no governo Bolsonaro é a recusa sistemática do Incra em dar continuidade a processos de desapropriação iniciados em governos anteriores. Em São Paulo, por exemplo, o Tribunal Regional Federal negou a desistência do Incra em dar continuidade a um processo de desapropriação iniciado em 2016 em São José dos Campos, determinando que a realização de desapropriações para fins de reforma agrária em casos de descumprimento da função social da terra é atribuição legal do órgão.5

O Incra se nega até a retomar áreas griladas, como em Mato Grosso, onde a Justiça Federal concluiu, em 2020, que a fazenda Araúna, de 14,7 mil ha, localizada no município de Novo Mundo, no norte do Mato Grosso pertence à União e foi grilada. A Justiça determinou ao Incra a retomada da terra e a criação de um assentamento no local, porém, o Incra afirma que não pode cumprir a ordem judicial por conta da suspensão da reforma agrária pelo governo Bolsonaro.6

Outra ação do Incra que chama atenção é a recusa sistemática em assentar famílias acampadas em áreas onde estão sendo criados assentamentos. No Rio de Janeiro, no município de Quatis, famílias vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que desde 2006 fazem parte do acampamento Irmã Dorothy, estão sendo preteridas por outras selecionadas de forma articulada entre o Incra e a prefeitura local. Processo semelhante está ocorrendo nas antigas terras da falida Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, onde em maio de 2021 a justiça ordenou que o Incra assentasse famílias nas terras adjudicadas em função das inúmeras e volumosas dívidas da antiga usina. Para pressionar o Incra a realizar o


5https://www.conjur.com.br/2021-jul-19/trf-determina-incra-analise-reforma-agraria-area-ocupada-

acessado em 08 de outubro de 2021.

6CAMARGOS, Daniel e MAGALHÂES, Ana.https://reporterbrasil.org.br/2020/12/apos-despejos-e- ameacas-sem-terra-tem-decisao-favoravel-da-justica-pela-reforma-agraria-e-governo-nao-cumpre/ - acessado em 29de setembro de 2021.

assentamento, o MST reocupou a área, onde já antes haviam existido os acampamentos Oziel Alves nos anos 2000 e Luis Maranhão nos anos 2010, dando ao novo acampamento o nome de Cícero Guedes. liderança do MST na região, assassinado em 2013 no acampamento Luis Maranhão. O Incra então passou a pressionar as famílias acampadas afirmando que só assentaria as famílias que abandonassem o acampamento, estimulando a divisão entre os acampados e acampadas.

A contrarreforma agrária não se limita aos parcos assentamentos criados, à não abertura de processos de desapropriação e à recusa em cumprir ordens judiciais relacionadas à política de reforma agrária, envolve também a titulação privada de lotes nos assentamentos rurais criados em governos anteriores com o intuito de recolocar estas terras no mercado. Sauer et al (2019) citam entrevista do presidente do Incra, Geraldo Melo Filho ao Valor Econômico em 2019, no qual este afirmou que


O Brasil tem pronta uma nova fronteira agropecuária para trabalhar: os assentamentos. São 88 milhões de hectares”, que serão titulados para viabilizar o “potencial gigantesco de produção... (SAUER et al., 2019: 9).


Estudo da ONG Grain (2019) aponta números mais modestos, considerando que uma parte dos assentamentos rurais não pode ser objeto de titulação privada, por serem Reservas Extrativistas (Resex), Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) e outras modalidades que só podem ser tituladas coletivamente com emissão do título de Concessão do Direito Real de Uso (CDRU) para as famílias assentadas, sendo, portanto, terras que não podem ser objeto de compra e venda. De todo modo seria nadam desprezíveis 5% do território nacional, ao redor de 40 milhões de ha de assentamentos de reforma agrária que poderiam ser reinseridos no mercado de terras. (GRAIN, 2019: 4)

A prioridade atribuída à titulação é tanta que o Incra criou em 2020 um setor específico para tratar do tema - a Divisão de Titulação de Assentamentos - e em 2021 lançou o Titula Brasil, programa destinado a acelerar a titulação de lotes em assentamentos e a regularização fundiária em terras da União com a colaboração de prefeituras. O programa baseia-se no Decreto 10.592 de 24/12/2020 que regulamenta os procedimentos para regularização fundiária previstos na Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009. Packer (2021: 147) afirma que o objetivo do programa é "legitimar uma

privatização massiva de terras públicas federais com subsídios estatais, de forma acelerada e barata."

Segundo o Incra, 1.935 municípios poderiam aderir ao programa, com destaque para a Bahia (171 municípios), o Maranhão (137 municípios) e Pernambuco (116 municípios). Através de processos de cooperação técnica entre o Incra e as prefeituras seriam criados núcleos municipais de regularização fundiária que passariam a realizar a coleta de requerimentos, declarações e documentos relacionados aos processos de regularização e titulação, as vistorias nos imóveis e o georreferenciamento das terras. Ou seja, o Incra transfere praticamente toda as suas atribuições para as prefeituras, combinando "municipalização da regularização, autodeclaração sem verificação de conflitos, cumprimento da função social ou sobreposição com terras públicas ou comunitárias" (PACKER, 2021: 147/148).

Avançando na política de contrarreforma agrária, em outubro de 2021 o Incra lançou a Plataforma de Governança Territorial para simplificar e acelerar a titulação das ocupações em terras públicas e assentamentos da reforma agrária. Publicou ainda uma listagem com 738 assentamentos aptos para regularização, onde vivem mais de 56 mil famílias. Na ocasião o presidente do Incra afirmou que só em 2021 foram emitidos 100 mil documentos de titulação.7 O gráfico abaixo aponta o número de assentamentos que podem ser objeto de titulação por unidade da federação.


Assentamentos que Podem Ser Titulados por UF - Brasil - 2021

94

91

74

67

74

52

12 16

28 24

29

35

31

2

11

0

8

3

12 18 20

22

14

1

0

0

0

Gráfico 2 - Assentamentos que podem ser titulados por unidade da federação8


AC AL AM AP BA CE DF ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RR RS SC SE SP

TO

Fonte: Incra, 2021 – Organizado pelo Autor.


7Disponível em https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/noticias/plataforma-de-governanca-territorial- disponibiliza-servicos-do-incra-pela-internet - acessado em 11 de outubro de 2021.

8 Obs.: DF abrange também áreas de Goiás e Noroeste de Minas que estão sob a jurisdição da Superintendência Regional do Incra de Brasília. PA soma das Superintendências de Belém e Marabá. PE soma das Superintendências de Recife e do Médio São Francisco.


Quando organizamos os dados por região, o Centro-Sul lidera o percentual de assentamentos que podem ser titulados, com 44%, contra 31% da Amazônia e 25% no Nordeste.


Gráfico 3 - Assentamentos que podem ser titulados por região



Fonte: Incra, 2021 – Organizado pelo Autor.

Nesta regionalização a Amazônia corresponde aos estados da região Norte junto com Maranhão e Mato Grosso. O Nordeste corresponde aos estados da região Nordeste, com exceção do Maranhão. O Centro-Sul corresponde aos estados das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, com exceção do Mato Grosso. Consideramos essa regionalização mais adequada para a compreensão dos processos agrários em curso no país. Ver a este respeito ALENTEJANO; LEITE; PORTO-GONÇALVES, 2013.


A comparação entre os assentamentos que podem ser titulados e os existentes deixa ainda mais evidente esta situação, pois a única região cujo percentual de assentamentos que podem ser titulados supera o percentual de assentamentos existente é o Centro-Sul, área onde o agronegócio9 está mais consolidado, as terras possuem maior valor de mercado e praticamente não há mais terras devolutas para onde o agronegócio possa se expandir, como é o caso da Amazônia e do Matopiba (parte na Amazônia e parte no Nordeste). Assim, no Centro-Sul, as terras dos assentamentos são a maior parte das terras que estão fora do mercado, o que explica o esforço do Incra em disponibilizá-las.


9Compreendemos o agronegócio como a articulação entre a grande propriedade fundiária e o grande capital agroindustrial e financeiro, com sustentação política, econômica e jurídica do Estado e ideológica da grande mídia empresarial. A este respeito ver DELGADO (2012) e ALENTEJANO (2020a).

Assentamentos Rurais por Região - Brasil - 1985-2020

Centro-Sul 25%

Amazônia 40%

Nordeste 35%

Gráfico 4 - Assentamentos por região



Fonte: Incra, 2021 – Organizado pelo Autor.


Packer (2021) sustenta ainda que o Programa Titula Brasil criou um mecanismo para acelerar ainda mais a recolocação das terras dos assentamentos no mercado, pois

autoriza a venda de lotes de até quatro módulos fiscais em assentamentos criados ou desmembrados até 22 de dezembro de 2014, já a partir da emissão do título provisório e não mais do título definitivo, o que abrange 80% dos assentamentos e 37 milhões de ha (PACKER, 2021: 147).


O processo de incorporação de novas áreas é condição fundamental para a dinâmica do agronegócio, ampliando o domínio territorial e abrindo novas fronteiras para a acumulação de capital. Esse processo é denominado por Harvey (2004) de acumulação por espoliação, para distingui-lo do processo de acumulação primitiva tal qual analisado por Marx.


Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias. A expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem-terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas três últimas décadas; muitos recursos antes partilhados como a água, têm sido privatizados (com frequência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista da acumulação... (HARVEY, 2004: 121)


Fontes (2010) polemiza com Harvey (2004) em torno da adequação da sua noção de acumulação por espoliação, por considerar que a expropriação é sistemática

no capitalismo, dado seu caráter desigual e combinado. Outra crítica feita a essa noção é a da Bartra (2014), para quem:


O problema como recente e resgata do conceito de “acumulação por despossessão”, está em que é puramente descritivo, alude a um só tipo de acumulação primária e por si mesmo não esclarece qual é a articulação deste momento com a acumulação produtiva ou ampliada. E expropriação não é acumulação de capital, mas premissa da acumulação; premissa histórica se nos referimos à originária e premissa lógico-estrutural se fazemos referência à permanente. Sem valorização do capital mediante a exploração do trabalho assalariado não há acumulação, de modo que o complemento da acumulação primária - seja primitiva ou recorrente - é a valorização capitalista e ampliada do expropriado. (BARTRA, 2014, 105)10


De todo modo, denominemos tal processo de acumulação por espoliação, expropriações ou expropriação permanente, trata-se de dinâmica fundamental do capitalismo contemporâneo e evidencia seu caráter violento, do qual o avanço do agronegócio é parte essencial.

Aguiar e Bastos (2012) afirmam que a relação do capital com a natureza baseia- se no tripé expropriação-apropriação-mercadorização. Através da expropriação dos camponeses o capital gera ao mesmo tempo o trabalhador livre para ser explorado e a terra para ser apropriada. Este movimento de expropriação-apropriação- mercadorização é recorrente no capitalismo. Nesta perspectiva, áreas de preservação ambiental, terras indígenas, quilombolas, de assentamentos rurais e de uso comum são obstáculos a serem removidos, visando ampliar a oferta de terras no mercado como parte do movimento do capital para se apropriar de terras, especialmente na América Latina e na África.


Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2012 estimou que até 2050 haverá um avanço de cerca de 70 milhões de ha da fronteira agrícola no mundo, mas com uma redução de 63 milhões de ha nos países desenvolvidos e, portanto, com um aumento da destinação de cerca de 132 milhões de ha para os agronegócios nos países em desenvolvimento do Sul global. (PACKER, 2021: 141)


Essa busca incessante por terras ganha nítidos contornos espaciais no mapa elaborado pelo Grupo de Inteligência Territorial da Empresa Brasileira de Pesquisa


10 Tradução do autor.

Agropecuária (GITE/Embrapa)11 com dados até janeiro de 2017 que apresenta a distribuição espacial das terras públicas e comunitárias no Brasil e defende o argumento de que o Estado brasileiro não tem como administrar tantas terras e deveria privatizá-las.


Mapa 1 - Áreas Públicas e Comunitárias no Brasil


Fonte: Embrapa.


Através do mapa podemos perceber por que a Amazônia é o principal foco do interesse do agronegócio, pois é nela que se situa a maior parte das áreas públicas e comunitárias no país. Este processo de expansão do agronegócio pode ser evidenciado pelos dados do Censo Agropecuário do IBGE de 2017, segundo o qual os estabelecimentos agropecuários com mais de 1.000 ha aumentaram ainda mais a


11https://www.embrapa.br/gite - acessado em 25 de maio de 2020.

área sob seu controle, passando de 45% segundo o Censo de 2006 para 47,5% em 2017. Isso para um total de apenas 1% dos estabelecimentos, pouco mais de 50 mil de um total de mais de 5 milhões. Foram 16,5 milhões de ha incorporados pelos latifúndios, enquanto os menores estabelecimentos, que têm até dez hectares, representam 50,2% do número total de estabelecimentos, mas ocupam apenas 2,3% da área.

Já os dados do Cadastro Rural do Incra de 2018 apontam a existência no Brasil de 6.574.830 imóveis com 775.523.405 ha. Os minifúndios – que são os imóveis com menos de 1 módulo fiscal – são 65,1% do total de imóveis, mas ocupam apenas 7,7% da área e os latifúndios – que são os imóveis com mais de 15 módulos fiscais – representam apenas 2,3% do total de imóveis, mas controlam 60,8% da área. Vale acrescentar que somente 887 imóveis que possuem mais de 600 módulos fiscais controlam 166.093.941 ha, o que corresponde a 21,4% da área total.

Assim, a concentração fundiária se amplia no rastro da expansão do agronegócio. Herdada do período colonial, inaugurada com as sesmarias, intensificada pela Lei de Terras de 1850, mantida intacta pelos sucessivos bloqueios à reforma agrária na história do país, agora se intensifica com o avanço do agronegócio.

Historicamente, um dos mecanismos de expansão do latifúndio é a grilagem de terras. Tudo indica que essa adquire hoje novos contornos. Os gráficos 4 e 5 comparam os dados do SNCR dos anos de 2003, 2010, 2016 e 2018. No primeiro gráfico consta o número de imóveis cadastrado por classes de área, expresso em módulos fiscais (MF) que é a medida utilizada pelo Incra para classificar os imóveis como Minifúndios (menos de 1 MF), Pequenas Propriedades (1 a 4 MFs), Médias Propriedades (4 a 15 MFs) e Grandes Propriedades (mais de 15 MFs). No segundo gráfico são apresentados os dados referentes à área, seguindo as mesmas classes de área.



2003 2010 2016 2018

5,77

5,18

4,29

6,45

8

6

4

2

0

Imóveis (Milhões)

Área (Milhões de Hectares)

775,53

800 571,74 521,84

600 418,45

400

200

0

2003 2010 2016 2018

Gráficos 5 e 6 – Número e Área dos Imóveis Rurais – Brasil – 2003/2018


Fonte: SNCR/Incra. Organizado pelo Autor.


No caso dos imóveis houve um crescimento em todos os anos, mas no caso da área houve um aumento expressivo entre 2003 e 2010, uma pequena redução entre 2010 e 2016, seguida de um grande aumento entre 2016 e 2018.

Quando consideramos a variação média anual (Gráficos 6 e 7) observa-se que nos sete anos entre 2003 e 2010 o número de imóveis rurais cresceu em média 127 mil por ano; entre 2010 e 2016, o aumento foi de 98 mil por ano, já nos dois anos entre 2016 e 2018, houve um aumento de 340 mil imóveis/ano, ou 931 novos imóveis por dia!!! Portanto, no período 2016/2018 tivemos um crescimento 2,7 vezes maior que no período 2003/2010 e 3,5 vezes maior que no período 2010/2016.


Variação Média Anual do Número e da Área dos Imóveis Rurais - Brasil - 2003-2018

Média Anual Nº

Média Anual Área

16,35

3,83

1,72

5,25

2,46

2003/2010

2010/2016

-1,46

2016/2018

Gráficos 7 e 8 – Variação Média Anual do Número e da Área dos Imóveis Rurais – Brasil – 2003-2018


Fonte: SNCR/Incra. Organizado pelo Autor.

Em relação à área dos imóveis rurais houve um aumento de 21,9 milhões de ha por ano entre 2003 e 2010, uma queda de 8,3 milhões por ano entre 2010 e 2016 e um impressionante crescimento de 126,8 milhões de ha por ano entre 2016 e 2018, 5,8 vezes maior que o do período 2003/2010.

Foram 126,8 milhões de ha a cada ano, sendo que o maior crescimento se deu na faixa acima de 15 MF, com uma média anual de 111,8 milhões. Significa dizer que em apenas 2 anos os latifundiários auto declararam ter se apropriado de mais 223,5 milhões de hectares, quase ¼ do território brasileiro.

Em termos relativos o maior crescimento se deu na classe acima de 15 módulos fiscais, com 14% de aumento, como o surgimento de mais de 10 mil grandes propriedades por ano. Mas o dado mais impressionante (Gráfico 8) é que na classe acima de 15 módulos fiscais o crescimento da área atingiu 47,5%, ou seja, quase dobrou.

Em termos relativos, isto significa um crescimento de 2,46% ao ano no número de imóveis e de 3,83% ao ano na área entre 2003 e 2010. Nos seis anos entre 2010 e 2016, o crescimento médio anual do número de imóveis foi de 1,72% e a área dos imóveis caiu em média 1,46% ao ano. Já nos dois anos entre 2016 e 2018 o crescimento médio anual do número de imóveis foi de 5,25%, mais do que o dobro da média anual do período 2003/2010, e mais do que o triplo do período 2010/2016. Em relação à área a diferença é ainda mais espantosa: a média anual de crescimento entre 2016 e 2018 foi quatro vezes maior que o crescimento verificado entre 2003 e 2010.


Gráficos 9 e 10 – Variação Média Anual da Área e do Número dos Imóveis Rurais (%) - Brasil - 2003-2018


Crescimento Médio Anual da Área

Crescimento Médio Anual do Número de Imóveis Rurais - Brasil

- 2003/2018

400.000 340.000

300.000 127.000

200.000

100.000 98.000

0

2003/2010 2010/2016 2016/2018

dos Imóveis Rurais (Milhões de ha) -

Brasil - 2003/2018


126,8

100,0


50,0


21,9

-8,3


0,0





-50,0

2003/2010

2010/2016

2016/2018


Fonte: SNCR/Incra. Organizado pelo Autor.

Também impressiona o crescimento da área dos imóveis em relação ao território brasileiro (Gráfico 9). Em 2003, a área dos imóveis rurais correspondia a 49,1% da área do território brasileiro. Em 2010 essa proporção passou a ser 67,2% e em 2016 caiu para 61,3%. Já em 2018 atingiu impressionantes 91,1%.

Ora, o território Brasil tem 851,5 milhões de hectares, o que significa que em 2016 a área total dos imóveis rurais cadastrados no Incra correspondia a 61,3% da área total do território brasileiro, já em 2018 essa participação aumentou para 91,1%. Em dois anos, um aumento espantoso de 30%.


Área dos Imóveis Rurais em relação à Área territorial do Brasil (%)

100

91,1

80

67,1

61,3

60

49,1

40


20


0

2003

2010

2016

2018

Gráfico 11 – Área dos Imóveis Rurais em relação à Área Territorial do Brasil (%)


Fonte: SNCR/Incra. Organizado pelo Autor.


Ocorre que no território brasileiro não existem apenas imóveis rurais, há também áreas indígenas, unidades de conservação, cidades, estradas, rios, lagos, lagoas, hidrelétricas, etc. Considerando apenas as unidades de conservação terrestres de proteção integral (UCPIs – onde não pode haver imóveis rurais) e as terras indígenas (TIs – onde também não podem existir imóveis rurais) temos um total de 183,4 milhões de hectares. Mas se somarmos 775,1 milhões de ha (dos imóveis rurais cadastrados no SNCR em 2018) a 183,4 milhões de ha (de UCPIs e TIs) temos um total de 958,5 milhões de ha, uma área 107 milhões de ha maior que a área do território brasileiro. Isso, sem contabilizar as áreas das cidades, estradas, lagos, lagoas, hidrelétricas, etc.

A conclusão é óbvia: estão sendo declaradas no cadastro do Incra como propriedades privadas, pelo menos, 107 milhões de ha de áreas que são públicas. É

provável que esse montante seja ainda superior a estes 107 milhões de ha, pois, há, por exemplo, 31,4 milhões de ha de Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais que também são áreas públicas e não são UCPIs, mas unidades de conservação de uso sustentável, assim como 15,6 milhões de ha de Reservas Extrativistas e 11,2 milhões de ha de Reservas de Desenvolvimento Sustentável, o que daria mais 58,2 milhões de ha. Portanto, é provável que as irregularidades no SNCR atinjam 165,2 milhões de ha, o que equivalente a 19,4% do território brasileiro e a 21,3% da área autodeclarada dos imóveis rurais.

Trata-se de uma aberração que se deve a dois fatores: (1) a grilagem de terras

– como o cadastro do Incra é autodeclaratório, é comum a declaração como propriedades ou posses particulares de áreas que são públicas, como forma de tentar legalizar a grilagem de terras; (2) a inépcia do Estado brasileiro em estabelecer mecanismos de controle sobre o território, o que, óbvio, interessa aos grileiros, e ao agronegócio em seu movimento de expansão. Este processo de grilagem cadastral de terras se casa com uma série de medidas propostas nos últimos anos que visam legalizar a apropriação irregular de terras no país.

O governo Bolsonaro apresentou, diretamente ou através de sua base parlamentar, vários projetos incentivando a grilagem de terras. A primeira delas foi a Medida Provisória (MP) 910, em 10 de dezembro de 2019, propondo alterar dispositivos das Leis nº 11.952/2009 (que dispôs sobre a regularização fundiária de terras da União), nº 8.666/1993 (institui normas para licitações e contratos da administração pública) e nº 6.015/1973 (que trata dos registros públicos), com o objetivo de favorecer "a titulação de grandes posses irregulares de terras não destinadas da União, portanto, mais uma tentativa de legalizar a grilagem."(SAUER et al. 2019: 2)

Vale lembrar que em 2009, quando o governo Lula apresentou ao Congresso Nacional a Medida Provisória nº 458, justificou a necessidade da mesma com o intuito de pacificar o campo. A MP 458 virou a Lei nº 11.952/2009, que instituiu o Programa Terra Legal, que visava conceder os títulos definitivos“aos posseiros com áreas de até 15 módulos fiscais e não superiores a 1.500 ha, que ocupavam essas terras desde dezembro de 2004 na Amazônia” (TRECCANI et al, 115).

Com justificativa semelhante, a da "segurança jurídica", a MP 910 ampliava a possibilidade de regularização para todo o território nacional, aumentava a área máxima passível de ser regularizada (para 2.500 ha), dispensava de vistoria a área

objeto da solicitação - prevendo apenas uso de tecnologias de sensoriamento remoto

- e alargava o prazo para os pedidos de regularização. Além disso, foi suprimida a limitação de uma área regularizada por pessoa física ou jurídica, de forma que uma mesma pessoa ou empresa poderá ser beneficiaria de mais de um imóvel, ainda que a soma deles ultrapasse 2.500 hectares” (SAUER et al., 2019: 4).

Talvez a maior aberração tenha sido a proposição de que a regularização de posses de terras da União fosse feita apenas com base na autodeclaração do pretenso proprietário. A MP também propôs alterar o marco temporal para os pedidos de regularização, adiando para 2014 o prazo que era originalmente 2004. Mas se o pretenso proprietário quiser comprar a área pelo valor de mercado o prazo vira 2018 (SAUER et al., 2019: 6).

A MP 910 ou MP da Grilagem ainda possibilitava que, mesmo com comprovados danos ambientais, o processo de regularização fosse realizado, desde que o solicitante tivesse aderido ao Programa de Recuperação Ambiental (PRA) ou assinado Termo de Ajustamento de Conduta TAC.


a MP 910 flexibiliza as regras já frouxas da Lei 13.465/2017, ampliando as possibilidades de grilagem de terras públicas, portanto, de privatização ilegal de bens comuns (terra, floresta, etc.). (SAUER et al. 2019: 7).


Com essa MP, o governo Bolsonaro dava sua contribuição para ampliar a grilagem de terras a exemplo do que já fizera o então presidente Temer que editou a MP 759/2016 para agilizar a regularização de terras, posteriormente convertida na Lei 13.465/2017, que ampliava o limite das terras que podiam ser regularizadas para2.500 ha, no caso de ocupações anteriores a 22 de julho de 2008 (TRECCANI et al, 115). Calcula-se que as novas regras permitiriam legalizar até 65 milhões de ha no país, sendo 53 milhões na Amazônia e Matopiba (SAUER et al., 2019:4).

Apesar das já frouxas regras houve quem quisesse ainda mais, uma vez que das 542 emendas à MP 910, por iniciativa de parlamentares de vários partidos, cerca de 130 propunham regras ainda mais tolerantes para a grilagem de terras públicas. Porém, a pressão contra a aprovação da MP foi grande, fruto da articulação de movimentos sociais do campo e entidades ambientalistas, o que acabou redundando em pressões internacionais contra a MP por sua potencial contribuição para o desmatamento da Amazônia. Com o avento da pandemia de covid-19 e a paralisação das votações no Congresso durante boa parte de 2020, a MP caducou.

Diante disso a base parlamentar ruralista bolsonarista apresentou o Projeto de Lei 2633/2020, logo apelidado de PL da Grilagem por herdar trechos da MP da Grilagem. Este PL foi aprovado em julho de 2021 pela Câmara em caráter de urgência e está para ser votado no Senado. Com as alterações que o PL sofreu para tentar reduzir as resistências, 19 milhões de hectares de áreas federais devolutas (não destinadas) poderiam ser regularizadas só na Amazônia, segundo cálculos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).12

Outro projeto que facilita a grilagem é o PLS 510/2021 que dispõe sobre a regularização fundiária de terras da União ocupadas, amplia a titulação dessas terras e dispensa vistoria prévia da área a ser regularizada. A proposta que ainda será analisada em audiência nas comissões de Agricultura e de Meio Ambiente do Senado, anistia ocupações ilegais feitas até 2014 e permitiria regularizar 43 milhões de ha, sendo 24 milhões de ha de florestas públicas não destinadas.13

Outro foco dos ataques bolsonaristas são as terras indígenas (TIs). As ameaças são inúmeras. O mais grave é o PL 490/2007 que autoriza a exploração econômica, acaba com as demarcações e impõe a revisão de terras indígenas criadas até hoje no país. Foi aprovado em junho deste ano na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, por 40 votos a 21, e está pronto para a votação em Plenário.

O interesse pelas terras indígenas do ponto de vista do agronegócio é duplo: de um lado, nas TIs já existentes e sobre as quais não se vislumbra a possibilidade de revisão, trata-se de franqueá-las para a exploração por não-indígenas, possibilitando, por exemplo o arrendamento dessas terras para a implantação de monoculturas de grãos; de outro lado, visa impedir que novas TIs sejam demarcadas e algumas demarcações sejam revistas, ampliando as terras para onde o agronegócio pode se expandir, ou assegurando sua presença em áreas reivindicadas por povos indígenas.

Vale dizer que no caso da autorização para exploração das TIs por não indígenas, essa é uma agenda que interessa não só ao agronegócio, mas também a mineradoras e às grandes construtoras de obras de infraestrutura.


12Disponível em https://infoamazonia.org/2021/10/11/congresso-projetos-caos-fundiario-amazonia/ - acessado em 10 de novembro de 2021.

13Disponível em https://infoamazonia.org/2021/10/11/congresso-projetos-caos-fundiario-amazonia/ - acessado em 10 de novembro de 2021.

Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), existem 1.296 terras indígenas no Brasil, sendo que 530 sem qualquer ação do Estado brasileiro visando sua demarcação, as terras demarcadas são 401 e outras 306 tiveram o processo demarcatório iniciado, mas não concluído. Há ainda 65 terras indígenas que não se enquadram na categoria de terra tradicional.14

A paralisação das demarcações de terras indígenas, anunciada pelo presidente da República ainda durante a sua campanha eleitoral, continua sendo uma diretriz de seu governo.

Todo este conjunto de iniciativas legislativas e ações ou omissões do executivo somam-se à falta de mecanismos mais precisos de controle sobre o território brasileiro como fatores de estímulo à grilagem de terras públicas e devolutas no país, assim como para expulsar da terra aqueles que nela vivem, mas que não possuem títulos de propriedade.


Tanto os dados dos censos como dos cadastros de terras são tabulares, ou seja, as informações sobre os imóveis não são acompanhadas da localização geográfica precisa (geo-espacial) das glebas de terra descritas. Análises espaciais, como sobreposições entre glebas e destas glebas com outras categorias fundiárias como Unidades de Conservação ou Terras indígenas não são registradas nos dados tabulares. (PINTO, et al., 2020: 3)


Apesar dos autores considerarem que houve melhorias nos últimos anos no sistema nacional oficial de gestão de terras (Sigef/Incra) e na implementação de um cadastro ambiental rural (CAR), que aumentaram a qualidade dos dados sobre a posse e a localização geográfica de imóveis rurais no Brasil, persistem incertezas, pois o CAR é um cadastro autodeclarado e o Sigef defasado e incompleto.

Pinto et al. (2020) citam estudos de Spavorek et al. (2019) que combinaram dados do Sigef e do CAR com outras 12 bases de dados oficiais para elaborar um mapa da distribuição da terra do Brasil, no qual foram identificados4.486.584 polígonos, sendo 377.998 imóveis rurais cadastrados no SIGEF em 2018, 102.368 imóveis rurais titulados do Programa Terra Legal do ano de 2015, 3.998.671 imóveis



14Disponível em https://cimi.org.br/terras-indigenas - acessado em 03 de novembro de 2021.

rurais cadastrados no CAR em 2018 e 7.547 assentamentos rurais cadastrados no Incra.15

Esse mapa identificou 5,3 milhões de imóveis ocupando uma área de 422 milhões de ha, com área média de 102 ha contra 5 milhões de estabelecimentos rurais ocupando 350 milhões de ha, com área média de 99 ha do Censo do IBGE de 2017 (PINTO et al., 2020: 7). Segundo tal estudo, os 15.686 maiores imóveis do país (0,3% do total) detêm 25% de toda a terra agrícola.

Esta incerteza básica sobre a situação fundiária e a geografia do uso da terra e da produção agropecuária dificultam a formulação e a aplicação das políticas agrária, agrícola e ambiental. Um cadastro unificado, georreferenciado e validado é uma urgência e uma condição para se propor antes de qualquer medida de regularização fundiária no país. (PINTO et al., 2020: 17).


Em pleno século XXI, com todas as ferramentas tecnológicas disponíveis, a pergunta fundamental que se coloca é: a quem interessa essa persistência da falta de controle do Estado brasileiro sobre o território se não aos grileiros que se valem desta situação para seguir se apropriando ilegalmente de terras públicas e devolutas.

Estudo da ONG Grain (2019) destaca os processos que estão em curso de regularização ambiental e fundiária como parte da privatização massiva de terras públicas e coletivas no Brasil. Estes processos remontam ao novo Código Florestal, aprovado em 2012 e que permite


tornar legal cerca de 58% do desmatamento ilegal no Brasil, permitindo o avanço da fronteira agrícola sobre cerca de 29 milhões de hectares; também permite a compensação da Reserva Legal (RL) do agronegócio sobre áreas com menor valor de custo em se manter a floresta em pé, em geral, nos territórios tradicionais de povos e comunidades tradicionais e assentamentos de reforma agrária, que passam a assumir a responsabilidade, inclusive penal, por danos ambientais sobre a área compensada. (GRAIN, 2019: 1).


Além disso, o Código Florestal também previu o CAR (Cadastro Ambiental Rural), cujo Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) poderá regularizar até 175 milhões de ha. O CAR é um registro público eletrônico, obrigatório para todos os imóveis rurais do país, com o objetivo de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais públicas e privadas. a previsão era de que todos os



15Na época do estudo o Incra informava a existência de 9.374 assentamentos com 88 milhões de hectares, mas somente 7.547 assentamentos rurais georreferenciados, com uma área de 46 milhões de hectares.

imóveis rurais deveriam estar inscritos no CAR até 31/12/18, mas essa obrigatoriedade foi adiada pelo governo Bolsonaro, sob alegação de que muitos proprietários não tiveram condições de fazer o cadastro e seriam prejudicados, uma vez que o CAR


passa a ser o passaporte do imóvel para acesso ao sistema bancário e todas as políticas públicas ligadas ao meio rural, inclusive para acesso à benefícios da previdência social, a emissão de guia para venda da mercadoria produzida na área e etc. (GRAIN, 2019: 2).


Este sistema está diretamente associado à lógica do capitalismo verde, ao prever o uso do CRA (Certificado de Regularização Ambiental) para alavancar recursos junto à Bolsa de Valores Ambientais - BVRio, onde


1 CRA ou 1 ha de vegetação nativa pode variar entre R$ 3 mil reais (U$760 dólares) e R$ 50 reais (U$ 20 dólares), a depender do bioma, do estado e do valor da terra, o que significa um mercado de no mínimo 9 bilhões de reais (cerca de 2,2 bilhões de dólares). (GRAIN, 2019: 2).


Packer (2021: 145) afirma que o Código Florestal além de promover perdão do desmatamento, financeirização e “grilagem verde” "permitiu o desmatamento legal e a incorporação de mais 88 milhões de ha de vegetação nativa para o aumento da fronteira agrícola."

Mas há outros problemas com o CAR. A maioria das instituições públicas e financeiras vem se negando a reconhecer o CAR coletivo, ou seja, a inscrição de todo o perímetro da área do assentamento ou território coletivo para se acessar as políticas públicas, o que faz com que algumas famílias busquem a realização de cadastros individuais sobre áreas coletivas, gerando conflitos internos nas comunidades.

Até 01/03/2019, apenas 0,03% dos cadastros realizados no Sicar eram de território de povos e comunidades tradicionais, somando 1.952 cadastros com 34,8 milhões de ha. Havia ainda 15.136 cadastros em áreas assentamentos de reforma agrária, com um total de 50,6 milhões de ha (GRAIN, 2019: 6).Por sua vez, nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) de março de 2021 apontou o crescimento de 55% terras indígenas onde há áreas registradas irregularmente como propriedade privada no CAR no período entre 2016 e 2020 (TRECCANI et al, 2021: 114), assim,


o CAR está sendo empregado para legitimar a ocupação ilegal de terras indígenas, na esperança de que o atual governo diminua essas

áreas para reconhecer a ocupação irregular. (TRECCANI et al, 2021: 116).


Segundo Treccani et al. (2021), levantamento feito pelo observatório “De olho nos ruralistas”, apontou 297 terras indígenas que, apesar de demarcadas, possuem parte de seus territórios registrados no CAR em nome de pessoas físicas ou jurídicas. Por sua vez, o MPF identificou quase 10 mil CAR em áreas destinadas a povos indígenas. Assim,


embora tenha finalidade apenas ambiental, o CAR (...) vem sendo amplamente utilizado de forma fraudulenta como instrumento de grilagem, gerando inúmeras sobreposições em áreas públicas e territórios coletivos. Essa prática resultou em, até março de 2019, 30% de área a mais cadastrada do que o território brasileiro passível de cadastramento, expondo o caos fundiário do país e legitimando um mercado de terras de títulos podres. (PACKER, 2021: 145/146).


Desta forma, Packer (2021: 146) lembra que embora dados oficiais apontem que aproximadamente 43% do território brasileiro seria pertencente a imóveis privados, 78% do território foi declarado como imóveis rurais particulares no CAR, além de 91% no SNCR do Incra, como visto acima.


regularização ambiental, com o CAR individual (grilagem verde), e regularização fundiária, com a titulação individual de domínio, conjugam-se para fomentar a maior transferência massiva de terras públicas, devolutas e territórios tradicionais coletivos para a iniciativa privada, em verdadeira legalização da grilagem de terras, como também uma contra-reforma agrária no país. (GRAIN, 2019: 9).


Contrarreforma agrária esta que, ao mesmo tempo, é promovida pelo agronegócio e se constitui numa das bases para seu fortalecimento. A voracidade com que esse processo se dá obedece à lógica de um capitalismo cada vez mais ancorado no rentismo e na financeirização.

Bartra (2014, 119) sustenta que o modelo de desenvolvimento extrativista baseado no saque dos recursos naturais é a forma rentista, especulativa, parasitária e predadora do capitalismo de escassez que realiza um triplo movimento: saque dos despojados dos bens, saberes e condições de vida produtiva, social e espiritual; exploração dos trabalhadores; rentismo a partir da apropriação dos bens naturais privatizados.


...se a acumulação primitiva analisada por Marx é premissa histórica da acumulação ampliada propriamente capitalista, o saque

permanente é premissa estrutural da acumulação ampliada rentista... (BARTRA, 2014: 120).


O rentismo se sobrepõe cada vez mais ao investimento produtivo, seja as rendas diretamente financeiras ou as derivadas da privatização de bens naturais e sociais.


O capitalismo dos tempos da grande crise é de novo um capitalismo ferozmente territorial, porque em tempos de escassez a privatização dos recursos naturais promete enormes rendas; porém é também um capitalismo radicalmente desterritorializado pois quando caem os ganhos do investimento produtivo não há melhor negócio que a especulação financeira. (BARTRA, 2014: 121).


O capital dos tempos da grande crise é financeiro-rentista e segue buscando mecanismos de subordinar à sua lógica coisas que não são mercadorias: as pessoas, a natureza e o dinheiro.

Diante da brutalidade da lógica capitalista rentista e das profundas desigualdades que produz, a violência torna-se parte consubstancial do sistema. Assim como as formas primitivas de apropriação da riqueza se entrelaçam com a formas modernas de acumulação, a vida institucional regulada pelo direito se articula com as práticas extralegais.


assim como no terceiro milênio temos um capitalismo descerebrado que recorre sistematicamente à economia violenta da “acumulação por despossessão”, temos também uma ordem burguesa brutal e autoritária que tanto no plano global como no nacional, recorre sistematicamente à violência política primária permanente, quebrando vez por outra o Estado de direito. (BARTRA, 2014: pág. 128)16


Tal qual o governo Bolsonaro e seu sistemático incentivo ao armamento, à violência, ao desprezo pelos povos e comunidades tradicionais. Vale lembrar que o governo propôs a Lei 13.870/2019 que chancela o armamento rural (SAUER et al., 2019: 3) e que deu inúmeras declarações racistas contra indígenas e quilombolas. Não resta dúvida de que por declarações, ações e propostas legislativas o atual governo alimenta e valida o tripé grilagem – desmatamento – violência.

Em 2020, segundo os dados da CPT, em plena pandemia de covid-19, tivemos o maior número de conflitos por terra desde 1985, ano em que a CPT começou a registrar de forma sistemática os dados sobre conflitos no campo brasileiro. Foram


16 Tradução do autor.

1.576 conflitos, envolvendo 171.625 famílias e 77.442.957 ha, um crescimento, respectivamente de 25,7% no número de conflitos, de 19,8% no número de famílias envolvidas e de 45,3% na área em disputa entre 2019 e 2020.

Treccani et al. (2021) apontam a concentração dos conflitos na Amazônia, com 58,7% dos conflitos, embora possua apenas 13,9% da população brasileira. Essa região lidera expulsões, grilagem e desmatamento ilegal. Destacam ainda, em sua análise, que a partir de 2009, os povos e comunidades tradicionais passaram a ser o principal alvo da violência.

As cinco categorias que mais foram vítimas de agressões entre 2009 e 2020 foram: sem-terra, com 2.804 ocorrências (24,85% do total); posseiro, 2.470 (21,89%); indígenas, 2.010 (17,82%); quilombolas,

1.470 (13,03%); e assentados, 861 (7,6%). Quando, porém, analisamos os números dos últimos dois anos, podemos verificar que as duas categorias com o maior número de ocorrências são os indígenas e os quilombolas, que aumentaram, respectivamente, 2,67 vezes e 1,93 vezes. (TRECCANI et al, 2021: 121).


Essa conclusão é reforçada pelo relatório "Violência contra os Povos Indígenas no Brasil" publicado anualmente pelo Cimi, segundo o qual em 2020, 182 indígenas foram assassinados, um número 61% maior do que o registrado em 2019, quando foram contabilizados 113 assassinatos.

Quando a análise recai sobre os responsáveis pela violência, os dados da CPT apontam que os “fazendeiros” foram responsáveis por 3.934 conflitos (34,87%), seguidos de “empresários nacionais e internacionais”, protagonistas de 2.428 conflitos (21,52%) e o “Poder Público”, envolvido em 1.562 conflitos (13,75%)


Nessa última categoria, inserem-se o governo federal, com 1.115 ocorrências, os governos estaduais, com 316, e municipais, com 131. Comparando os dados de 2019 com 2020, o governo federal destaca- se, passando de 103 para 519, um aumento de cinco vezes. (TRECCANI et al, 2021: 121).


Evidencia-se assim o papel cada vez mais ativo do governo na promoção de conflitos no campo. Ao contrário do que se esperaria do Estado, numa visão liberal, o de moderador dos conflitos sociais, evidencia-se aqui o caráter de classe do Estado agindo a favor dos interesses do capital no campo com uma brutalidade cada vez maior. Mas é sempre bom lembrar que a promessa de que as políticas de regularização fundiária levariam paz ao campo foi feita pela primeira vez pelo governo Lula em 2009 quando justificou a criação do programa Terra Legal. Porém, ao

contrário de paz no campo, as políticas de regularização fundiária provocaram aumento dos conflitos (TRECCANI et al, 2021: 118).


é urgente abandonar qualquer forma de regularização fundiária que possa favorecer a expansão da fronteira agrícola, a busca de ganhos patrimoniais rápidos, a grilagem de terras pública, a concentração da riqueza e o aumento da exclusão social. (TRECCANI et al, 122).


Na próxima seção do texto buscaremos apontar como os movimentos sociais do campo estão buscando meios de se contrapor a conjuntura tão adversa para as lutas sociais.


A resistência dos movimentos sociais do campo à contrarreforma agrária


Os inúmeros ataques e ameaças do governo Bolsonaro aos movimentos sociais do campo e aos povos originários e comunidades tradicionais se somaram a partir de 2020 à política genocida do governo diante da pandemia de covid-19.


Desde 2019, quando se inicia o governo Bolsonaro, os movimentos parecem estar acuados, premidos pela ausência de possibilidades de diálogo e pelas ameaças de violência e, mais recentemente, tolhidos pelo necessário distanciamento social, relacionado à expansão da pandemia da covid-19. (MEDEIROS, 2020: 492).


Entre declarações absurdas sobre ineficácia de máscaras e vacinas e campanhas sistemáticas contra o distanciamento físico, o governo negou assistência prioritária a populações sabidamente mais vulneráveis, como os indígenas.

De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (2021) foram registrados 60.490 casos de covid-19 entre os indígenas, comum total de 1.228 mortes e 162 povos afetados pela pandemia. O Amazonas foi o estado com maior número de mortes, 254, seguido do Mato Grosso com 161 e Mato Grosso do Sul com

128. Os povos com maior número de mortes foram o Xavante com 79 e o Terena com 65.17

Cenário não muito diferente se delineou em relação às comunidades quilombolas, também vitimadas em larga escala pela pandemia. Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (2021) até 04 de novembro de 2021 foram registrados 6.656 casos de covid-19 entre



17https://apiboficial.org/ - acessado em 03 de novembro de 2021.

quilombolas com 310 mortes.18Chama atenção no caso dos quilombolas o altíssimo índice de mortalidade no Rio de Janeiro, onde houve 44 mortes num universo de 14.857 quilombolas, ao passo que na Bahia, estado com maior população vivendo em áreas quilombolas, com 268.573 pessoas19, houve apenas 9 mortes, ou seja, o índice de mortalidade nos quilombos do Rio de Janeiro foi88 vezes maior que nos da Bahia. Diante disso, inúmeros povos indígenas e comunidades quilombolas se organizaram para promover bloqueios sanitários visando impedir o acesso a suas

terras, de forma a evitar a contaminação generalizada nessas áreas.


Diante da grave omissão do governo federal no combate à COVID-19, os povos, sobretudo indígenas e quilombolas, realizam movimento autônomo de bloqueio aos acessos dos seus territórios, para evitar a entrada do vírus nas comunidades e impedir atividades ilegais como caça, garimpo, extração ilegal de madeira, grilagem, turismo etc. (CPT, 2021: 13).


Essa prática acabou também sendo replicada por outros povos e comunidades tradicionais, como caiçaras do litoral fluminense que bloquearam os acessos a praias da região de forma a impedir o contágio sobretudo dos anciãos dessas comunidades. Segundo a CPT foram registrados 370 conflitos no campo brasileiro em 2020 envolvendo barreiras sanitárias comunitárias, sendo 314 relacionadas a povos indígenas, 40 a comunidades quilombolas e 12 a comunidades de caiçaras e pescadores, entre outras.

A resistência dos movimentos sociais do campo também se traduziu em ações de solidariedade durante a pandemia com distribuição de alimentos nas periferias das cidades. Só o MST distribuiu 5 mil toneladas de alimentos e 5 mil cestas de produtos.20 Outra iniciativa do MST foi a produção e distribuição de marmitas para a população de rua e motoristas de aplicativas através da rede Armazém do Campo, espaços de comercialização que o Movimento possui em diversas cidades brasileiras, e que aliás se expandiu durante a pandemia como forma de escoar a produção dos


18Disponível em http://conaq.org.br/ - acessado em 18 de novembro de 2021.

19Os dados sobre população vivendo em áreas indígenas e quilombolas foi calculado de forma experimental pelo IBGE em 2021 - disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/31876-dimensionamento-emergencial-de- populacao-residente-em-areas-indigenas-e-quilombolas-para-acoes-de-enfrentamento-a-pandemia- provocada-pelo-coronavirus.html - acessado em 18 de novembro de 2021.

20Disponível em https://mst.org.br– acessado em 17 de novembro de 2021.

assentamentos. De acordo com o MST foram produzidas e distribuídas 1 milhão de marmitas, além de 50 mil máscaras.21


Entre as 1.348 manifestações de luta sistematizadas pela CPT em 2020, 965 (71,6%) foram “Ações de solidariedade”, cujo objetivo principal foi a doação de alimentos para famílias, do campo e da cidade, em situação de vulnerabilidade agravada pela COVID-19.


Medeiros (2020) também destaca a importância dessas ações, mas indaga acerca de seus limites para enfrentar a brutalidade dos ataques proferidos pelo governo e seus aliados.


É animador ver a difusão de ações de solidariedade, com distribuição de alimentos a populações carentes, a afirmação de bandeiras por meio de transmissões ao vivo em seminários com número expressivo de participantes, apontando a apropriação da comunicação virtual como forma de expressão e resistência. Resta saber até onde vai a eficácia de um repertório de ações que tem que se fazer por meio de ações remota, num contexto em que as construções democráticas dos últimos 40 anos encontram-se seriamente ameaçadas. (MEDEIROS, 2020: 518).


Outra ação de grande relevância observada durante a pandemia foi o acampamento indígena realizado em Brasília por ocasião do julgamento no STF do chamado marco temporal que ameaçava não só impedir novas demarcações de TIs como poderia possibilitar a revisão de TIs já realizadas. Diante de tão grave ameaça

6.000 indígenas de 176 povos acamparam por uma semana na capital federal na maior mobilização indígena em 30 anos no país. Além do acampamento em Brasília, foram realizadas manifestações concomitantes em 12 estados brasileiros.22


Conclusão


Em texto publicado em 2020, ALENTEJANO (2020) afirmava que


Avaliar um governo apenas por seu primeiro ano é um exercício que envolve algum risco, pois mudanças de rumo podem ocorrer ao longo dos mandatos, ainda mais no contexto atual, afetado por uma pandemia de proporções inéditas. Entretanto, no caso das políticas do governo Bolsonaro para o campo parece haver poucas dúvidas de que os rumos seguirão os mesmos, nitidamente delineados desde os tempos de campanha e reafirmados ao longo desse primeiro ano:


21Idem.

22Disponível em https://cimi.org.br - acessado em 18 de novembro de 2021.

prioridade total para o agronegócio e ataques aos movimentos sociais, em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), povos indígenas e comunidades tradicionais, com destaque para os quilombolas. (ALENTEJANO, 2020, 355).


Agora que o governo Bolsonaro se aproxima de seu fim, podemos dizer que a previsão estava correta e o governo de fato cumpriu suas promessas de campanha no que diz respeito à política agrária, infelizmente...

Como aponta Medeiros (2020) os movimentos sociais do campo encontram-se diante de um impasse, na medida em que suas formas tradicionais de mobilização, como as ocupações de terra, acampamentos, marchas, passeatas foram duplamente afetadas, pela recusa sistemática do governo de atender qualquer reivindicação, mas também pela pandemia que impôs o isolamento e inibiu aglomerações.


Se, ao longo dos anos, os movimentos desenvolveram um conjunto de ações voltadas para dialogar com o Estado (não excluindo a oposição e o enfrentamento em alguns momentos), surge um grande impasse no momento em que o Estado se fecha à interlocução, nega-se a receber as representações dos grupos em luta, desqualifica-os como interlocutores e os ameaça. Num contexto como esse, os movimentos perdem seu mais forte instrumento para expressão de suas demandas: as manifestações públicas, na medida em que a mobilização se torna difícil, arriscada ou, na melhor das hipóteses, é ignorada. (MEDEIROS, 2020: 510).


O resultado é a perda de direitos que haviam sido conquistados a duras penas, a extinção de políticas que se não haviam alterado profundamente as estruturas sociais, em especial a agrária, haviam assegurado algumas melhorias para a vida dos povos do campo.


No Brasil, após um período de amplas mobilizações, de obtenção de políticas públicas que refletiram o reconhecimento de novos sujeitos políticos, seguiu-se outro de crescentes dificuldades para esses atores até mesmo para manter direitos já conquistados. O governo Bolsonaro mostra-se como a expressão extrema desse processo de perdas de direitos, às quais se somam a desqualificação e criminalização das lutas sociais e dos sujeitos que as levam adiante, a tolerância e estímulo ao recurso à violência privada, em especial quando se considera tanto a liberação das armas e sua posse nas áreas rurais, e estatal, quando se abrem as portas para o uso das operações de GLO. (MEDEIROS, 2020: 517).


A violência estimulada e praticada por agentes públicos e privados contra camponeses, indígenas e quilombolas, se soma à devastação ambiental e à grilagem como expressões da contrarreforma agrária, em curso no país desde o final dos anos

2000, mas brutalmente acentuada no governo Bolsonaro, em consonância com os interesses do agronegócio, esse amálgama do latifúndio com o grande capital agroindustrial e financeiro, sustentado pelo Estado e glorificado pela grande mídia empresarial, que superexplora a natureza e o trabalho, produzindo devastação e miséria.


Ao erodir aceleradamente as premissas naturais e sociais da vida humana, o capitalismo nos leva ao precipício. Disto se dão conta os governos, os organismos multilaterais e até os capitalistas. Porém, o capital enquanto tal é cego para tudo o que não seja lucro e os mercados que incentivam a ganância trabalham contra o sentido comum que chama a moderar o saque, a contaminação, a pobreza. Para o capital o fim do mundo é um bom negócio. (BARTRA, 2014: 124).


Mesmo diante de tantas dificuldades, camponeses, indígenas e quilombolas seguem resistindo e inventando novas formas de luta, como as barreiras sanitárias e as ações solidárias de distribuição de comida e máscaras contra a pandemia combinada de corona vírus e fome, praticadas por movimentos como o MST. e se há luta, resistência e criatividade, há esperança de um outro mundo para além da lógica suicida do capital.


Referências


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ALENTEJANO, Paulo. As políticas do governo Bolsonaro para o campo: contrarreforma agrária em marcha acelerada. Revista da ANPEGE. v. 16. nº. 29, p. 353 - 392, 2020.


            . A hegemonia do agronegócio e a reconfiguração da luta pela reforma agrária no Brasil. Caderno Prudentino de Geografia, 2020a.


            ; LEITE, Luiza Chuva Ferrari; PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Atlas dos conflitos no campo brasileiro. CPT/GeoAgaria-FFP- UERJ/Lemto-UFF. Goiânia/São Gonçalo/Niterói, 2013.


BARTRA, Armando. Con los pies sobre la tierra: despojo y resistencia en los territorios. Ciudad de México. UAM/Ithaca, 2015.


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MEDEIROS, Leonilde S. de. Movimentos sociais no governo Bolsonaro. Revista da ANPEGE. v. 16. nº. 29, p. 490 - 521, 2020.


PACKER, Larissa Ambrosano. Regularização fundiária e ambiental de mercado para um cerceamento financeiro das terras e bens comuns no sul global. In: Conflitos no Campo Brasil 2020. Goiânia: CPT, 2021.


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