V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


A CONTRARREFORMA DO ENSINO MÉDIO COMO PROGRAMA DA CNI PARA A POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA1


Fernanda Franz Willers2


Resumo3


Este artigo discute a relação entre o projeto educacional proposto pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a contrarreforma do ensino médio e tem como fio condutor a análise dos seguintes pontos: 1) a contrarreforma do ensino médio; 2) a disputa pelos sentidos discursivos da BNCC; 3) as estratégias para a implementação da BNCC como programa da CNI. Os resultados revelam que o conteúdo da contrarreforma do ensino médio possui forte vinculação com as reivindicações da CNI para a política educacional brasileira.

Palavras-chave: Confederação Nacional da Indústria (CNI); Base comum curricular (BNCC); Reforma do Ensino Médio.


LA CONTRAREFORMA DE LA ESCUELA SECUNDARIA COMO PROGRAMA DEL CNI PARA LA POLÍTICA EDUCATIVA BRASILEÑA


Resumen

Este artículo discute la relación entre el proyecto educativo propuesto por por la Confederación Nacional de la Industria (CNI) y la contrarreforma de la escuela secundaria y tiene como eje rector el análisis de los siguientes puntos: 1) la contrarreforma de la escuela secundaria; 2) la disputa sobre los sentidos discursivos de la BNCC; 3) las estrategias para la implementación de la BNCC como un programa de la CNI. Los resultados revelan que el contenido de la contrarreforma de la escuela secundaria tiene una fuerte conexión con las demandas de la CNI para la política educativa brasileña.

Palabras clave: Confederación Nacional de la Industria (CNI); Base Curricular Común (BNCC); Reforma de la escuela secundaria.


THE HIGH SCHOOL COUNTER-REFORM AS A CNI PROGRAM FOR BRAZILIAN EDUCATIONAL POLICY


Abstract

This article discusses the relationship between the educational project proposed by the National Confederation of Industry (CNI) and the high school counter-reform and has as its guiding principle the analysis of the following points: 1) the high school counter-reform; 2) the dispute over BNCC's discursive meanings; 3) the strategies for implementing the BNCC as a CNI program. The results reveal that the content of the high school counter-reform has a strong connection with the demands of the CNI for Brazilian educational policy.

Keywords: National Confederation of Industry (CNI); Common Curriculum Base (BNCC); High School Reform.


1 Artigo recebido em 15/03/2022. Primeira avaliação em 07/05/2022. Segunda avaliação em 06/06/2022. Aprovado em 13/06/2022. Publicado em 21/07/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.53519.

2 Mestra pelo PPGE/UFFS. Foi bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC). Atualmente, realiza curso de especialização em gestão, supervisão e orientação escolar pelo Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM) E-mail: ferwillers@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5950092444166245. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6993-4878.

3 Este artigo é fruto de dissertação de mestrado (WILLERS, 2022) defendida no Programa de Pós- Graduação em Educação na Universidade Federal da Fronteira Sul (PPGE/UFFS).

Introdução: a contrarreforma do Ensino Médio


O Estado é resultado da sociedade dividida em classes sociais, uma vez que é dela que surge a necessidade de que haja um órgão regulador das normas econômicas, políticas e sociais, que se apresente como acima das classes, mas que, na prática, atue como organizador da dominação de uma classe sobre outra. Ao se referir à classe dominante, é importante considerar que ela não é homogênea. A classe capitalista é atravessada por fracionamentos que se traduzem na reivindicação de demandas particulares diante do Estado, assim como no atendimento desigual dessas demandas. Na literatura gramsciana, as classes e as frações de classe, com vistas a atender seus interesses perante o Estado, criam seus próprios aparelhos privados de hegemonia, compondo aquilo que é conhecido como Estado integral ou Estado ampliado, sendo importante observar que: “a principal função desses aparelhos de hegemonia seria construir o consenso das grandes massas pouco organizadas, de modo a obter sua adesão aos projetos articulados pelos grupos dominantes” (MENDONÇA, 2014, p. 35). O Estado ampliado tem a função de educador, pois ele educa para a formação da opinião pública consensual, já que para Gramsci (2000a, p. 265) “o que se chama de ‘opinião pública’ está estreitamente ligado à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a ‘sociedade civil’ e a sociedade política, entre o consenso e a força”.

Uma das formas de compreender a política educacional é analisar os aparelhos privados de hegemonia que disputam e influenciam a implementação e o conteúdo desta política. Na conjuntura mais recente, surgiram uma série de iniciativas visando fomentar uma concepção empresarial para a educação, fundadas, segundo Freitas (2018), nos seguintes objetivos: a) estabelecer o domínio de competências e habilidades básicas necessárias para a atividade econômica, revolucionadas pelas novas tecnologias; b) garantir que tal iniciativa se contenha dentro da sua visão de mundo que se traduz em um status quo modernizado; c) retirar a educação do âmbito do “direito social” e inseri-la como “serviço” no interior do livre mercado.

Entre tais iniciativas, destacam-se o Instituto Ayrton Senna (criado em 1994), a Fundação Lemann (criada em 2002) e o Todos Pela Educação (criado em 2006). Além desses três grupos financiados por empresas e bancos privados, é preciso mencionar

também os movimentos: o Movimento Escola Sem Partido (criado em 2004), que encerrou formalmente suas atividades no ano de 2020 pela falta de iniciativa do governo federal em implementar o programa, e após a declaração do STF de inconstitucionalidade do projeto de lei; o Movimento de Olho no Material Escolar (2020), que reivindica um revisionismo histórico da visão sobre o agronegócio no livro didático, objetivando reverter a imagem negativa sobre as formas de produção agrícola. Outro movimento ligado ao agronegócio que surgiu mais recentemente é o Movimento Todos a Uma Só Voz, que também possui como objetivo modificar a opinião pública sobre os malefícios do agronegócio brasileiro e um dos eixos centrais dessa iniciativa perpassa a disputa educacional.

O interesse desses aparelhos privados pela educação escolar pode ser compreendido a partir da seguinte formulação de Gramsci (2000a, p. 284):

A escola como função educativa positiva e os tribunais como função repressiva e negativa são as atividades estatais mais importantes nesse sentido: mas, na realidade, para este fim tende uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes.


A escola pode, assim, ser concebida como locus de formação de intelectuais de diversos níveis e, por isso, para alguns setores da sociedade, faz-se necessário disputar o currículo escolar com vistas a assegurar a manutenção de seus interesses particulares.

Além dos exemplos acima mencionados, temos também a Confederação Nacional da Indústria (CNI) que possui histórico de atuação frente às políticas educacionais. A relação entre a Confederação Nacional da Indústria e o campo educacional já foi objeto de algumas pesquisas, tais como as elaboradas por José Rodrigues (1998), Alessandro Melo (2010), Allan Kenji Seki (2014) e Lívia Mouriño Mello (2020). Os trabalhos de Rodrigues e de Mello possuem como objeto de estudo o pensamento pedagógico da CNI, respectivamente, sobre as décadas de 1980 e 1990 e os anos 2000. A pesquisa de Seki se dedicou a compreender as demandas da CNI para as universidades federais, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Já a pesquisa de Mello analisou a atuação da CNI na construção do novo ensino médio.

Desde 1994, a CNI vem elaborando e difundindo a agenda dos industriais perante a sociedade e os candidatos à presidência da República. Nesses

documentos, a burguesia industrial apresenta as suas demandas ao futuro presidente, reservando sempre uma seção para reivindicar propostas para a educação. O documento elaborado durante o pleito eleitoral de 2018, Educação: a base para a competitividade”, trata da aprovação e da implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em especial a que se destina ao Ensino Médio, como programa da burguesia industrial para a escola pública brasileira. Nesse sentido, é possível dizer que, ao se propor a planejar, organizar e divulgar documentos que visam influenciar uma série de políticas no âmbito nacional, entre elas as políticas educacionais, a CNI tem procurado desempenhar o papel de intelectual orgânico com vistas a organizar os interesses da burguesia industrial.

Em termos gerais, podemos afirmar que o projeto político, econômico e social que vem sendo apresentado pela CNI para a sociedade brasileira é pautado pela agenda da competitividade para o crescimento econômico. Nessa agenda, a educação tem um importante papel a desempenhar: de formar trabalhadores e trabalhadoras aptas a integrar o setor produtivo brasileiro, desenvolvendo capital humano.

Observa-se, ademais, que o consenso produzido pelo movimento de associações de educação e de luta em defesa da escola pública em torno da construção de uma base nacional curricular, constituído nos anos 1970, cedeu lugar no período recente ao consenso forjado por aparelhos privados de hegemonia, que passaram a articular o Movimento pela Base, que se autodefine como “uma rede não governamental e apartidária de pessoas e instituições, que desde 2013 se dedica à construção e implementação de qualidade da BNCC e do Novo Ensino Médio”4. Foi justamente esse aglomerado de aparelhos privados de hegemonia que se projetou como responsável por organizar e dirigir o processo de elaboração da BNCC.



4 Este Movimento possui os seguintes membros e estrutura organizativa: Conselho consultivo: Beatriz Ferraz (Fundadora e diretora-executiva da Escola de Educadores); Claudia Costin (Diretora do CEIPE/FGV); Denis Mizne (CEO da Fundação Lemann); Diogo Jamra (Gerente de Articulação do Itaú Educação e Trabalho); Eduardo Deschamps (Professor da FURB e membro do Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina); Katia Smole (Diretora do Instituto Reúna); Katia Schweickardt (Professora da UFAM); Lina Katia Mesquita (Diretora-Executiva da Fundação CAEd); Mariza Abreu (Consultora legislativa da área de educação); Pilar Lacerda (Diretora da Fundação SM Brasil); Conselho de mantenedores: Fundação Lemann, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Itaú Educação e Trabalho. Apoio institucional: Abave, Cenpec, Comunidade Educativa Cedac, Consed, Fundação Lemann, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Fundação Roberto Marinho, Instituto Ayrton Senna, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Itaú Educação e Trabalho, Todos Pela Educação, Uncme, Undime.

A Lei nº 13.415/2017, que instituiu o novo ensino médio, alterou o artigo 36 da LDB, determinando que o currículo do ensino médio “será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino”; e que os itinerários serão divididos em cinco áreas: a) linguagens e suas tecnologias; b) matemática e suas tecnologias; c) ciências da natureza e suas tecnologias; d) ciências humanas e sociais aplicadas; e) formação técnica e profissional.

A BNCC destinada ao nível do ensino médio é, na verdade, uma contrarreforma e pode ser caracterizada como tal por três motivos principais: o primeiro motivo diz respeito ao próprio conceito de reforma. Como sinalizou Coutinho (2012, p. 122): “a palavra ‘reforma’ foi sempre organicamente ligada às lutas dos subalternos para transformar a sociedade e, por conseguinte, assumiu na linguagem política uma conotação claramente progressista e até mesmo de esquerda”, portanto as reformas, historicamente, atendiam aos interesses da classe trabalhadora. No entanto, a BNCC do Ensino Médio atende às demandas dos aparelhos privados de hegemonia e é resultante da ofensiva empresarial sobre a esfera educacional, daí a necessidade de tratá-la como contrarreforma.

O segundo motivo tem a ver com o fato de que a BNCC foi aprovada no contexto de corte de investimentos na área da política social, ou seja, na conjuntura de aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que prevê o congelamento de investimentos nas áreas de educação e saúde, entre outras, por mais de 20 anos, e visa atender os interesses dos grandes bancos nacionais e internacionais, que são os principais credores da dívida pública.

Além desses dois motivos, é possível identificar um terceiro, na medida em que a BNCC do Ensino Médio excluiu a obrigatoriedade de quase todo o campo das ciências humanas, com exceção das matérias de língua portuguesa, deixando de contemplar o acesso a áreas de conhecimento indispensáveis para a vida em sociedade e para a formação de cidadãos críticos, pautas que sempre foram sustentadas por organizações estudantis e de trabalhadores ligadas ao campo educacional.

Nesse processo, a CNI fez parte de instâncias deliberativas e exerceu influência através de audiências públicas, produção de documentos e atuação política.

Além disso, contou com participação de Rafael Esmeraldo Lucchesi Ramacciotti, Diretor de Educação e Tecnologia da CNI e Diretor-Geral do SENAI, como conselheiro no Conselho Nacional de Educação (CNE). Quando Lucchesi tomou posse como conselheiro, em 2016, o site da CNI (Portal da Indústria, 2021) publicou uma matéria apontando que:


Para Lucchesi, um dos itens fundamentais da agenda do CNE é o investimento em educação profissional, com o objetivo de balancear a matriz educacional brasileira. No Brasil, cerca de 11% dos jovens entre 15 e 17 anos fazem curso técnico junto com a educação regular, enquanto esse porcentual é de 50%, em média, nos países desenvolvidos, que têm uma matriz mais equilibrada. Outro assunto prioritário é a definição da Base Nacional Comum Curricular. (Grifos meus).


A atuação da CNI junto ao CNE mostra, mais uma vez, a seletividade do Estado brasileiro, que permite e legitima que aparelhos privados de hegemonia estejam protegendo e garantindo que seus interesses de classe sejam implementados através da política econômica, social e externa.


A CNI e a disputa pelos sentidos na BNCC


A aprovação da BNCC alterou significativamente a base material da política educacional brasileira, pois ela é a principal política curricular em vigência no país. No documento Educação: a base para a competitividade”, lançado em 2018, e apresentado para os presidenciáveis no pleito eleitoral daquele ano, junto de outros 42 cadernos temáticos, a CNI apresentou o seu projeto educacional, reivindicando que seu programa fosse incorporado como política educacional, via BNCC.

Nesse documento, a CNI traçou o diagnóstico de que a educação brasileira padecia de “graves problemas estruturais que produzem reflexos sociais perversos(CNI, 2018, p. 14) e apontou que esses problemas produziam “efeitos nocivos sobre as condições de funcionamento do conjunto do sistema produtivo, em particular da indústria” (CNI, 2018, p. 14). Esse discurso colocava a educação como centro dos problemas a serem enfrentados no país na conjuntura mais recente.

Mantendo o padrão discursivo dos documentos produzidos para os processos eleitorais entre 1998 e 2014, o diagnóstico apresentado pela CNI apontou que a universalização do acesso à educação básica de nível fundamental não resolveu o

problema da qualidade do ensino e não garantiu que a universalização de matrículas no Ensino Médio se consolidasse. A partir deste diagnóstico, a aprovação da BNCC é comemorada, pois, segundo a CNI (2018, p. 14), “essas políticas públicas apontam perspectivas de mudança favoráveis, abrindo oportunidades e desafios a serem enfrentados para que se consiga avançar no desenho de uma nova matriz educacional”.

O elo discursivo entre o diagnóstico e o entusiasmo com a aprovação da BNCC está no debate sobre a qualidade educacional. No discurso da CNI, o aumento da qualidade educacional está sempre atrelado às métricas impostas pela agenda da competitividade global, por meio de testes padronizados. A elevação da qualidade só será assimilada se o resultado em testes padronizados mostrarem um crescimento quantitativo nos resultados da avaliação - nenhum indicativo qualitativo é considerado. A BNCC é vista pela CNI como uma iniciativa que permitirá ao país obter melhores resultados nos testes, adequando, assim, a política educacional brasileira às exigências curriculares impostas globalmente. No entanto, como bem observou Saviani (2020), as diretrizes curriculares nacionais já cumpriam a função de orientação curricular, tal como estava prevista na LDB, o que a BNCC passa a estipular como base comum curricular é a submissão do aparelho escolar às determinações da

métrica de competitividade.

Na sequência, o texto afirma que: “trata-se de um documento de caráter normativo, que estabelece um conjunto de competências e habilidades essenciais com vistas a superar a fragmentação das políticas educacionais e promover ganhos de qualidade” (CNI, 2018, p. 18). Outra vez o signo qualidade aparece como meta a ser alcançada e a BNCC como meio de promoção desse ganho. No texto da BNCC, o novo ensino médio é apresentado como mecanismo que permitirá “substituir o modelo único de currículo do Ensino Médio por um modelo diversificado e flexível” (BRASIL, 2018, p. 468).

A perspectiva pedagógica pautada pelo desenvolvimento de habilidades e competências já se fazia presente no discurso da CNI em documentos anteriores. Porém, a partir do momento que a principal política curricular da educação básica assume essa perspectiva como orientadora da vida escolar, a CNI adquire maior capacidade de disputar os sentidos, para que eles atendam aos seus anseios.

No excerto que segue, o documento da CNI (2018, p. 18) continua operando com os sentidos do signo qualidade, afirmando que na visão da indústria o baixo desempenho nas avaliações se deve ao fato, de até então, não haver indicações claras dos conteúdos escolares e, apontando a BNCC como solução para este problema:


Baseada na visão de que uma das razões para o baixo desempenho dos alunos brasileiros em avaliações nacionais e internacionais é a ausência de indicações claras do que devem aprender para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo, a BNCC define competências e habilidades que os estudantes precisam dominar a cada ano letivo.


No próximo excerto, novos adjetivos são acrescentados às definições do que era o modelo curricular do ensino médio anterior à aprovação da BNCC. Toda vez que a CNI faz menção à política curricular anterior à BNCC e sobre a BNCC, ela o faz com a intenção de definir os sentidos da sua implementação.


O Ensino Médio representa um grande desafio para a reorganização do sistema educacional brasileiro. O modelo vigente até a introdução da reforma do Ensino Médio – fragmentado, cognitivista e baseado em disciplinas com elevada carga de conteúdo teórico – não tem conseguido responder aos anseios e interesses de jovens conectados ao mundo digital. Esses jovens precisam ser motivados por meio de experimentos que despertem a curiosidade e proponham desafios instigantes, abrindo espaço para tentativas que resultem em erros, acertos e ajustes sucessivos [...] (CNI, 2018, p. 18, grifos no original).


Nesse trecho, a organização do ensino médio antes da reforma é adjetivada como fragmentada e cognitivista, com uma elevada carga teórica nas diversas disciplinas. Há uma contraposição neste enunciado entre conteúdo teórico e desafios instigantes, que podem ser compreendidos como desafios práticos. Há, também, a sobreposição valorativa da prática em detrimento da teoria. O enunciado final faz referências às metodologias ativas de ensino, vinculadas às concepções pedagógicas do “aprender a aprender”. A perspectiva pedagógica do “aprender a aprender” está inserida no texto da BNCC, como pode ser observado na citação abaixo:


No novo cenário mundial, reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural, comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o acúmulo de informações. Requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender, saber lidar com a informação cada vez mais disponível, atuar com

discernimento e responsabilidade nos contextos das culturas digitais, aplicar conhecimentos para resolver problemas, ter autonomia para tomar decisões, ser proativo para identificar os dados de uma situação e buscar soluções, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades. (BRASIL, 2018, p. 16).


O texto da política educacional afirma que “o conceito de competência, adotado pela BNCC, marca a discussão pedagógica e social das últimas décadas e pode ser inferido no texto da LDB, especialmente quando se estabelecem as finalidades gerais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio” (BRASIL, 2018, p. 69) e conclui: “é esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês) [...]” (BRASIL, 2018, p. 69).

Sobre os objetivos que o ensino médio deve atender, a CNI estabelece que ele deve reter os alunos por toda a formação básica e demanda pela ampliação das opções de formação técnica e profissional, rementendo, mais uma vez, ao discurso da universalização. Além disso, o que a CNI (2018, p. 19) está conceituando como cultura bacharelesca, com conotação negativa, é uma perspectiva que visa interditar qualquer garantia de acesso universal ao ensino superior, como podemos observar a seguir:


É preciso avançar para um formato capaz de reter os alunos até sua formação básica integral e ampliar as opções de formação técnica e profissional anteriores à conclusão de cursos de nível superior, rompendo com a cultura “bacharelesca”, que sedimentou a ideia de que o diploma universitário é condição para a obtenção de um bom emprego.


O projeto da CNI de educação profissional requer um tipo específico de concluinte do ensino médio. Como aponta Kuenzer (2017, p. 341), “importa menos a qualificação prévia do que a adaptabilidade, [...] que supõe subjetividades disciplinadas que lidem adequadamente com a dinamicidade, a instabilidade, a fluidez”. Essa adaptabilidade está contemplada na noção de empregabilidade. A autora ainda pontua o seguinte:


Em resumo, o ensino médio na atual versão integra a pedagogia da acumulação flexível e tem como finalidade a formação de trabalhadores com subjetividades flexíveis, por meio de uma base de educação geral complementada por itinerários formativos por área de conhecimento, incluindo a educação técnica e profissional; a formação

profissional é disponibilizada de forma diferenciada por origem de classe, de modo a levar os que vivem do trabalho a exercer, e aceitar, de forma natural, as múltiplas tarefas no mercado flexibilizado. Ser multitarefa, neste caso, implica exercer trabalhos disponibilizados pelo mercado, para os quais seja suficiente um rápido treinamento, a partir de algum aporte de educação geral, seja no nível básico, técnico ou superior. Para alguns, significará exercer trabalhos qualificados e criativos; esses não serão atingidos pela reforma do ensino médio porque dispõem, em face de sua origem de classe, de outros espaços de formação, que não a escola pública. Para a maioria dos trabalhadores, contudo, ser multitarefa significará exercer trabalhos temporários simplificados, repetitivos e fragmentados, que não necessitam de formação qualificada, mas provavelmente de certificados ou reconhecimento de competências, o que o atual ensino médio talvez atenda (KUENZER, 2017, p. 341-342).


O documento da CNI (2018, p. 19) também afirma que “ao propor uma abordagem mais flexível, a Lei 13.415/2017 representa uma grande oportunidade para inserir o Brasil numa realidade educacional global, que incorpora a riqueza da diversidade curricular e valoriza a Educação Profissional e Tecnológica. Cabe observar aqui que agentes hegemônicos do capital internacionais, tais como FMI, Banco Mundial, Unesco, OCDE, Fórum Econômico Mundial, têm estabelecido historicamente orientações globais sobre as diversas áreas de seus interesses, dentre elas a educação, e “ajudado” os países periféricos a se adequarem ao que eles determinam como objetivos.

Esse tipo de iniciativa tem como princípio difundir uma espécie de padronização das políticas educacionais, apagando as diversidades e a identidade regional. No caso da CNI, ela transfigura a realidade, através da inversão de sentidos e significados dos itinerários formativos, como pode ser visto no excerto abaixo:


O novo Ensino Médio brasileiro abre espaço para a diversificação do aprendizado em cinco itinerários formativos: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e suas tecnologias e formação técnica e profissional. Conserva conteúdos comuns e obrigatórios a todas as escolas (definidos pela BNCC), instituindo currículos por áreas do conhecimento de forma interdisciplinar e transdisciplinar, que tendem a aproximar a realidade dos estudantes às novas demandas do mercado de trabalho e da sociedade do século XXI. (CNI, 2018, p. 20).


A noção de diversidade é atribuída à diversidade de itinerários formativos possíveis de serem ofertados, porém os estudantes brasileiros terão de optar por um deles. A CNI inverte aqui os sentidos, atribuindo ao currículo anterior que dispunha de

um conjunto de disciplinas nas diferentes áreas do conhecimento, o caráter de fragmentado. Porém, tal currículo oferecia uma formação mais sólida, abrangente e diversificada, justamente por não se comprometer apenas com o ensino- aprendizagem de língua portuguesa, matemática e ciências. A liberdade para escolher um caminho formativo não condiz, portanto, com o significado de diversificação.

Ao correlacionar sentido de oportunidade ao “estudante como protagonista de seu futuro, pois ele poderá escolher o itinerário formativo que mais atenda a seus anseios” (CNI, 2018, p. 20), a CNI acaba concebendo a ideia de liberdade de escolher como a liberdade inscrita numa educação já excludente. A ideologia neoliberal da escolha individual torna-se, assim, uma armadilha, pois os resultados da escolha passam a ser de responsabilidade exclusiva do indivíduo que a faz. Caso a opção por um determinado itinerário formativo não resulte na inserção ao mercado de trabalho – esta é a constante justificativa de implementação desse tipo de política –, muito provavelmente, a culpa por tal resultado será do próprio indivíduo que não soube fazer a escolha correta de sua formação.

Cabe observar também que a implementação da BNCC para o ensino médio é justificada pela aproximação entre estudantes, mercado de trabalho e sociedade do século XXI. Há, discursivamente, a intencionalidade de utilizar de forma abstrata a sociedade do século XXI, tanto pela noção de unidade, coesão e homogeneização, quanto pela invocação de uma sociedade estável, inalterável, a-histórica. A CNI constrói a narrativa de que a sociedade do século XXI, através da contínua produção de novos conhecimentos, necessita de atualização curricular permanente, como se não houvesse conhecimentos validados historicamente e que são socializados pelo ambiente escolar a gerações.

A entidade utiliza da educação profissional para organizar o discurso de que o ensino superior é menos importante e até mesmo dispensável, por considerar que o diploma universitário nem sempre gera renda. No excerto abaixo, essa concepção é reforçada:


A reforma do Ensino Médio tem também implicações positivas sobre o ciclo do Ensino Superior. De um lado, porque reduz o incentivo ao ingresso nas universidades como forma exclusiva de obter uma qualificação e se inserir no mercado de trabalho. De outro, porque os alunos que optarem por prosseguir os estudos deverão ingressar no Ensino Superior com competências e habilidades mais aderentes aos requisitos do mercado de trabalho. (CNI, 2018, p. 21, grifos no original).

O que está implícito nesse discurso é que a sobre qualificação das classes trabalhadoras advinda das universidades é considerada como um problema que pode ser evitado. Para a CNI, à maioria da população deveria ser garantida somente a qualificação técnica em cursos de curta duração. Essa discussão remete às contribuições de Kuenzer (2017) sobre o tipo de educação que o modo de produção flexível requer, assim como à análise de Saes (2005) acerca da posição tendencialmente contrária das classes dominantes em relação à sobre qualificação dos trabalhadores e dos limites impostos pelo Estado capitalista ao processo de escolarização, como observamos abaixo:

[...] a submissão da escola pública a esse padrão de funcionamento não se deveu a fatores ocasionais, como a má vontade dos governos ou a inépcia do pessoal escolar, e sim a razões de ordem funcional ou genética. A coexistência, dentro da escola, entre um discurso igualitário – nivelador e uma ação diferenciadora tem, em primeiro lugar, uma explicação funcional. O Estado capitalista, ao criar a escola pública, tem de zelar para que o seu funcionamento preencha as tarefas necessárias à reprodução da divisão capitalista do trabalho: a) encaminhar uma minoria de alunos para os postos dirigentes dentro dessa divisão (isto é, para o trabalho de concepção); b) encaminhar a maioria dos alunos para os postos subalternos dentro dessa divisão (isto é, para o trabalho de execução). Seria incongruente que o Estado capitalista, cujas políticas estão organicamente comprometidas com a reprodução da divisão capitalista do trabalho, implementasse uma política educacional no sentido contrário. Ou seja: cairia em contradição o Estado capitalista que encaminhasse todos os alunos para o desempenho de um trabalho de concepção, pois nesse caso a sobre qualificação chegaria ao seu grau máximo; ou o Estado capitalista que preparasse todos os alunos, simultaneamente, para o desempenho de trabalhos de concepção e de trabalhos de execução, pois nesse caso o Estado capitalista estaria atuando, no plano educacional, como se fosse um Estado socialista. (SAES, 2014, p. 246-247).


O que Saes aponta é que o próprio Estado capitalista não pode admitir a sobre qualificação do conjunto da população, pois caso se orientasse para esse propósito, inviabilizaria a divisão do trabalho tipicamente capitalista entre trabalho de concepção e trabalho de execução.

No excerto abaixo, a CNI utiliza como exemplo os países da OCDE para criticar a distribuição dos cursos de ensino superior, concluindo que há muitos concluintes das áreas das ciências humanas e sociais e pouco na área Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática:

Além do limitado acesso à universidade, o Brasil apresenta outro importante gargalo relacionado à Educação Superior: estima-se que cerca de 64% dos diplomas universitários sejam provenientes das áreas de ciências humanas e sociais e apenas 16% das áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM, sigla em inglês) (OCDE, 2017, p. 72). Nos países da OCDE, cerca de um em cada quatro diplomas provém das áreas de STEM, o que reflete um esforço constante de promoção desses cursos. (CNI, 2018, p. 21, grifos no original).


A sigla STEAM é uma metodologia de ensino que em inglês significa: Science, Technology, Engineering, Arts, Mathematics, ou seja, Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática. O texto do excerto acima mostra que o componente Artes foi suprimido dessa sigla.

Em 2021, a CNI lançou o documento “Educação STEAM: Insumos para a construção de uma agenda para o Brasil”. Na apresentação deste documento, a entidade afirma o seguinte: “internacionalmente, essa agenda tem evoluído de forma exitosa e consistente por meio de ações que integram governo, empresas e comunidade escolar como partes interessadas e responsáveis por alcançar resultados positivos na educação” (CNI, 2021, p. 9). Esse enunciado sobre o conjunto de partes interessadas faz parte do discurso do Fórum Econômico Mundial, que é um dos defensores dessa agenda STEAM. Esse documento produzido pela CNI (2021, p. 9), sobre as metodologias STEAM, aponta que:


Pelo menos dois fatos contam a favor. De um lado, há o Novo Ensino Médio, que abriu as portas para novas abordagens, mesmo sem fazer referência direta ao STEAM. A regulamentação prevê, por exemplo, a aprendizagem baseada em projetos interdisciplinares e voltados à solução de problemas reais, assim como os itinerários formativos, que podem ser a ponte para o STEAM. De outro lado, estão as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação em Engenharia, em vigor desde 2019, que também trazem, em seu cerne, os princípios do movimento.


Portanto, a fresta entreaberta é compreendida como uma oportunidade de inserir esse modelo através da BNCC, ou seja, no sentido de que ela que pode ser a ponte para o STEAM. Esse mesmo sentido de oportunidade está novamente presente, agora em relação à qualidade da educação e possíveis resultados melhores em testes padronizados:

Esses novos marcos, especialmente o do Novo Ensino Médio, podem ser pontos de partida para construir ações estratégicas, de alto impacto para o país. Não é aceitável que se acumulem, ano após ano,

resultados insatisfatórios em avaliações como o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). A baixa qualidade da educação é um entrave ao desenvolvimento econômico e social do Brasil. Essa difícil realidade precisa ser enfrentada, e o movimento STEAM traz contribuições importantes nessa direção. (CNI, 2021, p. 10).


A arquitetura do documento produzido para a eleição de 2018 e também esse outro documento sobre a educação STEAM possuem como eixo estrutural a disputa pelo conteúdo do texto da BNNC, em especial no sentido de dar as orientações fundamentais para o ensino médio e de influenciar sua implementação.

Esse documento da CNI organiza os diagnósticos e as proposições da agenda através de seis blocos, sendo eles: estrutura curricular e metodologias de ensino; formação de professores, salário e carreira docente; composição da oferta de vagas; financiamento, gestão e avaliação; marco regulatório; e educação para a inclusão socioprodutiva. Sobre estrutura curricular, a entidade apresenta as seguintes demandas:


instituições ofertantes e os programas de Educação Profissional. (CNI, 2018, p. 35, grifos no original).


Está sendo demandado que haja uma revisão sobre a política de financiamento, visando equiparar os gastos entre educação básica e ensino superior. Sobre a educação básica, o discurso que visa priorizá-la, procura jogar a opinião pública contra as universidades públicas. O Banco Mundial, por exemplo, afirmou, em 2017, em um documento sobre o Brasil, que “os gastos públicos com o ensino fundamental e ensino médio beneficiam os pobres mais do que os ricos” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 134). Não é uma inverdade dizer que o acesso à escola pública é muito importante e necessário para os filhos da classe trabalhadora, especialmente se se considera que as classes mais abastadas podem pagar por uma educação de qualidade. Esse discurso é constantemente utilizado pelo agente hegemônico, como apontou Leher (1998, p. 225): “o Banco quer abandonar o ensino superior não para transferir seus recursos para o ensino fundamental, mas pela convicção de que os países pobres estão destinados a ser pouco mais do que fonte de trabalho barata para o Ocidente”. A CNI adota esse discurso para o mesmo fim.

Sobre o marco regulatório, a CNI parte da compreensão de que a empregabilidade está ligada à sua aderência às reais necessidade das empresas. Ou seja, novamente a qualificação e a requalificação são condicionadas às exigências de um tipo específico de atividade laboral.


A empregabilidade decorrente dos programas de aprendizagem está ligada à sua aderência às reais necessidades das empresas, mediante processos de qualificação relacionados às atividades voltadas ao negócio da empresa. Assim, o aprendizado resultaria em capacitações profissionais em áreas onde existe, de fato, demanda por trabalhadores com uma formação específica, vinculada à área-fim de atuação da empresa e não às áreas de apoio. (CNI, 2018, p. 29, grifos no original).


Essa concepção está impregnada por aquilo que Kuenzer (2017) concebeu como a pedagogia da acumulação flexível. O signo ideológico empregabilidade está vinculado ao ideário da competitividade, no qual o conhecimento é importante apenas na relação direta com o ofício demandado pela empresa.

Ao se referir, no último bloco, à educação para a inclusão socioprodutiva, os objetivos dos industriais voltam a ser explícitos: a defesa do aumento da produtividade e da competitividade é um signo que exerce o papel de força centrípeta. Junto disso,

estão postos os interesses gerais da sociedade: o aumento dos níveis salariais, o bem-estar da população, que desempenham o papel de força centrífuga. Para atingir tais objetivos, o meio encontrado é o sistema educacional: “A educação tem impactos expressivos sobre a produtividade, a competitividade, os níveis salariais e o bem-estar da população, relacionando-se também, de maneira mais imediata, com as possibilidades de inclusão socioprodutiva” (CNI, 2018, p. 31).

Nesse contexto educacional, a BNCC tem, na visão da indústria, o potencial de servir aos interesses da agenda da competitividade. Os “benefícios” da aprovação e implementação da reforma do ensino médio elencados pela CNI são todos de ordem profissional, como: empregabilidade, desenvolvimento de habilidades e competências, aumento da renda, adaptabilidade etc. De acordo com a entidade, esses “benefícios” de ordem pessoal geram lucros, aumentam a produtividade e a competitividade da indústria.


As estratégias de parceria público-privadas


Além de ser uma das expressões da ação empresarial, a BNCC é encarada também como uma possibilidade de dirigir o processo de implementação, disputando sentidos e imprimindo a agenda da competitividade como orientação ideológica, forjando o consenso e construindo parcerias público-privadas. Esse artigo destaca três iniciativas: Sistema S, SENAI, e Escola S.

O Sistema S é composto por nove entidades: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), Serviço Social do Comércio (SESC), Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP), Serviço Social do Transporte (SEST),Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e Serviço Social da Indústria (SESI), as duas últimas ligadas à Confederação Nacional da Indústria. A partir do Sesi-Senai, o Sistema S vem desenvolvendo parcerias com secretarias municipais e estaduais de educação para a implementação da BNCC.

O SENAI, integrante do Sistema S, anuncia em seu site - como produto comercial -, a parceria entre SENAI e escolas para implementar a BNCC do ensino

médio. Na página inicial, está o slogan: “SENAI: O PARCEIRO IDEAL DA SUA ESCOLA NO NOVO ENSINO MÉDIO: Forme o cidadão e, também o profissional” (SENAI, 2021). Esta entidade oferece propostas customizadas para atender as demandas individuais de cada instituição de ensino. O grande destaque está na oferta do itinerário formativo do ensino profissionalizante, pois o SENAI é o maior complexo privado de educação profissional da América Latina. O discurso de “Entenda: novos tempos, novas regras”5 implica sentidos de que há a necessidade das escolas se adequarem às novas realidades, e o SENAI sabe como fazer e pode ajudar.

Quando o site apresenta as vantagens em fechar parceria com o SENAI recorre ao histórico conhecido e reconhecido que tem na educação profissionalizante, e ao desenvolvimento de competências para a inovação. A novidade discursiva nesta propaganda está em anunciar que a escola que oferece a Formação Técnica e Profissional sai na frente na concorrência e dá mais oportunidade para os seus alunos(SENAI, 2021). Um dos sentidos mais ocultos do discurso da Lei nº 13.415/2017 é escancarado, a concorrência entre as escolas para adequar os itinerários formativos à demanda da comunidade escolar. Dessa maneira, a educação passa a ser uma mercadoria a ser comercializada.

A Escola S é uma iniciativa da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), a partir da união do SESI e do SENAI, está presente nas cidades de Blumenau, Brusque, Chapecó, Concórdia, Criciúma, Florianópolis, Itajaí, Jaraguá do Sul, Joinville, Lages, Rio do Sul, São Bento do Sul, São José, São Miguel do Oeste, Tijucas, Tubarão, Videira, e foi apresentada ao público no dia 16 de setembro de 2020. O site da FIESC publicou uma matéria falando sobre o lançamento da Escola S, onde consta uma entrevista com o Diretor Fabrizio Machado Pereira que afirma o seguinte:


Queremos ser reconhecidos como a melhor rede de educação básica de Santa Catarina. Para isso teremos diversas estratégias, como a ampliação de oferta do ensino regular, principalmente em ensino fundamental. Vamos implantar ações para alavancar o desempenho dos estudantes na Prova Brasil e no ENEM; inserir tecnologias e o ensino STEAM na nossa proposta curricular; e focar o desenvolvimento de competências socioemocionais dos estudantes, com apoio do Instituto Ayrton Senna. (FIESC, 2021).



5 Disponível em: https://www.portaldaindustria.com.br/senai/canais/educacao-profissional/novo- ensino-medio/#anchor-oquee. Acesso em 26 de junho de 2022.

Fabrizio Pereira destaca que a Escola S pretende ser reconhecida como a melhor rede de educação básica de Santa Catarina. Esse objetivo tem como prerrogativa apontar a ineficiência do Estado, e colocar as iniciativas da ação empresarial como solução dos problemas educacionais. Esse reconhecimento da melhor escola será medido através da orientação para implantar ações para alavancar o desempenho dos estudantes na Prova Brasil e no Enem. Os dados quantitativos de notas, prêmios, aprovações em vestibulares e inserção no mercado de trabalho são os que, no contexto da ideologia da competitividade, trazem esse reconhecimento. O diretor da FIESC também afirma que essa “é uma proposta de escola para Santa Catarina, mas já há projetos para nacionalizá-la. Como o Brasil é muito grande, a gente precisa adaptar essas necessidades ao público de cada região” (FIESC, 2021). Outro aspecto importante a ser destacado é a sinalização de apoio do Instituto Ayrton Senna, outro aparelho privado de hegemonia que esteve empenhado na

elaboração, aprovação e implementação da BNCC.

Em outra entrevista, dessa vez concedida ao Jornal NSC Total (2021), Fabrizio Pereira afirmou que:

Somos muito cientes que não daremos conta dessa demanda, mas precisamos, ao invés de reclamar, ser referência para que a escola pública consiga se espelhar, adotar essas práticas, e que a gente ajude a elevar o nível, que a gente suba a barra em termos de performance dos nossos alunos, na educação básica. Essa é uma das nossas pretensões na nossa proposição. A gente percebe há muito tempo o departamento nacional do Sesi vem trabalhando com isso, mas a gente tentou descer no nível operacional. Fizemos vários benchmarkings em nível internacional. A Escola S pretende adotar metodologias ativas para o aluno ser o principal agente na sua trajetória acadêmica e, no caso do professor, orientá-lo para ser um guia atento nas formações que podem ser trilhadas pelo estudante. Ele é um coach.


Nessa fala do diretor da FIESC, o discurso da ineficiência do Estado e da escola pública aparece com mais força quando ele afirma que a Escola S deseja ser referência para que a escola pública consiga se espelhar, adotar essas práticas, e que a gente ajude a elevar o nível. O investimento e inciativa de criar uma escola se justifica tanto pelo caráter intelectual dirigente do setor industrial, de influenciar a rede pública de educação através do exemplo, mas, também, como visto nas iniciativas do Sistema S e do SENAI de consolidar parcerias público-privadas, que além de

contribuírem para disseminar a ideologia da agenda competitividade, se convertam em angariadoras de recursos públicos.

O impacto das metodologias ativas já foi discutido ao longo desse artigo, mas a resposta do diretor da FIESC traz um elemento importante, o papel que o professor tem nessas concepções pedagógicas. Nesse caso, o professor é qualificado como um coach, mas também poderia ser chamado de facilitador, de mediador, de incentivador, dentro da perspectiva das metodologias ativas. Ou seja, há o sentido de desprofissionalização, onde o professor não possui a responsabilidade pela socialização do conhecimento, tornando-se apenas um intermediário.


Considerações finais


Nos últimos anos, vimos ocorrer no Brasil um processo crescente de politização das classes e frações de classe, que provocou mudanças importantes em vários domínios da vida social. Nessa conjuntura, as classes dominantes, que são atravessadas por diferentes tipos de fracionamentos, passaram a organizar, elaborar e divulgar de maneira sistemática suas reivindicações no formato de agendas com vistas a disputar de maneira mais coesa e organizada os rumos da política estatal. Com isso, assistimos a uma ofensiva política da burguesia no país que resultou no novo ciclo de aprovação de reformas constitucionais de orientação neoliberal. A aprovação da BNCC é parte e é resultante dessa ofensiva política, assim como uma série de outras reformas, tais como: a Emenda do “Teto de Gastos” (Emenda Constitucional 95) e as reformas trabalhista e previdenciária, que reforçam e consolidam as bases institucionais neoliberais no Brasil, criando dificuldades e muitos obstáculos para os governos que mesmo que legitimados pelas urnas, consigam adotar políticas que se oponham ou visem reformar o neoliberalismo. Essa crescente politização da sociedade brasileira tem se manifestado principalmente por meio das ações das frações da classe burguesa e de camadas superiores da classe média. Isso se deve, em grande medida, às sucessivas derrotas sofridas pelos setores progressistas e populares, que hoje se encontram numa posição política defensiva.

A imposição da agenda global de competitividade através do Fórum Econômico Mundial, determinando as métricas que ranqueiam as economias dos países, orientando investimentos e interferindo na divisão internacional do trabalho, visa a

subordinação dos Estados dependentes aos Estados imperialistas e/ou centrais. Nesse sentido, a CNI cumpre a função de intelectual orgânico que organiza e dirige a fração de classe industrial, desempenhando importante papel através da elaboração de um conjunto de ideias, concepções, valores e proposições para garantir a hegemonia ideológica desta fração de classe no debate nacional. Tal posição da CNI na conjuntura brasileira nos remete a uma das reflexões de Gramsci (2000b, p.15), para quem:


se não todos os empresários, pelo menos uma elite deles deve possuir a capacidade de organizar a sociedade em geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, até o organismo estatal, tendo em vista a necessidade de criar condições mais favoráveis à expansão da própria classe [...].


A aprovação da BNCC em 2017 se projeta como o programa da CNI para a educação básica. A partir da assimilação do discurso da e sobre a BNCC, a CNI passa a intervir na disputa dos sentidos discursivos da política educacional, bem como de sua implementação. A CNI tem criado estratégias de difusão da agenda da competitividade e utilizado seus recursos econômico, estrutural e político para se tornar uma espécie de modelo de implementador do novo ensino médio através das políticas de Estado. Por isso as iniciativas do Sistema S, do SENAI e da Escola S, que fomentam parcerias público-privadas com escolas, municípios e estados em todo o país são interessantes para a entidade.


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