V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


MOVIMENTO E RESISTÊNCIA INDÍGENA NO CONTEXTO PANDÊMICO BRASILEIRO1


Luiz Eloy Terena2


Resumo

O texto oferece um panorama do contexto da política indigenista brasileira, bem como as articulações que o movimento indígena brasileiro, liderado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), está empreendendo na atualidade. Ao mesmo tempo, deixa claro como as lutas dos povos indígenas pela defesa de seus direitos, especialmente o territorial, estão conectadas às demais lutas sociais. Para tanto, chamamos a atenção para o modelo de desenvolvimento que afeta de maneira negativa os territórios tradicionais, por meio das estruturas políticas e econômicas do capital.

Palavras-Chaves: Resistência Indígena; Lutas Sociais; Política Indigenista.


MOVIMIENTO Y RESISTENCIA INDÍGENA EN CONTEXTO DE PANDEMIA EN BRASIL


Resumen

El texto ofrece un panorama del contexto de la política indígena brasileña, así como de las articulaciones que el movimiento indígena brasileño, liderado por la Articulación de los Pueblos Indígenas de Brasil (APIB), está realizando actualmente. Al mismo tiempo, queda claro cómo las luchas de los pueblos indígenas por la defensa de sus derechos, en especial los derechos territoriales, se conectan con otras luchas sociales. Para ello, llamamos la atención sobre el modelo de desarrollo que afecta negativamente a los territorios tradicionales, a través de la estructura política y económica del capital.

Palabras clave: Resistencia Indígena; Luchas Sociales; Política Indígena.


INDIGENOUS MOVEMENT AND RESISTANCE IN THE BRAZILIAN PANDEMIC CONTEXT


Abstract

The text offers an overview of the context of Brazilian indigenous policy, as well as the articulations that the Brazilian indigenous movement, led by the Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), is currently undertaking. At the same time, it is made clear how the struggles of indigenous peoples to defend their rights, especially territorial rights, are connected to other social struggles. Therefore, we draw attention to the development model that negatively affects traditional territories, through the political and economic structures of capital.

Keywords: Indigenous Resistance. Social Struggles. Indigenous Policy.


1 Artigo recebido em 19/01/2022. Primeira Avaliação em 06/02/2022. Segunda Avaliação em 09/02/2022. Aprovado em 24/02/2022. Publicado em 28/03/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52886.

2 Pós doutorado na École des Hautes Études em Sciences Sociales – França. Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ) – Rio de Janeiro / Brasil. Advogado Indígena da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. E-mail: advluizeloy@gmail.com; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9073-6086; Lattes: http://lattes.cnpq.br/9277948314977.


Considerações iniciais


A luta dos povos indígenas não pode ser vista de maneira desconectada das questões políticas, econômicas e sociais que afetam o país. Não há dúvida de que o fundamento jurídico da proteção aos territórios indígenas e demais direitos sociais irradia a identidade étnica, configurando direitos identitários. No entanto, temos observado que os desafios postos para a efetivação dessa proteção constitucional3 e seus entraves estão justamente no conflito com os interesses políticos e econômicos que recaem sobre tais territórios.

Vivenciamos um contexto extremamente adverso aos povos indígenas, no que tange a implementação da política indigenista, marcado especialmente pela conduta autoritária e colonial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que vem atuando na contramão dos direitos e interesses dos povos indígenas, não promovendo a proteção territorial, facilitando a exploração dos territórios, perseguindo e criminalizando lideranças indígenas e abandonando a defesa judicial de comunidades indígenas, entre outros4. Em grande medida, problemas estruturais que afetam os territórios indígenas recrudesceram nos últimos anos, aliados à postura da atual gestão do presidente Jair Bolsonaro, o qual desde o início adotou medidas que privilegiaram o mercado e o agronegócio em detrimento dos direitos indígenas e da proteção ao meio ambiente. Em nome de um suposto desenvolvimento, tem-se incentivado a exploração nos territórios indígenas5, fato que está intimamente relacionado ao aumento das invasões, atividades ilegais de garimpo, aumento do desmatamento, queimadas ilegais e grilagem de terra pública.

Aliado a isto, deve-se levar em consideração a pandemia da Covid-19, que afetou imensamente as comunidades indígenas e expôs as vulnerabilidades do subsistema de atenção à saúde indígena, os aspectos estruturais da falta de demarcação dos territórios tradicionais e a negação aos direitos identitários dos povos originários, não só no campo do direito territorial (tendo como exemplo o


3 A Constituição Federal dispõe de um capítulo específico dedicado à proteção dos territórios e modos de vida dos povos originários. Ver artigos 231 e 232 da CF/88.

4 Sobre isso, é importante consultar a Ação Civil Pública (ACP) protocolada pela APIB e pela Defensoria Pública da União (DPU) na Justiça Federal de Brasília, requerendo o afastamento do presidente da FUNAI. Disponível em https://apiboficial.org/2021/10/05/apib-e-dpu-pedem- afastamento-do-presidente-da-funai-na-justica/, acesso 14.Dez.2021.

5 Em fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro enviou para o Congresso Nacional o Projeto de Lei Nº 191/2020, que autoriza a exploração mineral em terras indígenas.

marco temporal), mas também, no que tange aos direitos sociais (acesso à saúde, educação escolar indígena, assistência social, dentre outros) e aos direitos e garantias fundamentais dos indígenas presos e processados.

Em tempos tão difíceis que marcaram a humanidade, os povos indígenas demonstraram profunda capacidade de articulação e trânsito entre práticas e saberes. É a partir deste pressuposto que queremos chamar atenção para alguns elementos iniciais: a) a capacidade do movimento indígena brasileiro se articular e se reinventar frente ao contexto e às estruturas opressoras; b) o formato de incidência a partir da prática da advocacia indígena; c) a eleição de casos para litigar estrategicamente perante o Supremo Tribunal Federal; e, d) a busca constante de diálogo entre os anseios do movimento indígenas e a academia.

A capacidade do movimento indígena de se reinventar e se apropriar de novos signos e instrumentos para fazer frente às violações de direitos de povos e comunidades tem sido objeto de reflexão no campo da antropologia e da ciência política. Citam-se expressamente os trabalhos de Pacheco de Oliveira (1988), Bicalho (2010), Oliveira (2010), Ferreira (2013, 2018) e Verdum & Paula (2020). Também se confere atenção especial para trabalhos produzidos por pesquisadores indígenas Gersem Baniwa (2007), Tonico Benites (2014) e Eloy Terena (2019).

Quando se aborda o movimento indígena é comum tomar como marco o movimento ocorrido nos idos da década de 1970 e 1980. Embora seja inegável a mobilização indígena e os avanços conquistados nesta situação histórica, costumo chamar atenção para a necessidade de frisar que o movimento indígena brasileiro nasceu desde o primeiro momento em que um líder indígena fez oposição ao processo colonial, ainda no período da Coroa Portuguesa. De lá para cá, em cada situação histórica6 houve variadas formas de resistência indígena, cada qual com seus agentes políticos, agendas e estratégias próprias.


6 De acordo com Pacheco de Oliveira (2015, p. 49): “Duas observações são necessárias para concretizar a ideia de situação histórica, caracterizando o tipo de modelo que exige. Em primeiro lugar, não se trata de um modelo que descreve o funcionamento idealizado de uma sociedade, no sentido p. ex., do trabalho dos antropólogos ingleses em African political systems (1975). Também não se trata de um modelo ideológico, correspondendo à visão de um grupo sobre o funcionamento da sociedade. O modelo implicado pela situação histórica traça um quadro explicativo da distribuição de poder numa sociedade, abrangendo tanto normas gerais acatadas por seus grupos componentes quanto visões particulares e manipulações dessas normas atualizadas apenas por um dos seus segmentos. Nesse sentido, o modelo referido é, então, uma construção do observador com intuitos analíticos, não se restringindo à ordem jurídica (legal, constitucional) ou ao plano da consciência dos atores, mas procurando apreender a capacidade ordenadora efetiva desses elementos em relação aos processos sociais concretos”.

Nesta reflexão incipiente, faz sentido tomar como ponto de análise o movimento indígena pós-constituinte de 1988. As configurações da mobilização indígena pós União das Nações Indígenas (UNI), passando pelo Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (CAPOIB), até o formato atual de Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), pode ser objeto de estudo próprio, que não se comporta neste ensaio curto7. Entretanto, é perceptível que a forma de organização indígena vem se reinventando e se apropriando de vários símbolos e instrumentos. Isto ficou visível no ano de 2020 e 2021, quando o mundo foi assolado pela pandemia de Covid-19.

Em outro trabalho (ELOY AMADO e RIBEIRO, 2020), fez-se um sobrevoo sobre as primeiras ações engendradas pela APIB no início da pandemia. Enquanto muitos duvidavam da violência viral, situação agravada pela postura negacionista do governo brasileiro, a coordenação executiva da APIB decidiu suspender o Acampamento Terra Livre (ATL)8, como forma de resguardar suas lideranças, convocando sua realização para um novo formato – o on line. Este fato por si só já é contra hegemônico, tendo em vista que está no auge a discussão sobre o direito à identidade cultural. Ver indígenas com celulares, ocupando as redes sociais e até mesmo usando tênis Nike, por incrível que pareça, ainda é objeto de discussão capaz de colocar em xeque a identidade étnica de pessoas indígenas no Brasil. Além de realizar o ATL on line, as lideranças organizaram a Assembleia Nacional da Resistência Indígena9, que reuniu lideranças de diversos lugares do país, autoridades estatais e pesquisadores de vários centros de pesquisa. Com o avanço do vírus nas comunidades, as incidências indígenas foram difusas, desde o contexto

7 Sobre isto, ver Eloy Amado (2019).

8 A respeito do Acampamento Terra Livre: “A instância superior da APIB é o Acampamento Terra Livre (ATL), a maior mobilização indígena nacional, que reúne todo ano, na esplanada dos ministérios, em Brasília-DF, a capital do Brasil, mais de 1000 lideranças de todas as regiões do país, sob coordenação dos dirigentes das organizações indígenas regionais que compõem APIB. O ATL permite o intercâmbio de realidades e experiências tão distintas, a identificação dos problemas comuns, a definição das principais demandas e reivindicações, e a deliberação sobre os eixos programáticos e ações prioritárias da APIB (APIB. Quem somos? Disponível em

<https://apiboficial.org/sobre/>. Acesso em: 23 fev. 2022).

9 A APIB realizou nos dias 08 e 09 de maio de 2020, a Assembleia Nacional da Resistência Indígena, com o objetivo de reunir lideranças indígenas e pesquisadores das mais diversas áreas, e junta elaborar o plano de enfrentamento à pandemia. Na carta de chamada, a APIB pontuou que “a atuação das instituições públicas não é apenas ineficiente como irresponsável, pois houve casos de contaminação causados por pessoas a serviço da Sesai nos territórios. Em paralelo à pandemia, os povos indígenas continuam enfrentando, dentro dos seus territórios, ataques de criminosos já conhecidos, como grileiros, garimpeiros e madeireiros. Ou seja, além da pandemia estão precisando lidar com aumento de criminalidade que, muitas vezes, encontra incentivo e apoio no discurso e nas medidas institucionais do atual governo” (APIB, 2020).

local frente às prefeituras, até globais, nos organismos internacionais, abordando dimensões políticas, judiciais, administrativas e junto à sociedade civil.

Dentre as inovações perpetradas pelo movimento indígena destaca-se a prática da advocacia indígena. Refletir sobre esta categoria analítica requer um espaço maior e não é um objetivo final deste texto, mas tal dimensão de atuação deve ser levada em consideração neste momento atual em que os povos indígenas demandam cada vez mais o direito de participação. Falar da advocacia indígena nos remete a analisar o processo de chegada dos indígenas no ensino superior, extremamente relacionada à decisão política das lideranças de enviar seus jovens para as universidades10.

As lideranças indígenas foram visionárias ao estabelecer a “luta com a caneta, não mais apenas com o arco e flecha”. O trabalho da pesquisadora indígena Simone Eloy Amado (2018), nos ajuda a entender essa dimensão a partir da experiência do Mato Grosso do Sul. Atualmente existe um número considerável de advogados e advogadas indígenas que estão atuando nos departamentos jurídicos da APIB, COIAB, APOINME, Conselho Terena e outras organizações indígenas de base. A prática da advocacia indígena é executada de forma alinhada com as orientações das lideranças indígenas. Tais orientações podem ser de ordem política e até mesmo espiritual, por meio dos ancestrais. O local vai desde o chão batido da aldeia ou retomado, até os mais variados tribunais. Nem sempre são compatíveis com os procedimentos positivistas da ciência jurídica ou da ortodoxia dos tribunais. Por isso, em muitos aspectos, a prática se aperfeiçoa como método contra hegemônico e seu sentido só é perceptível ao final, quando os encantados proclamam a vitória indígena, nem sempre bem compreensível pela tradicional prática jurídica11.

A eleição de casos estratégicos está relacionada à advocacia indígena e às formas de atuação do movimento indígena. Pensar a litigância estratégica é levar em consideração vários fatores que indicam o sucesso da demanda judicial proposta. No contexto em questão neste trabalho, a situação de agravamento da crise sanitária e as sondagens feitas junto a especialistas que observam os


10 Sobre educação superior indígena, ver os seguintes autores: Souza Lima (2007, 2008, 2016, 2018) Souza Lima & Barroso (2013a); Souza Lima & Barroso-Hoffmann (2007), Souza Lima & Paladino (2012a, 2012b), Vianna et al. (2014), Amado (2016), Eloy Amado & Brostolin (2011) e Guimarães & Villardi (2010, p. 19).

11 Sobre este tema, ver: Alfinito, Ana Carolina & Eloy Amado (2021).

Tribunais foram decisivas para eleger e construir o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, proposta pela APIB no Supremo Tribunal Federal (STF). Além de pensar o litígio em termos jurídicos e políticos, foi necessário adentrar outros campos de conhecimento, notadamente o da saúde coletiva, prestação de assistência à saúde indígena, proteção territorial, monitoramento ambiental e aspectos específicos referentes aos povos indígenas isolados e de recente contato. Na mesma senda, podemos falar da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6622, proposta pela APIB no STF, questionando dispositivo da Lei n.14.021/2112 que permitiu a presença de missões religiosas em terras com presença de povos isolados e de recente contato13.

Ademais, aliado a tudo isso se encontra a capacidade de transitar entre os anseios do movimento indígena e a academia. Os saberes produzidos pelos cientistas, aliado à estratégia política e tradicional, servem de base para a incidência do movimento indígena. A prática da pesquisa-ação nesta situação é preponderante, haja vista a constante reivindicação para que os cientistas deixem suas torres de marfim e conectem o conhecimento à prática social. Este aspecto tem mão dupla, pois exige, de igual modo, por parte dos indígenas, a disposição para transitar entre os saberes tradicionais e os saberes que estão sendo produzidos intramuro das universidades.


Conjuntura da política indigenista brasileira


O principal aspecto que marca a atual conjuntura da política indigenista brasileira é o contínuo processo de violação aos direitos dos povos indígenas. A questão indígena está na agenda política e econômica do país. Em fevereiro de 2021, com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o Governo Federal, na gestão do presidente Jair Bolsonaro, apresentou


12 “Art. 13. Fica vedado o ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados, salvo de pessoas autorizadas pelo órgão indigenista federal, na hipótese de epidemia ou de calamidade que coloque em risco a integridade física dos indígenas isolados. § 1º As missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades indígenas deverão ser avaliadas pela equipe de saúde responsável e poderão permanecer mediante aval do médico responsável”.

13 Para saber mais, leia o texto “O indigenismo de exceção: o planalto e suas novas normativas”, de Luiz Eloy Terena, Miguel Gualano de Godoy e Carolina Santana. Disponível em:

<https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-indigenismo-de-excecao-o-planalto-e-suas-novas- normativas-20022021>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

novo pacote de pautas prioritárias para serem aprovadas14. Dentre elas, inclui-se o Projeto de Lei n. 191/20, o qual basicamente trata de priorizar, em plena pandemia, a abertura das terras indígenas à exploração minerária.

O problema da mineração e do garimpo em terras indígenas (que traz consigo toda sorte de mazelas, como poluição ambiental e violência) já existe, mesmo sem a sua regulamentação em lei. A despeito disso, o presidente Jair Bolsonaro insiste em buscar essa autorização legislativa, subvertendo a hierarquia de valores inscrita no direito constitucional brasileiro e no direito internacional. Com tal prioridade em sua agenda econômica, desconsiderando as manifestações de vontade dos povos afetados15, constrói-se o quadro dos direitos indígenas como entraves à prosperidade econômica dos brasileiros, jogando a sociedade brasileira contra os povos indígenas e fornecendo um claro estímulo institucional à invasão de suas terras, o que tem por consequência o acirramento dos conflitos.

Um exemplo disso é que, no dia 25 de março de 2021, a Associação de Mulheres Munduruku Wakoborun, no município de Jacareacanga, no Pará16, foi alvo de ataque perpetrado por garimpeiros e seus aliados, tendo sua sede depredada e incendiada. Há a invasão massiva de garimpeiros ilegais na Terra Indígena (TI) Yanomami, alcançando cifras assustadoras de mais de 20 mil garimpeiros, com devastação de uma área equivalente ao tamanho de 500 campos de futebol17.


14 As propostas do presidente Jair Bolsonaro foram amplamente noticiadas pela imprensa nacional. Conferir em: BRANT, Danielle; MACHADO, Renato; PUPO, Fábio. Prioridades de Bolsonaro para o Congresso incluem reformas econômicas e privatização da Eletrobras. Folha de S. Paulo. 03 fev. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/prioridades-de-bolsonaro- para-o-congresso-incluem-reformas-economicas-e-privatizacao-da-eletrobras.shtml>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

15 Conferir: SUDRÉ, Lu. “Projeto de morte”, diz Apib sobre PL que autoriza mineração em terras indígenas. Brasil de Fato. 07 de fevereiro de 2020. Disponível em:

<https://www.brasildefato.com.br/2020/02/07/projeto-de-morte-diz-apib-sobre-pl-que-autoriza mineracao-em-terras-indigenas>. Acesso em: 23 fev. 2022; APIB. Nota de repúdio contra o Projeto de Lei nº 191/20, que regulamenta exploração de bens naturais nas terras indígenas. 12 de fevereiro de 2020. Disponível em: <https://apiboficial.org/2020/02/12/nota-de-repudio-contra-o-projeto-de-lei-no- 19120-que-regulamenta-exploracao-de-bens-naturais-nas-terras-indigenas/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

16 Conferir: MPF. Ataque de garimpeiros ilegais à sede da associação Wakoborun, de mulheres indígenas Munduruku, no município de Jacareacanga (PA), em 25 de março de 2021. Disponível em:

<http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2021/ataque-garimpeiro-sede-associacao- mulheres-munduruku-jacareacanga-pa-25-03-2021/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

17 Conferir o relatório: Hutukara Associação Yanomami; Associação Wanasseduume Ye'Kwana. Cicatrizes na floresta: evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami em 2020. Boa Vista, 2021. Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/cicatrizes-na-floresta- evolucao-do-garimpo-ilegal-na-ti-yanomami-em-2020>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

A destruição de biomas, a invasão de terras indígenas e a sua contaminação do solo e de rios são implementadas, sobretudo, como um projeto de eliminação dos povos indígenas. Trata-se de um projeto comum aos governos populistas nacionalistas, os quais impõem uma visão excludente e homogênea sobre quem deve ser considerado “povo brasileiro”. Quem não for, deve ser eliminado ou destruído18. Neste sentido, por mais de uma vez o presidente Jair Bolsonaro disse que povos indígenas só teriam direitos se fossem “assimilados”, ou seja, se tivessem sua identidade indígena destruída19.

Outra ilustração dessa pretensão é que, na contramão do debate internacional, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) publicou a Resolução n. 4/2021, que objetiva “definir novos critérios específicos de heteroidentificação que serão observados pela FUNAI, visando aprimorar a proteção dos povos e indivíduos indígenas, para execução de políticas públicas”. A definição de novos critérios específicos de heteroidentificação pretendida pela FUNAI contraria o pluralismo e os direitos inscritos tanto na Constituição brasileira quanto em tratados internacionais de direitos humanos, além de abrir espaço para o Estado brasileiro chefiado pelo presidente Jair Bolsonaro, desaparecer com os povos indígenas sob a unidade homogênea almejada em sua retórica populista nacionalista. Por isso, a APIB reagiu20 e a resolução foi suspensa por força de decisão do STF.

No âmbito da questão ambiental, o governo federal emitiu a Instrução Normativa Conjunta n.1/2021, pela FUNAI e pelo Instituto Brasileiro do Meio


18 De acordo com um Relator Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata da ONU: ”§8. In its most dangerous variants, populism deploys a monolithic exclusionary vision of who qualifies as ‘the people’. Those groups and individuals depicted as excluded from forming a part of ‘the people’ then also become targets of populist antagonism, even if those groups and individuals have no elite status [...] §11. [...] The strategy, then, is not just to target elites, but also to target multiculturalism and members of minority races, ethnicities, and religions as all part of the problem. Racial, ethnic and religious minorities are relegated to the status of illegitimate interlopers whose interests are characterized as oppositional to those of the group exclusively designated as constituting ‘the people’. Thus, when nationalists populists appropriate the language of democratic legitimacy and representation of ‘the people’, this language masks exclusionary and typically racialized conceptions of the nation that are odds with liberal conceptions of democracy” (ONU, A/73/305 Report of the Special Rapporteur on contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia, and related intolerance, 2018, par. 8 e 11).

19 “Vamos integrá-los à sociedade. Como o Exército faz um trabalho maravilhoso tocante a isso, incorporando índios, tá certo, às Forças Armadas”. Globo News, 3 de agosto de 2018; “Com toda a certeza, o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós.” UOL Notícias, 23 de janeiro de 2020.

20 APIB. APIB aciona MPF contra Resolução n. 4 da Funai. 09 de fevereiro de 2021. Disponível em:

<https://apiboficial.org/2021/02/09/apib-aciona-mpf-contra-resolucao-n-4-da-funai/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)21. Seu conteúdo “dispõe sobre procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organizações indígenas”. Trata-se da possibilidade de exploração do agronegócio dentro das terras indígenas, visando fragilizar a proteção ambiental e abrir espaço para que não indígenas venham a explorar atividades de interesse econômico no interior desses territórios22.

Nos meses de junho e julho, a base aliada do presidente Jair Bolsonaro no legislativo começou a analisar o PL 490/2007, que busca alterar as regras de demarcação de terras indígenas, adotando como parâmetro legislativo a tese do marco temporal, segundo a qual se deixa de reconhecer terras indígenas não ocupadas por povos indígenas no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal vigente, proibindo a ampliação de terras indígenas já demarcadas, flexibilizando as possibilidades de contato de indígenas isolados ou de contato recente e permitindo a exploração de terras indígenas por garimpeiros23. A APIB promoveu protestos contra a votação do PL 490/2007 e os povos indígenas foram reprimidos com violência pela polícia em Brasília.

Existe tamanha promiscuidade do governo federal com interesses econômicos favorecidos, manejados e articulados com a política anti-indígena de Jair Bolsonaro, a ponto de o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ter sido denunciado criminalmente por facilitar a comercialização de madeira ilegal, fruto de desmatamento e invasões a terras indígenas. Como todo membro do governo de Jair Bolsonaro, Ricardo Salles também serviu à política anti-indígena. Renunciou ao

21 BRASIL. Instrução Normativa Conjunta de 22 de fevereiro de 2021. Dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organizações indígenas. Diário Oficial da União, Edição 36, Seção 1, p. 72. Disponível em:

<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-conjunta-n-1-de-22-de-fevereiro-de-2021- 304921201>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

22 O Instituto Socioambiental (ISA) produziu um Relatório Técnico sobre desmatamento e invasões em sete terras indígenas na Amazônia brasileira. Nele, o ISA registra o avanço dos invasores nas terras indígenas brasileiras, com destaque para alguns casos prioritários, nos quais se enquadram as Terras Indígena Araribóia, do povo Guajajara, no Maranhão; a Terra Indígena Munduruku, no Pará e a Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A atualização demonstra que o desmatamento e as invasões avançaram durante a pandemia. Conferir: OVIEDO, Antônio; BATISTA, Juliana de Paula; LIMA, Michelle Araújo. Relatório Técnico atualizado (março de 2021) sobre desmatamento e invasões em sete terras indígenas na Amazônia brasileira. Brasília: ISA, 2021.

23 MIOTTO, Tiago. PL 490 sai de pauta após pedido de vista; veja quais partidos e parlamentares se posicionaram a favor do projeto anti-indígena. Conselho Indigenista Missionário. 16 de junho de 2021. Disponível em: <https://cimi.org.br/2021/06/pl-490-sai-pauta-pedido-vista-veja-quais-parlamentares- posicionaram-projeto-anti-indigena/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

cargo em 23 de junho de 2021 e a imprensa internacional repercutiu seus crimes ambientais.

A política anti-indígena do Presidente Jair Bolsonaro segue seu curso. Jair Bolsonaro, que prometeu “não demarcar nenhum centímetro de terra indígena e quilombola”, tem feito a defesa da tese de que os povos indígenas, para terem suas terras preservadas e demarcadas, deveriam estar em ocupação da mesma em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Brasileira (chamada de tese do “marco temporal”). Tal exigência probatória para a proteção de terras indígenas teria duas principais consequências: a legitimação de invasores violentos que haviam deslocado de forma forçada os povos indígenas durante anos de assimilacionismo de Estado; e a impossibilidade de provar posse em um dia específico há 33 anos. O impacto da admissão da tese do marco temporal, uma interpretação inconstitucional, é a inviabilização da demarcação de centenas de terras indígenas originariamente atribuídas ao usufruto de seus respectivos povos de ocupação tradicional.

O Relator Especial sobre os direitos dos povos indígenas da Organização das Nações Unidas, Francisco Cali Tzay, já realizou apelo para que o Supremo Tribunal Federal rejeite a tese do marco temporal. Segundo Tzay, trata-se de “argumento legal promovido por agentes comerciais com o fim de explorar recursos naturais em terras tradicionais”. Ainda, o relator afirmou temer que uma decisão favorável ao marco temporal legitime a violência contra os povos originários e aumente os conflitos na Floresta Amazônica24.

A referida tese está em análise na corte constitucional brasileira e foi pautada para julgamento no Supremo Tribunal Federal. Desde a publicação da pauta e durante o julgamento, que durou entre 26 de agosto de 2021 e 15 de setembro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro fez pressão e ameaças aos povos indígenas e à Suprema Corte, sugerindo que não cumpriria a decisão caso a mesma fosse favorável aos indígenas.

Em entrevista dada a uma emissora de rádio, em 4 de agosto de 2021, o Presidente Jair Bolsonaro disse:


24 ONU NEWS. Relator da ONU pede à Suprema Corte no Brasil para rejeitar marco temporal. 23 de agosto de 2021. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/08/1760692>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

"Por que o campo está feliz com a gente? Nós não marcamos mais terra indígena. Já temos 14% demarcados por terra indígena. Chega. Você fica pensando como é que pode 10 mil índios terem uma área equivalente a duas vezes o estado do Rio de Janeiro, como os ianomâmis. Chega, não dá mais porque a intenção disso é inviabilizar a agricultura, inviabilizar o agronegócio do Brasil e virar um conflito".25


Na mesma entrevista, o Presidente Jair Bolsonaro alegou que se mais terras indígenas forem demarcadas, "acabou o Brasil". Reforçando uma vez mais sua visão autoritária e integracionista que imputa aos povos originários do Brasil o papel de inimigos do país, continuou:


"Não demarcamos mais quilombolas e por que quilombolas? Já foi demarcado o suficiente. Se demarcar tudo que está na Justiça, acabou o Brasil. Nós já temos pouco mais de 60% de terras preservadas, incluindo terras indígenas, Apas (Áreas de Proteção Ambiental), chega disso daí".


Poucos dias depois, em dois de setembro de 2021, o Presidente Jair Bolsonaro se manifestou novamente de forma favorável ao marco temporal durante live realizada em suas redes sociais. De forma desonesta, o Presidente brasileiro afirmou que “No campo de futebol da sua cidade, se aparecer um índio deitado, vai ter que ser terra indígena”. Não fosse suficiente, Bolsonaro afirmou explicitamente que se o marco temporal não for considerado válido, “acaba o Brasil”. Em seguida, realizou apelo para que o Supremo Tribunal Federal tivesse “bom senso”, caso contrário “vamos entregar o Brasil para o índio”. Finalmente, expressou seu desejo de que os ministros “aceitem ou peçam vista, o que costuma acontecer e sentam em cima do processo (sic)”. A intenção de impedir a demarcação de qualquer terra indígena é explícita e inclui também ameaças de descumprir a decisão judicial caso ela fosse favorável aos povos indígenas: “tenham certeza, caso seja aprovado (sic), tenham certeza, eu tenho duas opções, não vou falar agora quais, mas tenham certeza, é aquela que interessa ao povo brasileiro”26.

Iniciado o julgamento no STF, este contou com dois votos e logo foi suspenso por pedido de vista. Os dias de julgamento também foram acompanhados de intensa


25 Entrevista dada pelo presidente Jair Bolsonaro, em 4 de agosto de 2021, à Rádio 96 FM (Natal) cuja íntegra pode ser acessada em: <https://www.youtube.com/watch?v=bmXhuzaMyAs>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

26 Conferir declaração à imprensa em vídeo: Record News. Bolsonaro diz que não aceita demarcar terras de índios ocupadas depois da Constituição. 28 de agosto de 2021. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=8RbZ0KCNulM>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

mobilização por parte dos movimentos indígenas. Entre os dias 22 e 28 de agosto de 2021, a APIB organizou o Acampamento Luta pela Vida, com o objetivo de viabilizar que os povos indígenas de todas as regiões do Brasil pudessem acompanhar a decisão acerca do futuro das terras indígenas. A mobilização contou com aproximadamente seis mil indígenas acampados na Esplanada dos Ministérios, na cidade de Brasília. Durante os dias em que houve sessões de julgamento, os povos indígenas se deslocaram para frente da Corte Constitucional, a fim de assisti- las na Praça dos Três Poderes, na capital do país. Como o julgamento se estendeu por semanas, os eventos acabaram por coincidir com outra manifestação de âmbito nacional: a II Marcha das Mulheres Indígenas. Contando com aproximadamente cinco mil pessoas acampadas, a Marcha das Mulheres Indígenas foi organizada pela APIB e pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). Tratou-se da maior mobilização indígena nacional desde a Assembleia Constituinte, em 1986-1987.

Em outra ação, de outubro de 2021, ajuizada pela Defensoria Pública da União e pela APIB, solicitou-se a retirada de Marcelo Xavier da presidência da Funai por conduzir a autarquia a uma política anti-indígena, isso justamente no órgão cuja razão de ser é promover políticas públicas de proteção aos povos indígenas. No dia 1º de dezembro, a Justiça Federal, no entanto, negou o pedido de forma liminar. Dessa forma, mesmo diante dessas alegações, o presidente da FUNAI segue no cargo. Trata-se de evento explícito das dinâmicas envolvidas no que vem sendo autointitulado pela atual gestão de “Nova FUNAI”.

Outro exemplo evidente refere-se aos Piripkura, povo indígena isolado que vem sofrendo graves ataques. Ao ser provocada pela Justiça para dar andamento ao moroso processo de demarcação desta terra indígena, a FUNAI elencou como servidores responsáveis técnicos sem aptidão comprovada e visível conflito de interesses, incluindo Joany Arantes, um dos autores do Projeto de Lei n. 490/2007 supramencionado. Em novembro de 2021, a Justiça Federal determinou a alteração dos servidores nomeados.

É importante ainda trazer para esse contexto a existência da CPI da Covid-19 que ocorreu no parlamento brasileiro. Após quase seis meses de funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito, em 26 de outubro de 2021 foi publicado o Relatório Final da CPI (BRASIL, 2021), data na qual o Brasil atingiu a triste cifra de

603.521 óbitos decorrentes da covid-19. A conclusão do procedimento indicou de maneira clara e direta que o governo federal foi omisso e optou por agir de forma não técnica e desidiosa no enfrentamento da pandemia do novo Coronavírus, deliberadamente expondo a população a concreto risco de infecção em massa. As investigações comprovaram a existência de um gabinete paralelo, a intenção de imunizar a população por meio da contaminação natural, a priorização de um tratamento precoce sem amparo científico de eficácia e o desestímulo ao uso de medidas não farmacológicas, tudo acompanhado do deliberado atraso na aquisição de imunizantes e da propagação constante das chamadas fake news, cujo conteúdo, patrocinado pelo governo, apresentava afirmações contrárias a evidências técnicas e científicas. O quadro levou à constatação de que o Presidente da República Jair Bolsonaro foi o principal responsável pelos erros de governo cometidos durante a pandemia da Covid-19.

As investigações e seus resultados demonstraram que o Presidente se utilizou da pandemia de Covid-19 para aprofundar sua política anti-indígena, que já estava em curso, conclusão esta que foi expressamente reconhecida pelo documento. Assim, o Relatório consignou que o resultado da forma como o governo federal tem conduzido a política indigenista, de modo geral, e, particularmente, suas atitudes de ataque e desprezo contra os povos indígenas durante a pandemia de Covid-19, contribuíram para produzir, de modo deliberado, condições aptas a destruir total ou parcialmente esses grupos, além de gerar intenso sofrimento e o desaparecimento de importantes referências culturais, dadas as mortes de anciões e figuras centrais às comunidades.

Por fim, destaca-se o contínuo processo de criminalização e perseguição a lideranças e organizações indígenas. No dia 26 de abril de 2021, uma das coordenadoras executivas da APIB, Sônia Guajajara, uma liderança indígena conhecida internacionalmente por sua luta em defesa dos direitos indígenas, foi intimada a depor junto à Polícia Federal. A motivação se deu em razão da APIB produzir a série Maracá - Emergência Indígena em 2020, a qual denunciou as violações do direito à saúde dos povos indígenas, por parte do governo federal brasileiro. No dia 30 de abril de 2021, a liderança Almir Suruí, um renomado defensor dos direitos dos povos indígenas, também foi inquirido a se manifestar pela Polícia Federal.

A gestão do Presidente Jair Bolsonaro criminaliza quem quer que o critique publicamente, conforme também tem feito com o influencer Felipe Neto e o ex- candidato à Presidência da República, Guilherme Boulos. Ambos estão sendo perseguidos por se manifestarem em suas redes com críticas ao Presidente Bolsonaro, enquadrados na Lei de Segurança Nacional, um instrumento normativo produzido durante a ditadura civil-militar vigente no Brasil entre 1964-1985. Trata-se de um contexto sistemático de violação do direito fundamental à liberdade de expressão, corolário básico das democracias modernas.

A justificativa para a intimação de Sônia Guajajara foi à instauração do Inquérito Policial n. 2020.0104862, o qual acusa a APIB de difamar o governo federal e de incutir no crime de estelionato, em razão de suas campanhas de arrecadação de fundos para combater as mazelas da Covid-19 junto aos povos indígenas. Além de ser inerte, ineficaz e negligente com as políticas de proteção à saúde dos povos indígenas, conforme é de conhecimento do Supremo Tribunal Federal e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o governo Bolsonaro opta por criminalizar as ações da APIB para combater a pandemia de Covid-19.

Por ser um inquérito policial envolto em ilegalidades, como (i) investigação sem justa causa de condutas não tipificadas como crimes, (ii) afastamento do Ministério Público como órgão externo fiscalizador da atividade policial, e (iii) o carecer de critérios mínimos de procedibilidade para investigação sobre difamação e estelionato, de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Constituição Federal e as leis brasileiras; a APIB ingressou com uma ação de Habeas Corpus em favor de Sônia Guajajara, solicitando o trancamento do inquérito policial. O juízo, ao avaliar o pedido de Habeas Corpus, concedeu a ordem e determinou o trancamento do inquérito imediatamente.

É preciso ainda ressaltar a importância da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas ocorrida em 2021 (COP26). O evento recebeu a maior delegação indígena da História de suas edições. A sociedade civil brasileira, organizada por meio dos povos indígenas, participou intensamente das atividades durante a conferência. Com o governo federal do Brasil atuando em cumplicidade com o desequilíbrio climático, como ficou provado pela sua omissão dos dados sobre o desmatamento 2020/2021 durante a COP26, os povos indígenas foram mostrar à comunidade internacional os ataques sistemáticos às políticas ambientais

no Brasil. Em represália a isto, três mulheres lideranças indígenas foram vítimas de retaliações: i) Alessandra Munduruku; ii) Txai Suruí; e iii) Glicéria Tupinambá.

No dia 12 de novembro de 2021, Alessandra Munduruku estava em sua casa, na cidade de Santarém, estado do Pará. Pela manhã, um homem, identificando-se como técnico da companhia que fornece eletricidade no local, informou que seria necessário fazer o desligamento momentâneo da rede elétrica no bairro, em razão de ajustes de manutenção. Por volta das 12 horas, pediu ao seu marido que telefonasse à companhia para saber o horário que o estabelecimento de energia seria retomado. Então foram informados de que não havia nenhuma previsão de manutenção na rede elétrica no local. Diante do indício de fraude e sem saber que ameaças isso poderia significar, uma vez que Alessandra Munduruku já está inclusa no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos em razão de ser ameaçada de morte, ela e a família se retiraram da casa indo pernoitar em outro local. Na manhã do dia 13 de novembro, seu marido foi à casa e encontrou o portão arrombado. Ao entrar, verificou que a casa foi invadida. Do local foram subtraídos: i) uma pasta com farta documentação, ii) aproximadamente R$ 4.000,00 que foram arrecadados para a realização da assembleia do povo Munduruku, e iii) a memória interna de uma câmera de segurança. Imediatamente, Alessandra Munduruku fez o registro de ocorrência na delegacia de polícia e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também foi comunicada.

No dia 01 de novembro de 2021, Txai Suruí, do povo Paiter Suruí foi a única brasileira a discursar na abertura da COP26. Em seu discurso, conclama que a comunidade internacional se comprometa imediatamente com o combate às mudanças climáticas. Em razão disso, o presidente Jair Bolsonaro, sem nominá-la especificamente, depreciou seu discurso. Em seguida, Txai Suruí relatou que passou a sofrer muitos ataques das milícias virtuais que atuam em favor de Bolsonaro. Ainda durante a COP26, Txai Suruí e outras lideranças indígenas ouviram recados de que “não deveriam falar mal do Brasil”, por parte de representantes oficiais do Estado brasileiro.

No dia 12 de novembro de 2021, Glicéria Tupinambá, liderança do povo Tupinambá de Olivença, no estado da Bahia, estava retornando ao seu território, pela estrada BR-101. Um carro em alta velocidade faz uma ultrapassagem perigosa, freia bruscamente, obrigando que o condutor do veículo no qual ela estava também

precisasse frear imediatamente, quase forçando um acidente. Em seguida, o carro acelera e foge. Poucos quilômetros à frente, em um município próximo, o carro foi encontrado abandonado. Há indícios de que foi um ato de intimidação.

Esses atos, observados em conjunto, parecem indicar uma ação sistemática de repressão às defensoras de direitos humanos que participaram da COP26, em prol dos direitos climáticos, o que afronta os princípios de cooperação internacional que garantem a livre participação de ativistas que atuam pela promoção dos direitos humanos internacionalmente protegidos. É preciso destacar que essa conjuntura de criminalização da luta indígena por parte do Estado brasileiro é o que cria terreno fértil para outras violações de direitos humanos, como foi o caso da queima da casa de Maria Leusa Munduruku, conforme já mencionado acima. Ainda como desdobramento da violência de Estado, mencionamos também as queimas das casas de reza do povo Guarani Kaiowá, os quais foram vítimas frequentes nesse ano de atentados de cunho racista, que ganham força em um Brasil no qual a diversidade é combatida com o poder autoritário de um governo federal que se pretende policialesco.


Indígenas em movimento


O movimento indígena brasileiro está estruturado em comunidades e organizações locais, regionais e nacional, tendo como instância máxima de aglutinação a APIB. Ela é a organização que representa nacionalmente os povos indígenas e é formada pelas organizações indígenas regionais: Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); COIAB; Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL); Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE); Conselho do Povo Terena; Aty Guasu Guarani Kaiowá e Comissão Guarani Yvyrupa. A APIB foi criada no Acampamento Terra Livre (ATL) em 2005, em uma mobilização nacional que é realizada anualmente, desde 2004, para tornar visível a situação dos direitos indígenas e reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas dos povos indígenas. A missão da APIB é a promoção e a defesa dos direitos indígenas, a partir da articulação e união entre os povos e organizações indígenas das distintas regiões do país'.

Como vimos, quando a OMS declarou a situação de pandemia, a primeira deliberação da APIB foi suspender o ATL. Essa grande assembleia reúne caciques e lideranças de diversos povos de diferentes regiões do país, constituindo-se no principal ato da mobilização indígena. Entretanto, ciente da gravidade da situação, as lideranças indígenas não hesitaram em questionar as recomendações das autoridades sanitárias e suspenderam a realização do encontro no formato presencial.

Por outro lado, não deixaram passar em branco o abril indígena e organizaram o primeiro ATL online, com mesas e discussões que ocorreram entre os dias 27 e 30 de abril. No âmbito do ATL on line, as mesas foram organizadas com vista a contemplar as várias lideranças indígenas que se esforçaram para se conectar nas lives abertas nas redes da APIB. Nesse sentido, ocorreram falas da coordenação da APIB sobre o ATL e diálogos referentes à gestão dos territórios, retirada de direitos e à pandemia. Também foram feitas análises de vulnerabilidade, impactos e enfrentamentos à Covid-19 no contexto das comunidades indígenas. Houve participação da juventude indígena, falando das estratégias de comunicação, e ocorreram também painéis jurídicos abordando a questão do marco temporal e a proteção dos direitos humanos no plano internacional. Ainda foram desenvolvidas análises voltadas para a situação dos povos indígenas em situação de isolamento voluntário e contato inicial no contexto do novo Coronavírus, focando especialmente na vulnerabilidade epidemiológica e territorial.

Seguindo a agenda de mobilização e diante do crescente número de casos de Covid-19 entre indígenas, como vimos, a APIB organizou a Assembleia Nacional da Resistência Indígena, com o objetivo de reunir lideranças e pesquisadores das mais diversas áreas para, juntos, elaborarem um plano de enfrentamento à pandemia. Foi a partir dessa dimensão que a coordenação do movimento indígena promoveu a assembleia, objetivando “coordenar as estratégias de combate à disseminação do novo Coronavírus de forma unificada e respeitando as diferenças regionais e culturais”27. É importante salientar a visão transdisciplinar com que as lideranças organizaram e promoveram a agenda para construir um plano de enfrentamento, buscando envolver lideranças regionais e especialistas não indígenas de diferentes


27 APIB. Lideranças indígenas organizam assembleia para construir plano de enfrentamento à pandemia. 07 de maio de 2020. Disponível em: <http://apib.info/2020/05/07/assembleia-resistencia- indigena/>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

segmentos para compartilhar diagnósticos locais de danos causados pela disseminação do vírus, a fim de compreender como as comunidades estavam lidando com os casos e se estavam tendo acesso a equipes de saúde.

Na linha de combate à subnotificação, a APIB, a COIAB, a APOINME e o Conselho Terena adotaram instrumentos próprios de levantamento de casos junto às lideranças, comunidades e organizações locais. Tais instrumentos constituíram uma iniciativa fundamental para denunciar o descaso do governo federal. Em âmbito nacional, foi lançado o Alerta APIB, um boletim diário com informações de indígenas infectados, quantidade de mortos, suas localidades e seus povos. Tais dados foram fundamentais para entender o avanço da pandemia sobre as TIs e entre os indígenas que vivem próximos aos ou nos centros urbanos.

Outro instrumento fundamental foi o lançamento do site http://quarentenaindigena.info/apib/, organizado e mantido pela APIB, em que são postados, além dos monitoramentos de casos, notas das organizações indígenas, relatos de casos e material informativo. Este site depois foi renomeado como https://apiboficial.org/emergenciaindigena/. Na produção desses materiais informativos está a rede de comunicadores indígenas Mídia Índia, que produz materiais e traduz as informações para várias línguas indígenas. Essas orientações eram repassadas às comunidades e lideranças indígenas por meio de rádios comunitárias, boletins das associações locais e grupos de Whatsapp.

As barreiras sanitárias implementadas pelas comunidades indígenas e por suas lideranças constituíram-se em verdadeiros movimentos autônomos com vistas a impedir o acesso de pessoas ao território. Tais medidas foram adotadas por várias comunidades que, valendo-se de sua autonomia organizacional, efetivaram tais ações, as quais, sem dúvida, tiveram efeito prático imediato. Comunidades indígenas de diversas regiões e contextos territoriais fecharam os seus territórios, restringindo de forma eficaz as incursões às TIs. Em alguns casos, a restrição se estendeu até para indígenas residentes nas cidades, mesmo que trabalhadores ou estudantes temporários.

Na seara judicial, a APIB, a COIAB, o Conselho Terena e o Aty Guasu, em conjunto com várias outras entidades indigenistas (Conselho Indigenista Missionário

- CIMI, ISA – Instituto Socio Ambiental e Centro de Trabalho Indigenista - CTI, dentre outras), lograram êxito ao peticionar ao STF solicitação de suspensão nacional de

todos os processos e recursos judiciais que tratem de demarcação de TIs até o final da pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário (RE) nº 1017365, cuja repercussão geral foi reconhecida no STF28. No dia 6 de maio, o ministro relator Edson Fachin deferiu o pedido feito pelas organizações indígenas e indigenistas, suspendendo todas as ações de reintegração de posse movidas contra comunidades indígenas, enquanto perdurar a pandemia29. Ao deferir a suspensão, o ministro relator salientou que, em razão da pandemia, que não tem prazo para acabar, a OMS vem orientando governos e populações a adotar o isolamento social, entre outras medidas, a fim de impedir a disseminação da infecção. O ministro Edson Fachin ainda frisou que os indígenas sofrem há séculos com doenças responsáveis, muitas vezes, por dizimar etnias inteiras pelo interior do país, diante da falta de preparo do seu sistema imunológico.

No campo político legislativo, o movimento indígena participou ativamente da tramitação do Projeto de Lei (PL) nº 1.142/2020, de autoria da deputada professora Rosa Neide (PT/MT) e que teve como relatora a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR). Esse PL foi analisado e votado na Câmara dos Deputados no dia 21 de maio de 2020, e previu a instituição de medidas para prevenir a disseminação de Covid-19 junto aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Um projeto substitutivo foi apresentado pela deputada Joênia, preceituando que as medidas de saúde farão parte de um plano emergencial coordenado pelo governo federal, mas deverão ser adotadas também outras ações para garantir segurança alimentar. As ações previstas no PL que foi aprovado na Câmara e no Senado incluíam medidas voltadas aos indígenas aldeados ou que vivem fora das suas terras em áreas urbanas ou rurais e aos povos indígenas oriundos de outros países e que estejam provisoriamente no Brasil.

No que tange à lei que fora aprovada, não há dúvida que muitas ações contemplam as necessidades concretas dos povos indígenas. Entretanto, houve


28 Também conhecido como “Caso Xokleng”, este processo é um caso importante para os povos indígenas, pois tem repercussão geral reconhecida pelo STF, e a decisão que se tomar servirá de diretriz para todas as terras indígenas do país.

29 “A suspensão nacional abrange, entre outros casos, ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação e recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas, até o término da pandemia da Covid-19 ou do julgamento final recurso, o que ocorrer por último” (STF. Relator suspende tramitação de processos sobre áreas indígenas até fim da pandemia. 06 de maio de 2020. Disponível em:

<http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442822&ori=1>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

manifestação por parte do movimento indígena em relação ao dispositivo que trata dos povos isolados, que foi inserido no último momento da votação, a partir de lobby feito por deputados ligados aos interesses da bancada evangélica. A COIAB publicou nota de repúdio contra o que classificou como uma tentativa de legalizar missões religiosas em territórios ocupados por indígenas em isolamento voluntário. Segundo a nota, tal ação foi uma “inclusão sorrateira [...], ao autorizar a entrada de terceiros e de garantir a permanência de missionários nestes territórios durante a pandemia, claramente coloca em risco a vida dos povos em isolamento voluntário”.30 A entidade concluiu afirmando que historicamente os missionários proselitistas têm invadido territórios indígenas e forçado o contato com os povos em isolamento voluntário, ferindo, assim, os princípios de autodeterminação e autonomia aos povos indígenas isolados que são garantidos pela legislação brasileira através da política do não contato. O PL foi aprovado no Congresso Nacional e sancionado com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro. O dispositivo que permitiu a permanência de missionários nas TIs com presença de povos isolados está sendo questionado pela APIB no STF por meio da ADI nº 6622, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.

Os povos indígenas, por meio do movimento organizado, têm demonstrado uma profunda capacidade de resistência frente a violações em diferentes contextos. Como vimos até aqui, em tempos de pandemia de Covid-19 isso não foi diferente. O plano de enfrentamento elaborado a partir da Assembleia Nacional da Resistência Indígena nos indica esse caminho. Num cenário de crescentes e inaceitáveis ataques aos direitos dos povos indígenas, a APIB elaborou esse plano, que consolidou 58 propostas apresentadas pelas lideranças de base. O plano articula ações emergenciais, judiciais, internacionais e de comunicação. As propostas buscaram evidenciar e construir respostas à omissão do Estado brasileiro no enfrentamento da pandemia de Covid-19 junto aos povos indígenas, que se agravou num cenário de desmonte dos direitos indígenas e da política indigenista, e de enfraquecimento de órgãos e instituições públicos responsáveis pela implementação e execução de assistência aos povos indígenas, a proteção de seus territórios e promoção de seus direitos.

30 COIAB. Nota de repúdio contra a tentativa de legalização de missões religiosas em territórios ocupados por indígenas em isolamento voluntário. 21 de maio de 2020. Disponível em:

<https://coiab.org.br/conteudo/1590113259203x242154533360238600>. Acesso em 23 de fevereiro de 2022.

Os quatro objetivos que demandavam ações emergenciais, judiciais, internacionais e de comunicação, pautados pelo movimento indígena, foram:


  1. cobrar respostas adequadas bem como medidas urgentes para salvar vidas indígenas e garantir a subsistência em todo o território nacional, sem discriminação, assim como medidas estruturantes considerando o impacto prolongado da pandemia, e a participação e consulta aos povos indígenas por parte dos órgãos públicos responsáveis pelas políticas de atendimento aos povos indígenas;


  2. denunciar a situação de genocídio dos povos indígenas que se agrava no Brasil e exigir em todas as instâncias cabíveis todas as medidas preventivas possíveis, bem como a responsabilização do Estado brasileiro frente à omissão que ameaça a existência de indivíduos, comunidades, povos e culturas inteiras, seja com relação a ações de saúde, de assistência e/ou de proteção das terras indígenas contra a entrada de invasores e outras pessoas não- indígenas que podem transmitir a doença;


  3. monitorar os casos de Covid-19 entre os indígenas, denunciando a subnotificação de casos e colaborando com informações, orientações e boas práticas que ajudem os povos indígenas a se manterem protegidos em isolamento social em suas casas, aldeias e territórios e a adotar medidas de prevenção e de cuidado contra a Covid-19, evitando a circulação fora das terras indígenas; e


  4. reforçar a articulação e solidariedade de aliados e parceiros da APIB, reunindo conhecimentos e contribuições médicas, técnicas, artísticas, logísticas e financeiras para o enfrentamento da Covid-19, com ampla visibilidade nacional e internacional da situação dos povos indígenas, de nossa resistência e luta.


O ponto central do debate foi recolocado pelos povos indígenas: “a mãe terra enfrenta dias sombrios. O mundo atravessa sua maior crise social, econômica e política provocada pela pandemia do Covid-19, colocando a humanidade em profunda reflexão e resistência pela preservação da vida” (APIB, 2020). Mais uma vez foi preciso refletir sobre o importante papel que os territórios tradicionais cumprem no equilíbrio da humanidade. Assim, o documento final da APIB revela um sentido preciso, ao expressar que “é hora de refletir sobre o modo de vida que temos cultivado até os dias atuais, pois as diversas crises e catástrofes ambientais são fruto de ações de fortes impactos no meio ambiente que nos levam ao avanço do aquecimento global, à perda de vegetação e a profundas mudanças na natureza” (APIB, 2020). O alerta de hoje e sempre, os povos originários têm nos dado: a relação estabelecida com a mãe terra precisa ser repensada urgentemente.


Considerações finais


O texto nos oferece um sobrevoo muito rápido da situação dos povos indígenas no atual contexto político. São desafios que já estavam postos, mas que com o advento da pandemia de Covid-19, piorou sobremaneira a vida dos povos e comunidades indígenas. Não resta dúvida que as medidas estatais que afetam os povos originários estão alinhadas a interesses políticos e econômicos que recaem sobre tais territórios e seus recursos naturais. A violência e a sistêmica negativa do direito desses povos, especialmente o direito à terra, estão a serviço do modelo de desenvolvimento que não contempla os povos indígenas e suas formas próprias de ver e entender o mundo. A pandemia escancarou essa constatação que há muito tempo é denunciada pelo movimento indígena.

Por outro lado, resta clara a forma como os indígenas se movimentam, por meio de suas organizações e formas próprias de incidir no âmbito político e judicial. Este é um elemento que deve ser levado em consideração, pois tais condutas são capazes de apontar para caminhos possíveis de serem percorridos na defesa da luta pela vida. Os indígenas são agentes sociais em constante interação com as lutas sociais. Portanto, apoiar seu protagonismo e forma própria de fazer política é ato de resistência qualificada.

Por fim, é preciso olhar atento e contínuo (vigilante) aos sinais e pautas que o movimento indígena propõe à sociedade envolvente. Os efeitos sentidos na aldeia, por meio da mãe terra, são sinais que antecedem o “mal-estar” da sociedade como um todo. As lutas são indissociáveis.


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