V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Renata Azevedo Campos2
O artigo busca contribuir para a conceituação de empresariamento da educação, a partir da sistematização de seus determinantes gerais e da análise de suas mediações particulares. Através das elaborações já desenvolvidas na análise do bloco histórico neoliberal, pensa o empresariamento da educação como dimensão intrínseca ao capitalismo, em nível abstrato, que se realiza, concretamente, por mediação da organização ético-política da burguesia e de sua articulação no âmbito do Estado Integral. Em sua dimensão histórica, traz o golpe empresarial-militar, de 1964, como gênese desse processo, no Brasil.
El artículo busca avanzar en la conceptualización del empresariamento de la educación, a partir de la sistematización de sus determinantes generales y el análisis de sus mediaciones particulares. A través de las elaboraciones ya desarrolladas en el análisis del bloque histórico neoliberal, se piensa el empresariamento de la educación como una dimensión intrínseca al capitalismo, en un nivel abstracto, que se realiza concretamente a través de la mediación de la organización ético-política de la burguesía y su articulación en el ámbito del Estado. En su dimensión histórica, trae el golpe militar-empresarial de 1964 como génesis de ese proceso en Brasil.
The article seeks to advance the conceptualization of empresariamento of education, based on the systematization of its general determinants and the analysis of its particular mediations. Through the elaborations already developed in the analysis of the neoliberal historical bloc, it thinks the empresariamento of education as an intrinsic dimension to capitalism, at an abstract level, which is concretely carried out through the mediation of the ethical-political organization of the bourgeoisie and its articulation within the scope of the State. In its historical dimension, it brings the corporate-military coup of 1964 as the genesis of this process in Brazil.
1 Artigo recebido em 15/03/2022. Primeira Avaliação em 19/05/2022. Segunda Avaliação em 25/05/2022. Aprovado em 03/06/2022. Publicado em 21/07/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.53318.
2 Doutora em educação pela Universidade Federal Fluminense. Técnica em Assuntos Educacionais do Colégio Pedro II. E-mail: renataazevedort@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2198168594037128. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7360-090X.
Introdução
O conceito de empresariamento da educação pode ser inscrito no desenvolvimento das análises acerca do empresariamento das políticas públicas3 que começam a se sistematizar e se difundir a partir das elaborações teóricas do geógrafo marxista David Harvey. Na gênese dessa construção conceitual, um texto de grande relevância data de 1989, tendo como título original From manageralism to entrepreneuralism: the transformation in urban governance in the late capitalismo, que foi traduzido, no Brasil, com o nome Do Gerenciamento ao Empresariamento: a Transformação da Administração Urbana no Capitalismo Tardio, e publicado em 19964.
Por meio do conceito de empresariamento urbano, nesse artigo, buscava-se desvelar os impactos do neoliberalismo e das novas formas de administração pública, abarcadas no espectro do gerencialismo, sobre a cidade e sua gestão. Nesse aspecto, a reificação do espaço urbano emerge como uma forma de compreender a inserção da cidade nos fluxos econômicos globais, as quais deveriam não somente converter- se em mercadoria, mas também deter grande poder de atratividade para os investimentos do capital transnacional, tornando-se palco de valorização financeira. Esse processo não se esgota na cidade, mas compreende uma nova fase do público frente às demandas capitalistas, fase essa em que direitos sociais são convertidos em mercadorias, do mesmo modo como a empresa privada passa a ser guia da administração no Estado.
De forma semelhante, o Empresariamento da educação se desenvolveu como um conceito a explicar as especificidades desse processo histórico, no campo educacional, tendo como primeira elaboração, no Brasil, o livro Empresariamento da educação: Novos contornos do Ensino Superior no Brasil dos anos 1990. Essa obra foi organizada por Lúcia Neves e publicada em 2002, a partir das pesquisas desenvolvidas pelo Coletivo de Estudos sobre Política Educacional. Nela, o conceito em questão é estruturado e operacionalizado para desvelar os determinantes
3 Conforme a abordagem de Neves e Pronko (2010), no contexto neoliberal, vemos emergir um processo de empresariamento dos chamados “serviços sociais”.
4 No livro A produção capitalista do espaço, de 2005, esse mesmo texto aparece com a seguinte tradução, em seu título, Do administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo tardio. Ainda assim, a importância do conceito de empresariamento urbano pode ser observada na recorrência de sua utilização tomando como referência a primeira publicação.
históricos da privatização da educação superior brasileira cujo desenvolvimento, ainda que anterior temporalmente, ganha novo impulso em fins do século XX, no contexto de introdução da agenda neoliberal, já em sua variante gerencial.
Esse processo envolveu uma nova organização do espaço público, a partir da dissolução de suas fronteiras com relação ao meio privado, favorecendo a conversão dos direitos em meios de lucratividade. Correlatamente ao modo como Harvey (1996) analisou a materialização dessa conjuntura no espaço urbano, as novas pesquisas sobre o empresariamento da educação sugeriram caminhos semelhantes para pensar o caráter e o alcance de sua privatização, com ênfase para o ensino superior.
Mais recentemente, outros estudos têm sido feitos, aprofundando e ampliando o conceito de empresariamento da educação, a partir de pesquisas direcionadas a novos objetos, como a educação básica e as políticas públicas educacionais, com destaque para seu processo de formulação. Nessas elaborações teóricas, o centro da problemática é a ação política do empresariado, fundamentando o conceito de “empresariamento do espaço de produção de políticas”, desenvolvido por Érika Martins (2019, p. 163).
Em direção semelhante, destaca-se o Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (COLEMARX), a partir do qual se formulou o conceito de “empresariamento da educação de novo tipo” para compreender os determinantes do empresariamento no bloco histórico neoliberal, em geral, e nas contrarreformas voltadas para a educação básica, em particular. Essa nova conceituação se fundamenta na teoria marxiana de valor e na categoria “empresariamento de novo tipo”, de Virgínia Fontes (2010, p. 296), tendo em vista a compreensão de suas dimensões principais; quais sejam, a mercantilização, a mercadorização e a subsunção da educação ao empresariado (MOTTA; ANDRADE, 2020, p. 4)5.
Desse modo, o conceito de empresariamento da educação articula privatização e protagonismo empresarial, na arena educacional, se constituindo em um importante objeto de pesquisa. Ao mesmo tempo, o conceito se desenvolve como um instrumental de análise, a contribuir para a compreensão da educação, no tempo presente, e também em perspectiva histórica, a contar de sua relação com o capitalismo. Como “a anatomia do homem é uma chave para a anatomia do macaco”
5 A pesquisa e o conceito já vinham sendo trabalhados e amadurecidos, o que pode ser observado em outro artigo, das mesmas autoras, do ano anterior (MOTTA; ANDRADE, 2019).
(MARX, 1978, p. 120), o “empresariamento da educação de novo tipo” nos fornece as bases para perseguir seu processo histórico, visando desvelar os determinantes estruturais da relação entre educação e capitalismo, além dos aspectos conjunturais que se realizam nos distintos contextos.
Isso porque, em um nível de abstração mais elevado, o empresariamento da educação pode ser entendido como uma dimensão intrínseca da educação no capitalismo, mas que, para sua concretização, depende do desenvolvimento ético- político da burguesia. Nesse sentido, mesmo que a inserção da educação no circuito de valorização do capital seja uma tendência do próprio movimento social, a sua realização se manifesta como subsunção da educação aos interesses do empresariado, o que depende de sua organização enquanto classe.
Em termos conceituais, o empresariamento da educação pode ser compreendido a partir desses determinantes, que inserem a formação educativa no processo de valorização do capital, seja por meio da comercialização, seja como suporte da formação/reprodução da força de trabalho. Assim entendido, o conceito nos auxilia na análise dos processos educacionais em qualquer fase ou lugar do capitalismo. Adentrando-nos nessa totalidade, percebemos que ela se manifesta como particularidade em diferentes contextos e se realiza, hodiernamente, com a organização burguesa e o desenvolvimento de sua hegemonia.
Nesse sentido, o processo de empresariamento não deriva de um desenvolvimento natural do capitalismo; ao contrário, ele se realiza na e a partir da construção do exercício de poder. Fundamentamo-nos, assim, no conceito de Estado Integral, de Antonio Gramsci (2014), a partir do qual se desvela a relação de unidade e distinção entre a sociedade política e a sociedade civil, onde se estabelecem as disputas intra e entre classes sociais.
Em âmbito teórico, o Estado, assim compreendido, ultrapassa a dimensão da coerção, que tem a sociedade política como espaço privilegiado. Articuladamente, a sociedade civil se compõe dos espaços de “filiação voluntária” – instituições religiosas e partidos políticos, por exemplo – em que se organizam os interesses coletivos. Com efeito, a própria forma como trabalhamos com o conceito de “empresário”, na sua acepção gramsciana, já supõe a organização:
[...] o empresário representa uma elaboração social já caracterizada por uma certa capacidade dirigente e técnica (isto é, intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade técnica, não somente na esfera
restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas ainda em outras esferas, pelo menos nas mais próximas da produção econômica (GRAMSCI, 1979, p. 4).
Partindo dessas elaborações, buscamos, nesse artigo, contribuir para a sistematização do conceito de empresariamento da educação, a partir da compreensão da relação entre totalidade e particularidade, perseguindo as mediações que fundamentam a sua realização em contexto mais recente. Como coloca Marc Bloch (2001, p. 55) sobre o tempo da história, ele “é, por natureza, um continuum. É também perpétua mudança. Da antítese desses dois atributos provêm os grandes problemas da pesquisa histórica”.
Nessa perspectiva, o artigo olhará para os aspectos mais gerais do conceito de empresariamento da educação, a partir dos referenciais bibliográficos, visando apreender o que lhe define e o que se constitui como mediações que permitem a sua realização. Além disso, abordará, na realidade social, os processos históricos que permitem operacionalizar o conceito de empresariamento para o contexto pós-1964, trabalhando com as especificidades da burguesia brasileira e suas formas de organização que se desdobram em demandas, igualmente, específicas para a educação.
Empresariamento da educação, do abstrato e suas mediações
Ao considerar a educação uma prática social que emerge da relação entre os sujeitos históricos, materializando e mediando os conflitos da sociedade, entendemos que ela não se restringe à escola, ainda que tenha nela a sua principal instituição. A expansão da educação escolar, que passa a abarcar parcelas crescentes da sociedade, se relaciona com as revoluções burguesas do século XVIII, em razão das novas demandas da produção econômica e da nova organização política, além das crescentes pressões sociais por mobilidade.
No que se refere à produção, destacamos que o desenvolvimento da maquinaria envolve uma sofisticação do conhecimento que, no fazer científico, articula educação e produção, não somente para a inovação, mas também para a formação da força de trabalho. Ao mesmo tempo, a forma como o capitalismo se organiza politicamente depende da universalização, ao menos teórica, da educação, como
forma de transformar a todos em cidadãos, capazes de exercer a sua liberdade natural e estabelecer os contratos necessários à vida em sociedade.
Se a universalização da educação emerge como um princípio teórico dessas sociedades, que se fundamentavam no mérito para se contrapor aos privilégios feudais, ela não se desdobra em realidade prática com o desenvolvimento histórico e a recomposição dos novos privilégios. Tão logo a burguesia se estabelece como classe dominante, sua ação política volta-se para a preservação das relações de dominação e para a contenção dos anseios contestatórios (LEHER, 2005).
Ainda assim, a existência do princípio da universalização educacional, mesmo como artifício ideológico, potencializou conflitos e a luta pela educação acabou por ser incorporada, fazendo dela um terreno da luta de classes. Nesse sentido, podemos dizer que as grandes conquistas, na arena dos direitos, se deram como vitória das lutas antissistêmicas, mormente pelo movimento de trabalhadores. Articulando esses desdobramentos históricos com as demandas estruturais do capital para a educação, podemos compreender a sua importância, tanto em termos econômicos quanto ideológicos.
Adentrando-nos nas questões econômicas que pesam sobre a educação, a sua capitalização compõe o processo em que o capital tende a abranger todas as esferas da existência humana, criando as condições para continuar existindo e se expandindo. Conforme análise de Motta e Andrade (2020), essa capitalização se manifesta como mercantilização e mercadorização que, nesse sentido, coincidem com a própria existência do capitalismo como modo de produção e formação social.
A mercantilização se refere ao modo como a formação educacional se insere no processo de circulação do capital, reduzindo a educação à sua valorização. Nesse aspecto, a educação, no capitalismo, é necessariamente mercantilizada, ainda que atravessada por contradições e conflitos, na medida em que o seu consumo, pelo trabalhador, se transforma em valor de uso para o capitalista.
Isso porque a força de trabalho, no capitalismo, é uma mercadoria e, portanto, possui um valor de uso e um valor de troca, ambos potencializados, contraditoriamente, pela formação educacional. Por um lado, interessa ao capitalista a capacitação do trabalhador, ampliando o seu valor de uso, mas, por outro, ela deve ser limitada às demandas do mercado, de modo a conter a elevação do seu valor de
troca. Na proporção inversa, interessa, ao trabalhador, elevar o seu valor de troca, valorizando a sua força de trabalho, a partir da potencialização de seu valor de uso.
Desse modo, vemos a luta de classes se expressar nas disputas sobre a composição do salário do trabalhador, mas trazendo como ponto de convergência a necessidade da educação ampliar o valor de uso da força de trabalho. Se nos limitássemos, somente, a essa reflexão já teríamos razões suficientes para falar em capitalização da educação e sua subsunção ao circuito de valorização do capital. No entanto, devemos avançar e compreender que, além de atuar na composição da mercadoria trabalho, a educação pode ser, ela própria, uma mercadoria e um nicho de mercado.
A mercantilização se articula, assim, à mercadorização, contornando os conflitos e as contradições que emergem nesse processo. As contradições, a que nos referimos, dizem respeito ao fato de que o tempo gasto com a formação educativa é parte da composição do valor da força de trabalho. Como consequência, ainda que a capacitação aumente a produtividade do trabalho, é necessário, ao capital, que o tempo gasto com ela seja reduzido e limitado às demandas da produção, ampliando a produtividade da própria formação.
Em síntese, apreendemos que ao capitalista interessa que a capacitação da força de trabalho conforme as competências necessárias à produção de mais valor no menor tempo possível, de forma a minimizar o valor de troca da força de trabalho e maximizar a realização do seu valor de uso (MOTTA; ANDRADE, 2019, p. 9).
Essa contradição da educação, no capitalismo, parece beneficiar os trabalhadores e é assim apresentada, pela ideologia burguesa, quando difunde que a formação e capacitação se convertem em ampliação salarial. Se essa assertiva possui alguma base material, ela também encobre a complexidade dessas relações. Isso porque o “valor” só coincide com o tempo socialmente necessário para a produção de uma determinada mercadoria, tal como definido por Marx (2013), em níveis muito elevados de abstração (CARCANHOLO, 2014). Em sua realização histórica, o valor das mercadorias é mediado por uma miríade de relações, dentre elas, a sua disponibilidade.
Considerando que o trabalho, no capitalismo, é uma mercadoria, a disponibilidade de trabalhadores, no mercado, interfere na composição de seu valor de troca (MARX, 2013). Ou seja, a ampliação do exército de reserva força os salários
para baixo, reduzindo a participação da formação educacional, nessa equação. Desse modo, os inconvenientes da educação sobre o valor de troca da força de trabalho são balanceados, ainda que permaneçam outras contradições referentes à potencialidade dos conhecimentos, que podem ser sistematizados e difundidos pelas instituições educacionais.
A esse respeito, devemos destacar que, além da capacitação para o trabalho, a escola possui um importante papel, nas sociedades capitalistas, na construção de uma determinada sociabilidade (GRAMSCI, 1979), ou seja, de uma forma de ser e estar no mundo, coerente com o seu ethos e apassivada com as suas contradições. Não obstante, a escola é também um espaço que se torna vivo pela ação dos sujeitos históricos, que a reconstroem, em meio aos conflitos sociais. Temos, aqui, o controle sobre a educação e seus profissionais como mais uma dimensão do empresariamento, que se expressa na sua subsunção aos interesses do empresariado. Quanto mais a escola incorporou os grupos marginalizados, entre suas fileiras, tanto mais o controle sobre o processo pedagógico se mostrou uma necessidade para a manutenção das relações de dominação, seja como limitação do conhecimento a que se tem acesso, seja como forma de abordagem ao conhecimento acessado.
Antes de nos adentrarmos nesta questão, cabe apontar que esses processos não são estanques, como pode parecer em nível teórico, mas se articulam e se confundem na realidade social. A mercadorização, por exemplo, ainda que seja uma forma de comercialização de matrículas ou insumos educacionais, também pode agir para o controle do processo educativo, a depender do nível de organização do empresariado.
Nesse sentido, destacamos que as distintas frações do capital interagem de modo diverso com a educação, ora se aproximando, ora se afastando, a depender da conjuntura. José Rodrigues (1998) traz importantes contribuições para essa análise quando elabora os conceitos de “educação-mercadoria” e “mercadoria-educação” para pensar nas duas dimensões da capitalização. Enquanto a primeira diz respeito ao capital comercial e aos lucros obtidos com a venda de educação, seja ela qual for, a segunda se refere ao capital produtivo, para o qual a educação serve como preparação da mercadoria força de trabalho e, portanto, deve ser capaz de aumentar a sua produtividade.
Se, por um lado, as demandas, das distintas frações, se diferem quanto ao papel da educação, por outro, elas podem se encontrar, conforme a universalização vai se traduzindo em diferenciação, correlatamente à divisão do trabalho e à composição do trabalhador coletivo (SILVEIRA, 2020). Como mercadoria, por exemplo, a educação oferecida tem a sua qualidade mediada pelo valor que seus consumidores podem pagar, reproduzindo a estrutura de classes a partir de uma oferta educacional diversificada. Em tempos em que a pressão social sobre a educação ultrapassa as demandas produtivas, a flexibilização trazida pela privatização desponta como uma solução possível, na conformação desses interesses conflitantes.
A subsunção da educação ao empresariado acaba por ser a realização da mercantilização e da mercadorização, de modo mais sofisticado e articulado, a partir da complexificação da sociedade civil e da organização ético-política da burguesia, conforme a compreensão de Gramsci (2013) dos níveis de organização de classe. Nesse aspecto, entendemos que a realização histórica do empresariamento da educação se dá, no âmbito do Estado Integral, quando se constroem as mediações necessárias para tanto.
Pensando nas mediações do empresariamento da educação, podemos dividi- las em três conjuntos, sendo o primeiro relativo às organizações da sociedade civil que expressam a organização burguesa, enquanto classe, articulando e difundindo seus interesses de longo prazo. O segundo volta-se, mais especificamente, para a sociedade política e refere-se à ocupação de postos nas agências educacionais pelos intelectuais orgânicos6 da burguesia e também à organização das próprias agências, da sociedade política como um todo, de modo que seus interesses sejam contemplados. Por fim, o terceiro conjunto diz sobre a realização da hegemonia a partir da sua materialização em políticas públicas e da construção do consenso.
Para retomar os elementos da reflexão, nos fundamentamos na definição de “empresariamento da educação de novo tipo” (MOTTA; ANDRADE, 2020), pensando que sua realização se constrói a partir das mediações descritas no parágrafo anterior. Na realidade concreta, compreendemos que esse processo teve, no golpe
6 Por intelectuais orgânicos, entendemos aqueles que estão ligados a uma classe social ou fração de classe, trabalhando para a organização de seus interesses, conferindo-lhe homogeneidade (GRAMSCI, 1979).
empresarial-militar de 1964, um marco histórico cujo desenvolvimento abordaremos a partir de agora.
Na realidade brasileira, o desenvolvimento do capitalismo apresenta condicionantes históricos próprios cujas especificidades ajudam na compreensão de nossa história educacional. Isso porque a expansão da indústria, no Brasil, conviveu com a manutenção de formas arcaicas de produção da vida, fruto de nosso passado colonial, e delas dependeu para sua realização. Conforme análise de Florestan Fernandes (2005), a burguesia brasileira não se voltou contra o passado colonial, mas com ele se articulou, a partir de uma associação entre as novas frações industriais e as antigas frações agrárias, restringindo a participação popular, nessa revolução pelo alto. Ao mesmo tempo, a burguesia brasileira se articulou, de modo subordinado, à burguesia internacional, forjando o que o mesmo autor chamou de capitalismo dependente.
No plano educacional, essa configuração histórica se expressou na restrição à ampliação da educação e no descaso com relação à vinculação entre educação e desenvolvimento científico. Enquanto o primeiro aspecto se relaciona com a necessidade de preservação dos privilégios nas relações de dominação, o segundo se deve ao lugar ocupado pelo Brasil na divisão internacional do trabalho, não lhe cabendo a produção de conhecimento autônomo. As políticas públicas de educação, no Brasil, são atravessadas por esses condicionantes, mas também pelas pressões que lhe colocam os grupos sociais resistentes.
Historicamente, podemos observar os limites quantitativos e qualitativos do ensino, no Brasil, em vista desses determinantes, o que se materializa nas políticas e na realidade educacional. Se a inexpressividade da educação formal e o seu divórcio em relação à vida prática guardavam uma coerência com a organização social até o século XX, o desenvolvimento do capitalismo, no Brasil, trouxe novas demandas e colocou novas questões com as quais o campo educacional teve de lidar.
Podemos observar como a exclusão da escola, que marcava a colônia brasileira, vai cedendo espaço a uma incorporação subalternizada da classe trabalhadora na escola, consagrando o dualismo educacional como expressão da
modernização conservadora no ensino (ROMANELLI, 1982). Em que pese a estrutura dual, não podemos negligenciar o caráter transformador das reformas que buscavam sintonizar a educação com as demandas do mundo do trabalho e também com as pressões da sociedade que se urbanizava, como foi o caso da legislação Capanema, dos anos 1940.
As Leis Orgânicas do Ensino, promulgadas de 1942 a 1946, estruturaram o ensino, articulando modernização e conservação como faces do capitalismo brasileiro. A partir dessa legislação, a educação passou a se organizar por um ensino primário obrigatório de quatro anos, seguido de um ensino médio de dois ciclos, o qual se dividia em ramos profissionalizantes e o secundário propedêutico ao ensino superior. Por um lado, a reforma começava a acenar para a educação dos grupos subalternos e, por outro, institucionalizava as desigualdades sociais na estrutura de ensino.
Vemos, assim, a confluência de demandas diversas numa organização do ensino que, por um lado, resguardava o caráter distintivo do secundário e, por outro, ampliava a formação profissional de modo a atender às necessidades do desenvolvimento, defendida pelos intelectuais engajados com a renovação educacional. A acomodação, na legislação, dos interesses divergentes expressava as especificidades históricas brasileiras em que o moderno se conjuga ao arcaico, sob a mediação do Estado, na construção do nosso desenvolvimento capitalista.
O período que se segue à ditadura do Estado Novo, finalizada em 1945, intensificou o movimento democratizante, com protagonismo dos reformadores da educação, herdeiros do movimento da Escola Nova, em defesa da escola pública, numa versão do liberalismo que conflitava com as limitações das classes dominantes brasileiras. Nesse contexto, em que a necessidade de expansão se consolidava como um consenso, o modelo de escola vai se direcionando para o centro do debate, com a escola particular sendo defendida não somente pela Igreja, mas também pelos agentes da comercialização da educação.
No que se refere ao empresariamento da educação e à organização de classe da burguesia brasileira, julgamos conveniente ressaltar o debate que se deu na fase final de tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Nesse contexto, que se estende de 1958 a 1961, a mobilização em torno da escola pública7
7 Os reformadores da educação tiveram um importante papel na articulação dessa defesa, para o que contribuíam os cargos ocupados no MEC, mas também a sua reverberação na sociedade civil.
ganha projeção nacional, em contraposição à defesa da educação privada, protagonizada pela Igreja Católica8. Ainda que o empresariado industrial tenha agido de modo a se beneficiar das propostas conflitantes, destacamos que, em seu bojo, foram dados os primeiros passos para a formulação do projeto educacional da burguesia cujos fundamentos emergiam tanto do mundo da produção, quanto das lutas políticas.
Isso porque, em 1960, a Confederação Nacional da Indústria (CNI), junto ao seu Serviço Social da Indústria (SESI), lançou uma proposta própria de LDB que, em meio aos diversos substitutivos que se apresentavam, destacava-se por trazer um conceito diferente dos que vinham sendo utilizados até então, a “eficiência” (CNI/SESI, 1960, p. 565). Nesse sentido, apesar de ter construído um projeto que, no geral, articulava as proposições dos dois lados em disputa, essa iniciativa desvela uma nova demanda, entre as frações industriais, por uma proposição mais autônoma. Ao mesmo tempo, o engajamento em torno de uma sistematização para a educação, voltada para todo o seu sistema, materializa o amadurecimento da organização ético-política do empresariado, na medida em que ultrapassa os limites de seus interesses corporativos.
O projeto da CNI/SESI não teve grande ressonância nesse momento em que o debate educacional envolvia a sociedade brasileira em torno da disputa entre os defensores da escola pública, de um lado, e os grupos privatistas e as entidades confessionais, especialmente, as católicas, de outro. Entretanto, entendemos que a formulação desse projeto de LDB foi um importante antecedente do projeto educacional que viria a ser formulado, no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), entre os anos de 1963 e 1968.
O IPES foi uma organização criada em 1961 que protagonizou o golpe de 1964, se constituindo como um partido político da burguesia, a organizar e difundir seus interesses de classe, por meio da direção de sua fração mais dinâmica, ligada ao capital multinacional e associado (DREIFUSS, 1981). Nele, vemos a elaboração de um projeto educacional próprio que, articulado ao seu projeto de sociedade, não mais
8 No bojo dessa discussão, os empresários de ensino atuavam nas franjas da Igreja Católica, se aproveitando de sua histórica influência, ainda que já se organizassem a partir da Federação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (FENEN), a partir da qual realizava, junto à igreja, os Congressos Nacionais dos Estabelecimentos Particulares de Ensino (CONEPEs).
se limitava aos imediatos interesses econômico-corporativos de uma ou outra fração burguesa.
Esse projeto se relacionava com a própria organização da burguesia enquanto classe que, sob direção das frações multinacionais e associadas, articulou outras frações burguesas e grupos conservadores, engajados na deposição de João Goulart. A instabilidade política e os perigos das propostas reformistas do governo federal, para o padrão de acumulação vigente, mobilizaram os setores interessados em sua reprodução, afastando, do novo bloco no poder, os setores mais progressistas do espectro liberal brasileiro.
No que se refere à educação, o IPES organizou dois encontros, sendo o primeiro, realizado entre 1964 e 1965, chamado Simpósio para a Reforma da Educação e o segundo, de 1968, Fórum A Educação que nos Convém. Antes mesmo do golpe de 1964, a educação já aparece no documento Reformas de Base: posição do IPES, de 1963, ainda que de forma embrionária. No conjunto das elaborações, o projeto educacional da fração dirigente da burguesia brasileira vai se forjando, de modo que, em 1968, ele já conta com significativa sistematicidade. A esse respeito, os breves apontamentos que faremos, aqui, tomarão por base o Fórum A Educação que nos Convém, sobre o qual já se construiu relativo consenso9, acerca de sua relevância na história educacional brasileira.
Essa organização, já no contexto ditatorial, se materializou, na sociedade política, a partir da ocupação de cargos no então Ministério da Educação e Cultura (MEC) não somente pelos intelectuais orgânicos, ligados ao IPES, mas também pelos representantes da comercialização da educação, com ênfase para os empresários de ensino. Além disso, o próprio MEC se viu subsumido ao Ministério do Planejamento (MINIPLAN), que se afirmava como a principal agência dos interesses da fração dirigente da burguesia brasileira. Esses interesses de classe se materializaram nas políticas públicas do período, assim como se estabeleceram no seio do debate educacional, a partir da consolidação do léxico econômico aplicado a essa temática.
9 Dermeval Saviani (2008) e Luiz Antônio Cunha (1988), por exemplo, concordam com a importância do IPES, e de seu Fórum, não somente para a organização do empresariado, como também para a formulação das políticas educacionais da ditadura empresarial-militar.
No contexto de organização da burguesia, a partir do IPES, a formação educacional se consolidou como um ponto central do seu projeto de sociedade, não somente pelas demandas do mercado de trabalho, mas também pela sua importância nas lutas sociais do período. Nesse sentido, é importante lembrar a força do movimento estudantil cuja repercussão gerava uma instabilidade para o regime político, ao mesmo tempo em que materializava a inadequação do sistema educacional à realidade social (ROMANELLI, 1982).
Em vista dessa problemática, o projeto do IPES trouxe como eixo o deslocamento do agente da transformação educacional para o campo da economia. Na medida em que a educação se constitui como um terreno da luta de classes, mostrava-se necessário controlar o seu funcionamento, num contexto em que os movimentos sociais tomavam-na como mediação da construção da sociedade desejada. A ampliação do poder de vocalidade do economista e do engenheiro, em matéria de educação, se constituiu como um modo de torná-la mais permeável às demandas econômicas e menos suscetível à classe trabalhadora organizada.
Com isso, queremos dizer que tão importante quanto o projeto de educação, do IPES, foram os agentes de tal proposição e a deslegitimação da educação como campo capaz de conduzir seu desenvolvimento. Esse processo pode ser entendido no âmbito do avanço tecnocrático, que caracterizou o contexto ditatorial, em que as principais agências estatais de elaboração e execução foram ocupadas pelos ditos tecnocratas. Esses eram intelectuais, geralmente ligados à economia ou engenharia, que garantiam, do ponto de vista de seus proponentes, o caráter técnico das políticas públicas, em contraposição aos anseios políticos daqueles que se moviam em dissonância com as demandas econômicas. Assim, para o campo educacional, o artifício argumentativo utilizado foi a incompetência de seus agentes, conforme se pode depreender das conclusões do Fórum de 1968:
Nos aspectos que dizem respeito à educação, no complexo das crises moral, política, econômica, de crescimento, de transição e de tantas outras formas que têm adjetivado a crise brasileira, há no fundo, uma causa comum que temos procurado identificar como uma crise de competência (IPES, 1969, p. 205).
Ao referir-se a uma “crise de competência”, como causa dos males vividos, o IPES busca a legitimidade para propor outra forma de compreender e gerir a educação, sendo os nomes trazidos para a composição das conferências, do Fórum, uma expressão desse movimento. Isso porque, a despeito da maioria exercer o magistério superior, no que se refere à experiência em administração pública, sobressaem as trajetórias vinculadas a divisões e órgãos econômicos. Se levarmos em conta a organicidade dos conferencistas com relação ao IPES, isso ganha maior evidência.
Dentre os onze conferencistas, três eram membros dirigentes do IPES, com variados vínculos com o setor econômico: Paulo de Assis Ribeiro10, Roberto de Oliveira Campos11 e Theófilo de Azeredo Santos12. O mesmo se dava com os outros três que, mesmo não sendo filiados ao instituto, guardavam, com ele, próxima relação: Lucas Lopes13, Luiz Gonzaga do Nascimento Silva14 e Raymundo Padilha15. Os cinco conferencistas restantes tinham menor relação prévia com o Instituto e maior vínculo com a realidade educacional, sobretudo com o ensino superior privado: Suzana Gonçalves16 e Fernando Bastos D’Ávila eram ligados à administração da PUC-RJ e Cândido Antônio Mendes de Almeida era proprietário das Faculdades Cândido Mendes. Além desses, Nair Fortes Abu Merhy era professora da faculdade de educação da UFRJ e Clemente Mariani havia sido ministro da educação e da fazenda, além de presidente do Banco do Brasil.
A análise dessa composição – que se assemelhava à relação dos debatedores chamados para as conferências – é significativa para a compreensão do projeto educacional do IPES. Por um lado, desvela a precedência do debate econômico sobre a educação e, por outro, mostra a necessidade de ampliar o horizonte de atuação, tendo em vista a construção do consenso. A convocação de um considerável número
10 Engenheiro, economista e professor ligado à PUC-RJ, onde contribuiu com fundação do curso de mestrado em planejamento educacional.
11 Economista; diplomata; presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE); embaixador nos EUA; ministro do planejamento de Castelo Branco.
12 Professor da UFRJ; banqueiro; presidente do Sindicato de Bancos do Rio de Janeiro.
13 Engenheiro; presidente do BNDE, secretário-executivo do Conselho de Desenvolvimento e ministro da fazenda, no governo JK; ajudou a fundar a CONSULTEC.
14 Advogado; professor da PUC-RJ; ministro do trabalho no governo de Castelo Branco; presidente do Banco Nacional de Habitação (BNH).
15 Economista e político, com histórico na Ação Integralista Brasileira, União Democrática Nacional e na Aliança Renovadora Nacional.
16 Tornou-se diretora da CAPES após o golpe de 1964.
de participantes externos, mas não conflitantes, ao IPES materializa o movimento de incorporar demandas necessárias e difundir seu projeto, entre os intelectuais presentes.
No que se refere ao ano de 1968, consideramos que as perspectivas para a educação, dessa fração dirigente, já estavam amadurecidas e tinham na Teoria do Capital Humano (TCH) os seus fundamentos, adaptados às especificidades do capitalismo brasileiro. Nessa adequação, a teoria atua mais como um recurso ideológico do que como um receituário prático, na medida em que a sua máxima da educação como fator de desenvolvimento, quando operacionalizada, age para a reprodução das relações de dependência e não para sua ruptura.
Na esteira das teorias do subdesenvolvimento, a TCH busca explicar os diferentes graus de evolução, de cada país, a partir do seu investimento em educação. Como comenta Frigotto (1984, p. 136), ao analisar a linearidade dessa relação entre sistema educacional e sistema produtivo, “a educação e a qualificação aparecem como panacéia para superar as desigualdades entre nações, regiões ou indivíduos. O problema da desigualdade tende a reduzir-se a um problema de não-qualificação”. Entretanto, enquanto essa é a formulação discursiva burguesa para o papel econômico da educação, na prática, ela se traduz em um investimento condicionado pelas necessidades do desenvolvimento realmente existente e não ao que, supostamente, se deseja alcançar.
A conferência de Roberto Campos, no fórum em questão, expressa essa limitação quando, citando o caso de países subdesenvolvidos, pontua que “o desajustamento entre o tipo de ensino fornecido e as vocações práticas exigidas pela sociedade, criou esse fenômeno do letrado ou do universitário desocupado” (IPES, 1969, p. 75). Para a realidade educacional brasileira, essa referência vinha subsidiar a defesa do controle sobre a expansão das matrículas e da pesquisa no ensino superior, a partir das demandas colocadas pelo mercado de trabalho. Como se pode observar, a incorporação das premissas da TCH, que afirmava os benefícios econômicos do investimento em educação, se materializou em contenção da expansão educacional, tendo como limite o mercado de trabalho de uma economia dependente.
Com efeito, o eixo central do projeto educacional do IPES era a subsunção da educação aos imperativos econômicos, o que se materializava de modo diverso, a
depender do nível educacional e da conjuntura política. Referimo-nos às conjunturas políticas por entendermos que, na perspectiva de construção da hegemonia, o IPES teve de se antecipar e incorporar, subordinadamente ao seu projeto, determinadas demandas sociais, ainda que contasse também com a força coercitiva sobre os grupos resistentes.
No que se refere às outras frações da classe dominante, quando a pressão sobre a educação ultrapassava as demandas do mercado, a iniciativa privada era chamada a contribuir para sua diversificação, de modo a atualizar as desigualdades educacionais, em tempos de democratização do acesso. Conforme o estudo intitulado Reformas de Base: posição do IPES, era preciso “combater a hipertrofia da escola pública, a qual, além de determinar menor rentabilidade daquele investimento, desestimula a diversificação indispensável à adequação reclamada, dos currículos e dos métodos, às exigências do meio” (IPES, 1963 como citado em BORTONE, 2013, p. 115).
A presença de Cândido Antônio Mendes de Almeida e a parceria com a PUC- RJ, para a realização do fórum de 1968, contribuem para a compreensão do movimento de intelectuais ligados à comercialização da educação superior e a disposição do IPES em articular os seus interesses. Nos espaços de elaboração e difusão, propostos pelo Instituto, essa confluência entre projetos de educação pode ser observada, desvelando que a organização desse projeto societário começava a se realizar, a partir da construção do consenso, no âmbito do Estado Integral. Essas são mediações centrais que nos permitem pensar o golpe de 1964 como um marco do empresariamento da educação.
Com efeito, consideramos que uma das principais conquistas da organização do empresariado, na sociedade civil, foi a difusão de uma série de conceitos novos no debate educacional. Como afirma Hobsbawn (2009, p. 19), “as palavras são testemunhas que muitas vezes falam mais alto que os documentos”. Isso porque materializam as relações sociais ao mesmo tempo em que agem sobre elas, (de)limitando possibilidades de atuação. A operacionalização de palavras, como produtividade, eficiência e racionalização, expressava uma nova correlação de forças, na medida em que construíam hegemonia do empresariado, a partir da consolidação do léxico econômico na educação.
A questão passou a ser o que é mais produtivo e eficiente ou como racionalizar melhor os gastos e não a conveniência desses parâmetros, no debate educacional. No período em análise, a hegemonia desses termos se construía a partir da percepção de que eles eram desdobramentos de referências técnicas, em contraposição às motivações políticas que animavam as lutas em torno da educação, como a dos defensores da escola pública, por exemplo. A autoridade/legitimidade para dizer e formular sobre a educação, a partir de seus próprios critérios, foi fruto do desenvolvimento histórico do capitalismo brasileiro e da organização, em nível ético- político, por parte do empresariado brasileiro. No entanto, se apresentou como o desdobramento natural da racionalidade técnica e, portanto, verdadeira da própria civilidade.
Como coloca Bourdieu (2008), a autoridade, conferida socialmente, para descrever o mundo se desdobra na capacidade de prescrever o que deve ser, tendo a linguagem, e suas limitações, como uma de suas mediações. Com isso não queremos dizer que a história se construa nos conflitos discursivos, mas que o discurso é, ao mesmo tempo, expressão e terreno da luta de classes. Essa nova correlação de forças – que materializava uma hegemonia, mesmo que restrita, das frações burguesas organizadas no IPES – se expressou na sociedade política e aí teve um local de ressonância e formalização.
Nesse aspecto, observamos dois movimentos que, paralelos e complementares, expressavam ao mesmo tempo em que contribuíam para o empresariamento da educação, constituindo-se como mediações. Primeiramente, temos que, em seguida do golpe de 1964, o MEC passa por uma recomposição, a partir da qual seus diretores são substituídos por intelectuais orgânicos do empresariado brasileiro, tanto daqueles organizados no IPES, quanto daqueles vinculados à comercialização da educação17. Nesse contexto, esses empresários de ensino já estavam em processo de autonomização, com relação à Igreja Católica, e, a partir da Federação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (FENEN), conquistaram importantes espaços no interior da administração federal.
Além do preenchimento dos cargos no MEC, o próprio ministério é reposicionado na relação entre as agências estatais, de modo que sua atuação fica
17 Para mais informações, a pesquisa foi desenvolvida em projeto de doutoramento e está disponibilizada na tese intitulada O golpe de 1964 e o empresariamento da educação: um estudo a partir do movimento de intelectuais no Ministério da Educação e Cultura (CAMPOS, 2020).
subsumida às determinações do Ministério do Planejamento. Isso pode ser observado pela presença desse ministério nos programas desenvolvidos pelo MEC e, principalmente, pela posição setorizada, ocupada pela educação, nos documentos oficiais de planejamento econômico.
Nesse sentido, entendemos que a hegemonia se materializa não somente na presença dos representantes de classe nas agências da sociedade política, mas também na hierarquização existente entre eles; ou seja, na capacidade decisória das agências ocupadas. Esse processo, ainda que guarde significativa especificidade na história brasileira, também se conjuga com o movimento geral de centralização do Estado em favor do capital monopolista (Poulantzas, 1980).
Na relação entre as agências do Estado, o Plano de Ação Econômica de Governo (PAEG), elaborado na gestão do ipesiano Roberto Campos, em 1964, materializou a ascendência do MINIPLAN sobre o MEC, ao introduzir a educação como setor do planejamento econômico, reduzida ao aperfeiçoamento do fator humano. Essa nova configuração se manteve em outros planos da pasta de planejamento e se expressou nos programas do MEC, que passam a contar com representantes desse ministério, em sua totalidade, a partir de 1967.
A ação para o enfraquecimento do campo educacional desvela a necessidade de controlar um processo que pode suscitar contradições prejudiciais à reprodução do capitalismo. A reconfiguração do sistema educacional, por meio das reformas legislativas, também fez parte desse processo, num momento em que a educação se expandia, mas de modo subordinado às determinações do capital.
Nesse sentido, a composição do MEC e sua relação com o MINIPLAN realizaram a organização empresarial, na arena educacional, incidindo sobre legislação aprovada no período. A reforma universitária, de 1968, e a reforma de ensino de 1º e 2º graus, de 1971, combinadas às políticas de pós-graduação e de formação superior em cursos de curta duração, agiram no sentido de adequar o sistema educacional às demandas de formação da força de trabalho, (con)formando uma sociabilidade burguesa, num capitalismo internacionalizado, em sua especificidade dependente. Ainda que a profissionalização do ensino de 2º grau tenha sofrido grande resistência, esse foi o contexto em que o empresariado se engajou no processo educacional, tanto por questões econômicas, quanto por necessidade política.
A ofensiva contra a autonomia do campo educacional e o controle sobre o trabalho educativo se fez acompanhar de medidas que diversificavam, horizontal e verticalmente, o sistema educacional. À democratização do acesso se contrapôs a hierarquização entre instituições e a multiplicação de possibilidades formativas, de maneira a compatibilizar a educação às demandas da formação do trabalhador coletivo, desde a produção científica até a qualificação para o trabalho simples, estimulando a mercantilização da educação.
O conceito de empresariamento da educação, para cuja definição buscamos contribuir nesse texto, é desenvolvido, originalmente, na reflexão sobre o bloco histórico neoliberal e seus processos diversificados de privatização. Não obstante, os avanços teóricos dessas pesquisas nos permitem compreender que o conceito se relaciona com a capitalização da educação – ou seja, com a sua introdução no circuito de valorização do capital – e, portanto, diz sobre a própria relação do capitalismo com a educação, em uma historicidade de longa duração.
Se, em nível abstrato, pensamos o empresariamento da educação como algo intrínseco ao capitalismo, concretamente, ele se realiza a partir de mediações históricas, relacionadas à ação política da burguesia, organizada enquanto classe. No caso do Brasil, o golpe de 1964 pode ser entendido como um marco histórico desse processo, quando a organização da burguesia brasileira ultrapassa os limites econômico-corporativos e avança na construção da hegemonia, ao menos entre os grupos dominantes.
Nesse contexto, as frações mais dinâmicas do capitalismo brasileiro se articularam como classe, no âmbito da sociedade civil, e desenvolveram um projeto próprio de educação que, vinculado ao seu projeto de sociedade, se materializou no âmbito do Estado Integral, a partir de algumas mediações principais. Primeiro, pela autonomização do projeto empresarial de educação, a partir do qual se consolidou o léxico econômico no debate educacional. Em segundo lugar, pela ocupação de postos estratégicos, na administração educacional, por intelectuais orgânicos da burguesia brasileira. E, por fim, pela subsunção dos órgãos educacionais, em especial o MEC, ao Ministério do Planejamento.
As mediações desse processo de empresariamento confluíram para sua realização, tanto no que se refere à sua comercialização, quanto à subsunção da educação às demandas do capital, se materializando nas políticas públicas do período. No contexto neoliberal, podemos observar a reconfiguração da relação entre o público e o privado por meio de mediações específicas, mas que nos remetem ao processo histórico analisado, desvelando a luta de classes como o fundamento das disputas sobre a educação.
Nesse sentido, entendemos que o desenvolvimento do conceito de empresariamento da educação permitiu a abertura de novas problemáticas, para contextos diversos, enriquecendo a sua análise. Ao mesmo tempo, acreditamos que o deslocamento do conceito para o período da ditadura empresarial-militar possa operacionalizar as contribuições da análise histórica para a compreensão do geral e do específico quando se trata da relação entre educação e capitalismo.
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