V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X
Gessiane Nazario2
O presente artigo aborda os conflitos fundiários e a luta pela terra na comunidade quilombola da Caveira, situada no município de São Pedro da Aldeia, no estado do Rio de Janeiro. Enfatiza o evento por mim designado como “revolta do cachimbo”, pois ele marca a ruptura do pacto moral entre fazendeiros e moradores (descendentes de escravizados) da Fazenda Campos Novos, que estabeleceu novos padrões de subordinação da força de trabalho e ocupação da terra. Esse evento ocorre no contexto de loteamento da Fazenda Campos Novos e inaugura os esforços constantes (e violentos) dos fazendeiros de expulsão dos moradores que pagavam arrendamento para ter acesso à terra e casa. Apresenta também os desdobramentos históricos que culminaram na etnização do conflito fundiário, nos anos 1990, com a transformação das formas de expressão política fundamentadas na luta pela reforma agrária em luta pela reparação histórica dos danos coletivos causados pela escravidão.
Este artículo aborda los conflictos agrários y la lucha por la tierra em la comunidad quilombola Caveira, ubicada en el municipio de São Pedro da Aldeia, en el estado de Río de Janeiro. Destaca el hecho designado por mí como la "revolta do cachimbo", ya que marca la ruptura del pacto moral entre campesinos y residentes (descendientes de esclavos) de la Finca Campos Novos, que estableció nuevos estándares de subordinación de la mano de obra y ocupación de la tierra. Este evento se desarrolla em el contexto de la subdivisión de la Finca Campos Novos e inaugura los constantes (y violentos) esfuerzos de los agricultores por expulsar a los residentes que pagaron arrendamientos para acceder a tierras y casas. También presenta los desarrollos históricos que culminaron com la etnicización del conflicto agrário em la década de 1990, com la transformación de formas de expresión política basadas em la lucha por la reforma agraria em la lucha por la reparación histórica del daño colectivo causado por la esclavitud.
1Artigo recebido em 28/12/2021. Primeira Avaliação em 03/01/2022. Segunda Avaliação em 17/01/2022. Aprovado em 30/01/2022. Publicado em 28/03/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52713
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ/Brasil. É professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Rede Municipal em Armação dos Búzios. Pesquisadora e escritora da área de Educação Escolar Quilombola, Relações Étnico-raciais na escola, alfabetização de crianças quilombolas e formação de professoras(es)para uma educação multicultural e antirracista. Atua nos coletivos de Educação da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombola) e ACQUILERJ (Associação das Comunidades Quilombola do Estado do Rio de Janeiro). Quilombola da Rasa, em Armação dos Búzios, RJ.
E-mail: gessiane.ambrosio@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9026694135300954. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5472-8107.
This article adresses land conflicts and the struggle for land in the Caveira quilombola community, located in the municipality of São Pedro da Aldeia, in the state of Rio de Janeiro. It emphasizes the event that I have designated as “revolta do cachimbo”, as it marks the rupture of the moral pact between farmers and residents (descendants of slaves) of Fazenda Campos Novos, which established new patterns of subordination of the work force and occupation of the land. This event takes place in the contexto of the subdivision of the Campos Novos Farm and inaugurates the constant (and violent) efforts of farmers to expel residentes who paid leases to gain access to land and houses. It also presentes the historical developments that culminated in the ethnicization of the land conflict in the 1990s, with the transformation of forms of political expression based on the struggle for agrarian reform into a struggle for the historical repair of the collective damage caused by slavery.
À margem da rodovia Amaral Peixoto, na região dos Lagos do RJ, está a comunidade quilombola da Caveira, no município de São Pedro da Aldeia. Seu nome intrigante, Caveira, é parte de sua envolvente história vivida por pessoas descendentes de escravizados que encontraram no trabalho da terra o sentido para suas sobrevivências. A própria história de construção dessa rodovia se confunde com a luta dos quilombolas da Caveira pelo seu território. A estrada é o caminho principal que liga as cidades do Rio e Niterói às cidades da Região dos Lagos e a Campos dos Goytacazes no norte fluminense. Os turistas que passam por ela rumo aos seus destinos de lazer nas cidades litorâneas do Rio mal sabem o que sucedeu às famílias descendentes de escravizados décadas atrás, hoje reconhecidos como quilombolas. Como me lembrou o Sr. Afonso em entrevista para a minha pesquisa de doutorado: “Só as bananeiras sabem das lutas que se travaram ali”. Nas margens dessa estrada, vemos os quintais do Sr. Afonso e do Sr. Genil. Paralela a ela, encontramos a casa da grande liderança, já falecida, Dona Rosa Geralda da Silveira, uma das importantes protagonistas da luta pela terra na Região dos Lagos.
Falar da luta pela terra na Caveira, enfatizando o evento da revolta do cachimbo, é falar da trajetória daquelas famílias que por sua persistência permaneceram até hoje naquela localidade. O processo de urbanização e turistificação das cidades da Região dos Lagos custou a vida e dignidade de muitos lavradores e quilombolas. Essa história pouco contada, ou seja, a história dos
3 Este artigo é uma versão de uma parte da minha tese de doutorado sobre a Comunidade Quilombola da Caveira, no contexto da sua luta pela terra e pelo direito a educação defendida em Junho de 2020 (NAZARIO, 2020).
considerados vencidos, é silenciada nos veículos de divulgação como sites de prefeitura e turismo. Escrever sobre eles é como voltar a esse tempo e trazer à tona a verdade sobre os acontecimentos históricos, ocultada pela versão oficial da história na região. Caveira foi assim nomeada, pois naquela região se enterravam cadáveres de pessoas e animais em covas rasas que, com o tempo, suas caveiras ficavam expostas. Caveira é uma das fazendas que faziam parte da grande Fazenda Campos Novos no antigo Cabo Frio. Esse local é o berço da luta pela terra dos quilombolas na Região dos Lagos do Rio de Janeiro. Uma luta que é travada ainda hoje. Para entender sua trajetória histórica pela terra, precisamos entender o que foi a Fazenda Campos Novos.
O presente texto então foi organizado de forma a apresentar ao leitor a historicidade da luta pela terra na Comunidade Quilombola da Caveira, em São Pedro da Aldeia, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Os conflitos de luta pela terra se desenrolaram no antigo complexo agrícola da Fazenda Campos Novos. Nesse sentido, procurei iniciar o texto com o episódio que deflagra os conflitos entre o Marquês e os trabalhadores o qual designei como “A Revolta do cachimbo”. Na sessão seguinte, procuro realizar uma reflexão sobre os processos de ruptura do pacto moral que havia entre os ex-escravizados e os fazendeiros desde o pós-abolição e os desdobramentos que essa ruptura provocou nas relações de trabalho vigente. Também descrevo os processos de mudança nas categorias identitárias reivindicadas pelo próprio grupo até se autodesignarem enquanto quilombolas a partir do artigo 68 da Constituição de 1988.
As terras da fazenda Campos Novos foram doadas aos padres da Companhia de Jesus (os jesuítas), em 1617, pelo então capitão-mor de São Pedro de Cabo Frio, Estevam Gomes. Inicialmente, os padres recrutavam indígenas para trabalharem na fazenda de gado que se formava naqueles “novos campos”. Nesse mesmo período, com a chegada dos africanos cativos ao longo dos séculos XVII e XIII, a mão de obra escrava é intensificada na região de Cabo Frio. Com a expulsão da Companhia de Jesus pelos portugueses em 1758, a fazenda e as famílias negras que ali viviam foram colocadas “na lista de bens e utensílios apreendidos pela Fazenda Real”. Nessa
ocasião, a fazenda é renomeada como Fazenda D’EL Rey e posta para leilão público, sendo arrematada por Manoel Pereira Gonçalves em 1759. A partir desse momento, é iniciado o processo de desmembramento daquelas terras estabelecendo lotes em menor escala administrados por foreiros e outros tipos de concessões como Itahua, Angelim, Fazendinha e Piraúna. Essas fazendas são importantes para a compreensão da história local, pois foram fundamentais para a configuração da estrutura do tráfico ilegal de escravizados na região (LUZ, 2013).
Na segunda metade do século XIX, grande parte da fazenda Campos Novos, que já estava bem fragmentada, pertencia ao Reverendo Joaquim Gonçalves Porto. Com a desarticulação do tráfico ilegal de escravizados, a fazenda segue como um grande complexo agrícola que abastecia a cidade do Rio de Janeiro com a utilização da mão de obra cativa. Com a morte do reverendo, os processos de apropriação da fazenda se intensificaram e assim prosseguiu até o início da década de 1920, quando Eugenio Honold adquire a vasta propriedade e agrega ao patrimônio de sua empresa: a Companhia Odeon. Eugenio Honold manteve os descendentes daqueles escravizados como seus “colonos”4, pagando o dia para morar e fazer roça. Honold submeteu a fazenda a várias negociações, atraindo posseiros e trazendo muitos problemas para os descendentes dos escravizados. A fazenda era administrada por seu filho George Honold, que falece em 1949 num acidente de carro. Eugenio falece no ano seguinte. Sendo assim, seu neto Luiz Honold Reis, em 1952, passa a direção da fazenda para Antônio Paterno Castelo, “o Marquês”, lembrado com muito pesar pelos mais velhos das comunidades quilombolas. Desde a construção da Rodovia Amaral Peixoto, rodovia que liga o município de Niterói a Campos dos Goytacazes, a Região dos Lagos passou a ser frequentada por veranistas, o que impulsionou a Companhia Odeon a intensificar a venda dos lotes (ACCIOLI, 2018; NAZARIO, 2020). A Fazenda Caveira fazia parte do complexo agrícola Campos Novos. Campos Novos foi comprada pelo alemão Eugenio Honold na década de 1920, muito lembrado pelos anciãos das comunidades quilombolas que por ele foram explorados como “colonos” “pagando o dia para morar” (ACCIOLI, 2018, p. 27). No ano de 1952, acontece uma Assembleia Geral da Companhia Agrícola de Campos Novos, dirigida por Luiz Honold Reis. Ali foi lido um instrumento de ajuste lavrado com a companhia
4 “Colonos” era o termo utilizado pelo fazendeiro, Honold, nos documentos de negociação de compra e venda das terras da fazenda Campos Novos para designar os arrendatários.
Odeon que pertencia a Otávio Monteiro Reis, pai de Luiz Honold Reis. Nessa transação, a administração da Fazenda foi passada para Antonino Paterno Castello, italiano, e José Victor Rodrigues, brasileiro. Caveira ficou sob o comando de Antônio Paterno Castello, lembrado como Marquês pelos trabalhadores negros que possuem tristes lembranças sobre esse período.
Quando o Marquês comprou a fazenda, ele chegou aqui querendo colocar um clima de... de escravo. Qual é o clima de escravo dele? Ele começou logo proibindo as pessoas de fumar, coisa que na roça quase todo mundo fumava cachimbo e cigarro. Entendeu? E com um monte de exigência. E cê vê que daqui ia um grupo de Botafogo fazer renda lá e chegou lá o Marques mandou que um velho chamado Marcelo [inaudível] botasse o cachimbo fora, ele não queria que fumasse. Aí o pessoal foi…não, o pessoal foi não, proibido fumar, tô acostumado fumar. E aí o que que fizeram? Reuniu um grupo, no outro dia quando foram pagar renda, na outra semana, quando foi pagar renda, aí foi todo mundo… mesmo aquele que não fumava levaram cigarro. Se ele mandar embora um, vai mandar todos. Chegou lá ele… aí digo oh, então o senhor vai mandar embora a todos. Aí conclusão, ele não aceitou, aí vieram todo mundo embora. Se eles viessem embora e não pagasse a renda daria condições dele despejar a gente da terra. Então um órgão em Cabo Frio, uma receita, uma coisa assim, uma coletoria federal. Antes de receita federal era coletoria federal, se não me falha a memória. E que então… E em Botafogo, no caso, era um lugar que a gente era atacado por fazendeiro, mas tinha aqueles político dentro de Cabo Frio que sempre vinha em defesa das pessoas. Era uma defesa que defendia na hora, mas quando cabava dali ninguém resolvia nada o problema da terra. Aí o Marquês vendo que ele… aí ele vendo que se a gente não pagasse a renda era um caminho pra que ele pudesse botar... então o político arrumô pra que nós pudesse botar o dinheiro lá na coletoria e convidar o Marquês pra receber o valor real dos dois dias por mês em dinheiro que era o valor dos dia que ele pagava a cada cidadão. Entendeu? Só que o Marquês não quis receber, pra poder ocasionar o direito dele vim e criar o despejo. Como ele não foi receber, aí o prefeito da época falou “já que ele não quer receber”. Pagamos durante dois anos esse dinheiro. Aí ele mandou o pessoal ir lá e o pessoal repanharam o dinheiro que tinha depositado. Ele vendo que não tinha condições mais de tirar o povo, o que que ele fez, ele começou a soltar boi na roça do povo, a roubar a carga do povo, criou um grupo de jagunço que perseguia o povo. Entendeu? (Sr. João, entrevista concedida a Gessiane Nazario, em 09/10/2019)
Na década de 1950, havia muitas plantações de banana e café segundo a memória oral dos mais antigos da comunidade quilombola da Caveira. A principal atividade econômica na região de Cabo Frio e seus distritos era a agricultura e não a
pesca como rezam as companhias de turismo de Armação dos Búzios. Os episódios de conflito com os fazendeiros e tentativas de expulsão, muitas vezes bem sucedida, aconteceram com mais intensidade e crueldade durante a gestão do Marquês, que queria expulsá-los para iniciar o processo de loteamento das terras e inseri-las no mercado imobiliário. As recordações sobre esses episódios permanecem vivas na mente desses mais velhos que lembram, com muito pesar nos olhos e riqueza de detalhes, a forma como tinham de ir de um lugar para outro em busca de um local de refúgio e subsistência. A tentativa de expulsão ocorreu através de várias estratégias como atear fogo nas roças, soltar bois nas roças e nos quintais das casas e jagunços andando nus nos quintais das famílias para intimidá-los. Existem vários relatos sobre tais conflitos que esses mais velhos vivenciaram. Na comunidade quilombola da Rasa, em Armação dos Búzios, muitos tiveram de deixar suas terras e ir embora para outras cidades mais próximas em busca de trabalho: quando não saía a família inteira, pelo menos um membro saía para buscar outros meios de subsistência (NAZARIO, 2015). Algumas famílias da Rasa que foram expulsas foram viver junto aos moradores da Caveira e Botafogo (na região conhecida como restinga). Já na comunidade da Caveira, houve uma peculiar resistência das famílias, pois eles se organizaram e fundaram o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Pedro da Aldeia e Cabo Frio, tendo a figura de dona Rosa Geralda da Silveira como uma importante liderança na construção dessa resistência aos ataques dos fazendeiros.5
“Fizemos a associação dos lavradores pra poder fugir do cativeiro. Nós fomos fazer o grupo pra tirar a corda do pescoço, que ser escravo de fazendeiro e pagar quantia por mês não é brincadeira, não” (Dona Rosa). Observamos aqui a memória da escravidão articulada a categorias do sindicalismo rural. A linguagem política da reparação histórica ainda não se sobrepõe ao vocabulário de demandas pela reforma agrária. É preciso assinalar que esse depoimento da Dona Rosa é bem anterior ao quadro institucional instaurado com a Constituição Federal de 1988, quando critérios
5 Na comunidade da Caveira, antes de reivindicarem seu território como quilombola, já havia uma unidade de organização que era a Associação dos Moradores da Caveira e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do qual muitos eram filiados. A principal liderança da comunidade foi uma mulher que ainda hoje é saudosamente lembrada, seu nome era dona Rosa Geralda da Silveira. Foi a primeira mulher a integrar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Pedro e Cabo Frio e a primeira a ir à feira vender seus produtos diretamente, eliminando a figura do atravessador. Informações retiradas de uma entrevista de Dona Rosa à Revista do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) como parte do projeto Memória Viva; Documentário “A Conquista- Projeto Autodoc do IPHAN-RJ na Região dos Lagos” e de conversas com alguns quilombolas da comunidade registradas em meu caderno de campo.
étnicos de mobilização e representação política reconfiguraram os conflitos fundiários que envolviam o campesinato negro.
Dona Rosa se refere a “abençoada luta da terra” em contraposição aos “amaldiçoados grandes grileiros”, enfatizando a perseguição que sofriam nomeando os seus algozes -Antônio Paterno, Dácio Pereira, Félix Valadares e João Zeca – e aqueles companheiros de luta que foram assassinados como Sebastião Lan, Manoel Mangueira e Elísio. Foi a partir dos anos 1950 que se iniciou o processo de expulsão das famílias dos agricultores sob o comando do Marquês, mas não podemos esquecer que o Marquês era empregado da companhia Odeon que pertencia a uma rica família da alta sociedade do Rio de Janeiro. A companhia Odeon pretendia iniciar o loteamento das terras da fazenda para o mercado imobiliário, pois a abertura da Rodovia Amaral Peixoto, na década de 1940, havia facilitado o acesso à região aumentando o número de visitantes (ACIOLLI, 2018).
O patriarca da família Honold morre em 30/06/1950 (Correio da Manhã, 08/07/1950). Seu filho George Honold, a quem o pai havia atribuído à administração da fazenda, faleceu um ano antes, em 09/02/1949. A administração de Campos Novos passa então ao neto de Eugenio, Luiz Honold Reis, filho de Octávio Reis e Regina Honold Reis. Luiz Honold era mais um típico playboy burguês, mergulhado até a alma na vida mundana da elite capitalista brasileira, despreocupado com o “árduo” trabalho de acumulação do capital econômico familiar. Seus investimentos privilegiados destinavam-se mais a conservar e ampliar o patrimônio simbólico (o nome) da família, através da ostentação de uma ociosidade aristocrática, na esfera das redes de sociabilidade e consagração (festas, cerimônias) das marcas de distinção da alta burguesia.
A morte de George Honold é um marco tanto na história quanto na memória da relação dos entrevistados da Caveira com os fazendeiros. Inclusive, delimita dois períodos: um no qual havia uma relação “harmoniosa” com os Honolds (“Ele não incomodava aqui”) e outro marcado por violências e arbitrariedades na época do Marquês. Quando digo “harmoniosa” não me refiro a ausência de conflito ou subordinação da força de trabalho, mas a um tempo em que imperava um pacto moral de convivência entre fazendeiro e os moradores da fazenda que tinham acesso à terra (a casa e a roça) em troca de serviços prestados ao dono.
O Sr. Genil Silveira Dutra guarda a seguinte lembrança de George Honold:
Seu Marquês comprou de seu Jorge, filho do Sr. Honold. seu Jorge morreu de acidente de carro. Seu Jorge cheguei a lembrar dele. Dizem que ele era muito devoto. Ele sentava pra orar... na época de festa de Campos Novos, ele ajudava muito na festa de Santo Inácio. Campos Novos era uma vila. Quem acabou com a vila de dentro de Campos Novos foi esse italiano Sr. Marquês. [...]
Seu Marquês veio da Itália. Sr. Jorge morreu... eu não sei quem que vendeu a terra... Seu Marquês veio pra cá pra dar serviço a muita gente. Então, o que ele fez: ele arrumou um tal de contrato, pra o pessoal assinar um contrato e... aí saíram com aquele contrato. Algumas pessoas assinaram... muita gente assinaram! Todo aqueles que assinaram o contrato, ele botou todo mundo na rua! Botou boi na roça... botou todo mundo na rua! Só quem não assinou esse contrato foi o veio Negozinho, meu tio, e Sílvio [Silveira]. Sílvio, na época, ele tinha, ele tinha ido ao Rio e aprendeu muitas coisas lá... algumas coisas com as pessoas que sabiam o que era direito. Quando ele casou veio morar aqui, e na época a gente... o Marquês botou placa de loteamento de lá Santa Margarida, em Unamar, até ali, ó! Pra lotear. As únicas pessoas que não assinaram contrato foi o pessoal daqui de Botafogo. Todos aquele que assinou, ele botou tudo na rua! Botou boi na roça, pintou o sete.(Entrevista concedida a Gessiane Nazario, em 30/09/2019 apud Nazario, 2020, p. 103 e 104).
O Sr. Genil fala de George Honold como alguém integrado com a comunidade, que participava das festas de Santo Inácio e demonstrava uma conduta devota com o santo. A esfera religiosa é mencionada como lócus de aproximação entre fazendeiros e colonos. Nessa entrevista, o Sr. Genil já desenha a nova situação com o loteamento e a imposição de novas relações de trabalho na fazenda: “Ele arrumou um tal de contrato”; como também a estratégia de expulsão ao soltar “os bois na roça”, destruindo as plantações. Ele aponta Botafogo como a origem da resistência, o “pessoal de Botafogo” que não assinaram contrato; e como personagens principais nesse ato de insubmissão, o seu tio Negozinho e Sílvio, seu cunhado e presidente da associação de lavradores, que “sabia o que era direito” por ter morado no Rio de Janeiro, onde aprendeu muitas coisas. A organização em moldes associativistas, em torno da categoria de lavrador, remete a uma percepção dos conflitos em termos de sentimentos de injustiça e indignação diante de direitos violados.
O tempo do Marquês é caracterizado pela ruptura unilateral com esta economia moral que legitimava vínculos e relações de obrigação e favores assimétricos (um sistema de subordinação da força de trabalho), expressos no direito à moradia e roçado nas terras do patrão (THOMPSON, 1998). A socióloga Leonilde Medeiros
(2018) aponta este fenômeno em um plano mais geral das lutas camponesas no Brasil. Mediadores elaboram uma linguagem política na qual as privações locais são universalizadas em demandas por direitos.
São situações diferenciadas no tempo e no espaço que confluem para um rápido processo de expropriação, onde concepções de direito à terra eram constantemente colocadas em questão. É recorrente, tanto nos depoimentos colhidos ao longo da pesquisa quanto na bibliografia, a menção à quebra de relações estabelecidas e sentimento de indignação e revolta. Potencializando esses sentimentos e contribuindo para conformar noções de justiça e injustiça, bem como do que era legal e ilegal e da necessidade de resistir às transformações em curso, foi fundamental a ação de mediadores políticos vários, com destaque para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), organizações ligadas à Igreja Católica, agentes da política institucional (governadores, deputados), grupos de advogados etc. Essas mediações forneceram uma linguagem comum a partir da qual as demandas e estratégias se expressaram, condições materiais e intelectuais para que a resistência se fizesse, articularam os conflitos particulares a bandeiras e lutas nacionais (MEDEIROS, 2018, p. 52).
Sendo assim, o tempo do Honold é idealizado, pois os conflitos são esquecidos diante de uma memória potente e arrasadora, que sustenta uma narrativa de conflitos pretéritos urdida em uma linguagem de direitos fundiários, enunciados em torno das categorias de grileiro e posseiro. As violências perpetradas pelo Marques, por Dácio e seus seguidores eram não só materiais, mas também simbólicas, pois abalavam os parâmetros cognitivos e éticos de sustentação do mundo da vida cotidiana herdados desde a pós abolição e que ditavam os termos costumeiros da permanência nas terras onde moravam e da experiência social de ex-escravos e seus descendentes. A representação política e mobilização coletiva em torno das categorias posseiro, lavrador e trabalhador rural, sob a forma de associação civil e sindicato, forneceu uma linguagem pública para expressão de sentimentos de privação e sofrimento, assim como repertórios de ação e alianças, diante da ruptura dos padrões morais de subordinação da força de trabalho e acesso à terra.
Um fato culminante na história dos moradores da Caveira que mudou a forma como o trabalho estava configurado foi quando, na década de 1950, o Marquês queria impor regras mais duras e proibir os lavradores6 que fumassem o cachimbo e
6 Termo usado por Dona Rosa para se referir ao seu próprio grupo, categoria social de mobilização constituída no âmbito do movimento sindical rural.
estabelecer horários até mesmo para urinar e beber água. Em ato de resistência, os mais velhos retiraram o cachimbo do bolso e começaram a fumar. O Marquês ordenou que eles retirassem o cachimbo da boca e voltassem ao trabalho e, um deles, o Sr. Marcelino, respondeu que ele estava em seu tempo de descanso e que não iria retirar o cachimbo da boca. O Marquês ao se reportar em direção ao Sr. Marcelino parou quando percebeu os outros lavradores se posicionarem ao lado dele, do senhor Marcelino, para defendê-lo. O fazendeiro, raivoso, ordenou que ele não pisasse mais em suas terras. Quando foram embora, eles se reuniram e, juntos, decidiram não mais pagar suas terras cultivando as do fazendeiro, mas sim, pagando em dinheiro o dia de trabalho. A proibição do fumo do cachimbo foi a gota d’água, somada às outras regras mais duras e, também, ao fato do Marquês não querer dar o recibo do dia do arrendamento, como eles começaram a exigir. A proibição ao cachimbo foi o estopim para deflagrar a organização e união do grupo que culminou na criação da associação.
Sr. Genil Silveira Dutra fez um relato impressionante sobre este evento:
O pessoal saía daqui pra pagar renda lá! E, ele botou uma lei pra que ninguém podia fumar no serviço. O pessoal de lá de Campos Novos respeitaram. De outra região respeitaram... só quem não respeitou foi o pessoal daqui. Aí reuniu todo mundo pra ir pagar renda e foram todo mundo. Aí, meu tio Negozinho, os filhos não fumava, então ele disse assim: ó, criança, vocês nunca fumaram na minha vida, mas toma cada um, acende seu cigarro, pode fumar! Aí quando viram o jipe do Marquês vindo lá, o velho Severino acendeu o cachimbo, o velho Marcelo que morava lá, acendeu o cachimbo... e cada um tá tocando o serviço acendia, fumava o cigarro. Ele tinha um filho chamado José… Giusepe, em italiano é Giusepe: Severino tira o cachimbo da boca! [diz seu Genil imitando o sotaque dele]. Aí o velho Severino: Eu não tiro o meu cachimbo! Aí o velho Marcelo: Marcelino tira o cachimbo! “não tiro!”. Tira! Não tira! Tira! Não tira...
Todo mundo pro escritório! Aí foi. Aí todo mundo fechando na porta do escritório. Chegou lá: Marquês! Você é italiano, Marquês! Nós somos brasileiros! Você não tá pensando que tá na Itália, não, Marquês? O senhor tá aqui no Brasil! Aí subiu todo mundo, invadiram o escritório. Invadiu, invadiu e o Marques, ó, pá! [faz sinal de escape, batendo a mão uma na outra]. Se escondeu. Aí de lá ele falou pra secretaria dele, que era a dona Regina, filha do Joaquim Português: Regina, dá recibo a todo mundo. Dá recibo. Não quero saber de mais ninguém aqui! Teve que dar o recibo a todo mundo, mandou todo mundo embora!
Aí, nós tinha o professor Edilson Duarte (...) Edilson Duarte ele era advogado e era professor. Então, ele era muito conhecido daqui. Ele entrou e falou pro pessoal daqui fazer o seguinte: vocês fazem o seguinte, ele não quis receber a renda de vocês, vocês depositam o dinheiro no banco! Naquela época, não sei quanto era por dia... cada dia era negócio de cinco, dez mirreis por dia. Então, a pessoa tinha que pagar 4 dias por mês. É um dia de semana, quatro dias por mês.
Então as pessoas pegava aquele dinheiro, ia no Banco do Brasil depositar pra ele retirar lá. [...] (Entrevista concedida a Gessiane Nazario, em 30/09/2019).
Os quilombolas da Caveira possuíam uma noção legitimadora, apoiada na crença de que estavam defendendo um costume, de fumar o cachimbo, mobilizando o consenso mais amplo da comunidade. As queixas operavam dentro de um consenso popular a respeito do que eram as práticas legítimas e ilegítimas, havia um pacto moral tácito, orientando as atitudes recíprocas entre fazendeiros e lavradores. O diálogo com a noção de economia moral do historiador E. P. Thompson (1998) é pertinente para elaborar um quadro analítico que permita compreender melhor a significação sociológica deste evento na construção social de disposições contestatórias e como fator de mobilização, pois percebi que tal episódio é paradigmático na memória das lutas pela terra. É importante também destacar que E. P. Thompson (1998) opera com reformulações do conceito de cultura e tradição, opostas a uma abordagem estática e a-histórica dos fenômenos sociais. O costume é a cultura, sendo conscientemente mobilizada e objetivada (pela noção de hábitos ou usos legitimados pela antiguidade), em contextos de lutas sociais normativamente configuradas. A cultura é subjacente ao conflito, mas o conflito também é subjacente à cultura, ambos se determinam mutuamente.
[…] Por isso o costume não codificado – e até mesmo o codificado – estava em fluxo constante. Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra “tradição”, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. […] Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos, em que há uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa – por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa – assume a forma de um “sistema”. E na verdade, o próprio termo “cultura”, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições dentro do conjunto. [Aspas do autor] (THOMPSON, 1998, p. 16-17).
Valores e crenças que regem os conflitos também podem se tornar objeto de disputas, enquanto outros operam silenciosamente, mas não de modo homogêneo, enquanto senso prático do jogo. Sendo assim, os costumes ou tradições (nos seus significados sociais historicamente estabelecidos) podem ser incorporados (ou confrontados) pela legislação, o chamado direito formal, conscientemente
reivindicados para a afirmação da cidadania. É muito próximo do uso teórico e metodológico do historiador marxista Eric Hobsbawn (1984) ao conceito de tradição. O tradicional (ou costumeiro) não se opõe à modernidade, pois o que é considerado tradicional (comportamentos, crenças, instituições) pode ser produzido ou reivindicado no presente como uma resposta a mudanças percebidas difusamente como aceleradas, abruptas, impostas e injustas; em tempos concebidos como “modernos”, gerando uma sensação coletiva de continuidade com o passado que legitima direitos pela sua presumida antiguidade. Tradições, costumes e memórias são produzidos como políticas identitárias de grupos em situações de conflito para fortalecer laços de solidariedade e senso de pertencimento que mobilizam sentimentos e razões para a resistência e a luta.
O tempo do Marques é um tempo de ruptura com a economia moral da época dos Honolds e de estabelecimento de um regime de terror que será prolongado com a atuação de Dácio Pereira de Souza, outra personagem proeminente na memória dos conflitos fundiários na Caveira e em toda região da Campos Novos. No final dos anos 1950 e 1960, se consolida a percepção pública sobre a concentração da propriedade fundiária como um problema e novas categorias de apreensão do mundo rural emergem: como lavrador, posseiro e grileiro. A reforma agrária adquire ampla importância no debate público e o sindicalismo rural, como forma organizativa das lutas pelo acesso à terra e por direitos trabalhistas, assume uma força considerável no cenário político nacional.
Os lavradores de Botafogo-Caveira se organizam primeiro em associação e depois em sindicato. Nos anos 1950 e 1960, os camponeses e trabalhadores rurais surgem como atores políticos e sujeitos de direitos, portanto, como categoria de mobilização coletiva ligados a noções de injustiça social (GRYNSZPAN; DEZEMORE, 2007, p. 217). Nos anos 1960, continuaram as denúncias contra as arbitrariedades cometidas contra os lavradores. O presidente da recém criada Associação de Lavradores de São Pedro da Aldeia, Sílvio Silveira, denunciava, num jornal de grande circulação, as pressões dos fazendeiros concretizadas através de destruição de plantações com a conivência da polícia militar (Jornal do Brasil, 26/08/1961). Em 1961,
foi criado o Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia, substituindo a Associação de Lavradores criada dez anos antes (MAIA, 2018). Com o Golpe de 1964, o sindicato é fechado e reaberto nos anos 1970, porém não mais unificado, mas em duas organizações com áreas de atuação distintas: uma para São Pedro da Aldeia e outra para Cabo Frio.
Os conflitos fundiários na Fazenda Campos Novos tiveram uma nova configuração com o Golpe de 1964 e a ditadura militar, agravando mais ainda o regime de terror, pois as violências cometidas pelos fazendeiros tiveram a colaboração das autoridades policiais e militares. Nesse cenário, a repressão sobre os camponeses se justificava, segundo os grileiros, pela atribuição a eles do rótulo de “comunista. Nesse contexto histórico, a violência e a repressão (prisões, torturas e assassinatos) tornaram-se políticas de Estado e o estado de exceção se tornou regra, se institucionalizou. O trabalho do tempo ainda está se operando na consciência dos sujeitos envolvidos (quilombolas da Caveira), fazendo oscilar a narrativa sobre as lutas e sofrimentos do passado entre o dizível e o indizível, o lembrado e o silenciado (POLLACK, 1989). Falar sobre aqueles embates para algumas pessoas na Caveira ainda é uma forma de vivenciá-los novamente, portanto, a expressão dessa memória não é fácil, são emotivamente carregadas, principalmente para aqueles que foram presos e torturados. Essa memória é personificada nesses mais velhos e celebrada nas festas de aniversário e homenagens que são feitas para eles. A memória de traumas coletivos pode fundamentar identidades coletivas através de narrativas políticas e morais socialmente construídas, no presente, na linguagem de direitos etnicamente diferenciados (POLLACK, 1989).
Meses depois da instalação da ditadura militar, o Última Hora (04/07/1964) já destaca na sua manchete sobre a situação do conflito fundiário em Campos Novos como um “regime de terror” imposto por “grileiros” e “capangas” chefiados pelos “pretensos donos” Dácio Pereira [de Souza] e José Gringo. O cenário descrito é extremamente grave, implicando a continuidade de um repertório de ação no qual o uso sistemático da violência, com a conivência de delegados e policiais militares, realmente corresponde a imposição de um regime de terror: incêndio de casas, tratores e gado destruindo roças, espancamento de adultos e crianças, prisões arbitrárias, tortura… Podemos pensar nesse regime de terror como um padrão de relacionamento imposto por grileiros a posseiros (enquanto categoriais que remetem
a posições sociais) que marcam a existência social na Fazenda Campos Novos, pelo encadeamento de experiências e narrativas de sofrimento que rompem frequentemente com o cotidiano.
As Comunidades Quilombolas da Região dos Lagos configuram sua origem étnica a partir de uma memória ligada aos processos de escravização nas terras da Fazenda Campos Novos. Após a abolição da escravidão, a Fazenda Campos Novos passa por um intenso processo de fragmentação e desmembramento de seu território tendo sucessivos donos. Os nomes mais evocados pelos mais antigos das comunidades quilombolas em questão são o de José Gonçalves, o alemão Eugene Honold e o italiano Antônio Paterno, este último lembrado pelos mais velhos como Marquês. Segundo a memória oral da referida comunidade, após a abolição da escravidão, as famílias negras passaram a morar nas terras da Fazenda pagando arrendamento com um dia de trabalho por semana a esses fazendeiros. Esse processo em que famílias de trabalhadores negros explorados em regime de arrendamento consolida um campesinato negro sob um regime de dependência e subordinação das condições de reprodução socioeconômicas dos grupos domésticos.7 A partir da história da comunidade da Caveira, é possível refletir sobre a questão da construção e ressignificação do termo “quilombola”. A construção identitária dos quilombolas da Caveira está inserida no campo acadêmico das questões de conflitos agrários que remetem a agentes que se atribuem um passado comum em situação de escravidão e a formas diferenciadas do uso dos recursos naturais. Os conflitos agrários vão se dar em diferentes aspectos de acordo com a particularidade histórica de cada lugar.
O cenário pós 1988 apresentou, então, um quadro institucional favorável a luta das comunidades negras rurais (e urbanas também) em defesa da manutenção das terras que ocupavam ou da recuperação daquelas que lhes foram expropriadas. Os conflitos fundiários envolvendo tais coletivos adquiriram outra configuração, pois agora tinham como elemento central as demandas morais de reconhecimento identitário sustentados na busca por reparação histórica. No relatório antropológico de identificação da área quilombola da Caveira, temos a informação sobre as assembleias que ocorriam em 2004, quando ainda existia a Associação de Moradores de Botafogo-Caveira, na qual reivindicaram a titulação do seu território. Em 1998,
7 Para maiores informações sobre campesinato negro cf. GOMES, 2015; e ALMEIDA, 2008.
foram realizados estudos de reconhecimento étnico promovidos pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). Exatamente naquele ano das assembleias da associação, a FCP emite a certificação de autorreconhecimento da Comunidade Caveiras/Botafogo como “remanescentes de comunidades quilombolas” em 17/06/2004. Nessas assembleias, aconteceu o ritual político (o batismo) de conversão pública dos posseiros e lavradores em quilombolas da Caveira, ou de etnização8 definitiva do conflito fundiário na Fazenda Campos Novos. Os estudos antropológicos de identificação e delimitação do território da comunidade de remanescentes de quilombo da Caveira aconteceram nos anos de 2008 e 2009 (LUZ, 2009).
O direito de fumar o cachimbo é um símbolo da ruptura do pacto moral que regia as relações entre fazendeiros e o campesinato negro na Fazenda Campos Novos: “Ele começou logo proibindo as pessoas de fumar, coisa que na roça quase todo mundo fumava cachimbo e cigarro”. O conflito é deflagrado pela agressão a um costume apreciado coletivamente (um valor moral), uma afronta à dignidade camponesa. É um expediente verbal de enunciação da memória da resistência camponesa, mas é também o recurso simbólico de expressão e compreensão do confronto entre duas modalidades de (re)produção da vida social. Por isso, nos relatos orais sobre tal acontecimentos, os camponeses da Caveira se referem a ele como o “tempo do Marquês”, o “tempo do cativeiro”, “o tempo do loteamento” em contraposição ao “tempo dos Honold”, “tempo da harmonia”, “tempo da fartura”. Também são tempos opostos em termos de autonomia e dependência: “Nós não fomos empregados deles aqui, não. O pessoal só pagava a renda”. A metáfora da escravidão, a alegoria moral de injustiça, é acionada não para o período logo posterior a abolição, marcado pela ausência ou baixa frequência dos fazendeiros até a morte de George Honold e “venda” da fazenda, feita por Luiz Honold ao Marquês. Na
8 “O que estou chamando de etnização refere-se a esse congelamento da identidade no âmbito de ideologias étnicas que podem inscrever-se na ossatura institucional do Estado e das redes de movimentos sociais e organizações civis. Tais ideologias étnicas baseiam-se em uma consciência reflexiva da cultura e fundamentam esforços deliberados de revitalização cultural em comunidades argumentativas em que a “ancestralidade” precisa ser representada convincentemente diante de interlocutores difusos” (PERES, 2013, 36).
memória dos quilombolas da Caveira é quando foi inaugurado o conflito com os fazendeiros e todas as violências e crueldades cometidas contra eles. É quando a solidariedade dos grupos se expressa mais incisivamente, depois assumindo uma forma associativa de organização política. “Então tira o cachimbo da boca! Tira o cachimbo da boca!”, o cachimbo como signo dos direitos (nesse caso, ao descanso) agressivamente atacados pelo fazendeiro, como o Outro antagonista, categoria informada e incorporada na memória pela experiência sindical passada. “Era os 15 minutos que ele... a lei daria o direito a ele”, cabe destaque às referências ao direito e a lei. Na verdade, trata-se do direito e lei no sentido costumeiro (usos ou hábitos), mas no seio de uma memória perpassada pela experiência sindical na qual o quadro normativo estatal (sistemas legislativo e judiciário) eram acionados nos conflitos.
Nos depoimentos também observamos a reação camponesa a imposição pelo Marquês de um “clima de escravo” por meio de contratos formais e procedimentos disciplinares rígidos (segundo os critérios dos sujeitos) de controle do tempo e do trabalho. “E ele botou uma lei pra ninguém fumar no serviço”, “Por que ele queria obrigar o pessoal a ficar no regime deles!”. Lei/Regime significa um padrão de subordinação considerado opressivo porque fora das bases morais de legitimidade então vigentes, proporcionando, então, as condições para a emergência de disposições de protesto, sentimentos coletivos de indignação. Então, eles resolvem radicalizar, não pagando mais a “renda” em trabalho, mas em dinheiro, depositando no Banco o valor correspondente. Tal ação corresponde a uma manifestação de autonomia frente ao patrão, sendo o pagamento em dinheiro uma sinalização de libertação. Mas a reação do fazendeiro (enquanto uma posição social) resultou na substituição de uma economia moral do arrendamento por uma economia política do terror, a partir da venda para o Dácio Pereira e da criação de gado como principal forma de investimento capitalista nas terras da fazenda em detrimento da lavoura. A partir daí, os patrões impõem uma política de expulsão em vez de exploração / subordinação da força de trabalho. “Aí o Marquês passa essa briga pro Dácio”. Essa fórmula é reveladora do processo em tela: a emergência da categoria de “grileiros” (engendrada e incorporada na luta) como fato marcante na memória do conflito fundiário. A proibição do fumo do cachimbo foi a gota d’água, somada às outras regras mais duras e, também, ao fato do Marquês não querer dar o recibo do dia do
arrendamento. A proibição ao cachimbo foi o estopim para deflagrar a organização e união do grupo que culminou na criação da associação.
Nos anos 1980, os conflitos continuavam. Não mais uma associação de lavradores (os sindicatos rurais de São Pedro e de Cabo Frio já haviam voltado a funcionar em 1974 e 1978), mas uma forma de expressão organizativa local, da comunidade da Caveira, a Associação de Moradores de Caveira-Botafogo, que já tinha uma referência territorial e comunitária, foi importante para a transição de uma forma organizativa sindical para uma de caráter étnico. Nos anos 1990, no contexto de um processo de etnização do conflito fundiário na Fazenda Campo Novos, as categorias de posseiro e lavrador são substituídas pelas categorias de “remanescente de comunidades de quilombo”, firmada na Constituição Federal de 1988. Novas categorias de mobilização e representação política surgem e se consolidam, que acionam múltiplos critérios (étnicos, de gênero, regionais e consciência ecológica), dando visibilidade pública a formas de ocupação e uso comum da terra e dos recursos naturais antes ignorados pelo Estado brasileiro. Em vez de camponês ou trabalhador rural, o termo “povos ou comunidades tradicionais” assume alta relevância política na construção de demandas coletivas de direito. A base empírica dessa nova gramática moral dos conflitos fundiários é a diversidade de situações concretas que serão designadas por alguns estudiosos como territorialidades específicas. Nesse cenário, o conceito de “ocupação tradicional” torna-se uma categoria jurídica e político- administrativa do Estado brasileiro, correspondendo a outro enquadramento institucional de manufatura dos direitos a recursos fundiários, como instrumento de promoção e defesa de um modo de vida coletiva, vinculado a um território próprio.
O direito a terra é enunciado na linguagem da permanência no lugar onde ancestrais viveram a experiencia da escravidão, uma terra que os descendentes têm o dever de deixar como herança para gerações futuras, porque foi consagrada com o suor e o sofrimento inerentes ao cativeiro. Por isso que muitos deles associam o tempo do Marquês com a implantação de um novo regime de escravidão, porque essa memória e narrativa do passado fornece a referência temporal central para uma nova gramática moral das lutas pela terra. Antes a memória do cativeiro, perpassava os relatos dos conflitos fundiários, mas eram ofuscadas por outras metáforas privilegiadas pelo discurso militante da reforma agrária: trabalho e posse como categorias de justificação do acesso à terra e uso dos recursos naturais.O “Povo da
Caveira” é a autodesignação de um coletivo cujo eixo central são as três famílias (Silveira, Santos e Souza), “os troncos originais”, que formam uma rede de parentes, que descendem daqueles que foram escravizados na antiga fazenda homônima e que se contrapõem aos “de fora” e aos “infiltrados” (LUZ, 2009). Com o fim da escravidão, seus antepassados permaneceram nas terras da fazenda sob uma nova modalidade de subordinação e exploração da força de trabalho, o arrendamento, legitimado por um pacto moral com os novos donos que viabilizava as condições para a reprodução social do campesinato negro depois da abolição na Fazenda Campos Novos. Essa economia moral não é rompida pelos Honolds, mas o Marquês inaugura o regime de terror e coercitivamente tenta impor a expulsão. Ele abalou os alicerces materiais e simbólicos dos padrões de convivência entre donos e moradores, gerando o conflito que desaguou na revolta do cachimbo. A estratégia de destruir plantações e casas desmontava um sistema mais amplo de relações entre latifúndio e campesinato. O gado em confronto com a lavoura também não deixa de ser uma referência simbólica do embate entre dois sistemas de dominação, de classe e racial.
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