V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


Tese de Doutorado1


SANTOS, Marisa Oliveira2. Memórias do trabalho familiar em casas de farinha: transformação dos modos de vida de homens e mulheres do campo. 2021. 241 f. Tese (Doutorado) Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Vitória da Conquista.


Resumo Expandido3


O filósofo brasileiro, José Arthur Gianotti (1966), ao inferir atenção do homem para realidade e as ideias do seu tempo, enfatiza que os fenômenos sociais despertam naquele que o observa a simpatia ou aversão e, por esse motivo, exige dele a compreensão de seus motivos e seus fins, até que, num dado instante, esse percebe sua condição de sujeito e objeto da análise.

Em meio às aversões da vida em movimento, impostas pelo modo de produção capitalista e a simpatia atenta ao trabalho familiar em casas de farinha4, esta pesquisa teve como objetivo central analisar, por meio das memórias do trabalho familiar, as transformações no processo de trabalho e nos modos de vida de homens e mulheres


1 Resumo recebido em 10/01/2022. Aprovado pelos editores em 12/01/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52791

2 Doutora em Memória, Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Membro integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa História, Trabalho e Educação do Museu Pedagógico – UESB. Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas – UESB.

E-mail: momarisa@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8597629222043489. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6413-142X.

3 Tese defendida em 07 de abril de 2021, no Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, sob orientação da Profª. Drª. Ana Elizabeth Santos Alves, como Bolsa da FAPESB até abril de 2020, vinculada ao Grupo de Pesquisa História, Trabalho e Educação – Museu Pedagógico (UESB). Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoCon clusao.jsf?popup=true&id_trabalho=11031054.

4As casas de farinha, como unidades processadoras, são responsáveis, artesanalmente, pela produção da farinha e de outros derivados da mandioca, como a goma, a farinha de tapioca, o beiju, o carimã, a puba, dentre outros. As farinheiras se qualificam de CASA por acolherem uma socialização assentada no trabalho familiar. Como unidade de produção familiar, demarca o estreitamento dos laços consanguíneos, da socialização do trabalho coletivo.

do campo mediadas pelas investiduras do capital em duas comunidades rurais, no sudoeste baiano, tradicionalmente reconhecidas pelo seu vínculo com a produção dos derivados da mandioca e com a presença de casas de farinha no cotidiano local, em municípios com destaque na produção de mandioca: Vitória da Conquista e Belo Campo5.

Esta pesquisa, também é reflexo de observações trazidas pela pesquisadora desde 2006, em que as produções das manufaturas de farinha eram bastante expressivas na região sudoeste baiana, conferindo-lhes identidade geográfica. Comparada ao marco temporal, constatou-se no decorrer desse tempo, um decréscimo em torno de 90% das casas de farinha em funcionamento em Campinhos6 (Vitória da Conquista-BA), primeira comunidade a compor os estudos acerca do fenômeno social de desarticulação e desapossamento do trabalho de homens e mulheres do campo.

Em 2018, inseriu-se o Povoado do Peri Peri, no município de Belo Campo (BA) distante 60 km de Vitória da Conquista (BA), ao trabalho de investigação. A inserção do Povoado do Peri Peri adveio da detecção da presença de treze Casas de Farinha em funcionamento na comunidade e seu estreito relacionamento com a vida cotidiana local.

Diante do fenômeno observável, a empiria ressoou algumas reflexões: estaria ali um regular funcionamento das Casas de Farinha por serem mais numerosas? Na centralidade do objetivo, levantou-se outras indagações e inquietações, dentre essas: Onde estariam os homens e mulheres do campo que viveram por muito tempo da produção dos derivados da mandioca? Por que as casas de farinha estavam fechando? A quem interessa o esmaecimento das farinheiras em comunidades rurais?

Mediante as observações, o movimento dialético ressoado pela empiria instigou a compreensão da realidade concreta, para tanto, elegeu-se o materialismo histórico como método norteador da análise. Tal escolha se justifica por entender que, as casas de farinha se contrapõem ao modo de produção capitalista, e a condição de homens e mulheres do campo encontra-se enfraquecida ou vulnerável como classe


5 Produção de Mandioca Bahia: Vitória da Conquista (5º produtor do Estado e 1º produtor do sudoeste); Belo Campo (27º produtor do Estado e 3º produtor da região sudoeste).

6 Em 2006 (SANTOS, 2007), catalogou-se 25 casas de farinha. Em 2020, três em funcionamento e apenas uma com produção regular em dois dias da semana.

trabalhadora. Perscrutava-se, ao certo, o desmonte do trabalho familiar nas farinheiras por meio da investidura do capital que são múltiplas nas duas comunidades.

Assim, foi importante destituir o modelo de manufatura ainda resistente: o trabalho familiar não impõe mais o ritmo de produção. Entende-se, pois, que, para o modo de produção capitalista, pouco se torna atrativa a rústica existência da manufatura simples revestida pelas casas de farinha, mas como bem ressalta Rosa Luxemburgo (1985), o capitalismo vem ao mundo e se desenvolve historicamente, em um meio social não capitalista, na marcha do processo de acumulação de riquezas e ampliação de domínio do capital, ampliando a inserção das formas de produzir, a produção se moderniza, a maquinaria concede o tom e a tecnologia impõe o ritmo.

Buscando o levantamento de dados, as comunidades de Campinhos e Peri Peri foram visitadas entre os anos de 2018 e 2020, cumprindo o cronograma de pesquisa. Como procedimentos auxiliares, julgou serem necessários na aproximação da realidade objetiva, as entrevistas, a roda de conversa, as fotografias.

Para sistematizar a discussão, a tese está dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo, uma síntese crítica da história de formação do povo brasileiro através de memórias marcadas por permutas e pela imposição de culturas, protagonizada por índios e colonizadores, demarcando vestígios iniciais das primeiras casas de farinhas e da cobiça dos europeus pela mandioca, desarticulados já àquele tempo os modos de vida dos gentios e a desarticulação da primeira base de trabalho familiar.

No segundo capítulo, estrutura-se os estudos sobre a memória. A memória é entendida como construto social e viés interlocutor com realidade concreta construída e “preservada” por homens e mulheres do campo, trabalhadores de casas de farinha, a tempo em que revela as transformações verificadas na produção da materialidade da vida em comunidade

No terceiro capítulo, o trabalho assume seu caráter fundante na produção da vida material (MARX, 1983). Desarticulados dos meios de produção, pelo desmonte do trabalho familiar, os respectivos trabalhadores e trabalhadoras veem-se cooptados pelo capital alterando sua relação como o meio em que vivem, e, portanto, alterando a dinâmica de seu modo de produção, de vida e de trabalho.

No quarto capítulo, o modo de vida abre-se como campo de exteriorização da vida material, desembocando as transformações da interpenetração do capital nos

modos de produção não capitalistas. A vida visível, é revisitada pelas transformações através das memórias sociais, coletivas e físicas, externando os impactos no modo de viver dessas populações em sobreposição aos interesses do capital no uso e exploração do território.

Os resultados e as considerações finais da pesquisa sustentaram a hipótese que a desarticulação do trabalho familiar é aporte viável da interpenetração do capital

– industrial ou comercial - na vida em comunidade, sendo, portanto, via de inserção e infiltração para apropriação dos saberes do trabalho, da força de trabalho no uso do território (SANTOS, 2002).

Nestes termos, conclui-se que: a) as casas de farinha que demarcaram a dinâmica e o cotidiano de Campinhos e Peri Peri, são as guardiãs de “migalhas de memórias” (MEDEIROS, 2015) do processo de trabalho que ajudaram a constituir a vida nas duas comunidades; mas atualmente denunciam como o esmaecimento das farinheiras clarificam as investiduras do capital cedendo novos contorno à vida qualificada. b) a precarização do trabalho, o parcelamento da terra, a especulação imobiliária, o abandono da roça, a introdução da fécula, a falta de modernização nos processos produtivos, a baixa remuneração, a presença de atravessadores, denotam a vulnerabilidade e o enfraquecimento do trabalho familiar que parcamente ainda orienta, mas já não se torna fulcral para a sustentação do trabalho nas casas de farinha. c) a empiria ressoou que o enfraquecimento do trabalho familiar permite o deslocamento da força de trabalho para outros centros, promovendo o desapossamento dos meios de produção, o desenraizamento do lugar de vida e trabalho (MARTINS, 1975) cedendo novos contornos ao modo de viver, importante para os interesses do capital. d) os modos de vida, infelizmente, não ressoam como armadura substancial da resistência e da persistência de um modo de viver e de produzir, mas pautá-los é entender e denunciar que sua modificação altera a vida de populações inteiras e as colocam sob ameaça. O movimento que modula as transformações, é o mesmo que instiga a pensar que defender o modo de vida é defender o enraizamento, a persistência, o direito ao território, o direito à cultura, o direito à terra e aos recursos naturais, ou seja, é ter o direito de lutar pela vida, pelo trabalho, que, quando desarticulados, apartam homens e mulheres do campo de sua identidade e do seu sentimento de pertencimento, fortalecendo os desejos de interpenetração do capital.

Referências


GIANOTTI, J. A. Origens da dialética do trabalho. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1966.


LUXEMBURGO, R. A acumulação do capital: contribuição ao estudo Econômico do Imperialismo; Anticrítica. Série Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1985.


MARTINS, J. de S. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli & Cia Ltda, 1975.


MARX, K. O capital. Livro I. vol I / Tomos 1 e 2. São Paulo: Nova Cultural, 1983.


MEDEIROS, R.H. Memória compartilhada e história: entre alienação e ideologia. Vitória da Conquista – BA: UESB/PPMLS, 2015. Tese de doutorado.


SANTOS, M.O. Sistema de produção em Casas de Farinha: Uma leitura descritiva na comunidade de Campinhos – Vitória da Conquista(BA), 2007. 115p. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente ) UESC. Ilhéus, 2007.


SANTOS, M. Território, Territórios. Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense/Associação dos Geógrafos Brasileiros. Niterói, 2002.