V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799X
SOUZA, William Kennedy do Amaral2. Trabalho-educação, economia e cultura em povos e comunidades tradicionais: a (re)afirmação de modos de vida como formas de resistência. 2020. 222f. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação. Niterói.
Povos e comunidades tradicionais caracterizam-se por sua organização sendo a luta em defesa pelo território uma condição básica para garantir suas vidas. Em coexistência ao modo de produção capitalista, os povos e comunidades tradicionais têm o território como um ambiente simbólico, político e econômico entendido como o lugar para além de suas fronteiras geopolíticas. Para eles, o significado do território norteia a vida das pessoas e constroem valores em suas experiências.
Além dos recursos materiais, o território mantém laços imateriais e simbólicos dos trabalhadores(as) que ali estão. Estas são características inerentes à cultura camponesa (THOMPSON, 1998), em que o território exerce fundamental papel na reprodução do modo de vida. Assim, saberes, conhecimentos, técnicas, valores, memória e identidade estão nos processos de manutenção territorial. Estamos discutindo identidade na concepção de Godelier (2012, p. 15) que a define como “a cristalização no interior de um indivíduo das relações sociais e culturais no seio das quais ele/ela está engajado(a) e que ele/ela é levado(a) a reproduzir ou a rejeitar”. Essa definição tem como base o que Godelier concebe por território. Ele diz:
Designa-se por território uma porção da natureza e, portanto, do espaço sobre o qual uma determinada sociedade reivindica e garante a todos ou a parte de seus membros direitos estáveis de acesso, de
1Resumo recebido em 17/12/2021. Aprovado pelos editores em 08/01/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52619.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Professor no Instituto Federal de Rondônia - IFRO. Integrante do grupo Nómade na linha de pesquisa sobre Trabalho-Educação, Economia e Cultura na Amazônia. E-mail: william.souza@ifro.edu.br;
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0703023274968708. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6271-9422.
controle e de uso com respeito à totalidade ou parte de seus recursos que aí se encontram e que ela deseja e é capaz de explorar. (GODELIER, 1989, p. 107).
Nesse sentido, é importante apreendermos as relações entre economia e cultura, tendo em conta que “é essencial manter presente no espírito o fato de os fenômenos sociais e culturais não estarem “a reboque”, seguindo os fenômenos econômicos a distância: eles estão em seu surgimento, presos na mesma rede de relações” (THOMPSON, 2001, p. 208). As relações entre economia e cultura vão constituir os modos de vida.
A compreensão de como se constituem os modos de vida dos povos e comunidades tradicionais exige uma análise das mediações do capital, para compreendermos os conflitos e dilemas pelos quais passaram para chegar à atual situação, porque “a história do recente deslocamento da fronteira é uma história de destruição. Mas, é também uma história de resistência, de revolta, de protesto, de sonho e de esperança” (MARTINS, 2019, p. 132). Defender o modo de vida é defender a identidade de ser ribeirinho(a), beradero(a), extrativista, indígena, quilombola, enfim, é defender o seu território, que precisa de defesa porque “a história contemporânea da fronteira, é a história das lutas étnicas e sociais” (MARTINS, 2019, p. 132).
Nesse sentido, o objetivo da pesquisa foi analisar as relações educativas, econômicas, culturais, políticas e ambientais que conformam modos de vida em povos e comunidades tradicionais, tendo em conta as contradições entre capital e trabalho. Definimos 7 lócus da pesquisa. No Vale do Guaporé foram as Comunidades Quilombolas do Forte Príncipe da Beira e Santa Fé e a Reserva Extrativista do Rio Cautário (que tem no seu interior 6 comunidades), todas em Costa Marques. Em Porto Velho, beirando o rio Madeira, foram lócus a Reserva Extrativista do Lago do Cuniã, a Comunidade Ribeirinha de São Carlos do Jamari, e os Reassentamentos Morrinhos e Santa Rita. Com exceção dos reassentamentos todas as comunidades da pesquisa
são ribeirinhas. Em todas elas, os(as) moradores(as) praticam o extrativismo.
Começamos a problematizar o que entendemos como modo de vida e isto nos levou a definirmos algumas questões para o desenvolvimento da pesquisa.
A primeira questão é de ordem teórica e diz respeito à antropologia marxista. Pesquisamos sobre os apontamentos que, em um primeiro momento Marx e Engels e depois outros pensadores, sobretudo Thompson, nos indicam a possibilidade do materialismo histórico dialogar com e sobre povos e comunidades tradicionais.
Outra questão foi compreender em que medida os processos de reprodução da vida material e imaterial desses grupos de trabalhadores requerem a afirmação de modos de vida distintos do modo de produção capitalista. Isso nos levou a explicitar o que apreendemos como modos de vida.
Por modos de vida, compreendemos o conjunto de práticas sociais, econômicas e culturais compartilhadas por um determinado grupo social no processo de produção da vida material e simbólica. Como expressão da cultura, diz respeito aos costumes, tradições, valores, crenças e saberes que orientam as normas de convivência na vida familiar, no trabalho e na comunidade. Relaciona-se às maneiras de produzir, consumir e distribuir os frutos do trabalho, tendo em conta as formas de sentir e pensar a vida e o mundo. Os modos de vida manifestam as relações que seres humanos, mediados pela memória coletiva e por experiências vividas e herdadas, estabelecem entre si e com o território em que produzem sua existência. A afirmação de modos de vida é um elemento de resistência e negação de outros modos de produção da vida social.
A terceira questão estava relacionada à análise de como as relações educativas, econômicas, culturais, políticas e ambientais sustentam os modos de vida em povos e comunidades tradicionais, tendo em conta as contradições entre capital e trabalho na sua historicidade. Responder a essa indagação nos levou a constatar a relação que povos tradicionais têm com a natureza e o território e como o trabalho é o elemento mediador dessas relações. Embora havendo contradições, estas relações tendem a serem coletivas, baseadas em reciprocidade.
A última questão a nos preocupar era perceber como no cotidiano das comunidades se manifestam as contradições entre capital e trabalho, bem como as formas de afirmação/negação de seus modos de vida, enfim, como o modo de produção capitalista atravanca os processos de produção da vida material e imaterial das comunidades, na tentativa de tomar os territórios.
A hipótese desse trabalho é que para povos e comunidades tradicionais, a afirmação dos modos de vida é o elemento de estruturação de sua identidade e resistência frente às dificuldades da vida, e condição vital para a sua existência, a qual não pode ser pautada pela lógica dos processos de sociabilidade do capital. Portanto, se os agentes do empresariado capitalista conseguem interferir no modo de vida, isso enfraquece a resistência ao avanço do capital nos territórios.
Essa interferência se dá nas maneiras de produzir, consumir e distribuir os frutos do trabalho, dificultando a relação de povos e comunidades tradicionais com os seus territórios e com os que estão a sua volta. Ora, a relação com o território que são os rios, as terras, as florestas e tudo que há em seu entorno é central na constituição dos modos de vida dessas comunidades.
De acordo com os depoimentos recolhidos na pesquisa de campo, podemos afirmar que os modos de vida vão se constituindo como expressão da resistência ao capitalismo, cuja exploração do trabalho alheio é fonte de lucro. É uma outra possibilidade de estar no mundo. Por isso Toledo e Barrera-Bassols nos alertam,
Torna-se necessário volver o olhar para os povos originários, tradicionais ou indígenas, em cujos modos de vida é possível encontrar a memória da espécie. E é nessa memória que está boa parte das chaves para decifrar, compreender e superar a crise dessa modernidade, ao reconhecer outras formas de conviver entre nós e com os outros – entre os modernos e os pré-modernos e entre os humanos e os não humanos, isto é, a natureza ou as culturezas. (TOLEDO E BARRERA- BASSOLS, 2015, p. 18).
Sendo assim, devemos considerar os estudos sobre espaços/tempos das culturas milenares dos povos e comunidades tradicionais (TIRIBA; FISCHER, 2015) já que, embora submersas no contexto da acumulação flexível, suas práticas econômico-culturais preservam modos de vida calcada no trabalho coletivo e na apropriação coletiva de seus frutos.
Ao investigarmos as formas de resistência e afirmação dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais, encontramos um movimento de luta pelo Comum e, a despeito daqueles que vaticinaram o seu fim, povos e comunidades tradicionais aí estão, mostrando-se mais firmes do que nunca.
Pelo que indicam os depoimentos a sociabilidade de homens e mulheres se constrói pelo espírito de coletividade, na perspectiva de garantir a reprodução ampliada da vida. Como diria Thompson (2001, p. 194), no cotidiano de vida e trabalho, vão se tecendo as relações entre economia e cultura.
Essa tese procurou entender a maneira como trabalhadores, utilizando-se de suas experiências e seus saberes anteriormente adquiridos, conseguem um movimento de produção da vida que, não necessariamente, está pautado pela lógica capitalista dominante. Assim, configuram-se modos de vida singulares que são estabelecidos por laços de reciprocidade em que a finalidade é o bem comum da comunidade. Povos tradicionais lutam pela manutenção dos seus territórios, lugares
em que vivem em uma relação de respeito com a natureza, com os outros e consigo mesmo, e afirmam que:
Nós extrativistas queremos viver da maneira que vivemos. Claro que queremos ter melhorias, mas não queremos morar na cidade e não queremos ser empregados de uma fazenda. Vamos supor que aqui tivesse acabado o seringal e não tivesse virado RESEX. Muitos não iam querer viver aqui. A gente ia procurar outro seringal, outra RESEX. Porque a gente foi criado e gosta de viver assim, cortando seringa, catando castanha, pescando, plantando uma roça, essas coisas que a gente faz (Renato, RESEX do rio Cautário).
GODELIER, M. Lo ideal y lo material: Pensamiento, economías, sociedades. Madri: Taurus Humanidades, 1989.
. Comunidade, Sociedade, Cultura. Três modos de compreender as identidades em conflito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012.
MARTINS, J. de S. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2019.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
. Folclore, antropologia e história social. In: NEGRO, Antônio Luigi; SILVA, Sérgio (orgs). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
TIRIBA, L. e FISCHER, M. C. B. Espaços/tempos milenares dos povos e comunidades tradicionais: notas de pesquisa sobre economia, cultura e produção de saberes. In: Revista de Educação Pública. Cuiabá, v. 24, n. 56, p. 405-428, 2015.
TOLEDO, V; BARRERA-BASSOLS, N. Memória biocultural - a importância ecológica das sabedorias tradicionais. São Paulo: Expressão Popular. 2015.