V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


FORMAÇÃO POLÍTICA DO AGRONEGÓCIO

[Caio Pompeia]1

Ricardo Braga Brito2 É provável que o leitor já esteja familiarizado com a série de afirmações de que

o “agro” é “tech”, “pop” e “tudo”, presente em propagandas, reportagens e falas de especialistas e políticos vinculados ao setor. Trata-se, como aponta Caio Pompeia em seu muito oportuno livro Formação política do agronegócio, de uma “sinédoque política” que projeta “um imaginário superenglobante do agronegócio” e permite “justificar o pacto da economia política que se aprofundava” a partir de 2016 (p. 308), quando a campanha “Agro: a indústria e a riqueza do Brasil” foi lançada pela Rede Globo, corporação que faz parte do Instituto Pensar Agropecuária (IPA).

O processo histórico de formação e consolidação do agronegócio no Brasil, por meio de seus múltiplos atores individuais e coletivos, está no centro do livro de Pompeia. A publicação é fruto das pesquisas de doutorado em Antropologia Social, concluído na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com período como Pesquisador Visitante na Universidade de Harvard, e de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Ao longo desse tempo o autor analisou amplo material empírico: jornais e revistas nacionais e internacionais de ampla circulação, documentos e publicações das entidades de representação patronal, documentos públicos, filmes e materiais jornalísticos e publicitários e entrevistas com representantes políticos, intelectuais e agentes públicos vinculados ao campo do agronegócio.

A partir desses documentos e do enquadramento teórico da Sociologia Pragmática francesa, o autor destaca a multiplicidade de entidades criadas para


  1. Resenha recebida em 05/01/2022. Aprovada pelos editores em 10/01/2022. Publicada em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52759

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  2. Doutorando do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Brasil (CPDA/UFRRJ).

E-mail: ricardobraga.brito@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2742939826813262. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0220-7377.

evidenciar e estabelecer os interesses compartilhados de amplos setores que estariam articulados em torno do que hoje se convenciona chamar de “agronegócio”. Pompeia revela um conjunto de mecanismos de organização e estratégias discursivas de enunciação para criação de consensos e espaços de socialização que serão, ao longo do tempo, responsáveis pela aparente homogeneidade de interesses, discursos e práticas do campo do agronegócio.

Um dos grandes méritos do livro é o esforço de mapear a multiplicidade e fragmentação das representações e interesses dos agentes do agronegócio, fragmentação que, a partir de 2010, receberá elevados investimentos materiais, simbólicos e organizacionais para construir um consenso sobre pautas e políticas públicas a serem demandadas. A construção desses consensos indica nova etapa da formação política do setor, capaz de ampliar sua representação, transformando-a, discursivamente, de “particular” e “setorial” em “nacional”, e aumentando a quantidade de representantes políticos dentro do Legislativo e do Executivo, cada vez mais alinhados em suas falas e demandas. Essas estratégias são também ações e mecanismos que transformam o agronegócio em Estado, direcionando recursos públicos do orçamento, cargos da administração pública, remodelação de Ministérios e Secretarias, criação e desmonte de políticas públicas e elaboração de um projeto de nação que se subsome ao setor.

Contudo, o livro não se resume aos anos recentes. Dividido em nove capítulos, os cinco primeiros reconstroem a formação do conceito de “agribusiness” entre 1950 e 1990, desde o seu surgimento nos Estados Unidos até suas incorporação e adaptação no Brasil. Criado na Escola de Negócios de Harvard, o conceito tinha como intuito refletir e intervir nas relações entre pesquisa, agricultura, funções secundárias e terciárias e delimitação do papel do Estado. O termo foi criado para constituir um novo paradigma esclarecedor dessas relações, fundado em dados macroeconômicos que sinalizavam a importância da intersetorialidade entre agricultura, indústria e serviços que compõe o agribusiness, incluindo, para além da agropecuária em si, os processos de armazenamento, transporte, produção e beneficiamento de sementes, uso e produção de máquinas, processamento de alimentos, produção e uso de fertilizantes e agrotóxicos, entre outros.

Ao longo da obra, o autor identifica os principais elementos do paradigma: crença na modernização tecnológica; orientação para os ganhos de produtividade;

papel do setor para resolver os desequilíbrios de oferta e demanda de produtos alimentícios e de fibras; valorização das grandes unidades produtivas; discurso competitivo e de marginalização da produção familiar; delimitação e direcionamento das intervenções do Estado. Entretanto, a construção do conceito e sua incorporação por acadêmicos, intelectuais, técnicos estatais, representantes políticos, empresários, produtores e mídia não está descolada de projetos políticos e embates públicos. No Brasil, o conceito encontra um contexto de disputa entre modelos de política agrícola e agrária. Junto à repressão aos movimentos populares que demandavam a realização da reforma agrária, os governos da ditadura deram amplo apoio às políticas de modernização e mecanização do setor, beneficiando grandes produções e setores mais internacionalizados e integrados ao mercado, oferecendo-lhes subsídios e incentivos de crédito e aquisição de terra.

O conceito de “agribusiness” recebe ampla divulgação nos debates da Constituinte e na formação do projeto neoliberal, sobretudo pelos esforços de assessores e representantes da empresa Agroceres. Em diálogo com os criadores do conceito, esses atores o divulgaram através, entre outras ações, da criação do Programa de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial (Pensa, atualmente Centro de Conhecimento em Agronegócios), ligado à USP. Posteriormente a Agroceres participaria, junto de outros, da criação da Associação Brasileira de Agronegócio, competindo, e em muitos casos se articulando, com organizações que tiveram vidas mais ou menos curtas, destacando-se a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e a Sociedade Nacional de Agricultura como as mais antigas.

Essas múltiplas estratégias não são gratuitas. Elas são formas de criar legitimidade para um setor que não deixou de receber críticas de movimentos sociais, intelectuais, representantes políticos e alguns setores acadêmicos e do governo. As modificações e estratégias para tornar pública a categoria, a criação de agendas direcionadas ao governo e/ou aos presidenciáveis e a formação de associações e institutos responsáveis por esses trabalhos servem na divulgação e transformação do agronegócio em fato público. Para tanto, ainda é um elemento característico de sua estratégia o uso dos dados macroeconômicos, como a participação no Produto Interno Bruto, a quantidade de empregos criados, a geração de divisas internacionais e o caráter tecnológico e, portanto, “moderno” do setor.

Esses elementos econômicos têm impacto político, evidenciado pela crescente participação do setor nos governos da Nova República, como indicado nos últimos quatro capítulos. Indica-se, assim, o quanto a disputa pelo conceito é também uma disputa pela percepção da realidade que influenciará nos modos de intervenção do Estado. A expansão internacional do agronegócio em meio ao boom das commodities dos anos 1990 e 2000, complexificaram as relações públicas e privadas do setor através da ampliação da Frente Parlamentar do Agropecuária (FPA), da multiplicação de associações e pela presença no Executivo. Nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), essa valorização foi coadunada com políticas públicas voltadas para a agricultura familiar.

Os recorrentes conflitos relacionados à reforma agrária, comunidades indígenas, tradicionais e quilombolas, a índices de desmatamento, queimadas e grilagem, a ameaças ao meio ambiente e associação ao aquecimento global e às investigações e denúncias de trabalho análogo ao escravo criaram tensões entre o campo do agronegócio, o governo e setores da sociedade civil. As tensões e os esforços de articulação política, de pautas e estratégias de atuação do campo do agronegócio podem ser percebidas no prefácio da antropóloga e professora da USP, Manuela Carneiro da Cunha, sobre as relações entre o agronegócio e os povos indígenas, quilombolas e comunidades territoriais, tema que articula disputas em torno da própria Constituição.

Esses conflitos também estiveram na base do apoio do agronegócio ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016, sobretudo da FPA. As relações estabelecidas com os governos Temer e Bolsonaro, contudo, devem ser vistas junto do contexto de organização e articulação do agronegócio ao qual aludimos no começo desta resenha. O que está por trás é um amplo trabalho de institucionalização da representação do agronegócio, com profissionalização de assessores e funcionários, com estabelecimento de reuniões e encontros periódicos, com racionalização e sistematização de temas e discursos, trabalho em grande medida realizado pelo IPA, mas antecedido e feito junto a inúmeras organizações. Contudo, a radicalização do discurso de Bolsonaro e a atual sensibilidade pública para as questões indígena e ambiental indicam que o trabalho de construção do consenso não só não se realizou plenamente em todos os temas, como pode sofrer abalos e rupturas.

De modo significativo, a pesquisa apresenta uma escolha teórica distinta de outros trabalhos referenciados pelo autor. Entretanto, é preciso indicar que essa opção teórica não é tão explícita, salvo algumas explicações presentes em notas de rodapé. Essa ressalva não desqualifica o livro, porém seria mais uma contribuição aos debates do campo acadêmico, visto que as escolhas teóricas e o material empírico permitem que Pompeia revele o intricado jogo de constituição do agronegócio enquanto termo aglutinador que constrói a identificação de um grupo marcado por disputas políticas e econômicas. Analisando o papel de organizações e atores que há décadas têm se empenhado na construção de consensos, discursos e interesses que compõem o setor e seus apoiadores, a obra nos permite entender e acompanhar o trabalho político de formação do agronegócio enquanto força social ativa e hegemônica na sociedade brasileira.


Referência


POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. São Paulo: Elefante, 2021, 388p.