V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


MST: COMO UM MOVIMENTO DE GAÚCHOS SE ENRAIZOU NO NORDESTE

[Débora Franco Lerrer]1


Elaine Martins Moreira2


Fruto de uma rica pesquisa, a obra traz análise e depoimentos dos sujeitos do processo de expansão do MST no Nordeste, bem como o cenário político vivenciado pelo país em cada contexto histórico retratado. Isto é precedido por uma exposição das condições históricas da questão agrária no Brasil: desde a forma que se deu a abolição do trabalho escravizado, a particularidade da apropriação privada da terra no século XIX, as ideias de reforma trazidas à baila e suas implicações contemporaneamente. Com o terreno assim preparado, a autora parte para apresentação das informações obtidas na sua pesquisa e, na análise delas, que envolvem as distintas gerações do Movimento e suas incursões no Nordeste.

O MST foi criado oficialmente em 1984, mas ele é decorrente da luta de uma série de organizações e revoltas camponesas que o antecedem. Mais, proximamente vinha ocorrendo algumas experiências estaduais de desapropriação de terras, em especial no Rio Grande do Sul no governo de Leonel Brizola. É mister destacar, ainda, o papel de entidades parceiras como sindicatos e igrejas para o surgimento do MST e o apoio disponibilizado para que suas ações fossem possíveis. Não caberá neste sucinto texto detalhá-las, mas, no livro, a autora discorre sobre o que só pudemos mencionar brevemente. Todas essas situações e relações são permeadas por contradições políticas, particularidades regionais e culturais.


1Resenha recebida em 16/03/2022. Aprovado pelos editores em 21/03/2022. Publicado em 28/03/0222. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.53454.

2 Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Brasil. Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – (UFRJ) – Brasil. Graduada em Serviço Social Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE/Campus Toledo – Paraná / Brasil. Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS – UFRJ) – Brasil. E-mail: e.moreira@ess.ufrj.br; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1025-7446.

Lattes: htpps://lattes.cnpq.br/8268627279348886.

Apesar das experiências pontuais, o governo da Nova República não avança na possibilidade de concretização da reforma agrária e essa apatia faz com que o MST defina a ocupação de terras como sua tática de luta, ainda nos anos 80. Com pouco tempo de existência, a organização observa a predominância sulista entre seus quadros e suas ocupações de terra, fazendo com que comece a pensar o processo de sua nacionalização. Em seu primeiro congresso, em 1985, se percebe que as ocupações não estavam ocorrendo no Nordeste e, a partir disso, decide enviar militantes para contribuir com a operacionalização dessa tática de luta que vinha se mostrando efetiva em outras regiões.

Antes, a autora faz um diálogo com a literatura publicada sobre o MST para descrever como se construiu uma identidade "sem terra". Desde a influência dos “colonos de Nonoai” (RS), que já praticavam as ocupações e acampamentos a outros estudos que analisam os elementos que conformaram essa identidade. Mais do que criar novos códigos culturais, "os Sem Terra" promovem um estilo de militância, uma maneira de fazer a luta social, que passa por processos educativos e "culturais", para além da dimensão política stricto sensu.

Uma questão importante é o habitus militante, que pressupõe um engajamento integral. Se constitui em um espaço formativo importante para essas pessoas a vivência no acampamento, porém, ele não é exclusivo. A cultura política do MST interlaça elementos aprendidos do modo de vida campesino/gaúcho com a metodologia das pastorais cristãs.

Uma característica importante desses militantes que migram diz respeito a sua idade, majoritariamente, jovens e solteiros (as). Considerados mais disponíveis ao aprendizado da militância pelo acesso a instrução formal. Os militantes de primeira geração foram aqueles que chegaram ao Nordeste entre os anos de 1985 e 1988, durante o governo Sarney. A região ainda não era vista em suas particularidades, com o passar do tempo o movimento começa a observar a organização estadual. A segunda geração chega depois que a organização estava mais avançada e já tinha alguns assentamentos, esse período vai até 1997. Além das mobilizações contribuem também, com a formação interna nos assentamentos. Neste período começou o deslocamento de militantes entre os estados da própria região nordeste. A terceira geração se forma a partir de 1997 e já conta com militantes de outras regiões do país, apesar da predominância do Sul, esses grupos tinham como atribuição ajudar em

dificuldades políticas organizativas, mas de forma pontual. Alguns acabaram se fixando nesses estados, entretanto era necessariamente um dos objetivos das tarefas recebidas. Na década seguinte, que é quando a autora realiza sua pesquisa, se localiza a quarta geração, composta por “brigadas militantes” que têm por atribuição atuar na formação política e junto à organização do movimento com suas bases, ajudando na formação de núcleos e de novas lideranças. Elas têm um período definido para essa atuação.

No livro, a autora apresenta a trajetória dos militantes das duas primeiras gerações. Bahia, já havia recebido militantes em 1985 e, o sul do estado foi uma espécie de laboratório para a expansão do Movimento. A primeira geração parte fundamentalmente do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A segunda, inclui paranaenses, capixabas e de estados vizinhos do próprio Nordeste. Entre as pessoas que migraram para desempenhar essa tarefa política, algumas retornam anos mais tarde ao sul para acessar um pedaço de terra, já outras se estabelecem na região. Cabe destaque a diferença dos migrantes sulistas militantes do MST dos demais agricultores, especialmente, gaúchos que migram pelo país reproduzindo sua cultura. No caso da militância, se observa uma grande integração com a cultura dos locais a que foram enviados, incluindo, por exemplo, mudanças alimentares e relações afetivas como casamentos. Demonstram respeito e procuram diminuir os distanciamentos culturais. Todavia, dirimir completamente era impossível.

Essa “migração” não é apresentada isenta de contradições. Ao longo do processo, o Movimento nota que a estratégia das cooperativas inspirada no campesinato europeu, implementado no Sul, não funcionou no Nordeste, por exemplo. De outro modo, elementos da cultura nordestina foram incorporados nacionalmente, influenciando os gaúchos, acostumados com andanças altivas e protagônicas pelo país. Para a autora, nas considerações finais, essa interação gerou “novo tempo” no MST que colocou contradições internas, mas também promoveu mudanças, em territórios e em pessoas. Ao longo de sua trajetória, o Movimento passou a usar permanentemente essa prática das “brigadas”, nacionais e até internacionais, em que militantes assumem tarefas políticas e de solidariedade de classe.

A partir das entrevistas e do trabalho de campo desenvolvido, apresenta no capítulo seguinte aspectos do chamado “caráter modernizante” da luta desenvolvida pelo MST. Para ela, duas questões são relevantes para entender o que orienta o

trabalho político do MST: envolve o modelo de produção agrícola e o incentivo à educação continuada. Este debate, sobre o caráter modernizador do MST é deveras relevante. Pensar como esses deslocamentos contribuem para levar a essas regiões um racionalismo pragmático à produção econômica da agricultura que acabou por inserir muitas dessas famílias, antes sem terra, na sociedade de consumo, portanto, na lógica capitalista de produção. Por outro lado, o incentivo à formação e a instrução formal, poderia fazer um contraponto por meio de uma "modernização emancipadora" que além da inclusão nas instituições educacionais também produza formação de consciência. Isso se expressou, notadamente, no início dos anos 2000 quando o estudo de “todas e todos os sem terras” foi uma bandeira central do movimento. Vale conferir estes elementos aí apresentados e seus desdobramentos à luta social.

Fechando o livro, a autora incluiu um texto mais recente sobre a questão agrária nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Embora a Constituinte de 1988 determine que a terra precisa ter uma função social, poucos desdobramentos desse princípio foram operados, passados mais de 30 anos. Certamente a chegada de Luís Inácio Lula da Silva à presidência foi a que mais expectativa por avanços gerou, tendo em vista a relação histórica do partido com o MST. Todavia, a política agrária do petista e de sua sucessora no governo federal, ficou bastante aquém do desejado e, do necessário, para alterar a estrutura fundiária e incidir no modelo agrícola hegemônico no Brasil. Sobre isso, a autora apresenta algumas pistas do que chama de “limitação da política agrária dos governos do PT”, a qual tendeu, segundo ela, para um processo de silêncio em relação a reforma agrária, preferindo referir-se à agricultura familiar. Por outro lado, não omitiu seu nítido apoio e incentivos ao agronegócio que está no outro lado da moeda, por exemplo, nomeando para ministro da agricultura Roberto Rodrigues, uma das maiores lideranças do agronegócio. Ainda que os governos petistas tenham criado políticas públicas que fortaleceram economicamente a agricultura familiar camponesa, especialmente, no incentivo à comercialização de seus produtos e no incremento do financiamento bancário, elas não tiveram impacto central na política empreendida. Estas e outras questões são analisadas com detalhe nesta obra fruto da pesquisa de tese de doutorado da autora.

Se recomenda fortemente a leitura porque apresenta importantes contribuições para o campo das ciências sociais, a qual conta também com prefácio do reconhecido autor latino-americano Miguel Carter, professor da School of International Service da

American University, em Washington, que entre outras obras publicou: “Combatendo a desigualdade social: O MST e a reforma agrária no Brasil”. Lendo o livro de Lerrer, se notará uma densidade e diversidade de informações sobre a organização do MST, sobre como as relações de poder atravessam de modo particular a questão da terra no Brasil e os desafios colocados à possibilidade de realização da reforma agrária. Se tornará certamente uma fonte de consulta para pesquisadores da área.


Referência


LERRER, Débora Franco. MST: Como um movimento de gaúchos se enraizou no Nordeste. Curitiba: Appris, 2021. 1ª. Edição.