V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Anselmo Alencar Colares2 Maria Lília Imbiriba Sousa Colares3
A educação como direito público que se consolidou a partir das lutas políticas da classe trabalhadora está seriamente ameaçada nesta fase do capitalismo financeiro. Como resultado de pesquisa bibliográfica, demonstramos que a grave crise estrutural somada aos problemas decorrentes da conjuntura de crise sanitária e política no Brasil levou à intensificação das investidas sobre a educação, entendida como mercadoria à disposição de grupos empresariais que controlam os processos de oferta de serviços e produtos, precarizando o trabalho e promovendo o desmonte de políticas públicas.
La educación como ley pública que se ha consolidado a partir de las luchas políticas de la clase obrera está seriamente amenazada en esta etapa del capitalismo financiero. Como resultado de la investigación bibliográfica, demostramos que la grave crisis estructural sumada a los problemas derivados de la coyuntura de la crisis sanitaria y política en Brasil llevó a la intensificación de los ataques a la educación, entendida como una mercancía disponible para los grupos empresariales que controlan los procesos de oferta de servicios y productos, el trabajo precario y la promoción del desmantelamiento de las políticas públicas.
Education as a public law that has consolidated itself from the political struggles of the working class is seriously threatened at this stage of financial capitalism. As a result of bibliographical research, we demonstrated that the serious structural crisis added to the problems arising from the conjuncture of the health and political crisis in Brazil led to the intensification of attacks on education, understood as a commodity available to business groups that control the processes of offering services and products, precarious work and promoting the dismantling of public policies
1 Artigo recebido em 10/03/2022. Primeira Avaliação em 15/04/2022. Segunda Avaliação em 25/04/2022. Aprovado em 30/05/2022. Publicado em 21/07/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.53432.
2 Doutor em Educação. Professor Titular da Universidade Federal do Oeste do Pará. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação PPGE/UFOPA e do Programa de Pós-graduação em Educação na Amazônia - Doutorado Acadêmico (Associação em Rede - Polo Santarém/UFOPA). Bolsista do CNPq.
E-mail: anselmo.colares@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1107767923215438. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-1767-5640.
3 Doutora em Educação. Professora Titular da Universidade Federal do Oeste do Pará. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação PPGE/UFOPA e do Programa de Pós-graduação em Educação na Amazônia - Doutorado Acadêmico (Associação em Rede - Polo Santarém/UFOPA). E-mail: liliacolaress@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9671465461954562. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5915-6742.
Neste artigo realizamos um percurso histórico considerando as relações Estado, sociedade e educação, a partir da modernidade e as expressões oriundas das mais recentes crises estruturais do modo de produção capitalista. As leituras empreendidas fazem parte dos esforços para entender a passagem da educação enquanto direito social para a forma mercadoria, regida pela lógica do empresariamento. Daí porque buscamos entender o macro contexto político, econômico e social, e as especificidades que se apresentam e exigem compreensão analítica fundamentada para subsidiar as lutas, com vistas ao enfrentamento dos problemas que estão postos com o avanço da privatização, tentativas de esfacelamento dos coletivos com cerceamento de liberdades, desmonte de políticas públicas e supressão de direitos.
A lógica do modo de produção capitalista se apresenta de maneira mais profunda e explícita no âmbito da produção material e da circulação das mercadorias. A educação, mesmo em sua forma escolar, não se identifica totalmente com a referida lógica. Todavia, há também uma forma não material no modo de produção capitalista e, nesta, as concepções e práticas educacionais, por meio das políticas públicas, dos materiais didáticos, e de outros mecanismos, passam a se vincular organicamente ao sistema, movimentando serviços e capitais, independente dos que produzem o conhecimento escolar e/ou refletem sobre ele. A educação enquanto mercadoria tem no estudante um consumidor, e nos profissionais da educação prestadores de serviços a serem regidos por relações definidas em custo-benefício, segundo os princípios empresariais, e não mais enquanto a realização de um direito social.
Marx e Engels, no Manifesto Comunista de 1848, já advertiam a respeito da propriedade: “a sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos das classes. Estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta no lugar das antigas” (MARX; ENGELS, 1998, p. 9). Entre as várias novas condições de opressão, deparamo-nos com o que tem sido chamado “empresariamento”, e sobre ele nos dedicaremos neste artigo, buscando analisar como tem se apresentado na educação escolar.
A sociedade a que Marx dedicou grande parte de suas energias para compreender – tarefa para a qual contou em vida com o auxílio fundamental de Engels no campo teórico e pessoal – e que tem sido objeto de estudos e pesquisas de um
sem-número de estudiosos, é a sociedade capitalista, ou seja, a que resultou das diversas transformações oriundas do modo de produção estruturado pelo capital. Muitas das características do como produzir foram mantidas das fases anteriores, mas sem dúvida o modo capitalista tem especificidades que o tornaram rapidamente dominante sobre outras formas e, mais que isso, passaram a moldar todas as demais manifestações da vida humana, além de gerar agressões sobre as outras formas de vida e sobre a natureza em geral, nunca vistas. Ao mesmo tempo, uma forma de sociedade foi aclamada e naturalizada, vista como propulsora de progressos e avanços, não sendo incompatível com a igualdade natural dos homens nem com a justiça, como observa Hobsbawm (1977, p. 259):
[...] Podia ser cientificamente provado que a existência de uma classe de capitalistas donos dos meios de produção beneficiava a todos, inclusive aos trabalhadores que se alugavam a seus membros, exatamente como poderia ser cientificamente comprovado que os interesses da Grã-Bretanha e da Jamaica estariam melhor servidos se aquela produzisse mercadorias manufaturadas e esta produzisse açúcar natural. O aumento da riqueza das nações continuava com as operações das empresas privadas e a acumulação de capital, e poderia ser demonstrado que qualquer outro método de assegurá-lo iria desacelerá-lo ou mesmo estancá-lo. Além do mais, a sociedade economicamente muito desigual que resultava inevitavelmente das operações de natureza humana não era incompatível com a igualdade natural de todos os homens nem com a justiça, pois, além de assegurar inclusive aos mais pobres condições de vida melhores, ela se baseava na mais equitativa de todas as relações: o intercâmbio de valores equivalentes no mercado. [...]
O progresso era, portanto, tão “natural” quanto o capitalismo. Se fossem removidos os obstáculos artificiais que no passado lhe haviam colocado, se produziria de modo inevitável; e era evidente que o progresso da produção estava de braços dados com o progresso das artes, das ciências e da civilização em geral. Que não se pense que os homens que tinham tais opiniões eram meros advogados dos consumados interesses dos homens de negócios. Eram homens que acreditavam, com considerável justificativa histórica neste período, que o caminho para o avanço da humanidade passava pelo capitalismo.
Tais argumentos continuam sendo utilizados, com maior sofisticação e amplitude, com o auxílio do aparato do Estado (sejam os “aparelhos” de repressão ou os ideológicos, conforme a categorização de Althusser) e dos meios de comunicação de massa, porta-vozes da classe proprietária dos meios de produção. Nas escolas, além do aprendizado da leitura e da escrita, aprendem-se as regras do bom comportamento, o ser submisso à ordem vigente, aprendizados que recebem reforços
em outras instituições como as igrejas, as forças militares, os locais de trabalho e tantos outros nos quais a classe trabalhadora recebe a formação ideológica. Porém, sabemos que, contraditoriamente, também podem ser espaços de esclarecimento e, por conseguinte, contra hegemônicos, produtores de uma nova ordem social.
Como parte das “batalhas” travadas na luta de classes, a educação sofre as investidas do capital para que os conteúdos ensinados nas escolas propiciem aprendizados legitimadores do sistema. Além disso, instituições escolares se tornaram local por excelência para grupos empresariais, para os quais a educação, longe de ser um direito público, é vista como mercadoria. Dessa forma, tornou-se
[...] um negócio altamente lucrativo, propiciando a formação e o crescimento de grandes aglomerados que exercem o controle da oferta educacional e de uma série de produtos e serviços que constituem os empreendimentos e movimentam negócios vultosos nas bolsas de valores em todo o mundo. (COLARES, 2020, p. 280).
No Brasil, o golpe de 2016 desencadeou perda de direitos e desmonte de serviços públicos. A emenda constitucional 95/2016, e os vários tipos de desoneração fiscal e reformas convenientes ao capital atuaram “em favor da transferência de responsabilidade do Estado para o setor privado” (PIOLLI, 2019, p. 6).
Ao apontar o surgimento da escola pública como sendo contextual ao das fábricas, Manacorda (2002) remete-nos para o projeto civilizatório burguês, em termos de expectativas quanto à formação de um trabalhador necessário ao sistema e dotado de qualidades sociais valorizadas pelos ideólogos liberais. De alguma forma, estiveram presentes a ideia de formação para uma determinada cidadania e as lutas dos trabalhadores para a realização universal da educação pública como um direito.
A forma empresarial que a educação passou a ter distancia-se enormemente da anterior, uma vez que se equipara a mercadoria que facilmente se torna obsoleta uma vez que é produzida sob condições extremamente precarizadas e sem considerar os avanços científicos que a humanidade alcançou após sucessivos e conflitantes movimentos. A banalização da informação, propositadamente confundida com conhecimento, a busca por “atalhos” no percurso formativo, e a ilusão de tornar-se “empresário de si mesmo” são fatores que favorecem a expansão do negócio educacional.
O combate a essa falácia, como a outras que acompanham a história da humanidade, passa pela superação de todas as formas de superstição e de
ignorância, por meio da consciência filosófica e a elaboração do conhecimento fundamentado. Requer também a compreensão histórica dos fenômenos que alimentam os processos em curso. Mas não basta adquirir o conhecimento, é necessário mobilizar esforços para a resistência ativa, para enfrentar e superar o que está posto. Daí porque iniciamos o texto relembrando a exortação de Marx e Engels aos trabalhadores e a todos os defensores da educação pública, para que se unam no combate ao empresariamento da educação. Nas páginas seguintes vamos discorrer sobre o tema, trazendo reflexões que auxiliem no entendimento, e que possam alimentar a chama da luta a ser travada na esfera política e em todos os espaços formativos. Desse modo, procuramos colaborar com debate sobre a construção de uma sociedade na qual haja justiça e equidade na distribuição dos meios necessários à vida, respeito à diversidade e repulsa a quaisquer formas de preconceitos, possibilitando a realização da plenitude humana.
A educação resultante da sociedade moderna teve na instituição escola a principal forma. Seu nascimento pode ser contextualizado ao surgimento da fábrica, de modo que dessa assimilou muitas caraterísticas: a rigidez de horários, a hierarquia, a disciplina e o estabelecimentos de rotinas sob supervisão e avaliação constantes. Ressalte-se que as similaridades vistas isoladamente não constituem em si fatores negativos ao processo formativo. Todavia, ao serem mobilizadas para dar sustentação a um projeto societário, tal como o foram e continuam sendo pela burguesia, passam a ter um caráter deformador na medida em que impedem a realização plena e livre do ser humano emancipado.
No advento da modernidade, ideólogos burgueses se empenharam em demonstrar que a livre iniciativa seria salutar para toda a sociedade. A grande meta residia em ampliar os ganhos que a acumulação baseada na lógica mercantilista havia propiciado. Daí as críticas quanto à forte presença e atuação do Estado na esfera econômica, e a ênfase na defesa da liberdade de atuação dos indivíduos. Aqui nos limitaremos a apresentar argumentos elaborados por Adam Smith e David Ricardo. Embora seus escritos pertençam aos séculos XVIII e XIX – portanto, respondendo às questões postas naquela época e no contexto ao qual estavam vinculados –, ainda
dão suporte para o pensamento liberal em nossos dias. Permanece o pensamento acerca da defesa da propriedade privada, da não intervenção do Estado na economia (salvo em certas circunstâncias necessárias ao próprio capital), da apologia do mercado baseada na crença de suas leis. Continuam havendo pontos de convergência sobre os quais se entendem todos aqueles que não precisam vender a si próprios como mercadorias. Alguns desses temas se mantêm inclusive no que se convencionou chamar de neoliberalismo.
“Riqueza é poder”, diz Smith (1983, p. 63), apoiando o que já dissera Hobbes. E o poder está associado diretamente ao objetivo de promover a Riqueza das Nações (título de seu livro, publicado em 1776). A contribuição da economia política a um estadista seria direcionada a aumentar a riqueza e o poder nacionais, indicando a maneira como deve o Estado agir. Todavia, Smith considera que o aumento da riqueza nacional depende muito mais de outros fatores que da intervenção do Estado. Por essa razão, sentencia que a melhor política seria sempre aquela que deixasse as coisas andarem seu curso normal guiadas por uma espécie de “mão invisível” a qual se encarregaria de, harmoniosamente, promover o equilíbrio entre oferta e procura, desde que não houvesse obstáculos ao livre desenvolvimento das forças produtivas que operam na sociedade, e que são responsáveis pelo crescimento da nação. Smith admite a intervenção do Estado, quando a “mão invisível” não conseguir harmonizar satisfatoriamente os interesses opostos (SMITH, 1983). O Estado passa a ser então decisivo no sentido de impedir que os conflitos possam prejudicar o desenvolvimento da acumulação do capital e para que possa promover a segurança dos proprietários. Considera que sejam três os “deveres” do Estado: segurança, justiça e obras públicas (CORAZZA, 1984).
Nas palavras do próprio Smith (1983, p. 147):
Segundo o sistema da liberdade natural, ao soberano cabem apenas três deveres; três deveres, por certo, de grande relevância, mas simples e inteligíveis ao entendimento comum: primeiro, o dever de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros países independentes; segundo, o dever de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de qualquer outro membro da mesma, ou seja, o dever de implantar uma administração judicial exata; e, terceiro, o dever de criar e manter certas obras e instituições públicas que jamais algum indivíduo ou um pequeno contingente de indivíduos poderão ter interesse em criar e manter, já que o lucro jamais poderia compensar o gasto de um indivíduo ou de um pequeno contingente de indivíduos, embora muitas
vezes, ele possa até compensar em maior grau o gasto de uma grande sociedade.
Nota-se, portanto, que o Estado desempenha um papel importante na acumulação capitalista nascente. E fica claro o compromisso estatal com o interesse capitalista, especialmente quando, em sua obra, trata questões como a defesa da liberdade de comércio, a tributação e a dívida pública. É possível dizer também que o liberalismo de Smith representa a expressão de um otimismo em relação ao indivíduo, como elemento central do dinamismo que impulsionava a economia no novo sistema. O governo, ao contrário, sendo considerado perdulário e ineficiente.
A visão otimista defendida por Smith quanto à possibilidade da produção de benefícios gerais para toda a sociedade, caso fossem deixadas atuar livremente as forças do mercado, é descrita na figura do açougueiro, em um dos muitos exemplos utilizados em A Riqueza das Nações. Ele ilustra o papel do interesse individual como harmonizador e promotor de eficiência e riqueza. Para Smith (1983), é o interesse do açougueiro, e não a sua generosidade, garanta o fornecimento de meu jantar. Assim, o interesse do indivíduo e a motivação do ganho aparecem como forças que conduzem os homens às atividades que a sociedade está disposta a remunerar. A sociedade distribui seus elementos de produção para atender a necessidades e desejos através dos mecanismos de mercado (MORAES, 2000). Contudo, para que a liberdade individual de produzir pudesse ser garantida, era necessário um quadro institucional de leis e normas garantido pela autoridade, portanto, pelo Estado. O conjunto de instituições, de normas e leis garantidas pelo Estado seria a condição para o florescimento do comércio e das manufaturas.
A produção de riquezas, por sua vez, exige a utilização de mão-de-obra, a adequada utilização das forças produtivas e a aceitação de sua importância pelo conjunto dos trabalhadores. É nesse sentido, em especial, que Smith (1983, p. 213- 215) propõe a ação do Estado no campo educacional.
O homem que gasta toda a sua vida executando algumas operações simples [...] não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo [...]. O entorpecimento de sua mente o torna não somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda a conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre e terno e, consequentemente, de formar algum julgamento justo até mesmo acerca de muitas das obrigações normais da vida privada. Ele é totalmente incapaz de formar juízo sobre os grandes e vastos interesses de seu país; e, a menos que se tenha empreendido um
esforço inaudito para transformá-lo, é igualmente incapaz de defender seu país na guerra. [...] Ora, em toda a sociedade evoluída e civilizada, este é o estado em que inevitavelmente caem os trabalhadores pobres – isto é, a grande massa da população – a menos que o Governo tome algumas providências para impedir que tal aconteça [...]. A educação das pessoas comuns talvez exija, em uma sociedade civilizada e comercial, mais atenção por parte do Estado que a de pessoas de alguma posição e fortuna [...]. Com gastos muito pequenos, o Estado pode facilitar, encorajar e até mesmo impor a quase toda a população a necessidade de aprender os pontos mais essenciais da educação [...]. O Estado pode facilitar essa aprendizagem elementar cirando em cada paróquia ou distrito uma pequena escola, onde as crianças possam ser ensinadas.
Em síntese, Smith (1983), ao definir que a economia se equilibra em um jogo de oferta e procura, como se uma “mão invisível” a dirigisse. Defende ardorosamente a não intervenção do Estado na economia, mas deixa mostras dos limites do seu posicionamento: os interesses dos proprietários.
O inglês David Ricardo, em Princípios de Economia Política e Tributação, publicado em 1817, discute, entre outras questões, a diferença entre o valor do trabalho diretamente incorporado a uma mercadoria e o valor dessa mercadoria, que também contém os trabalhos aplicados em matéria-prima, ferramenta, instalação de fábricas, isto é, a parte que pertence ao capital. Assim, justifica que, sendo o capitalista (ou proprietário de terras) empregador do trabalho, que participa da produção com esses itens, ele deve ter também a sua remuneração, o lucro.
Smith (1983), como vimos, havia lançado fortes críticas à intervenção do Estado na economia, reivindicando liberdade de ação para o indivíduo, convicto de que a regulagem mais efetiva do interesse geral só poderia ser exercida pelo mercado. Ricardo (1982, p. 104) amplia esta defesa, substituindo o termo indivíduo por país:
Num sistema comercial totalmente livre, cada país naturalmente dedica seu capital e seu trabalho à atividade que lhe seja mais benéfica. Essa busca de vantagem individual está admiravelmente associada ao bem universal do conjunto dos países. Estimulando a dedicação ao trabalho, recompensando a engenhosidade e propiciando o uso mais eficaz das potencialidades proporcionadas pela natureza, distribui-se o trabalho de modo mais eficiente e mais econômico, enquanto pelo aumento geral de volume de produtos difunde-se o benefício de modo geral e une-se a sociedade universal de todas as nações do mundo civilizado por laços comuns de interesse e de intercâmbio. Este é o princípio que determina que o vinho seja produzido na França e em Portugal, que o trigo seja cultivado na América e na Polônia, e que ferramentas e outros bens sejam manufaturadas na Inglaterra.
Além da não intervenção na economia interna, o Estado também não deveria intervir no âmbito das transações externas. Por isso, o liberalismo econômico resultante da concepção ricardiana é muito mais enfático quanto à capacidade reguladora do mercado. Sem obstáculos, o mercado revelaria as suas qualidades, em termos de eficiência, justiça e riqueza. Além dos resultados benéficos intrínsecos a esses fatores, tal condição ainda propiciaria paz e harmonia internacional.
Contudo, o Estado não desaparece (Ricardo chega a dedicar praticamente um terço de sua principal obra para as questões referentes à tributação), uma vez que os mecanismos naturais de regulação estão sujeitos a obstáculos, tais como a baixa fertilidade da terra e a aprovação de leis pelo Estado. Para isso, faz-se necessário orientar a ação estatal de acordo com as necessidades da acumulação capitalista. Ricardo entende que os gastos governamentais representam apenas uma transferência de despesas do setor privado para o setor estatal. Assim sendo, a despesa estatal não altera o poder de compra total da sociedade, isto é, não exerce qualquer efeito positivo sobre a economia e até mesmo pode representar obstáculos à acumulação, uma vez que tais despesas públicas são realizadas com as receitas obtidas através de impostos. Preocupa-se que os impostos possam transferir recursos que os indivíduos gastariam produtivamente para que o Estado os gaste improdutivamente. Daí sua argumentação centrada na restrição do poder tributário do Estado, como importante fator para a manutenção de seu funcionamento mínimo.
[...] Cada novo imposto se transforma em um novo encargo para a produção e aumenta o preço natural dos produtos. Uma porção do trabalho do país que anteriormente se encontrava à disposição do contribuinte, é colocada à disposição do Estado e, portanto, não pode ser empregada produtivamente. Essa porção pode tornar-se tão grande que o excedente da produção seja insuficiente para estimular os esforços dos indivíduos que geralmente aumentam o capital nacional com as suas poupanças [...] (RICARDO, 1982, p. 135).
Mas, em determinadas circunstâncias, o Estado deveria ser chamado a atuar na economia, oferecendo proteção aos produtores quando esses fossem ameaçados pela concorrência externa. Tomando como referência as contingências que podem afetar a produção e o comércio do trigo, Ricardo (1982, p. 185) defende como sendo a melhor política governamental
[...] lançar um imposto sobre a importação de trigo estrangeiro, cujo montante fosse gradualmente decrescente durante um número
limitado de anos, para permitir ao produtor nacional uma oportunidade de retirar pouco a pouco seu capital da agricultura.
Mesmo pregando a liberdade de comércio internacional, não descarta a intervenção do Estado para proteger os interesses do capital. Tal posicionamento teórico apenas confirma seus vínculos práticos. A força do argumento smithiano foi sendo abalada não apenas pela descoberta de Ricardo das contradições dentro do sistema preconizado por Smith “[...] mas porque os verdadeiros resultados sociais e econômicos do capitalismo provaram ser menos felizes do que tinham sido previstos.” (HOBSBAWM, 1977, p. 259).
Ricardo (1982, p. 87) também foi partidário de uma não intervenção do Estado nas relações entre capitalistas e trabalhadores. Para ele, o trabalho, como qualquer outra mercadoria, tem seu preço natural e o seu preço de mercado. O preço natural é determinado pela necessidade de sobrevivência do trabalhador e sua família, ao passo que o preço de mercado é aquele estabelecido pela interação da oferta e procura. O aumento de salário, portanto, está inteiramente ligado a maior procura de trabalhadores, o que depende do constante aumento da acumulação.
Essas são as leis pelas quais se regulam os salários e pelas quais se orienta a prosperidade de grande maioria dos membros de toda a comunidade. Como todos os demais contratos, os salários deveriam ser deixados à justa e livre concorrência do mercado, e jamais deveriam ser controlados pela interferência da legislação.
Por trás desses argumentos, Ricardo (1982, p. 87-88) tinha um alvo a combater: as leis dos pobres (Poor Laws)4, as quais considerava em total desencontro com as leis naturais do mercado:
A tendência clara e direta das leis dos pobres está em total oposição com esses princípios evidentes: não é, como pretendem benevolentemente os legisladores, melhorar a situação dos pobres mas piorar a situação, tanto dos pobres quanto dos ricos. Em vez de enriquecerem os pobres, elas destinam-se a empobrecer os ricos; e enquanto vigorarem as leis atuais, pela ordem natural das coisas, o fundo de manutenção dos pobres crescerá progressivamente, até absorver todo o rendimento líquido do país, ou, ao menos, tudo quanto o Estado nos deixe depois de satisfazer suas permanentes demandas de fundos para os gastos públicos.
Desde que foi plenamente esclarecida pela pena competente de Malthus, a tendência perniciosa dessas leis já não é um mistério, e
4 Série de leis de amparo oficial aos pobres surgidas na Inglaterra em fins do século XV. Consequência das profundas transformações sociais geradas pela implantação de novos processos produtivos para os quais grande parte da população ficou excluída, sem condições para adaptar-se à manufatura ou mesmo à vida urbana; as pessoas perambulavam pelas cidades, sem empregos nem meios de vida.
todo amigo dos pobres deveria desejar ardentemente sua abolição. Infelizmente, porém, elas foram estabelecidas há tanto tempo e os hábitos dos pobres se ajustaram de tal forma à sua existência, que erradicá-las completamente de nosso sistema político exige o maior cuidado e habilidade.
Tendo como principais preocupações econômicas a redução do lucro e a provável queda do ritmo em que o capital é acumulado, Ricardo (1982) entendia que a lei dos pobres favorecia a acomodação e a multiplicação descontrolada da classe trabalhadora, de tal forma que, se nenhum freio fosse posto, os fundos destinados aos pobres acabariam por absorver todo o rendimento nacional, gerando um “estado estacionário” em que nem a população nem a economia pudessem mais crescer. Por essa razão, entendia que a única garantia de prosperidade para a classe trabalhadora era o progresso da acumulação de capital, sem qualquer restrição oriunda de medidas tomadas pelo Estado.
Defendia a revogação da Lei dos Pobres, tanto para estimular a produção como para evitar outras consequências mais desastrosas, conforme se pode deduzir deste trecho:
Felizmente estas leis têm vigorado num período de crescente prosperidade, durante o qual os fundos para sustento do trabalho têm aumentado regularmente, estimulando, de modo natural, o aumento da população. No entanto, se o nosso progresso se tornasse mais lento, e se atingíssemos um estado estacionário, do qual acredito estarmos ainda muito distantes, então a natureza perniciosa dessas leis se tornaria mais evidente e alarmante. Então, sua revogação seria impedida por muitas dificuldades adicionais. (RICARDO, 1982, p. 89).
A Riqueza das Nações, de Adam Smith, e Princípios de Economia Política e Tributação, de David Ricardo, revelam o pensamento liberal e estão nas bases do neoliberalismo (apesar da polêmica relativa à aplicação deste termo). Todavia, a educação ainda não é tratada como fonte de riqueza ou merecedora de uma atenção diferenciada nas regulações do Estado, muito menos apresentada como mercadoria. Vejamos como a oferta da educação foi se deslocando de um direito universal para ser vendida em forma de serviço e de materiais didáticos.
A educação não constituiu, na essência, uma forma de trabalho produtiva, geradora de mais-valia. O produto dela não é claramente percebido como uma mercadoria, mesmo que as instituições privadas a ofereçam em um competitivo mercado e disputem o conteúdo das políticas públicas educativas para atender seus interesses. Todavia, mudanças significativas foram se processando ao longo dos anos, produzindo mudanças nos fins das instituições de ensino, direcionadas ao mercado de capitais a partir de fusões, de aquisição de outras instituições e da entrada desregulamentada de capital internacional. Essas são mudanças oriundas da chamada fase de financeirização do modo de produção capitalista. Uma forma intensificada de mercantilização, mudando drasticamente a relação das instituições de ensino no tocante às suas funções sociais, dada a centralidade da oferta da educação como mercadoria. Esse é um quadro recente no Brasil, configurado após a Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9394/1996), a qual deu base aos processos de especulação de capitais nas bolsas de valores. Primeiramente, no Ensino Superior; depois, na Educação Básica; e hoje atingindo todos os níveis e modalidades (COLARES, 2020, p. 280-281). Houve também as parcerias público-privadas com sistemas ou escolas, em que o setor privado, muitas vezes com o disfarce de “sem fins lucrativos”, vai assumindo o controle do conteúdo e da forma de execução da educação pública na formação de professores, no monitoramento dos sistemas educativos, nas avaliações, nas exigências de publicação, praticamente inviabilizando a circulação de conhecimentos gratuitamente. Muitos são os mecanismos; cada vez mais novos surgem; ou antigos são revigorados.
A regulação exercida pelo Estado para que as instituições privadas cumpram alguma função social está cada vez mais flexibilizada. A possibilidade de financiamento público para o setor privado foi alargada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Quando da regulamentação da Emenda Constitucional n. 53 de 2006, que criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), nova concessão foi institucionalizada. Recursos do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e do
Programa Universidade para Todos (ProUni), entre outras fontes, constituem o arcabouço geral do empresariamento na educação no Brasil.
Podemos constatar o avanço privatista sobre a Educação Superior brasileira, por exemplo, com os números consolidados na Sinopse Estatística da Educação Superior 2020, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Vejamos: das 2.457 IES no país, apenas 304 são públicas (federal, estadual e municipal). As públicas respondem por um total de 527.006 alunos ingressantes, oferecendo 10.806 cursos de graduação presenciais e a distância, enquanto as privadas respondem por 3.238.469 ingressos, ofertando 31.147 cursos (presenciais e a distância). Quanto ao número total de alunos, as diferenças ficam ainda mais expressivas: as IES públicas somam um total de 1.956.352 nos cursos ofertados, enquanto as IES privadas reúnem 6.724.002 matrículas (INEP, 2020).
A educação tratada como mercadoria nega cada vez mais seu caráter de direito básico do cidadão. Ela é dissociada de um projeto mais amplo para o país que corresponda aos interesses da classe trabalhadora. E isso tem graves repercussões para a sociedade como um todo, no tocante a que tipo de formação está sendo destinada às pessoas.
[...] como educadores, precisamos lutar para que todos os homens tenham acesso a uma educação que os prepare para além do capital, que possibilite a todos o acesso aos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, e, enfim, que todos os homens possam usufruir de uma educação crítica, voltada ao atendimento de toda a sociedade e centrada nos conteúdos, dentro de uma perspectiva política de transformação social. (LOMBARDI, 2008, p. 28).
A educação pública universal, laica, inclusiva, gratuita, socialmente referenciada e de qualidade, da primeira infância até a pós-graduação, é fundamental para a construção de uma realidade menos injusta e mais solidária. A educação tratada como mercadoria nega cada vez mais os direitos duramente conquistados.
Da crise estrutural dos anos 1960/70 “herdamos” os processos de: reestruturação produtiva; abertura comercial; desregulamentação do mercado de trabalho. Esses processos não findaram e continuam em curso. Uma das formas que o capitalismo encontrou para sair daquela crise foi o aumento da sua rotação (daí ficou mais nítida a sensação da vida encurtando). Eis uma exigência do capitalismo contemporâneo: a redução do tempo de ganho.
O aumento da rotação (velocidade de circulação de capitais) está na base da financeirização, ou seja, na formação de um capital fictício5. Na fase atual do modo de produção capitalista ocorre a venda do direito de apropriação futura e, mais estranho que isso, dividem-se lucros antecipadamente (trazendo o futuro para o presente). Advém dessa experiência o “desespero” pelo crescimento da economia, traduzido em formas agressivas de “desenvolvimento” e intensificação do consumo pela crise estrutural iniciada em 2007, e na qual ainda estamos imersos.
Reafirmamos que se faz necessário ler, ou voltar a ler, Marx. Ele não chegou a ver a forma concreta o que estamos, agora, chamando de financeirização. Todavia, dada sua genialidade e extrema dedicação em compreender o funcionamento do modo de produção capitalista, deixou-nos um legado analítico extraordinário, que nos permite compreender o fenômeno do empresariamento que está presente na educação e que traz graves consequências para o processo educativo, afetando todos os envolvidos e, de forma mais rápida e intensa, o professor, desrespeitado na sua autonomia, quando o conteúdo das aulas já vem pronto, apostilado, para apenas ser ministrado. Sistemas públicos compram programas de ensino ou metodologias gerenciais e concepções privatistas contaminam a gestão da educação pública em todos os níveis (federal, estaduais e municipais). As parcerias público-privadas exercem cada vez mais ingerência na captura dos recursos públicos para uso de forma privada. O empresariamento não pode ser visto como mera privatização ou simples ameaça. Apresenta-se de forma concreta na expansão de cursos à distância, tanto na formação de professores quanto nas áreas até pouco tempo consideradas não propícias para essa modalidade (o ensino remoto compulsório abriu caminhos para a efetivação em larga escala).
Estudiosos das relações Estado, sociedade, trabalho e educação têm se dedicado a acompanhar as mudanças que ocorrem em diversos países, a partir das crises estruturais do modo de produção hegemônico e seus impactos nas diversas instâncias onde as pessoas realizam suas atividades cotidianas. Apresentamos, na sequência, algumas das análises que se encontram em artigos publicados em três periódicos: Germinal, da Universidade Federal da Bahia; Histedbr on-line, da
5 Em linhas gerais, capital fictício se refere a: renda futura, mercados secundários e inexistência real. Aqui estamos considerando Teixeira e Ferreira (2015): de um lado, corresponde ao capital que (à maneira do crédito) possui um valor duplo, um componente imaginário que não tem lastro na produção, mas pode vir a ter se for produtivamente aplicado. Por outro lado, uma valoração secundária e artificial de um capital aplicado que não tem lastro na produção.
Universidade Estadual de Campinas; e Trabalho Necessário, sediada na Universidade Federal Fluminense6, nos quais esses temas têm merecido espaços privilegiados e, a nosso ver, trazem importantes contribuições para o debate proposto neste dossiê sobre o Empresariamento da educação e o estado educador brasileiro.
Os resultados serão apresentados de forma sintética e constituem um convite para a leitura completa, a fim de que sejam conhecidos na íntegra, o que permitirá inclusive outras percepções e identificação de novos objetos de pesquisa.
Em editorial que tem por título O capital contra a educação da classe trabalhadora, os organizadores da edição publicada em abril de 2019 fazem uma síntese elucidativa dos interesses do capital financeiro.
[...] a análise dos documentos oficiais com os quais o Capital coordena a organização da vida social evidenciam a profundidade e a violência do ataque contra os interesses e necessidades dos trabalhadores. A direção da política econômica nestes documentos emitidos pelos órgãos centrais de gestão do capitalismo mundial, como o Banco Mundial, revela os eixos de uma reestruturação das tarefas do Estado nas relações de produção capitalistas, com vistas a tornar mais agressivo seu direcionamento para o atendimento dos interesses do capital financeiro. Esta reforma impacta especialmente as políticas sociais e a política nacional de ciência e tecnologia. São a prova de uma ação orquestrada de ataques do capital contra a classe trabalhadora, que subordinam a vida insignificante e excedente dos que produzem a riqueza – os trabalhadores – à gestão e ao controle da coisa pública conduzida, sob a perspectiva neoliberal, conforme os interesses do capital financeiro. Um ataque que evidencia o desespero pela preservação da acumulação privada assim como o desprezo e o sacrifício da força de trabalho que produz toda a riqueza social. (PEIXOTO; LOPES; SANTO FILHO; SOUSA, 2019, p. 1, 2, grifos no
original).
Díez-Gutiérrez (2019, p. 28), no artigo que tem por título O assalto do capital financeiro à educação pública, explica que o capital financeiro foi sendo introduzido na educação pública, aproveitando-se dos cortes em seu financiamento com a desculpa da crise. Traz a descrição de diferentes estratégias por meio de reformas educacionais neoliberais e de uma forma específica de filantropia, que denomina filantropoeducação empresarial, concluindo que a educação representa o último grande mercado para o capital financeiro, o qual compara a um “bolo suculento” desejado pela “Indústria Global de Educação”. Em contraposição a isso, faz-se
6Links de acesso aos periódicos mencionados: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/index; https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr; https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario.
urgente reconstruir a concepção de educação como direito público e construir coletivamente uma sociedade pós-capitalista, pós-colonial, pós-imperialista e pós- patriarcal.
De ahí que sea urgente reconstruir, tanto en el discurso cotidiano del “sentido común”, como en los programas políticos, una concepción de la educación como derecho público y como bien común. Para impedir que educación se convierta cada vez más en una mercancía, es necesario imponer un repliegue de los intereses privados y de la ideología de la gestión empresarial que actualmente avanzan en la colonización de la educación con el discurso neoliberal.
Solo así seremos capaces de pensar y ayudar a construir y consolidar una sociedad con un horizonte pos-capitalista, pos-colonial o pos- imperialista y pos-patriarcal. No debemos olvidar que, en la sociedad contemporánea, los tres factores principales que están en la base de la dominación social, política y cultural son: el capitalismo (explotación del trabajo asalariado), el colonialismo (relación jerárquica entre grupos humanos) y el patriarcado (relación de poder basada en la inferioridad natural de un sexo o de una orientación sexual). Por eso hemos de avanzar simultáneamente en modelos educativos postcapitalistas, postcoloniales y postpatriarcales, en el sentido de que superen y abandonen definitivamente estas estructuras de opresión y dominación y avancemos hacia un modelo educativo que contribuya al éxito escolar de todo el alumnado y a la formación de personas más iguales, más libres, más críticas y más creativas.
Motta, Evangelista e Castelo (2021), ao escreverem a apresentação do v.13, n.1, ano 2021, que tem por título Determinações do capital, empresariamento e educação pública no Brasil, chamam a atenção para que não percamos de vista que a dinâmica de expansão do capital,
[...] tende a açambarcar progressiva e incessantemente as condições de reprodução social de povos e territórios espalhados ao redor do globo terrestre, subjugando-os à sua lógica e necessidade de impulsionar o processo de valorização do capital. É um processo sucessivo e intenso de expropriação e de transformação dos meios de vida – natureza, saúde, educação, previdência social, habitação entre outros – em capital, sujeitando cotidianamente a classe trabalhadora. (p. 1).
O texto reafirma o entendimento de que o capital não tem pátria, e se alastra por todas as formações sociais e para todos os setores de atividades, em um movimento que se faz com a cumplicidade de agentes públicos e da articulação em torno dos seus interesses.
Um dos alvos prioritários da ofensiva burguesa é justamente a educação. Grandes conglomerados financeiros avançam nas formas de empresariamento, privatização, mercantilização, mercadorização e
financeirização dos sistemas educacionais. Cinicamente, frações burguesas se fortalecem no âmbito políticoideológico nas disputas pelas políticas públicas da educação, seja por meio de parcerias público-privadas e da atuação de seus aparelhos privados de hegemonia (APH), seja ocupando espaços nos aparelhos estatais, a exemplo do Conselho Nacional de Educação. Em aliança com a grande mídia, os intelectuais orgânicos do capital e seus respectivos APHs – muitos deles organizados em torno do Todos pela Educação – cumprem a tarefa de difundir a ideologia burguesa e atuar junto ao Congresso Nacional como um Ministério da Educação paralelo, se apresentando como paladinos da eficiência produtiva e salvadores da educação em razão da inoperância do Estado. Conforme destacam Roberto Leher, Paolo Vittória e Vania Motta (2017, p. 18), presencia- se a articulação de uma agenda reacionária, dirigida, entre outros, pelo Escola sem Partido, e de uma agenda reformista burguesa, comandada pelo Todos pela Educação
[...]
Para lograr êxito no fortalecimento da sua supremacia, as classes dominantes brasileiras, em larga medida apoiadas pelas burguesias internacionais, operam um mix de medidas consensuais e ditatoriais para a desorganização da classe trabalhadora, decapitando seus intelectuais coletivos com o objetivo de obstaculizar a formulação de projetos autônomos e alternativos ao modo de produção capitalista. Como indicou Gramsci (2002, p.244), uma hegemonia que não se distingue da ditadura, uma “hegemonia couraçada de coerção”. (MOTA; EVANGELISTA; CASTELO, 2021. p. 2).
Em um texto escrito em 2004, Justino de Sousa Júnior lançou mão de formulações marxianas a respeito da educação, da escola e das lutas proletárias pelo direito de acesso ao saber socialmente produzido para balizar as discussões em tempo de mundialização do capital e crise da escola. Lembra-nos que, para Marx, a instituição escola faz parte da dinâmica da sociedade produtora de mercadorias e é permeada pelas contradições, tendo importância na caminhada emancipatória do proletariado por ser espaço privilegiado para a aquisição de conhecimentos historicamente acumulados. Esses seriam complementados pela educação desenvolvida nas próprias instâncias do movimento operário. O autor discorre sobre as limitações do Estado em atender aos anseios do que chama “os de baixo” em face da dinâmica que alterou a correlação de forças e os Estados-nacionais “apenas se mostram fortes quando se associam aos interesses dos grandes conglomerados econômicos e quando agem em função destes interesses” (SOUSA Jr, 2004, p. 7). Sinaliza como resistência à associação de interesses das maiorias sociais exploradas.
Pensar hoje em qualquer possibilidade de construção de uma escola que atenda minimamente aos anseios dos “de baixo” (uma escola que inclua a todos, que ofereça ensino de qualidade, que atinja um leque cada vez maior de conhecimentos, competências e habilidades, que
busque o rompimento com as fragmentações da sociedade capitalista) exige pensar em transformações profundas também no nível da hegemonia social. Apenas sob um novo quadro de correlação de forças sociais e sob uma nova força hegemônica, em que prevaleçam as aspirações dos “de baixo”, em que o Estado seja o instrumento político dessa hegemonia, é que seria possível uma tal construção. (SOUSA Jr., 2004, p. 10).
Destacamos um outro artigo publicado na Trabalho Necessário, no qual é apresentado o pensamento pedagógico do Instituto Ethos, centro produtor de metodologias e ideologias disseminadoras de ideais burgueses. O artigo denominado A responsabilidade social empresarial em questão: o pensamento pedagógico do Instituto Ethos, de autoria de Andréa de Souza Fontes, traz informações relevantes para a compreensão da estratégia de “responsabilidade social” levada a cabo pelas empresas diante das necessidades de manutenção e competitividade; demonstra que a investida se deu pela educação, dentro e fora das empresas; apresenta as conexões do Instituto com outras entidades em âmbito mundial; e problematiza o conteúdo social afirmando ser “impossível promover a igualdade buscando lucro e participando da competição capitalista [...] Ou seja, a ‘responsabilidade social’ é apenas uma senha conveniente para o aumento, ou manutenção, da lucratividade, isto é, da exploração da classe trabalhadora” (FONTES, 2005, p. 11).
Outros aglomerados empresariais se voltaram para o campo educacional no movimento mundial de reestruturação do capital, e têm sido objeto de estudos como o realizado por Galzerano (2021), buscando elucidar a emblemática lógica da privatização e a expansão da financeirização para a Educação Básica, tendo em vista a centralidade do capital fictício, os movimentos de concentração e centralização de capitais e as disputas pelos fundos públicos.
Utilizando-se da pesquisa documental, traz informações e análises da atuação da primeira companhia brasileira direcionada à Educação Básica, a Somos Educação, entre os anos de 2010, quando foi criada como um braço do Grupo Abril, até o ano 2018, quando seu controle acionário é assumido pela Kroton/Cogna7. A companhia tem presença majoritária no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Nas
7 A Kroton, maior grupo de educação privada do Brasil, dividiu a empresa em “quatro braços” e, para administrá-los, criou a holding Cogna Educação -- que vem de "cognição". No ano referido, 2018, faturou 5,5 bilhões de reais e teve lucro de 1,9 bilhão de reais (conforme matéria Da Redação, Revista Exame, em 07/10/2019, com o título Kroton passa a se chamar Cogna e divide grupo em quatro empresas. A matéria pode ser acessada em https://exame.com/negocios/kroton-passa-a-se-chamar- cogna-e-divide-grupo-em-quatro-marcas/.
conclusões do artigo, confirmam-se a financeirização na educação pública e o controle grupos como a Somos exerce no delineamento das políticas destinadas a este setor.
Países periféricos como o Brasil, cuja formação histórica sequer havia propiciado a construção de um sólido sistema público de educação, um dos pilares básicos para a garantia do direito à educação para todos, vivenciam os efeitos da privatização e do desmonte dos serviços sociais de forma dramática. Contribuíram para isso as recomendações advindas de organismos internacionais, com destaque para o Banco Mundial, e os acordos internacionais de comércio como o GATS8 e o TISA9, que instituem um espaço mundial para a livre negociação da educação como commodity.
Nesse processo, expandiu-se a influência que empresas como a Somos Educação exercem sobre o setor educacional em geral e, consequentemente, seu poder de controle sobre as escolas e o ensino estatais. As implicações disso são variadas e não se limitam à questão econômica. Para além da lucratividade envolvida, a educação constitui-se espaço de disputa pelo controle ideológico da formação dos educandos. Não à toa, grupos empresariais ampliaram sua atuação no setor por meio de contratos com governos e venda de diversos tipos de materiais e serviços que podem interferir no trabalho pedagógico: materiais didáticos, modelos de gestão, assessoria, ferramentas tecnológicas, sistemas privados de ensino, formação continuada, entre outros. Igualmente, estão cada vez mais presentes em espaços decisórios, disputando diretamente a agenda educacional de municípios, estados e governo federal. (GALZERANO, 2021, p. 14).
A linha editorial adotada pelas revistas nas quais os artigos referenciados foram publicados contribui para a interlocução dos pesquisadores que continuam a ter por referência as lutas de classes.
Acreditamos que a humanidade esteja vivendo uma longa transição diante da velocidade com a qual as forças produtivas foram desenvolvidas e as contradições expressas na precarização das condições de vida da massa dos trabalhadores. Isso se deu principalmente após o enfraquecimento do chamado Estado de bem-estar social, e o fortalecimento do neoliberalismo, associado com as forças ultraconservadoras que conquistaram vitória política nas disputas democráticas com o uso intensivo de fake news, realimentando falácias e/ou desqualificando os debates com argumentos negacionistas usados para sedimentar projetos retrógrados, destinados a reduzir direitos sociais da classe trabalhadora e ampliar os ganhos do grande capital. Para que logrem êxito, esses setores se empenham em destruir as
8 GATS (General Agreement on Trade in Services) Acordo Geral Sobre Comércio de Serviços, capitaneado pela OMC – Organização Mundial do Comércio). Entrou em funcionamento em 1995.
9 O TISA (Trade in Services Agreement) é um acordo comercial que busca a expansão do comércio mundial de serviços.
políticas públicas e em criar uma massa de seguidores que abdicam da capacidade de pensar, tornando-se subordinados aos comandos de líderes inescrupulosos. O obscurantismo avança de forma desmedida, tanto quanto a diferença entre os mais ricos e os mais pobres.
Com a intensificação da crise estrutural, tanto nos países periféricos quanto nos centros de poder, algumas velhas questões se apresentam revigoradas,
[...] Marx, mesmo após a morte ainda nos oferece sempre um novo conhecimento, um novo ponto de vista, e expande suas lições dentro da luta proletária; sobretudo, o movimento dos trabalhadores ainda está sob a influência de seus ensinamentos. Marx não apenas lançou às massas o lema “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos” como logrou ensiná-las o fundamento sobre o qual a união pode e deve ser concretizada. (LESSNER, 2019, p. 98, 99).
A passagem acima transcrita, de autoria de um “alfaiate plebeu”, como se autodenomina, tem por título “Lembranças de um trabalhador sobre Karl Marx: em homenagem aos dez anos de sua morte, em 14 de marco (1893)”. Quase 130 anos depois, temos a certeza da sua atualidade e do quanto necessitamos aprender o que nos foi legado, além de colocar em prática os fundamentos da união conclamada. Acompanhamos em praticamente todo o mundo notícias que revelam o acirramento dos ataques daqueles que detêm as forças produtivas, por serem proprietários dos meios que são utilizados para a realização do trabalho nas mais diferentes formas. Eles se posicionam contra aqueles que só podem manter a vida vendendo as suas energias vitais e, para isto, subordinando-se à legislação, ao emprego intermitente e precário, ao assédio moral e à imoral desigualdade que tem por base a distribuição dos meios necessários à vida enquanto riquezas socialmente produzidas. Dito de outra forma, a classe trabalhadora continua exposta aos mecanismos de exploração e, por conseguinte, permanecem válidas as análises de Marx quanto à luta de classes e à proposição para que construamos uma nova sociedade que seja qualitativamente superior a esta, erigida em continuidade aos tipos anteriores, nos quais opressores e oprimidos se mantiveram, só mudando os nomes: homem livre e escravo na Antiguidade; patrício e plebeu, no mundo feudal; burgueses e proletários (com as
diversas variações no interior destas classes, mas sempre com a hegemonia dos que são proprietários dos meios de produção).
A atual fase do capitalismo tem se caracterizado pelo avanço da financeirização, aprofundando a crise da relação capital e trabalho, evidenciada na flexibilização da contratação e da remuneração e nas novas formas de precarização das condições de trabalho. Isso atinge todos os setores da sociedade. Na educação, expande-se o empresariamento e, no contexto brasileiro, o golpe de 2016 teve como pretexto o argumento da necessidade de modernização trabalhista e do combate a uma suposta crise fiscal. Isso impôs à classe trabalhadora a aceleração de um processo já em curso: a desconstrução de direitos. No entanto, embora o capital seja um sistema de controle do organismo social, sabemos que isso não se dá de maneira linear e sem contradições. Daí porque defendemos, conforme exposto no título deste artigo, a união da classe trabalhadora no combate à forma mercadoria da educação. Deve-se fazê-lo por meio da luta permanente em defesa da escola pública, laica, universal e gratuita, sendo a oferta da educação, em todas as suas formas e modalidades, um direito público inalienável.
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