V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


A FILANTROPIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA COMO MECANISMO DE PRIVATIZAÇÃO DA INTELECTUALIDADE DO PROFESSOR1


Renata Cecilia Estormovski2 Rosimar Serena Siqueira Esquinsani3


Resumo

O empresariamento da educação básica se efetiva sob diferentes processos e gera distintos efeitos, atingindo as variadas esferas do campo educativo. Neste estudo, aborda-se como esse movimento, consolidado em parte pela filantropia articulada ao setor privado, promove ações que impactam à docência – já precarizada no capitalismo –

, alcançando a intelectualidade do professor e privatizando-a. A discussão se ampara em autores como Antunes, Alves e Montaño e os relaciona a iniciativas que materializam na realidade a problemática abordada, encadeando a argumentação.

Palavras-chave: Empresariamento da educação; Precarização do trabalho docente; Filantropização da educação.


LA FILANTRIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN BÁSICA COMO MECANISMO DE PRIVATIZACIÓN DE LA INTELECTUALIDAD DEL DOCENTE


Resumen

El emprendimiento de la educación básica se concreta bajo diferentes procesos y genera diferentes efectos, alcanzando las diversas esferas del campo educativo. Este estudio aborda cómo este movimiento, consolidado en parte por la filantropía vinculada al sector privado, promueve acciones que impactan la docencia –ya precaria en el capitalismo–, alcanzando la intelectualidad del docente y privatizándola. La discusión se apoya en autores como Antunes, Alves y Montaño y los relaciona con iniciativas que materializan el problema abordado en la realidad, articulando la argumentación.

Palabras clave: Emprendimiento educativo; Precariedad del trabajo docente; Filantropía de la educación.


THE PHILANTHRIZATION OF BASIC EDUCATION AS A MECHANISM FOR THE PRIVATIZATION OF THE TEACHER'S INTELLECTUALITY


Abstract

The entrepreneurship of basic education takes effect under different processes and generates different effects, reaching the various spheres of the educational field. This study addresses how this movement, consolidated in part by philanthropy linked to the private sector, promotes actions that impact teaching – already precarious in capitalism –, reaching the intellectuality of the teacher and privatizing it. The discussion is supported by authors such as Antunes, Alves and Montaño and relates them to initiatives that materialize the problem addressed, linking the argument.

Keywords: Education entrepreneurship; Precariousness of teaching work; Philanthropy of education.


1 Artigo recebido em 19/01/2022. Primeira avaliação em 21/03/2022. Segunda avaliação em 18/04/2022. Aprovado em 30/05/2022. Publicado em 21/07/22.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.52885.

2 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (PPGEDU-UNISINOS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Professora da rede pública estadual do Rio Grande do Sul.

E-mail: renataestormovski@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5288825069833281 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5714-8928.

3 Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (PPGEDU-UNISINOS). Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Passo Fundo (PPGEDU-UPF). E-mail: rosimaresquinsani@upf.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9661213429808142. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6918-2899.

Considerações introdutórias


Se a educação é parte das mudanças sociais, políticas e econômicas que se materializam na realidade (PERONI, 2015), a docência também se insere nesse processo, sendo redefinida e repactuada de acordo com as transformações do tempo histórico em que é concretizada. Em um cenário de empresariamento da educação, especialmente daquela básica e pública, reformas fortalecem parcerias que, alicerçadas em preceitos gerenciais, se apropriam de seu conteúdo e ressignificam seus sentidos. A deliberação acerca dos saberes necessários e dos métodos de ensino adequados tem sido retirada da esfera de participação e decisão docente, orientando-se por iniciativas formuladas na filantropia articulada ao setor privado. Disseminam-se, entre outras estratégias, boas práticas premiadas e sistemas de apostilamento, ao mesmo tempo em que se difunde a percepção de que o bom professor é um empreendedor de propostas pedagógicas exitosas (em quaisquer condições de trabalho, mesmo em um contexto de precarização).

Aprofundar essa discussão, compreendendo como se materializam na realidade movimentos que, alicerçados na conjuntura neoliberal e neoconservadora4, intentam controlar o professor, a fim de que ele se subordine à lógica empreendedora e meritocrática (e por isso privatista e excludente) promovida por sujeitos coletivos vinculados à filantropia empresarial, denota-se como o objetivo deste estudo. Enfatizam-se, nesta investigação, iniciativas particulares5 para discutir como a filantropia tem colaborado com a precarização do trabalho docente, atingindo sua intelectualidade e seu fazer pedagógico e destituindo-o de autonomia. Isso é motivado, em grande medida, pela naturalização das limitações estruturais, formativas e laborais fomentada pelo empresariamento na educação, que costuma ter aceitação pacífica pelas comunidades escolares.

Ressalta-se, a priori que, nesta discussão, ao utilizar o vocábulo filantropização, há a referência ao processo que ocorre com a redefinição do papel do Estado na década de 1990, no qual as responsabilidades com a questão social são esvaecidas


4 Muitos estudiosos argumentam que a atual sociabilidade do capital se caracteriza como ultraliberal e ultraconservadora, ponto que não será abordado neste estudo, mas que é aprofundado em outros artigos deste dossiê.

5 Em alusão a Lukács (1978), sendo o particular um membro intermediário do real, que vincula o espaço singular da escola, neste caso, à universalidade de concepções, valores, ações e projetos que constituem a conjuntura.

e relegadas ao setor privado, que atua sobretudo por meio de fundações e institutos tidos como sem fins lucrativos. Esses atores assumem serviços em áreas como a da educação, promovendo, financiando e executando projetos com vistas à melhoria da qualidade, considerando-se a retórica de que o Poder Público seria ineficiente. Nesse sentido, a utilização do termo considera um período histórico distinto do assistencialismo filantrópico, em voga ao longo do século XX; na atualidade, são as novas configurações empresariais que se apropriam da filantropia como forma de estender seus tentáculos sobre o setor público e, a partir disso, difundir seu ideário, como aprofundado neste estudo.

Para a argumentação, essa concepção se articula com a de autonomia docente e com a de privatização da educação, utilizando-se referenciais como Antunes (2000; 2009; 2018; 2021), Alves (2007; 2020), Montaño (2010) e Mészáros (2011; 2015), que são problematizados em uma análise temática (MINAYO, 2014), na qual os campos de sentido elencados são discutidos junto a materializações que os ilustram, colaborando para que o objetivo delimitado seja alcançado. O estudo contempla duas seções centrais, para além de considerações introdutórias e finais, sendo uma dedicada à discussão acerca do trabalho, inclusive e especificamente o docente, em sua atualidade capitalista precarizada, e com a seguinte abordando a filantropização da educação básica na realidade brasileira. Em ambas, promove-se a contextualização acerca das temáticas citadas, buscando-se demonstrar como ocorre o esvaziamento da autonomia do professor e a apropriação, pelo setor privado travestido de filantropia, do conteúdo da educação, conformando um quadro de privatização da intelectualidade docente. Em relação a isso, propostas elaboradas externamente acabam tomando o espaço da sapiência e da criatividade do professor, com a atuação deste profissional servindo aos interesses formativos do empresariado e dedicando-se aos seus valores e princípios.


Os processos de privação de autonomia docente alicerçados na docência precarizada e subordinada ao capital


No capitalismo, o trabalho está subordinado ao capital6, deixando de se constituir como parte das mediações de primeira ordem – que se vinculam às


6 O capital, nessa relação, é conceituado como “uma dinâmica, um modo e meio totalizante e dominante de mediação reprodutiva, articulado com um elenco historicamente específico de estruturas envolvidas institucionalmente, tanto quanto de práticas sociais salvaguardadas” (ANTUNES, 2000, p. 21).

necessidades e à natureza de homens e mulheres em sua ontologia –, mas sendo alienado e fetichizado, em um controle social despreocupado com a humanização e interessado na exploração ilimitada para suprir suas expectativas de lucratividade. Mantido pelo tripé trabalho, capital e Estado, esse sistema se pauta na acumulação, na expansão e em uma estrutura totalizante, da qual os antagonismos não conseguem se dissociar. A concorrência relacionada à economia, à racionalidade e à eficiência orienta a lógica do trabalho, mesmo que resulte em sua precarização (ANTUNES, 2000).

A organização laboral se altera continuamente para disfarçar seus antagonismos e para sustentar essa racionalidade, com o tempo de vida dos trabalhadores e os recursos naturais sendo apropriados privadamente como uma constante. Em um recorte temporal recente, o crescimento de um “novo proletariado de serviços” (ANTUNES, 2018, p. 35) – um infoproletariado –, acresceu ao cenário de fragilização dos vínculos sociais do trabalho a intermitência, justificando as baixas remunerações e exigindo a máxima produtividade, que, com a financeirização e a mundialização, resultaram em uma divisão internacional do trabalho própria e em uma nova forma de conceber a classe trabalhadora. Para Antunes (2018, p. 36):


Dadas as profundas metamorfoses ocorridas no mundo produtivo do capitalismo contemporâneo, o conceito ampliado de classe trabalhadora, em sua nova morfologia, deve incorporar a totalidade dos trabalhadores e trabalhadoras, cada vez mais integrados pelas cadeias produtivas globais e que vendem sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário, sendo pagos por capital-dinheiro, não importando se as atividades que realizam sejam predominantemente materiais ou imateriais, mais ou menos regulamentadas.


Com a pandemia de Covid-19, deflagrada no Brasil no início de 20207, situada em um momento específico do neoliberalismo e de financeirização do capital, tais processos se tornaram ainda mais intensos e desnudos, com o desenho societário normalizando o desemprego e suas variações léxicas, como a terceirização, a uberização e o empreendedorismo, codinomes para o trabalho precário (ANTUNES, 2021). Em uma das teses de Antunes (2021), o momento de crise sanitária é


7 A identificação (no final de 2019, na China) de um vírus altamente contagioso e com potenciais efeitos nocivos à saúde humana, resultando inclusive em um elevado número de óbitos, exigiu o isolamento social como uma das primeiras estratégias para sua contenção. Com isso, o trabalho e os estudos passaram a ser centralizados nos domicílios de parte substantiva da população, o que trouxe implicações particulares, como será abordado em seguida.

problematizado como um laboratório das corporações para a experimentação do home office e do trabalho remoto em grande escala, além de favorecer os serviços plataformizados/uberizados que emergiram pelo desemprego formal em massa, pela expansão tecnológica ilimitada e pela promoção do empreendedorismo como disfarce para a proletarização ultraprecarizada dos serviços8. Tais movimentos atingem também os docentes, que se adaptam a essas novas demandas laborais como parte da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2000).

Tal denominação envolve todos os trabalhadores assalariados e amplia a noção de classe trabalhadora – incluindo os que atuam em setores privados ou públicos e que, necessariamente, vendem sua força de trabalho, seja para a indústria ou para a prestação de serviços, formal ou informalmente (ANTUNES, 2000). Sofrendo mutações pela reestruturação produtiva, essa grande classe convive com o desemprego estrutural (relacionado à crise também estrutural do capital – em alusão a Mészáros, 2011)9 e com propostas de flexibilização, estando subordinada à precarização, à terceirização, à desregulamentação e à divisão sexual do trabalho. Quando exercido por mulheres (como na docência, em que quase 80% dos trabalhadores são do sexo feminino)10, a exploração se intensifica, já que elas ainda estão expostas, além de ao trabalho duplicado domesticamente, à imposição do gênero como “elemento constitutivo das relações sociais” e “como forma básica de representar relações de poder em que as representações dominantes são apresentadas como naturais e inquestionáveis” (ANTUNES, 2000, p. 109). Essa questão se exacerbou durante a pandemia, na qual professoras (e professores), principalmente da educação básica (mas não somente), arcaram com os custos e os impactos físicos, emocionais e psíquicos do trabalho remoto.


8 Esses processos se intensificam incentivados inclusive por organismos internacionais que mobilizam seu projeto de plataformização da educação. Evangelista (2020) explica que o Banco Mundial, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o Conselho Nacional de Educação e o Movimento Todos Pela Educação, na ocasião da tomada de decisões acerca das atividades letivas no contexto pandêmico, impuseram as atividades remotas utilizando a crise sanitária para motivar a adesão ao modelo híbrido, já previsto por esses grupos, o que resultou em ampla adesão a plataformas como Google e Microsoft e reconvergiu a elas à docência.

9 No campo marxista, a compreensão da crise como estrutural não se constitui como unânime, com autores defendendo a lógica trotskiana de crise orgânica do capital, que seria resultado de uma crise histórica que prevê o declínio terminal do sistema a partir da desintegração de suas contradições inerentes. Uma análise mais completa pode ser lida em: https://www.marxismo.org.br/a-crise-organica- do-capitalismo-parte-1/, com acesso em 24 de abril de 2022.

10 De acordo com as Sinopses Estatísticas da Educação Básica de 2019 (BRASIL, 2020), 79,66% dos vínculos dos docentes são ocupados por profissionais do sexo feminino no Brasil.

Isso porque, por mais que a docência tenda a ser relacionada ao trabalho imaterial – que é orientado pela dimensão intelectual – mesmo quando efetivada em âmbitos públicos (como a escola) também é reificada, assumindo uma subjetividade inerente ao capitalismo e sendo subordinada à sua lógica, ainda que não produza lucratividade de forma direta (mas possa promover projetos societários de seu interesse). Aliás, o capital fomenta a disjunção entre as dimensões material e imaterial do trabalho, o que efetiva um dualismo em que a concepção e a execução de uma atividade se dissociam, em processos de estranhamento. Assim, entendido como mercadoria, o trabalho imaterial assume as qualidades de trabalho morto (sem a singularidade e a criatividade da intelectualidade humana) e se restringe à preocupação com a inovação e com a materialização do fetichismo (ANTUNES, 2000). Esses aspectos são concretizados na escola, quando, por exemplo, um professor é estimulado a reproduzir boas práticas em seu cotidiano, tendo sua intelectualidade menosprezada e substituída por propostas prontas ou passíveis de pequenas modificações, desde que articuladas aos anseios da escola que atua sob a sistemática da empresa (LAVAL, 2019).

De tal modo, o capital, ao promover a separação entre as dimensões material e imaterial do trabalho, atinge também a docência. Essa atividade deixa de ser comprometida com a intelectualidade docente, sua autonomia e criatividade, e passa a ser entendida como mera execução de um processo pedagógico produzido externamente à rotina escolar. Especificamente, desde a década de 1990, proliferam- se iniciativas como o Prêmio Educador Nota 1011, que incentiva os professores da educação básica a replicarem propostas daqueles profissionais que são entendidos, pela rede política12 que divulga a premiação, como bem-sucedidos. Os profissionais premiados são qualificados como empreendedores de práticas pedagógicas exitosas que, por seu próprio mérito e assumindo uma postura de competitividade, conseguem superar cenários de precariedade e alcançar seus objetivos (ESTORMOVSKI, 2021).


11 Essa premiação foi criada em 1998 pela Fundação Victor Civita e, desde então, é realizada com o apoio de diferentes sujeitos individuais e coletivos e seleciona, anualmente, 50 professores finalistas entre os quais indica dez vencedores, sendo um deles o Educador do Ano (PRÊMIO EDUCADOR NOTA 10, 2021).

12 Redes políticas são definidas por Ball (2014, p. 29) como “comunidades de políticas” que compartilham concepções quanto a problemas sociais e a suas resoluções, incluindo sujeitos distintos dos tradicionais na (re)definição de políticas públicas. Constituem-se por movimentos de ideias, de pessoas e de capital em relações sociais singulares, nas quais questões educacionais complexas costumam ser discutidas a partir de orientações gerenciais, em moldes empresariais e executadas por meio de parcerias (BALL, 2014).

Tornam-se, por isso, um estrato à parte na classe, o qual deve a ser imitado e reconhecido.

Ao mesmo tempo, em redes públicas de educação básica, principalmente naquelas pertencentes a municípios com baixo índice populacional, têm se aderido com naturalidade a programas de apostilamento, que entregam materiais didáticos esquematizados e articulados a avaliações externas, a partir dos quais os docentes devem atuar13. Sem prescindir de orientações curriculares macroestruturadas, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), esses instrumentos afirmam qualificar a educação e alavancar índices em aferições realizadas em âmbito nacional, estadual e/ou municipal, o que já induz a percepção de que os professores, por si, não teriam condições de construir o modelo de educação almejado e, por isso, precisariam se subordinar a essas apostilas. Com a pandemia impulsionou-se a adesão a iniciativas que desconsideram a intelectualidade do professor e seu potencial formativo, em direção à um projeto que promete mostrar ao docente como agir para que objetivos educacionais sejam alcançados, mesmo que estes não sejam definidos por aqueles que se inserem nas comunidades escolares, conhecem os estudantes e suas expetativas de aprendizagem.

Aliás, apesar de a autonomia docente estar prevista na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB nº 9.394/1996), tal princípio tem sofrido ataques sistemáticos, principalmente no período incluído no recorte temporal aprofundado neste estudo (pós-1990). Dois exemplos que ilustram essa percepção são a própria BNCC, citada anteriormente, e a Base Nacional Comum de Formação de Professores (BNC-Formação). A BNCC (BRASIL, 2018), ao orientar a construção de currículos na educação básica propondo uma gama de habilidades e competências a serem desenvolvidas, aprisiona o fazer docente, atrelando-o a suas especificações. Na mesma direção, a BNC-Formação (BRASIL, 2019) articula a formação à BNCC e homogeneíza os processos pedagógicos, aproximando a escolarização daquela requerida pelo mercado, com testes padronizados (que refletem a lógica competitiva e instrumental do neoliberalismo) referenciando a



13 Dois exemplos podem ser conferidos em: https://www.sananduvafm.com.br/noticias_ver.php?id_noticia=6670 e https://www.sananduva.rs.gov.br/noticias_ver.php?id_noticia=7020 . Acesso em 22 de dezembro de 2021.

educação e fortalecendo a responsabilização do professor, enquanto ignoram-se as desigualdades que são estruturais à sociedade brasileira.

Afinal, como Antunes (2000) destaca, mesmo quando houve as alterações da lógica taylorista-fordista para o toyotismo, que apregoavam uma horizontalização nas relações de trabalho, a dinâmica do capital seguiu, em diferentes períodos, afirmando que “a necessidade de pensar, agir e propor dos trabalhadores” deveria “levar em conta prioritariamente os objetivos intrínsecos da empresa” (ANTUNES, 2000, p. 130). Nesse sentido, os profissionais que não demonstrassem total articulação com as prescrições impostas precisaria ser substituídos por outros, dispostos a se subordinarem às expectativas de seu emprego. Na escola que incorpora o funcionamento empresarial (LAVAL, 2019), são materializadas essas mesmas perspectivas, sendo o professor parte do coletivo de servidores públicos que deve se curvar a metas e mecanismos de controle forjados no mercado. A própria estabilidade profissional, garantia de continuidade dos serviços públicos para além de governos, tem sido constantemente criticada e ameaçada, com os docentes também sendo incluídos nessa sistemática laboral mercantil, e impelidos a reproduzir um processo formativo que subsidie as perspectivas daqueles que ocupam o Estado e/ou o direcionam, ou seja, o próprio capital, como será aprofundado na seção seguinte.

Ademais, todos os aspectos da vida dos trabalhadores são direcionados à busca individual pela qualificação de sua empregabilidade nesse contexto (ANTUNES, 2000). Impele-se a entrega completa do trabalhador a um emprego que ainda cobra, contraditoriamente, que todo o profissional, além de ser explorado integralmente, demonstre garantias de sua eficiência e comprove continuamente sua serventia ao empregador. Formações oferecidas gratuitamente aos docentes se constituem como materializações desses processos, como o Programa Socioemocional de Educadores14, desenvolvido pelo Instituto Ayrton Senna e pela Fundação Grupo Volkswagen. Intentando estimular condutas pautadas em valores de resiliência, autogestão e assertividade, o curso promove um perfil profissional que acredita ser condizente com o necessário para a educação na atualidade. Não sendo parte das formações ofertadas pela rede na qual o docente atua, naturaliza-se o entendimento de que ações como essas devem ser realizadas no tempo livre do


14 Disponível em: https://www.institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/conteudos/fundacao-grupo- volkswagen-reforca-compromisso-com-a-educacao-publica-por-meio-do-programa-de- socioemocionais-de-educadores.html. Acesso em 28 de dezembro de 2021.

professor, o que geraria vantagens individuais e tornaria o profissional mais competitivo e mais adequado às demandas do contexto em que se insere15. Além disso, a comprovação da adoção, na prática pedagógica, dos princípios de tais cursos, costumam se constituir como parte de seu processo avaliativo, impelindo a efetivação de seus fundamentos.

Forjando a constituição de um professor gerenciado, são empreendidas “estratégias de esvaziamento de sua potência política de contribuição para a transformação da ordem social do capital” (PEREIRA; EVANGELISTA, 2019, p. 82). Para isso, tanto a formação, como as práticas dos docentes são alvos de iniciativas de sujeitos vinculados ao setor privado, como a revista Nova Escola, que, segundo Pereira e Evangelista (2019), incentiva a BNCC e oferece conteúdos restritos de teoria e focados na prática aos professores, afastando a docência de conhecimento sobre si e facilitando a aderência a propostas externas. Com isso, reforçam, “corre-se o risco de suprimir também a possibilidade do acesso dos trabalhadores ao conhecimento histórico e socialmente produzido e sistematizado” (PEREIRA; EVANGELISTA, 2019), com barreiras ainda mais difíceis de serem superadas para que o trabalho docente se desassocie de propósitos mercantis.

Em relação a condições como essas, a precarização – constante no trabalho exercido em sociedades capitalistas – se consolida na docência. A precarização estrutural do trabalho (ALVES, 2020), aliás, está na base do modo como o capital lida com sua crise de lucratividade: é a forma como o sistema organiza a exploração a fim de encontrar meios de recompor sua acumulação. Com a precarização, o trabalho é entendido como mercadoria, travestindo-se pela ideia de flexibilização e impondo a diminuição de direitos trabalhistas, a intensificação da exploração, o aumento das exigências de sobretrabalho e o desemprego (ALVES, 2007). E essas condições, ao invés de motivarem a consciência de classe, melindram seu desenvolvimento, já que, como esclarece Alves (2007), desencadeiam pressões sociais e culturais assentadas em interesses particularistas e em práticas corporativas. Restringindo direitos sociais,


15 Não que se entenda o docente como um profissional que não deva realizar processos formativos para além dos oferecidos formalmente na rede em que atua, mas a apresentação desses cursos, geralmente on-line e grátis, impõe que a racionalidade do capital inunde todos os instantes de vida do professor, tanto no trabalho, quanto em seu tempo livre. Afinal, licenças e incentivos para que docentes realizem cursos aprofundados e qualificados, nos níveis de mestrado e doutorado, por exemplo, são inabituais.

as alterações atingem questões salariais, de horário, funcionais ou organizativas (ANTUNES, 2009) e não estão restritas à iniciativa privada.

No serviço público, mesmo em um contexto de estabilidade profissional, a inserção de mecanismos de controle de resultados e de cobrança pelo alcance de metas têm sido propostos. Redes públicas de ensino, por exemplo, têm instituído ferramentas de bonificação para os docentes de acordo com o desempenho de seus alunos em avaliações externas, como no caso do município de Esteio16, no Rio Grande do Sul. Além de dividir a classe profissional, definir a concorrência como estratégia de elevação da qualidade e naturalizar a desigualdade entre instituições, medidas como essa desmantelam direitos universais e garantias salariais dos docentes, restringindo-os às condições impostas pelo empregador e distintas daquelas inerentes ao trabalho docente.

Outro exemplo recente diz respeito à rede municipal de ensino de Angelina, em Santa Catarina, que, em 2017, divulgou a contratação de professores de educação física a partir de um pregão de menor preço17. Por mais que o leilão tenha sido cancelado devido à pressão popular, do Ministério Público Catarinense e de diferentes conselhos e entidades vinculadas à categoria, o evento ilustra como as prescrições mencionadas atingem a docência. Ainda, para além de se direcionar exclusivamente ao âmbito público ou privado, esses processos de precarização têm como alvo principal grupos profissionais organizados, engajados em lutas políticas e com conquistas para sua classe, como indicado por Alves (2007, p. 115):


A precarização é um processo social de conteúdo histórico-político concreto, de natureza complexa, desigual e combinada, que atinge o mundo do trabalho, principalmente setores mais organizados da classe do proletariado [...]. A precarização possui um significado concreto: ela atinge o núcleo organizado que conseguiu instituir, a partir da luta política e social de classe, alguma forma de controle sobre suas condições de existência através de mediações jurídico- políticas.



16 A Lei nº 7.013, de 09 de novembro de 2018, que dispõe sobre o Plano da Carreira dos Profissionais do Magistério Público do Município de Esteio, no estado do Rio Grande do Sul, aponta benefícios (licenças remuneradas) para os docentes que tiverem suas turmas em situação de destaque em avaliações externas, alcançando as metas definidas pela rede (ESTEIO, 2018).

17 No link https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2017/04/prefeitura-de-angelina-abre- leilao-para-contratar-professor-de-educacao-fisica-por-menor-preco-9780413.html é possível entender o caso com maiores detalhes. Acesso em 01 de janeiro de 2022.

Isso esclarece por que os docentes figuram como um grupo que, como apresentado ao longo deste estudo, sofre os efeitos da precarização em seu trabalho. Constituindo-se como uma classe com organização coletiva e sindical fortalecida historicamente e com garantias expressas legalmente, torna-se menos suscetível às propostas articuladas às necessidades do capital. Por conta disso, medidas que isolam os professores, individualizam suas ações e vinculam-nas ao empreendedorismo, à concorrência e à meritocracia são instituídas nos sistemas de ensino, de forma a diminuir a resistência para a supressão de direitos, considerados como gastos estatais excessivos e ineficientes, em específico, para o neoliberalismo. Alguns dados reafirmam essa problemática, como a pesquisa da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) que mostra os estados brasileiros que pagavam, em 2019, o Piso Salarial da categoria tendo como base a formação inicial exigida pela carreira. De acordo com a CNTE, 15 estados cumpriam o previsto pela Lei nº11.738/2008 (BRASIL, 2008), com outros 4 fazendo-o parcialmente. Como esse mesmo aparato jurídico prevê que um terço da carga horária seja destinada a atividades de avaliação, planejamento e estudos, a CNTE aferiu que 7 estados não cumpriam, no momento da pesquisa, com esse aspecto. Além disso, apesar de a Resolução nº 2, do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (BRASIL, 2009) orientar pela jornada exclusiva em uma mesma escola, e de o trabalho com cada um dos componentes curriculares prescritos para a educação básica exigir uma formação específica, esses dois aspectos corroboram com a precarização, na medida em que os docentes precisam se locomover entre distintas instituições e atuar com diferentes disciplinas para suprir sua carga horária, sem muitas vezes receberem

o piso salarial, e sem terem seu direito à jornada extraclasse garantido.

A pandemia, ainda, recrudesce o cenário de precarização, já que muitos docentes não possuíam ambiente domiciliar, conhecimento de tecnologia e ferramentas básicas para dar conta do exigido. Além disso, as barreiras entre tempo de trabalho e de lazer foram extintas e a cobrança pelo preenchimento de planilhas que monitoravam o docente intensificaram a apropriação de sua intelectualidade, suplantada pela burocracia e pela privação de sua autonomia pedagógica.

Essas prescrições são ratificadas na profissão docente com a alteração das fronteiras entre o público e o privado, discutida por pesquisadores como Peroni (2015). O enfraquecimento do sentido público da docência e a atuação constante de sujeitos

desarticulados do espaço singular da escola, e vinculados à filantropia e ao setor privado – por meio de parcerias – ocasionam uma privatização do conteúdo da educação (PERONI, 2015) que reafirma a disjunção entre trabalho material e imaterial (ANTUNES, 2000). Com isso, a intelectualidade do professor é privatizada e delegada a entes externos, que passam a orientar o que deve ser abordado em sala de aula e de que modo, com o docente sendo apenas um reprodutor de dadas perspectivas, devendo constantemente provar que se adapta de modo criativo e comprometido a essas investidas, como será aprofundado a seguir.


A filantropização da educação como movimento de esvaziamento e reocupação do fazer docente por propostas educativas de mercado


O neoliberalismo não tem suas prescrições direcionadas somente à economia, mas orienta uma lei social geral (LAVAL, 2019), o que não ocorre como uma abstração ou como uma percepção que se impõe instantaneamente e passa a orientar de modo totalitário as ações que são instituídas em dado contexto. Sua materialização se constitui como um processo, sendo que a adoção de suas ideias por governos escolhidos democraticamente para gerir o Estado se salienta como uma ferramenta importante para sua concretização. Isso se dá porque o Estado não se efetiva de forma alheia à realidade, mas sua composição se dá “na base material antagônica do capital [e] não pode fazer outra coisa senão proteger a ordem sociometabólica estabelecida” (MÉSZÁROS, 2015, p. 28).

Harvey (2005, p. 79) esclarece que o Estado desempenha “tarefas básicas mínimas no apoio do modo capitalista de produção”, exercendo um poder de classe, provendo “‘bens públicos’ e infraestruturas sociais e físicas” para o capital e envolvendo-se na “administração de crises e [...] contra a tendência de queda da margem de lucro” (HARVEY, 2005, p. 84-85). Para solucionar paradoxos como o de a classe dirigente atuar em benefício próprio ao mesmo tempo em que afirma agir para o bem de todos, usam-se duas estratégias: a idealização do Estado como uma esfera independente e a transformação de seus interesses de classe em um “interesse geral ilusório” (HARVEY, 2005, p. 81). Com isso, a ideologia da classe dominante se torna a ideologia a partir da qual o Estado opera, disseminando a percepção de que o Estado seria abstrato, imparcial e neutro, mas se concretizando como o “veículo pelo qual os interesses de classe dos capitalistas se expressam em todos os campos da

produção, da circulação e da troca” (HARVEY, 2005, p. 85). O Estado, assim, apenas tem sua imagem vinculada a de um poder limitado e mínimo, porém é máximo para o capital (PERONI, 2015).

Mas isso não significa determinar a ausência de resistência que contraria a atuação de um Estado que se assume como protetor e pilar do capitalismo, nem negar como os sujeitos, em suas relações, promovem processos de busca por alternativas em prol da coletivização das decisões e do acolhimento de demandas populares, mesmo no neoliberalismo. Afinal, esse elemento precisa ser entendido em sua dimensão histórica, “como produto das relações sociais e da correlação de forças em uma determinada sociedade” (KAPLAN; LAMOSA, 2018, p. 117). Como Mészáros (2015) aborda, o Estado também é campo de disputa, com o sistema sociometabólico do capital podendo ser superado e transformado a partir da conquista deste, que é um dos pilares de sua constituição. Defendendo a democracia substantiva contra a democracia representativa, o autor entende que os sujeitos precisam assumir as tomadas de decisão, tornando-as genuínas e não mais alienadas, resgatando o Estado e superando seus antagonismos. Contudo indica que “isso só será factível se as condições gerais da sua existência forem materialmente fundamentadas sobre células constitutivas qualitativamente diferentes da ordem social do capital” (MÉSZÁROS, 2015, p. 22).

Essa disputa também é requerida quando se discute o empresariamento da educação e sua filantropização, movimentos que se fortaleceram no país a partir da década de 199018. O (BRASIL, 1995) explicitou o viés gerencial na administração pública brasileira, defendendo que o poder público não deveria mais ser concebido como o único responsável pela execução de serviços sociais, estimulando suas privatizações, publicizações e terceirizações. Seu papel, então, foi alterado, diminuindo a atuação como executor das políticas e assumindo o posicionamento de


18 No período mencionado, há uma ressignificação da lógica filantrópica na educação motivada pela Reforma do Aparelho do Estado. Contudo, a filantropia atrelada à educação antecede tal momento histórico e está na base dos serviços de assistência social no Brasil, que ganham centralidade principalmente a partir da década de 1940. A Fundação Leão XIII é um símbolo desse movimento por ter sido criada em 1947 com a finalidade de proporcionar projetos educacionais, profissionalização e orientação vocacional em favelas, enquanto realizava intervenções religiosas e atuava mobilizando melhorias urbanas, serviços de saúde e de serviço social para a população urbano-industrial formada com o êxodo rural e com a industrialização atinente ao período (COSTA, 2015). O viés contido no movimento atual, todavia, se apropria da concepção tradicional de filantropia, utilizando-se de fundações e institutos que são criados a partir de empresas e que se articulam a fim de difundir suas expectativas formativas, especialmente junto à educação básica pública.

promotor e regulador dos serviços, com a inserção de responsabilidades para o chamado setor público não-estatal (BRASIL, 1995).

O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) explica que algumas atividades prescindem de execução pelo poder público, mas devem ser subsidiadas por ele, em uma referência, principalmente, à publicização. Parcerias, assim, precisariam ser estabelecidas entre os setores público e privado, sendo que a educação se constituiu como um dos âmbitos incluídos nessa proposta, pois a formação de capital humano era considerada, pelo PDRAE, como inerente ao desenvolvimento do país, e passível de ser articulada por organizações sociais ou instituições sem fins lucrativos.

Enquadradas no que é conceituado como a Nova Gestão Pública, prescrições similares a essas foram disseminadas como padrões de gestão universais, tornando- se referência para governos de distintos países nesse período, com intervenções e impactos particulares de acordo com o contexto. Esses movimentos de ajuste estrutural são apontados por Frigotto (2011) como parte de um projeto que se conceituava como modernizador, e que mantinha a nação em uma posição de dependência ao capitalismo. Em meio a reformas, privatizações desapropriaram o Estado de seu patrimônio, tornando-o não uma referência social no atendimento às demandas da população, mas uma garantia para o capital. Para o autor, com isso, a sociedade foi reduzida a um conjunto de consumidores, com a subsunção dos indivíduos ao mercado e com a educação não sendo mais um "direito social e subjetivo, mas um serviço mercantil" (FRIGOTTO, 2011, p. 240).

Organismos internacionais também corroboraram com tais processos. O Banco Mundial se destaca como um dos principais e, mais que atuar de modo incisivo a partir desse período mobilizando capital, também se comprometeu com o provimento de expertise para as políticas do país (DECKER; EVANGELISTA, 2019). Pesquisas, recomendações e treinamentos foram agregados a financiamentos, com as reformas do país engendradas por Bresser Pereira (economista e Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado entre 1995 e 1998) refletindo muitas das perspectivas do Banco. Na educação, a formação de capital humano como indutora de desenvolvimento social e econômico norteou suas incursões, com esse viés acompanhando suas pautas até a atualidade, quando o conceito de competência foi incorporado aos currículos (DECKER; EVANGELISTA, 2019).

A nova configuração adotada no âmbito público, na época, não reduziu essas relações ao binômio público versus privado, mas resultou em variadas formas de associação19 entre esses setores (PERONI, 2015). Na educação, essa redefinição do papel do Estado materializou diligências que promoveram a privatização, constituindo uma discussão que está além do próprio campo e deve ser tratada como parte "do desenvolvimento do capitalismo e do aprofundamento do domínio do capital em instituições específicas (escolas, faculdades, universidades etc.) na sociedade contemporânea" (RIKOWSKI, 2017, p. 395). Quando as instituições educativas são privatizadas, "as atividades, processos e formas pedagógicas envolvidas na produção de força de trabalho também são necessariamente privatizadas" (RIKOWSKI, 2017, p. 396). A educação mobiliza, assim, a reprodução social do capitalismo, de suas perspectivas, de sua lógica e de seus valores.

Antes de avançar, cabe frisar que, por mais que recrudescidas na década de 1990 e a partir dela, as ações que articulam o público e o privado, movendo diferentes formatos de privatização, são históricas no país. Cunha (2007), ao analisar a questão, destaca como no período da ditadura (1964-1985) a iniciativa privada foi favorecida pelos governos, já que suas instituições recebiam incentivos, isenções e recursos sob a interface de bolsas de estudo. Com a abertura democrática, diminuiu-se o aporte público a essas escolas, já que os fundos do salário-educação (tributo criado em 1946 e regulamentado em 1964, no qual empresas transferem uma contribuição específica para a educação), após 1985, passaram a ser direcionados somente ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, não podendo mais ser induzidos ao Ensino Fundamental de oferta privada. O autor ratifica, então, a prevalência do mercado no período posterior a 1990, indicando-a não somente como relativa à Educação Básica, mas incluindo, por meio da LDB (BRASIL, 1996), a possibilidade de lucro no Ensino Superior oferecido em instituições particulares20.



19 Sakata e Melo (2021) indicam que as diferentes configurações do privado, de forma específica na educação as organizações da sociedade civil, atuam como Aparelhos Privados de Hegemonia (conforme Gramsci) direcionando tomadas de decisão basilares ao campo educativo e agindo em busca de uma unidade entre os âmbitos público e privado. Além de fundações e institutos, organismos internacionais também podem ser considerados APHs, concentrando suas atividades na busca de uma coesão social que reflita suas intenções. Como um exemplo, a Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas, tem sido divulgada mundialmente, com diferentes grupos nacionais auxiliando na disseminação de suas prescrições. Mais informações sobre essa estratégia podem ser encontradas em: http://www.catedraunescoeja.com.br/agenda-educacao-2030.html. Acesso em 25 de abril de 2022.

20 Nos anos 2000, a lógica da digressão de Cunha (2007) é reafirmada, com legislações sendo aprovadas a fim de tornar ainda mais fluidas as condições para parcerias público-privadas se

O empresariamento da educação passou a se efetivar, nesse cenário, sob diferentes processos, gerando distintos efeitos e atingindo as variadas esferas do campo educativo. Nessa direção, Andrade, Silva e Lamarão (2021, p. 313 e 314) destacam que:

entende-se que esse processo de empresariamento, de um lado, ilumina a tendência do capital de, ao desenvolver a dialética do seu devir, abranger e subjugar à sua lógica todas as condições de produção e reprodução social. De outro, deixa transparecer na educação, ainda que sob argumentos aparentemente legítimos, a primazia do mercado, o ataque aos direitos e garantias sociais, a hegemonia da concepção econômica da educação, a fragilidade da democracia brasileira e o alinhamento da educação ao nexo da dependência.


Dimensões são constituídas para tal materialização, com a política educacional sendo orientada por pesquisas, assessorias e avaliações realizadas por corporações; com a publicidade adentrando as escolas por meio de patrocínios e programas filantrópicos; com softwares e sistemas padronizados que são comercializados para orientar a gestão da escola; com apostilamentos elaborados por grupos privados e vendidos a redes públicas que afirmam melhorar a aprendizagem discente; entre outros formatos, alguns já mencionados neste estudo. Rikowski (2017) discute, a partir da diferenciação entre privatização da e na educação, as conexões entre tais dimensões, alertando acerca de movimentos que buscam a apropriação de fundos públicos pelo setor privado a fim de obter lucros (privatização da educação) e de outros que se direcionam à "tomada de controle sobre a educação por parte das empresas que não envolvem propriedade" (RIKOWSKI, 2017, p. 400), por meio de contratos que sacramentam parcerias (privatização na educação).

Amplamente divulgadas, propostas como essas se tornam rotineiras no ambiente micro institucional da escola, o que não acontece sem implicações. Com demandas, temas, conteúdos e a própria avaliação dos processos educativos sendo estabelecidos fora da esfera de participação dos sujeitos implicados nas relações de ensino-aprendizagem, ocorre um esvaziamento democrático das instituições escolares. Isso, por sinal, não é um problema para a racionalidade neoliberal. Pelo contrário, é um de seus objetivos, pois o neoliberalismo entende a democracia como prejudicial ao desenvolvimento e à qualidade dos serviços já que, como grupos


concretizarem, como a Lei 11.079/2004, que institui normas para contratações e licitações no âmbito público (BRASIL, 2004).

políticos teriam que acolher as demandas dos eleitores para se manterem no poder, governantes agiriam de forma irresponsável, tornando o aparelho estatal improdutivo. Desse modo, medidas constitucionais precisariam ser tomadas a fim de conterem as ações dos governos, colocando no mercado os instrumentos para seu controle (PERONI, 2015).

Nesse movimento, ao mesmo tempo em que se advoga pelo afastamento do Estado do atendimento de necessidades dos cidadãos, planifica-se a “naturalização do possível” (PERONI, 2015, p. 27). Passam a ser aceitos pela população serviços públicos em geral – e educacionais em particular –, precários e/ou que não alcançam a totalidade dos cidadãos, priorizando-se apenas grupos vulneráveis diante da conformação com discursos de crise (difundida como estatal, mas estrutural, como Mészáros (2011), esclarece). Ao invés de sistemas públicos de educação com qualidade para todos, por exemplo, a escola mantida pelo Estado é normalizada como aquela direcionada aos mais pobres, recebendo os recursos possíveis (que são estimulados a serem complementados por meio do apoio da comunidade e de iniciativas locais); oferecendo salários pouco atrativos (mas que seriam contornados por uma vocação individual dos professores para educar que os levaria a se dedicar e empreender no trabalho); e formando de modo utilitarista e aligeirado seus alunos que, por serem de classes populares, precisariam se inserir com rapidez no mercado.

Montaño (2010, p. 185) aprofunda essa questão ao argumentar que o padrão de resposta exigido aos problemas sociais é reconfigurado pelo neoliberalismo, sendo orientado pela “desresponsabilização do Estado, [...] desoneração do capital e [...] auto responsabilização do cidadão e da comunidade local”. A partir de alterações que atingem a cultura, os valores, o perfil do cidadão, a legislação e a própria base democrática, direitos sociais universais são transformados ou em serviços que podem ser oferecidos pelo mercado ou pela sociedade civil; ou são descentralizados pela municipalização e pelo gerenciamento via terceiro setor; ou, ainda, oferecidos de maneira precarizada pela administração pública, sendo destinados a apenas uma parcela da população considerada mais carente (MONTAÑO, 2010). Esse movimento reformador institui um novo contrato social, em que “solidariedade social e universalidade e direito dos serviços” são substituídos por “solidariedade local, auto- ajuda [sic] e ajuda mútua” (MONTAÑO, 2010, p. 184).

O chamado terceiro setor se converte em um dos protagonistas na direção e na execução de políticas sociais, inclusive no âmbito educacional, como citado por Peroni (2015), tornando-se parte das respostas às demandas sociais através de “organizações da sociedade civil e empresariais” (MONTAÑO, 2010, p. 186). Sua nomenclatura subentende a existência de outros dois setores em contraposição a ele: o Estado e o mercado. No entanto, parcerias entre esses três âmbitos são habituais, sendo realizadas em busca de financiamento, de publicidade ou, até mesmo, de dedução de impostos21, principalmente quando fundações ou institutos possuem vínculo explícito com empresas, o que denota sua proximidade com o mercado. Esses entrelaçamentos, para Peroni (2015, p. 48), explicitam que o terceiro setor, longe de representar “a complexidade do todo social”, se caracteriza como uma materialização dos interesses das elites dirigentes quanto ao modo como o Estado precisa ter seu funcionamento estabelecido.

Além disso, Montaño (2010) pondera que a utilização do termo terceiro setor em detrimento ao de sociedade civil é parte das artimanhas ideológicas do pensamento neoliberal para substituir um viés de lutas de classes por outro, esvaziado, despolitizado e acrítico. O terceiro setor passa a ser tratado como um conjunto de consumidores que precisa assumir responsabilidades e atenuar problemas sociais sob o argumento de democratização da sociedade. Contudo, essa percepção desconsidera a correlação de forças presente na coletividade e reforça a conotação de que lucros podem ser privatizados, enquanto os prejuízos (especialmente sociais) devem ser publicizados. Promove, de tal forma, deslocamentos:

de lutas sociais para a negociação/parceria; de direitos por serviços sociais para a atividade voluntária/filantrópica; da solidariedade social/compulsória para a solidariedade voluntária; do âmbito público para o privado; da ética para a moral; do universal/estrutural/permanente para o local/focalizado/fortuito (MONTAÑO, 2010, p. 200).



21 A Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil número 1700, de 14 de março de 2017, no Capítulo XXVIII, artigo 139, estabelece que doações para entidades sem fins lucrativos (que por si não são alvo de cobrança de impostos, conforme o artigo 150 da Constituição Federal de 1988) podem ser utilizadas para dedução de impostos de pessoas jurídicas, desde que seguidas as orientações legais expostas na norma. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=81268. Acesso em 14 de dezembro de 2021.

Os grupos que estabelecem tais parcerias não agem apenas isoladamente, respondendo a um ou outro chamamento do poder público, mas constantemente atuam de forma articulada e se organizam em “redes do local ao global, com diferentes graus de influência e que falam de diferentes lugares: setor financeiro, organismos internacionais, setor governamental” (PERONI, 2015, p. 23). Essas redes são compostas de maneira complexa por sujeitos (que podem ser individuais, mas que se constituem como predominantemente coletivos) que colaboram com a privatização, nos termos já citados por Peroni (2015), da educação. Em parcerias com a esfera estatal ou promovendo seus próprios projetos, mesmo sem fins lucrativos – pelo menos explícitos –, desenvolvem suas ações por meio de processos e representam projetos societários de classe (PERONI, 2015).

Quem conduz essas redes é a chamada “nova filantropia”, como caracterizam Ball e Olmedo (2013, p. 33), que altera a forma como a política educacional, empresas e filantropos se relacionam, disseminando “soluções inovadoras e velhas soluções para problemas sociais e de desenvolvimento ‘baseadas no mercado’ [...] através do surgimento de uma nova elite global, conectada em rede, formada por promotores de políticas e ‘novos’ filantropos”. Sem renunciar à possibilidade de que lucros possam ser obtidos por meio de suas atividades sociais, esses grupos costumam se inspirar em suas próprias trajetórias pessoais, citadas como de sucesso e de empreendedorismo. Como os autores apontam, defendem a racionalização de recursos para o alcance de melhores resultados, e a resolução de problemas complexos através de receituários genéricos e replicáveis em contextos distintos.

Em uma visão acrítica do mercado, levantam questionamentos acerca da participação democrática e, também, sobre a responsabilização do poder público na provisão de direitos e de políticas sociais. Sua lógica neoliberal orienta uma comunidade discursiva (BALL; OLMEDO, 2013), motivando novas ideias de políticas que não são iniciativas aleatórias, mas que se reproduzem em diferentes espaços e por diversas redes. Além disso, os vínculos entre os grupos auxiliam na constituição de “redes dentro de redes” (BALL; OLMEDO, 2013, p. 41), em que o capital desses sujeitos – seja econômico ou simbólico – é mobilizado para facilitar novas parcerias e promover a criação de outros projetos, ampliando sua divulgação e seu alcance. Compartilhando conhecimento, interesses, objetivos e publicidade, estabelecem-se conexões sociais, políticas e econômicas que não se resumem a um vínculo

específico para a promoção de um dado projeto, porém articulações estruturadas, que fortalecem o poder e a abrangência das redes (BALL; OLMEDO, 2013).

No Brasil, a orientação da política educacional por tais comunidades – formadas predominantemente por sujeitos coletivos e articulados ao empresariado –, é temática de pesquisas como a de Shiroma, Campos e Garcia (2011), que retrata a influência do Movimento Todos pela Educação, com a difusão do documento “Todos pela educação: rumo a 2022”, na elaboração do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), pelo governo federal, ainda em 2008. Como as autoras relatam, a Fundação Lemann, a Fundação Jacobs e o Grupo Gerdau organizaram a Conferência “Ações de Responsabilidade Social em Educação: melhores práticas na América Latina”, em 2006, apoiada pelo Preal22, que resultou no documento “Compromisso Todos pela Educação”. Essa proposta, articulada por entidades filantrópicas vinculadas a grupos empresariais, com o apoio de organismos internacionais, teve suas constatações utilizadas para elaborar o PDE, universalizado como ferramenta de gestão das escolas públicas.

Por meio de iniciativas como essa, as decisões acerca do que seria adequado ou não para o campo educativo passam a ser definidas não por seus profissionais, e em ações democráticas e participativas de tomadas de decisão. Devido à disseminação do entendimento de que as instituições públicas são ineficientes e de que a democracia é prejudicial ao desenvolvimento, retira-se do âmbito estatal o poder decisional, com o próprio poder público desobrigando-se de deliberar acerca de questões que seriam de sua responsabilidade. Institutos, fundações e demais entidades alicerçadas em premissas gerenciais ocupam esse espaço e dão respostas e soluções particulares para os problemas públicos, inclusive educacionais, de acordo com suas disposições.

Essas comunidades de políticas, que se fortalecem nos processos de redefinição do papel do Estado, organizam-se e definem a pauta educacional, favorecendo movimentos privatistas e modificando o conteúdo da educação pública. Propondo, promovendo e divulgando iniciativas articuladas à racionalidade neoliberal, essas redes reforçam concepções que alteram a forma como a educação é conceituada e, em relação a ela, também as expectativas quanto àquilo que se espera


22 Programa para Reforma Educacional na América Latina e Caribe, criado em 1996, afirmava contribuir para o debate acerca das políticas educacionais, realizando avaliação e monitoramento, e divulgando boas práticas (WERLANG; VIRIATO, 2018).

do professor e de seu fazer. Aproveitando-se do cenário de precarização do trabalho apresentado na seção anterior, a filantropização da educação retira a autonomia do professor, esvazia seu espaço de decisão e ocupa-se do lugar que seria o de sua sapiência, de sua criatividade, de sua percepção profissional acerca daquilo que seria adequado aos estudantes com os quais interage. Ocorre, assim, a privatização de sua intelectualidade, com o empresariamento da educação e sua ocupação pela filantropia destituindo o professor, de modo dissimulado, mas também arbitrário, do que é intrínseco ao seu ofício.

Por mais que em algumas propostas a criatividade do professor seja estimulada, como no caso do Prêmio Educador Nota 10, já mencionado neste estudo, os processos autorais dos docentes restringem-se a inovar apenas nos métodos. Os saberes a serem abordados são delimitados pela premiação, estando articulados a bases curriculares. Não que se advogue por uma espécie de anarquia pedagógica e se prescinda de orientações que proporcionem conhecimentos em comum para os estudantes de realidades distintas, mas almeja-se que o currículo inclua discussões democráticas, amparadas em estudos e pesquisas acadêmicas nas quais os professores da educação básica sejam considerados (contraditoriamente ao modo como parte substantiva de documentos orientadores foram elaborados até então). Quando o professor é estimulado a criar, nessas iniciativas promovidas pelo empresariado filantrópico, o que se motiva é uma criatividade vigiada, concernente às prescrições aprovadas pelos grupos mercantis e a suas perspectivas formativas e societárias.

É como se ocorresse uma cedência da consciência deliberativa do docente ao projeto empreendido pela filantropia. Cedência esta que não é autoritária, mesmo assim é agressiva, sendo disfarçada pela ideia de auxílio a um professor cansado e sem tempo para investir em seu planejamento. Desgastado e em uma relação de estranhamento ao seu trabalho, concede-se à iniciativa privada o poder de pensar, planejar e deliberar sobre sua atuação pedagógica, restando ao docente a tarefa de executar uma proposta filantropizada, mas calcada nos interesses societários do capital e de suas expectativas formativas. Afinal, a fragilização dos processos formativos docentes e a desestruturação das carreiras23 acaba por ocasionar o


23 Como Venco e Garcia Sanchez (2021, p. 266) rememoram, com a incursão neoliberal nas políticas públicas educacionais, “a realização de concursos públicos para provimento do cargo de professor da educação básica foi tornando-se cada vez mais rara e, em consequência, as relações de trabalho foram

acúmulo de escolas, horas-aula e disciplinas por um mesmo profissional a fim de que subsista economicamente, com perdas salariais e de direitos, típicas da precarização de seu trabalho, normalizando essas investidas.

Essa sobrecarga acaba por tornar o docente, além de vítima, cúmplice (mesmo que inconscientemente) ao, muitas vezes, se submeter e encorajar a adesão a programas que o estão desacreditando profissionalmente. Sua condição proletária, os desgastes físicos, emocionais e psíquicos do trabalho estranhado ao qual é submetido e as pressões para seu controle e submissão fazem com que muitos profissionais vejam com inocência projetos que, indiretamente, o entendem como incapaz de realizar seu ofício com propriedade. Usando-se de seu espaço para promover uma formação que incentiva a reprodução social do capitalismo, como abordado por Rikowski (2017), a filantropia empresarial reforça na docência a precariedade que atinge os trabalhadores hodiernos, ao mesmo tempo em que garante essa mesma condição àqueles que, agora, ainda se preparam para tornar-se parte da classe-que- vive-do-trabalho (ANTUNES, 2000).

Não que antes dessa incursão neoliberal houvesse a plena preservação da intelectualidade docente, de sua autonomia e de sua criatividade, especialmente no Brasil, que carrega uma tradição política patrimonialista e despreocupada com um modelo educativo com qualidade social para as classes populares24. Da mesma forma, não se defende, neste estudo, o professor como um profissional que, isoladamente, possa contornar todos os dilemas e as dificuldades de seu trabalho. Contudo, discutir esse processo complexo que filantropiza à docência, privatizando a intelectualidade do professor e inserindo no cotidiano escolar projetos próprios e com fins particulares, evoca a necessidade de articulação da classe, de fortalecimento do coletivo de trabalhadores e de busca pela superação do modelo vigente, o que não depende somente da educação, mas tampouco ocorre sem ela.


sendo flexibilizadas, por meio de contratos temporários e logrando uma condição de quasi-uberização”. Sem a estabilidade profissional, elementos importantes para o bem-estar laboral do docente, como tempo para planejamento, preferência pela permanência em uma mesma escola e atuação específica na disciplina para a qual tem formação (para mencionar alguns pontos problemáticos) acabam sendo desconsiderados. A qualidade de vida do professor acaba sendo prejudicada, e consequentemente de seu próprio trabalho, favorecendo a concessão intelectual a agentes externos, abordada neste artigo. 24 Um dos principais modelos adotados na cultura política brasileira foi o patrimonialismo, definido pela ausência de separação entre os âmbitos público e privado, que resultava na utilização da estrutura estatal para a concessão de favores objetivando vantagens particulares (FILGUEIRAS, 2018). Seguido pelo padrão burocrático e, em seguida, pelo gerencialismo, seus efeitos seguem enraizados nas decisões políticas, sendo, inclusive, agravados pela associação a elementos neoliberais na atualidade.

Considerações finais


O empresariamento da educação, promovido em parte por sua filantropização, se insere diante de movimentos que buscam manter a racionalidade do capital como norteadora dos modos de vida, atingindo não somente questões econômicas, mas interferindo nas dimensões ética, social, cultural e política dos sujeitos. A intensificação de ações – e de seus efeitos – sobre a educação, contudo, não pode ser interpretada em uma perspectiva hegemônica.

Como Laval (2019, p. 22) aponta, “a educação pública é um campo de forças, um confronto de grupos e interesses, uma luta constante de lógicas e representações. As relações de forças não são nem inerentes, nem inevitáveis”. Na realidade das escolas, muitos projetos são materializados como meios para contrapor iniciativas impostas por grupos externos, sendo pautados nas singularidades dos sujeitos, na educação popular, na criatividade e no protagonismo de docentes, estudantes e comunidades. Inclusive, a gestão local da educação se constitui como alternativa para que não sejam recriadas burocracias estatais, nem o entendimento de que a adesão à perspectiva de mercado nas escolas seria a única possibilidade educacional (BARROSO, 2002). Essa dicotomia, para Barroso (2002, p. 193), precisa ser superada pelo “equilíbrio entre intervenção do Estado, a participação dos cidadãos e o profissionalismo dos professores”, indicados pelo autor como sujeitos que devem associar, em sua prática, “a dimensão técnica de especialistas responsáveis pela organização do seu próprio trabalho, com a dimensão ética de agentes sociais vinculados a uma missão de serviço público” (2002, p. 194).

Além disso, a recuperação do status dos sindicatos, enfraquecidos como parte das artimanhas do capital a fim de desarticular as lutas dos trabalhadores, é imprescindível para reaver direitos destituídos e para reconquistar o reconhecimento do docente como um profissional que precisa ter sua autonomia, criatividade e intelectualidade respeitadas. A luta coletiva e a proteção da classe colaboram com o enfrentamento ao empresariado travestido de filantropia que toma posse de um espaço que não é seu, mas dos docentes, de seus estudantes e das comunidades, que devem reaver sua posição e reconquistar aquilo que é o coração, mas também o cérebro e as mãos da sociedade: a escola pública.

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