V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


O INSTITUTO AYRTON SENNA E O APRENDER A APRENDER: O ESVAZIAMENTO DA EDUCAÇÃO A PARTIR DAS COMPETÊNCIAS SOCIOEMOCIONAIS1


Ramon Mendes da Costa Magalhães2


Resumo

O objetivo do artigo foi analisar a atuação do Instituto Ayrton Senna (IAS) no estabelecimento do programa “Volta ao Novo - Programa de Desenvolvimento de Competências Socioemocionais”, materializado pelo estabelecimento de uma relação com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) em meio a pandemia do COVID-19. Concluímos, que o programa atua enquanto uma estratégia para orientar os indivíduos a desenvolver as competências socioemocionais produzindo um fetiche no processo de aprendizagem e no contexto de crise.

Palavra-chave: Aparelhos Privados de Hegemonia; Materialismo Histórico-Dialético; Competências; Crise Estrutural do Capital; Pandemia COVID-19.


EL AYRTON SENNA INSTITUTE Y APRENDER A APRENDER: EL VACÍO DE LA EDUCACIÓN BASADA EN HABILIDADES SOCIOEMOCIONALES.


Resumen

El objetivo del artículo fue analizar la actuación del Instituto Ayrton Senna (IAS) en el establecimiento del programa "Volta ao Novo - Programa para el Desarrollo de Habilidades Socioemocionales", materializado por el establecimiento de una relación con el Consejo Nacional de Secretarios de Educación (CONSED) y Sindicato Nacional de Directores de Educación Municipal (UNDIME) en medio de la pandemia COVID-19. Concluimos que el programa actúa como una estrategia para orientar a los individuos a desarrollar habilidades socioemocionales, produciendo un fetiche en el proceso de aprendizaje y en el contexto de crisis.

Palabra clave: Aparelhos Privados de Hegemonia; Materialismo Histórico-Dialético; Competências; Crise Estrutural do Capital; Pandemia COVID-19.


THE AYRTON SENNA INSTITUTE AND LEARNING TO LEARN: THE EMPTYING OF EDUCATION BASED ON SOCIO-EMOTIONAL SKILLS.


Abstract

The aim of the article was to analyze the performance of the Ayrton Senna Institute (IAS) in establishing the program "Volta ao Novo - Program for the Development of Socio-emotional Skills", materialized by the establishment of a relationship with the National Council of Education Secretaries (CONSED) and National Union of Municipal Education Directors (UNDIME) in the midst of the COVID-19 pandemic. We conclude that the program acts as a strategy to guide individuals to develop social-emotional skills, producing a fetish in the learning process and in the context of crisis.

Keyword: Private Apparatus of Hegemony; Dialectical-Historical Materialism; Skills; Structural Capital Crisis; COVID-19 pandemic.


1Artigo recebido em 04/03/2022. Primeira Avaliação em 03/05/2022. Segunda Avaliação em12/04/2022. Aprovado em 14/05/2022. Publicado em 21/07/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.53364.

2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor de Ensino Superior do Departamento de Educação, Linguística e Letras (DELL), da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), unidade de Carangola-MG. Professor de Educação Física da rede Municipal de Duque de Caxias. E-mail: ramon.magalhaes@uemg.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0741978901669940. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8535-4929.

Introdução


Desde o final do século XX, o empresariado tem demostrado uma elevada capacidade diretiva e técnica, influenciando as políticas públicas educacionais. De forma direta ou indireta, seus intelectuais coletivos se articulam de distintas e complexas formas para a manutenção da hegemonia burguesa, disseminando suas formas de ser, pensar e agir nas políticas públicas de educação, materializadas nas diretrizes, resoluções, pareceres e projetos educacionais desenvolvidos nas relações estabelecidas com as instituições públicas e privadas de educação.

Nesse ínterim, a frente social-liberal, pensada como uma variante ideológica do neoliberalismo como alternativa à crise estrutural do capital sobre a égide do bloco histórico toyotista-neoliberal (COLOMBO, 2018), apresenta suas bases étnico- políticas para enfrentamento das contradições da crise estrutural do capital. Sobre um discurso humanizador do capitalismo, de responsabilidade social e ambiental, essa frente, no âmbito da educação, dissemina os ideais de promoção de igualdade de oportunidades como alternativa para a equidade social. Segundo Neves (2005) se instaura uma nova pedagogia da hegemonia, que propaga “uma educação para o consenso sobre os sentidos de democracia, cidadania, ética e participação adequados aos interesses privados do grande capital nacional e internacional” (p.15).

Para a consolidação dessa nova pedagogia da hegemonia, a frente social- liberal propaga as noções de empregabilidade, empreendedorismo e competências para que cada indivíduo possa atender as demandas do mercado de trabalho necessárias ao processo de acumulação capitalista e à sociabilidade burguesa. No que tange ao desenvolvimento de competências, as socioemocionais tem ganhando destaque. O Instituto Ayrton Senna (IAS) as descreve como:


Competências socioemocionais são definidas como as capacidades individuais que se manifestam de modo consistente em padrões de pensamentos, sentimentos e comportamentos, favorecendo o desenvolvimento pleno estudantes e expandindo as oportunidades de aprendizagem escolar (IAS, 2020b, s.n.).

Competências socioemocionais são capacidades individuais que se manifestam nos modos de pensar, sentir e nos comportamentos ou atitudes para se relacionar consigo mesmo e com os outros, estabelecer objetivos, tomar decisões e enfrentar situações adversas ou novas. Elas podem ser observadas em nosso padrão costumeiro de ação e reação frente a estímulos de ordem pessoal e social (IAS, 2020a).

Tais competências teriam um importante papel para o enfrentamento das instabilidades e incertezas do modo de produção e da sociabilidade capitalista, diante das mudanças decorrentes da pandemia do COVID-19, no plano conjuntural, bem como dos próprios efeitos da crise estrutural do capital. A necessidade de desenvolvimento dessas competências tem sido sustentada pela disseminação de um discurso de fracasso da educação pública e da desqualificação da escola (SANTOS, 2012). Aparecida de Fátima Tiradentes dos Santos, em seu livro “Pedagogia do Mercado”, conceitua esse processo como sequestro da escola (SANTOS, 2012). Após esse processo de desqualificação e dessa constatação de que a escola fracassa, o empresariado se apresenta como o detentor das soluções, com alternativas privatistas que assumem diferentes dimensões (SANTOS, 2012). Essas dimensões envolvem a participação ativa da sociedade civil, entre elas, das organizações vinculadas ao capital, na condução dos assuntos educacionais, envolvendo organismos internacionais e nacionais, institutos e fundações, bem como startups, edetechs e conglomerados, trazendo consequências para a educação da classe trabalhadora e para o trabalho docente.

Esse processo de exportação à educação da crise do sistema capitalista e o processo de apresentar soluções para o fracasso da educação pública, buscam instaurar uma restauração conservadora (APPLE, 2002), que traz importantes repercussões para a educação. Segundo Apple (2002) o discurso propagado busca convencer que:


Se as escolas, seus professores e seus currículos fossem mais rigidamente controlados, mais estreitamente vinculados às necessidades das empresas e das indústrias, mais tecnicamente orientados e mais fundamentados nos valores tradicionais e nas normas e regulamentos dos locais de trabalho, então os problemas de aproveitamento escolar, de desemprego de competitividade econômica internacional, de deterioração das áreas centrais das grandes cidades etc. desapareceriam quase que por completo, assim querem-nos convencer (APPLE, 2002, p.40).


Neste sentido, cabe investigarmos como essa frente liberal-social, a partir se seus intelectuais orgânicos e Aparelhos Privados de Hegemonia (APH) atuam na restauração conservadora da hegemonia burguesa dentro do Estado Ampliado e, em especial, como a classe dominante atua em torno das políticas educacionais. Conforme Apple (2002)

[...] analisar o modo pelo qual operam poderosos interesses conservadores, tanto ideológicos como materiais, é tarefa da maior importância, que nos permite compreender melhor tanto as condições de atuação da educação, como as possibilidades de alteração dessas condições (APPLE, 2002, p. 47).


Assim sendo, nesse artigo analisamos a atuação do IAS no estabelecimento do programa “Volta ao Novo - Programa de Desenvolvimento de Competências Socioemocionais”, materializado pela instauração de uma relação3 com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) em meio a pandemia do COVID-19.


Método


Partimos de um determinado modo de compreender a realidade concreta, pautada no materialismo histórico-dialético como método de apreensão dos fenômenos que engendram a totalidade das relações sociais.

Kosik (1976) nos explica que, como método, o materialismo histórico-dialético nos leva a atingir um conhecimento que permita avançar para além das aparências fenomênicas, para além do pragmatismo e imediatismo das concepções idealistas e positivistas, de modo a compreender os fenômenos na sua essência dentro da sua materialidade histórica. Segundo Gamboa (2000) as pesquisas dialéticas objetivam explicitar as relações de causalidade, do fenômeno com a essência, do todo com as partes, dentro da realidade social concreta e real. Neste sentido, buscamos compreender, a partir do materialismo histórico-dialético, como o IAS atua nos processos educacionais e na prática social dos sujeitos envolvidos nesse processo, ao estabelecer relação com a CONSED e UNDIME.

Buscamos analisar essa vinculação, pois compreendemos que os homens, em termos genéricos, são seres sociais, inseridos no conjunto das relações criadas entre humanidade e a natureza, entre sujeitos coletivos e particulares. Dentro dessas


3 Utilizamos no texto o termo “relação” em vez de parceria, apesar desse aparecer no artigo algumas vezes entre “aspas”, pois, compreendemos assim como Martins, Souza e Pina (2020, p. 10) que “o termo parceria é insuficiente para qualificar o conteúdo histórico da relação público-privada”. Para os autores a relação entre o público e privado formam uma unidade dialética contraditória, visto que ambos possuem características, fundamentos, interesses e finalidades históricas divergentes e até mesmo inconciliáveis, mas que na realidade concreta não se anulam. Assim sendo, concordamos com os autores que “a relação entre eles é engendrada por uma profunda contradição e não pela convergência como o termo parceria sugere” (MARTINS; SOUZA; PINA, 2020, p.10).

relações sociais, ao produzirem seus meios de existência, produzem indiretamente sua própria vida material, suas próprias formas de ser, pensar e agir na realidade. Entretanto, os homens também são reprodução dos meios de existência já encontrados, sendo, então, produtos determinados de diferentes contextos políticos, econômicos e culturais (MARX; ENGELS, 1989), engendrados pelas classes sociais em disputa pela hegemonia dentro do Estado Ampliado.

Assim sendo, entendemos que o Estado capitalista se materializa das necessidades reais e concretas dos homens em constituir uma determinada forma de organização societal no conjunto das relações sociais historicamente determinadas. Sua realização ocorre a partir da ação concreta do homem que, devido às necessidades históricas, opera e transforma a realidade (GRAMSCI, 2014). É a partir das práxis humanas, das classes sociais em disputa, categoria fundamental do materialismo histórico-dialético, que o Estado se realiza e se materializa ganhando sua concreticidade dentro da realidade objetiva.

Assim, compreendemos o Estado como condensação das relações de poder e humanas, sendo essas relações de classes sociais.


O Estado não pode ser considerado Sujeito, nem Objeto, ele deve ser tomado como uma condensação de relações sociais, o que nos obriga, necessariamente, a vê-lo enquanto atravessado pelo conjunto das relações de classe presentes na própria formação histórica, incorporando os conflitos vigentes na Sociedade (MENDONÇA, 2007, p. 5, grifos da autora).


As relações de poder condensadas no Estado, são produtos do consenso e da coerção, construídos e entretecidos pelos sujeitos coletivos que se organizam “junto aos aparelhos privados de hegemonia – ou seja, na própria Sociedade Civil – bem como através da ação do próprio Estado restrito que, igualmente, promove e generaliza a visão de mundo da fração de classe hegemônica” (MENDONÇA, 2007, p.6). No sentido restrito, o Estado, em seu papel clássico, atua para “defender as condições gerais que permitem a expansão do capital, legitimando e legalizando uma forma de ser, gerindo uma sociabilidade adequada, educando-a, além de coagir os renitentes pela violência, aberta ou discreta” (FONTES, 2010, p. 216).

Já em relação a sua atuação na sociedade civil, Casimiro (2020) nos ajuda a refletir sobre a práxis social e a atuação da classe burguesa moderna para o estabelecimento da hegemonia:

[...] através de operações de hegemonia – isto é, por meio de atividades e iniciativas de uma ampla rede de organizações culturais, movimentos políticos, instituições educacionais, meios midiáticos e as próprias redes sociais on-line (cada vez mais eficazes e sedutoras), que difundem e naturalizam capilarmente pela sociedade sua concepção do mundo e seus valores, constituindo-se como alicerces, trincheiras da dominação de classe (CASIMIRO, 2020, p.23).


Essas organizações, que na concepção gramsciana compõem os aparelhos privados de hegemonia, “são organizações políticas e culturais de diferentes tipos, localizados na sociedade, responsáveis por atuar de modos e espaços distintos, visando a conquista, a consolidação e a manutenção do consenso em torno de um projeto societal” (MARTINS, 2009, p. 19). Os aparelhos privados de hegemonia atuam como organizadores da vontade coletiva e do consenso geral, organizando diferentes interesses e projetos de sociabilidade dentro do Estado ampliado que se colocam em disputa na sociedade civil. São essas organizações que articulam, capilarizam e ampliam o raio de alcance de determinada concepção de mundo (CASEMIRO, 2020, p.32). O IAS atua, assim, enquanto organizador, formulador e disseminador dos elementos que compõem a hegemonia burguesa. Feitas essas considerações, avançamos para a análise do projeto do IAS “Volta ao Novo – Programa de Desenvolvimento de Competências Socioemocionais”.


Volta ao Novo – Programa de Desenvolvimento de Competências Socioemocionais


O Instituto Ayrton Senna (IAS), desde a sua fundação em 1994, atua na disseminação de um projeto educacional que objetiva criar uma determinada sociabilidade, como o próprio IAS descreve em seu estatuto social e vemos aqui em tela. A atuação do IAS objetiva desenvolver “novas sociabilidades, trabalhando em coexecução com organizações da sociedade civil, escolas públicas, com organismos governamentais, organismos internacionais e afins” (IAS, 2016, p. 4).

Esse projeto educacional não ocorre de forma isolada dentro da realidade concreta, ele se materializa a partir de relações estabelecidas com diversos atores sociais, tanto da sociedade civil como da sociedade política, engendrando o Estado ampliado, numa concepção gramsciniana de Estado. Essas relações ocorrem principalmente com agentes e agências da frente social-liberal, em especial o Todos

pela Educação (TPE) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). No período de pandemia da COVID-19, o IAS estabelece uma forte relação, no âmbito da sociedade política, com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), para a implementação nas escolas de todo país de um programa ligado ao desenvolvimento de competências socioemocionais.

Intitulado de “Volta ao Novo – Programa de Desenvolvimento de Competências Socioemocionais”, o programa teria a intencionalidade de oferecer apoio às secretarias municipais de educação em relação às competências socioemocionais, dando centralidade às competências ligadas a


[...] tolerância à frustração, empatia, entusiasmo, foco, imaginação criativa, e muitas outras para o acolhimento da comunidade escolar como um todo e também no planejamento para o retorno às aulas presenciais, independentemente de quando ele aconteça em cada localidade (IAS, 2020, s/n)4.


Como podemos notar, esse programa objetivaria integrar, e ao mesmo tempo universalizar, os projetos educacionais de todos os municípios brasileiros para o desenvolvimento de competências socioemocionais, já previstos na BNCC, na qual o IAS teve grande relevância na formulação, atuando junto ao “Movimento pela Base Nacional Comum”.

A intencionalidade desse programa, que carrega a marca das organizações internacionais e empresarias supracitadas, baseia-se em uma formação humana para determinada sociabilidade ligada à esfera produtiva e social de hegemonia burguesa, principalmente ligada à frente social-liberal. Seus interesses representam os interesses da classe dominante, transvestidos por conceitos de formação integral, projeto de vida, pensamento crítico e criatividade, que escondem a essência do projeto do capital estruturado no domínio dos meios de produção e na exploração da classe trabalhadora para a manutenção da ordem burguesa, e que quando observados na realidade concreta adotam um caráter pragmático e relativista, típico das concepções pós-modernas, principalmente ligadas às pedagogias que têm como lema o “aprender a aprender”.


4 Disponível em: https://institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/conteudos/instituto-ayrton-senna-e-UNDIME- se-unem-para-promover-competencias-socioemocionais.html.

Segundo Duarte (2001, p. 38), o lema “aprender a aprender”, “sintetiza uma concepção educacional voltada para a formação da capacidade adaptativa dos indivíduos”, distanciando os estudantes, filhos da classe trabalhadora, dos conhecimentos sistematizados que atendem às necessidades humanas reais. Tal formação, ofereceria à classe trabalhadora uma escolarização funcional às relações sociais capitalistas, para que os alunos se integrem ao mundo contemporâneo de forma produtiva e empreendedora sob o discurso de que as escolas devem preparar os alunos para enfrentar os desafios da “sociedade do conhecimento” e “economia do conhecimento” (MARTINS; PINA, 2015).

Neste sentido, a pedagogia das competências desenvolvida pelo IAS, seja no desenvolvimento de competências cognitivas ou socioemocionais, buscaria envolver, na sua totalidade, as formas de organização do pensamento, do ser, do agir, da subjetividade e das vontades individuais e coletivas dos seres dentro da realidade concreta. Em específico, a lógica imposta pelas competências socioemocionais buscaria controlar os comportamentos e as emoções dos estudantes para que eles sejam persistentes e resilientes em meio ao desemprego estrutural, à miséria e à desigualdade social, que todos sabemos ou deveríamos saber, não resultam da pandemia da Covid-19, mas da própria essência do capital, que tem nas formas de exploração do trabalho, da propriedade privada dos meios de produção e da concentração de renda, que assolam o Brasil e o Mundo através do imperialismo dos países de capitalismo central, suas principais bases estruturais.

Além disso, o IAS e seus “parceiros” utilizam-se do discurso que todos devem ser assertivos, ter empatia, autoconfiança, responsabilidade, ter tolerância ao estresse para que cada aluno possa gerenciar a si mesmo, suas emoções e sentimentos, bem como os sentimentos dos outros, para que nesses momentos desafiadores, que são diários para a grande maioria da população e não somente causados pela pandemia, sejam superados. Alcançado esse gerenciamento socioemocional, o IAS e seus “parceiros” acreditam e disseminam que os alunos seriam capazes de realizar seus projetos de vida e sonhos plenamente, como se esses projetos e sonhos não fossem também condicionados pela lógica do capital e que não refletissem os interesses da hegemonia burguesa.

Em nossa análise, inspirados em Gramsci (2011), a pedagogia das competências incorporada nas escolas criaria algo que hipoteca o futuro dos alunos,

seus sonhos e seus projetos de vida, bem como “constringe sua vontade, inteligência, sua consciência em formação a mover-se por um caminho cuja a meta seja prefixada (p.58)”, retirando assim dos alunos todas “as possibilidades, todos os terrenos livres para poder realizar sua própria individualidade do melhor modo possível e, por isso, do modo mais produtivo para eles mesmos e para a coletividade” (p.58).

O programa do IAS, realizado junto com o CONSED e UNDIME, pretende disseminar as competências socioemocionais, sob um discurso desinteressado de apoio as redes de ensino frente aos desafios da pandemia e do retorno escolar, para que todos possam enfrentar as adversidades causadas pela mudança de rotina, insegurança e ansiedade, que segundo essas agências “são naturais aos novos tempos que vivemos” (IAS, 2020c, s/n).

Cabe enfatizar que essas mudanças, sentimentos e emoções não são naturais à humanidade, mas sim, produto das próprias relações sociais de produção, que ao longo da história humana sob o domínio do capital, degrada a natureza e a vida, em seus aspectos materiais, sociais e emocionais. Destarte, não há competência socioemocional que resolva os problemas estruturais da sociedade causados pelo capital, elas apenas propõem contribuir para a aceitação e a naturalização dessas condições adversas, através de um discurso pautado no “aprender a aprender”, agora ligado aos aspectos socioemocionais, para que cada indivíduo aprenda a lidar, a persistir e a autogerir suas emoções, de modo que individualmente cada um se adapte a essas situações e crie estratégias próprias para desviar-se do problema na sua essência, como se eles (os problemas) não fossem parte de uma estrutura sociometabólica que oprime a classe trabalhadora e que vai persistir, mesmo que cada sujeito individualmente resolva seus problemas socioemocionais no plano de sua subjetividade.

Prosseguindo com a análise do programa, se faz necessário considerar seu título, “Volta ao Novo – Programa de Desenvolvimento de Competências Socioemocionais”. A primeira diz respeito à utilização da palavra “novo”, como se a pandemia tivesse a capacidade de sozinha, fazer surgir uma forma completamente nova de se pensar a educação, desconsiderando as situações precárias vivenciadas por professores e alunos nas instituições escolares públicas. Ademais, desconsideram-se as desigualdades existentes no processo educacional e as

dificuldades de garantir o direito a uma educação de qualidade a todos os alunos, o que provoca problemas sociais e emocionais a muito tempo.

Além do mais, a ênfase no desenvolvimento de competências socioemocionais apresentada no título e na reportagem no site do IAS, como sendo urgente a discussão sobre o desenvolvimento socioemocional na escola, leva a uma percepção falsa de que as condições sociais e emocionais dos membros da comunidade escolar nunca tivessem sido parte das discussões e das vivências cotidianas dos membros da comunidade escolar. Esta vem há anos reivindicando apoio de profissionais, tanto de orientação pedagógica e educacional, mas também de psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais de saúde para atender os alunos na sua integralidade. É visível em análise, diante desse contexto, que essa estratégia teria a intenção de se retirar o foco do desenvolvimento dos conhecimentos científicos capazes de explicar e transformar a realidade concreta na sua essência. Há, desta forma, um esvaziamento da função social da escola, limitando o aprendizado a alguns poucos conhecimentos científicos voltados à “aplicabilidade imediata daquilo que é concebido como necessário ou útil” (MARTINS; TOMAZ; PINA, 2013, p.194). E “o necessário e útil”, no projeto do IAS e seus “parceiros” são as competências socioemocionais para que os indivíduos “aceitem” as condições dessa “nova sociabilidade” decorrente da pandemia da Covid-19. Sendo assim, na perspectiva do IAS e seus “parceiros” é necessário “aprender a aprender” a controlar as emoções para se adaptar as novas exigências da vida social e produtiva decorrentes da pandemia.

Isso fica evidenciado no discurso da presidente do IAS, Viviane Senna, no lançamento da “parceria” com o CONSED. Para ela, estaríamos “vivendo um período como se o mundo estivesse sob nova direção, trazendo diversas mudanças; devemos nos preparar para elas, e para isso as competências são imprescindíveis” (IAS, 2020c, s/n). Nota-se, mais uma vez, a ênfase dada às competências socioemocionais, como se elas tivessem o “poder” de superar todos os problemas evidenciados pela pandemia e ainda pudessem levar a educação para um “novo” momento.

A partir dessa fala da presidente do IAS, ainda nos cabe esclarecer ou apontar o óbvio, que a direção da sociedade não é dada por eventos “naturais”, como a pandemia, mas pelas relações de poder decorrentes das lutas de classe. E nesse contexto de luta, a classe burguesa, da qual a própria Viviane Senna faz parte e defende interesses, utiliza seus aparelhos privados de hegemonia (APH),

representados por organizações sociais empresarias, como o IAS e seus “parceiros” da frente social-liberal, para atuar na sociedade civil construindo consenso em torno de noções, como as das competências socioemocionais, da empregabilidade, do empreendedorismo, da meritocracia e da responsabilidade social para se obter a hegemonia, seja em meio a pandemia ou muito antes dela. São essas noções, carregadas de interesses de classe, que responsabilizam cada indivíduo social por seu sucesso ou fracasso na sociedade, conferindo um “poder” às escolhas ou aos esforços individuais, como se todos fossem livres e tivessem as mesmas oportunidades de escolher seu futuro e seus projetos de vida.

A segunda consideração sobre o título diz respeito à normalização que ele busca impor. A “volta ao novo” aparece como uma coisa que deva ser naturalizada, que professores e alunos devem se adequar ao falacioso “ensino remoto” no período de pandemia e no retorno às atividades presenciais, ao ensino híbrido (presencial + plataformas digitais). Consideraram-se que essas metodologias de ensino estariam funcionando perfeitamente e que elas possibilitariam melhoras na educação dos alunos e no trabalho docente. O que percebemos com isso é um negacionismo ao fato de que o “ensino remoto” não vem funcionando, não vem proporcionando aprendizagens e nem mesmo interações têm sido conseguidas nas precárias aulas remotas, visto o tamanho do problema de exclusão social e digital que acomete nossos professores e as famílias de nossos alunos. Não há assim, de forma alguma, principalmente natural, como assumir esse “novo normal” pós-pandemia, pois os problemas estruturais que determinam a exclusão social e digital tendem a permanecer.

Outra importante implicação do ensino remoto se deu no trabalho docente. O que temos visto, é a precarização e intensificação do trabalho dos professores dado pelo falacioso modelo exigido pelo “ensino remoto”, que demandou um investimento em materiais para seu trabalho em casa, e pelo aumento das horas de trabalho. Além disso, o que temos observado e vivenciado, é uma reprodução direta dos projetos e das orientações presentes nos materiais didáticos, que representam no campo da educação e da atuação docente, uma adoção de pedagogias neotecnicistas, que destituem o trabalho pedagógico de sua dimensão criadora, contextual e transformadora (SANTOS, 2012).

Concordamos com Santos (2012) que o bloco hegemônico tem investido na desqualificação da escola pública e do trabalho docente, para que a escolas sejam entregues a agências, institutos e organizações da classe empresarial que atuam na educação, como manifestos nessa relação do IAS, CONSED e UNDIME. Essa investida busca despolitizar a escola, reduzindo a atividade pedagógica a uma atividade meramente técnica e de controle socioemocional. Esse processo atua no sentido de repolitizar a escola “em favor da manutenção da hegemonia, sob a aparência de neutralidade, eficiência, eficácia, silenciando e desqualificando os significados da educação como prática política transformadora e de formação humana no sentido mais pleno (SANTOS, 2012, p. 8) ”. Retira-se a dimensão científica do processo de ensino e de aprendizagem, que desvaloriza os conteúdos escolares em favor de competências e habilidades pragmáticas e relativiza a resolução de problemas cotidianos, descolados das bases estruturais da sociedade. Segundo Santos (2012, p. 15), “só se trabalha de acordo com a ‘realidade do aluno’, entendida aqui como a realidade imediata e empírica. Não se busca construir o ‘concreto pensado’. Trata-se da pedagogia da pseudoconcreticidade”5.

Temos assim, que o programa proposto pelo IAS, em conjunto com o CONSED e a UNDIME, buscaria uma formação que induz a impressão de que há uma preocupação com as condições emocionais da comunidade escolar, em especial professores e alunos, mas que na verdade objetivaria que os indivíduos aceitem as “novas/velhas” condições educacionais precárias, desiguais e excludentes acrescidas da hibridização do ensino, via construção de competências socioemocionais que os possibilitem trabalhar e estudar nessas condições, e que essas mesmas competências socioemocionais sejam a base para que os indivíduos se adaptem às instabilidades e incertezas produzidas pela sociabilidade do capital.

Para concretização desse programa, o IAS dividiu-o em 2 fases. Na primeira (de julho a outubro de 2020), envolvendo a comunidade escolar de 26 redes estaduais, o IAS e CONSED utilizaram materiais preparados pelo IAS sobre as 5


5 Santos (2012) usa aqui um conceito elaborado pelo marxista Karel Kosik (1976, p.11), que considera o mundo da pseudoconcreticidade como “o mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais; - O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade); - o mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizadas, formas ideológicas de seu movimento; - o mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade social dos homens”.

macrocompetências (Resiliência emocional, Abertura ao novo, Autogestão, Amabilidade e Engajamento com os outros), lives abertas ao público sobre cada macrocompetência e uma webconferência exclusiva para os técnicos formadores das redes que aderiram ao projeto, onde todos puderam discutir planos de ação para multiplicar o conhecimento adquirido. Na segunda fase, que se iniciou em outubro de 2020, e que expande a parceira à UNDIME, os materiais seriam utilizados por todos os munícipios do país, assim como haveria a realização quinzenal de lives temáticas abertas para participação de toda a comunidade escolar, o compartilhamento de materiais de apoio sobre cada um dos temas trabalhados, e uma série de webconferências fechadas para representantes técnicos de todas as seccionais da UNDIME (IAS, 2020c).

Segundo o IAS, na primeira fase, “mais de 100 mil pessoas acompanharam as lives, quase 35 mil fizeram download dos materiais em PDF e cerca de 50 profissionais de educação de todos os cantos do Brasil participaram de encontros exclusivos (IAS, 2020c, s/n) ”. Esses dados nos revelam o poder de capilaridade e influência que IAS tem conseguido durante a pandemia da Covid-19 e que provavelmente irá aumentar com a parceria com a UNDIME no desenvolvimento das competências socioemocionais e na conformação da comunidade escolar pautada nos princípios e interesses que o IAS carrega nas suas formulações e no seu discurso, ligados à frente social-liberal.

Cabe ressaltar que uma das estratégias utilizadas para formar consenso em torno das competências socioemocionais nas lives, foi a utilização de personalidades que deram depoimentos sobre a experiência com determinada competência socioemocional, de modo a fazer de casos particulares exemplos de sucesso na vida social e produtiva, dando “supostos poderes” de transformar as suas vidas aos indivíduos que possuem essas competências.


Considerações finais


Concluímos o artigo chamando a atenção para a estratégia do IAS, do CONSED e da UNDIME, de apresentar e orientar os indivíduos a desenvolver as competências socioemocionais a partir do projeto “Volta ao Novo – Programa de

Desenvolvimento de Competências Socioemocionais”, de modo a consolidar o discurso da classe dominante, principalmente da frente social-liberal.

Salientamos que a intenção do discurso é produzir um fetiche de que essas competências teriam uma forte influência positiva no processo de aprendizagem e no contexto de crise, devido aos impactos econômicos, sociais e emocionais. No entanto, as mesmas não questionam as determinações da vida material de cada sujeito social, que são influenciadas por múltiplas dimensões, provenientes da crise estrutural do capital e exacerbadas pela pandemia da Covid-19, que trouxe e irá trazer ainda, sérias consequências à comunidade escolar, bem como às dimensões econômicas, sociais e emocionais dos sujeitos de acordo com a divisão de classe sobre a qual se sustenta a acumulação de capital e a ordem burguesa.

Apontamos que as “relações” estabelecidas entre o público e privado são estratégias constantes e fundamentais para a manutenção da hegemonia burguesa e que têm se materializado amplamente no campo educacional, como vislumbramos nesse artigo, atingindo todos os estados e municípios do país, e que vêm sendo ampliados por meio do lema “aprender a aprender” e da noção das competências socioemocionais, que tem o IAS como um forte disseminador e formulador. Essas formulações buscam envolver toda a comunidade escolar para atender os interesses produtivos e da sociabilidade burguesa, seja em tempos de pandemia ou fora dela.


Referências


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