V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


Dissertação de mestrado1


DIAS, Thaís Henriques2. O desastre de Fundão e a advocacia em questão. 2021, 176p. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Direito) – Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói.


Resumo expandido3


Esta dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF), cujo programa possui a desafiadora proposta de articular de forma interdisciplinar os campos da sociologia e do direito. A linha de pesquisa em que desenvolvemos este trabalho é denominada de “Conflitos Socioambientais, Rurais e Urbanos”, que se constitui como uma Escola de Pesquisa de Campo, Extensão e Assessoria na Teoria Crítica. Como aspecto coletivo do desenvolvimento desta pesquisa está o Grupo de Trabalho Ecossocial (GT Ecossocial)/Laboratório de Justiça Ambiental (LAJA) articulado ao Observatório Fundiário Fluminense (OBFF), ambos da UFF.

O objetivo da dissertação foi analisar a prática advocatícia no contexto do rompimento da barragem de rejeitos de mineração de Fundão, da empresa Samarco Mineração S.A e de suas controladoras Vale S.A e BHP Billiton, ocorrido no dia 5 de novembro de 2015, no município de Mariana, Minas Gerais. Trata-se do maior desastre envolvendo a barragem de rejeitos de mineração do mundo, em termos de volume de material liberado - cerca de 60 milhões m³ - e extensão atingida - 663 km,


1 Resumo recebido em 21/01/2022. Aprovado pelos editores em 31/01/2022. Publicado em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.52910.

2 Mestra em Ciências Sociais e Jurídicas, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, da Universidade Federal Fluminense/UFF. E-mail: thaishd@id.uff.br;

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4503846668289636; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2554-4915.

3 Este trabalho faz parte da dissertação defendida em 14/09/2021, no PPGSD/UFF, com bolsa CAPES, a partir de um trabalho de discussão e orientação entre Thaís Henriques Dias e os professores Wilson Madeira Filho, Ana Maria Motta Ribeiro, Tatiana Ribeiro de Souza (PPGD/UFOP) Cristiana Losekann (PPGCS/UFES). https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/vie wTrabalhoConclusao.xhtml?popup=true&id_trabalho=10994136.

que fez também do rio Doce um depósito de rejeitos e uma extensão do complexo minerário da Samarco/Vale/BHP (MILANEZ e LOSEKANN, 2016, p. 11; WANDERLEY, GONÇALVES e MILANEZ, 2020, p. 569; LASCHEFSKI, 2020, p. 99-

100). Além disso, o rompimento da barragem matou 19 pessoas, de forma imediata, sobretudo trabalhadores terceirizados da empresa, centenas de animais criados na região, soterrou distritos próximos à barragem, incluindo áreas de preservação permanente, unidades de conservação da natureza e atingiu assentamentos rurais e as terras indígenas Krenak, Tupiniquim e Guarani. Os rejeitos de minério deixaram rastros de destruição ao longo dos rios Gualaxo do Norte e Carmo e desceram pelo leito do rio Doce, matando milhares de toneladas de peixe, até chegar ao Oceano Atlântico, por meio da foz do rio, em Regência Augusta, no litoral do Espírito Santo, onde, pela movimentação das correntes marítimas, espalharam-se pelo norte e sul do litoral.

Tem-se neste desastre diferentes usos do direito, observáveis nos desdobramentos jurídicos e institucionais do caso, onde tem se desenvolvido conflitos, que possibilitam um nicho fecundo de investigação.

Os aportes teóricos e metodológicos partiram da pesquisa empírica no Direito (MACHADO, 2017) a partir da Teoria Crítica (RIBEIRO et al., 2020), que parte da concepção do direito como um campo em disputa (THOMPSON, 1987). Este abrange os conflitos como lugar de tensionamento social, que comporta os diferentes significados e ordens jurídicas sobre os territórios e a realidade social. Utilizamos os métodos da pesquisa qualitativa, como o estudo de caso, conversas informais e entrevistas semiestruturadas com advogadas(os) que atuaram em diferentes momentos do desastre a partir de tipos de advocacia distintos; pesquisa e caderno de campo, nos territórios em conflito com a mineração e atingidos pelos desdobramentos do desastre, feitos entre os anos de 2016 e 2019; análise de documentos jurídicos referentes à litigância em torno da disputa por direitos das populações atingidas em tensão com os interesses das empresas por reduzir custos da reparação; análise de perfis e currículos de advogados empresariais, para identificar atributos comuns, contrapostos e divergentes, além da presença de elementos estruturais incorporados nos dados individuais; e leitura de fontes secundárias, como publicações oficiais e não-oficiais sobre o caso e contexto.

A partir da pesquisa exploratória realizada com a caminhada itinerante4 feita em uma disciplina conduzida no PPGSD/UFF, em forma de observação científica, chegamos à hipótese, que pondera como possível, de que o desastre tem propiciado a formação de um corpus procedimental de atuação de advogados na defesa do modelo minerário neoextrativista no Brasil, onde têm sido naturalizados graves desastres por parte das empresas de mineração. Ao analisarmos os arranjos jurídicos e institucionais mobilizados neste caso, levantamos algumas questões, como a capacidade das empresas e de seus escritórios de advocacia de negociar os desdobramentos da prática da extração mineral, tomando o Brasil, nestes desastres, como fonte para definir normativas territoriais e arranjos jurídicos favoráveis e até preventivos na defesa dos interesses do capital internacional, além de possibilitar a formação de quadros técnico-jurídicos profissionais neste campo. Daí, concebemos uma análise da trajetória desses grupos de advogados inseridos no contexto do desastre de Fundão.

No primeiro capítulo, apresentamos uma síntese das perspectivas teóricas escolhidas para entender a mineração no Brasil e a recorrência de desastres, como elemento estrutural do neoextrativismo. Dialogamos com as perspectivas sobre desastres e conflitos socioambientais, e na mineração, tendo em vista a produção dos desastres pelos modelos neoextrativistas de apropriação do território e as formas de sua (des)regulação socioambiental (VALENCIO, 2013; MANSUR, et al., 2016; RIBEIRO e CARNEIRO, 2019; SVAMPA, 2019; WANDERLEY e GONÇALVES, 2019; ZHOURI, et al., 2019; ARÁOZ, 2020; TROCATE e COELHO, 2020). Daí, formulamos

as seguintes perguntas: em que medida os desastres em decorrência da mineração no Brasil tem possibilitado a criação de modelos jurídicos e experimentais de ressarcimento de danos pelas empresas mineradoras? Como as empresas caracterizam os desastres e elaboram estratégias jurídicas de ressarcimento de


4 Em maio de 2019, percorremos caminhos marcados pelo extrativismo mineral em Minas Gerais, para conhecer os conflitos decorrentes e seus efeitos e danos socioambientais. A disciplina itinerante, conduzida pelo professor Wilson Madeira Filho, contou com três carros e um roteiro multidiverso durante dez dias corridos, em maio de 2019, contando com visita às mineradoras, reuniões com pessoas atingidas, visita programada à Renova, reuniões com a Defensoria Pública, Ministério Público, prefeituras, grupos de pesquisa, espaço de conciliação etc. Também participaram do projeto (em ordem alfabética): Bruno Henrique Tenório Taveira (doutorado), Larissa Pirchiner de Oliveira Vieira (doutorado), Lilian Regina Furtado Braga (mestrado), Luiza Alves Chaves (doutorado), Mara Magda Soares (mestrado), Marcelino Conti de Souza (doutorado), Marina Marçal do Nascimento (doutorado), Patrícia de Vasconcellos Knöller (doutorado) e Ubiratan Alves da Silva (especialização).

danos? Quais são as tendências e disputas relacionadas ao direito, em meio a este caso e contexto?

No segundo capítulo, analisamos parte dos arranjos jurídicos e institucionais construídos e disputados no contexto do desastre, com foco na tensão entre judicialização e governança. Para isso utilizamos as informações de alguns procedimentos jurídicos que entendemos como centrais à análise do processo de reparação do desastre e as entrevistas feitas com advogadas(os)5, para articularmos questões tratadas nelas com tais documentos e seus contextos. O objetivo consistiu em analisar os conflitos observáveis nos desdobramentos jurídicos e institucionais do caso, sobretudo, na tensão entre judicialização e governança e nas disputas sobre o processo de reparação do desastre. Não obstante os acordos e modelos extrajudiciais terem sido apresentados como vias alternativas à judicialização dos conflitos, as suas consequências, efeitos e repercussões nos territórios atingidos mostram que aprofundaram os conflitos e a vulnerabilização das diversas comunidades amplamente atingidas, que se intensificou durante a pandemia do novo coronavírus.

No terceiro capítulo, o foco foi no nosso objeto principal de estudo: a prática advocatícia no contexto do desastre de Fundão. Tendo em vista a diversidade de agentes e grupos específicos relacionados ao universo da advocacia neste desastre, buscamos identificá-los e discorrer sobre alguns apontamentos relacionados às consequências do desastre na trajetória político-profissional de algumas dessas advogadas(os), que dividimos em advocacia privada, pública e popular. Além disso, procuramos desvendar o campo da advocacia empresarial no contexto do desastre, por meio de dados empíricos produzidos, sobretudo, com o perfil de advogados empresariais, que atuaram e/ou atuam no contexto do desastre, feito através da coleta e análise de currículos profissionais. O objetivo foi entrever tendências no direito relacionadas ao campo empresarial voltado à agenda neoextrativista no Brasil, inseridas no contexto e caso do desastre de Fundão.


5 O uso de “advogadas(os)” ao invés de “advogados” tem o objetivo de problematizar o uso do masculino como gênero universal e exercitar uma linguagem inclusiva e não-sexista. No caso de advogados empresariais optamos por deixar no masculino, por ser um setor da advocacia predominantemente masculino, ao contrário da advocacia popular, por exemplo. Além disso, optei por utilizar o pronome pessoal no plural como forma de demonstrar que este projeto é fruto de uma trajetória de estudo e pesquisa desenvolvida em grupo, a partir de reflexões, materiais e fontes de pesquisa compartilhados.

Por fim, descrevemos e analisamos o conflito entre advogados das empresas e advogadas populares sobre os processos de reparação do desastre de Fundão, em meio a um processo judicial6. Como resultado, apontam-se agendas voltadas para o uso do direito enquanto instrumento de legitimação de eixos civilistas tradicionais, os quais, em última análise, auxiliam a sustentar a dinâmica econômica neoliberal e a pulverizar o crime ambiental, transmudando-o em quantificação de danos e desvalidando qualquer outro aspecto. Além dos usos do direito alinhados às tendências atuais de sua globalização, observam-se seus usos contra-hegemônicos, pela advocacia popular, que se aproximam da perspectiva dos conflitos socioambientais. Tal perspectiva trabalha com um direito mais equitativo e tem no discurso jurídico e da pretensa tutela ambiental e humana meios para disputar o processo de reparação. Assim, as sucessivas disputas epistemológicas e práticas no direito o evidenciam como campo de conflito e constitui uma das formas pelas quais se mantêm vivas as preocupações quanto ao direito à reparação integral e à indenização justa dos danos decorrentes do desastre.


Referências


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6 Trata-se de um caso judicializado para análise, dentro do caso maior do desastre, categorizado judicialmente como “Eixo Prioritário nº 7 - Cadastro e Indenização”, sob o processo judicial nº 1000415- 46.2020.4.01.3800.

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