V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


O PROJETO DA REDUCA PARA AS POLÍTICAS DE FORMAÇÃO INICIAL NA AGENDA DO CAPITAL NA AMÉRICA LATINA1


Lívia Vitória Cavadas Herdade2 Vanessa Santana dos Santos3


Resumo

Este artigo analisou as políticas de formação inicial expressas na agenda do capital para a América Latina no projeto da Rede Latino-americana de Organizações da Sociedade Civil pela Educação (Reduca), entre os anos de 2018 a 2021. Fundamentou-se na perspectiva de Estado Ampliado (GRAMSCI, 2007) e como instrumento de pesquisa baseou-se na análise documental para apreensão do papel da rede na execução do projeto hegemônico. Constatou-se que a agenda do capital para a formação inicial está subsidiada em modelar o comportamento com objetivo da conformação e da desintelectualização dos docentes (SHIROMA, 2003b).

Palavras-chave: Reduca; Formação inicial; Políticas de formação docente; Mundialização da educação; Organismos internacionais.


EL PROYECTO DE REDUCA PARA LAS POLÍTICAS DE FORMACIÓN INICIAL EN LA AGENDA DEL CAPITAL EN AMÉRICA LATINA


Resumen

Este artículo analizó las políticas de formación inicial de agenda del capital para América Latina en el proyecto de la Red Latinoamericana de Organizaciones de la Sociedad Civil por la Educación (Reduca), entre 2018 y 2021. Se basó en la perspectiva del estado ampliado (GRAMSCI, 2007) y, metodológicamente, en el análisis documental para aprehender el papel de la red en la ejecución del proyecto hegemónico. Se constató que la agenda del capital para la formación inicial está subsidiada en el modelo del comportamiento con el objetivo de conformación y desintelectualización de los docentes (SHIROMA, 2003b).

Palabras clave: Reduca; Formación inicial; Políticas de formación docente; Mundialización de la educación; Organismos internacionales.


THE REDUCA PROJECT FOR INITIAL FORMATION POLICIES IN CAPITAL AGENDA IN LATIN AMERICA


Abstract

This article analyzed the initial formation policies expressed in the capital agenda for Latin America in the project of the Latin American Network of Civil Society Organizations for Education (Reduca), between 2018 and 2021. It was ground on the Integral State perspective (GRAMSCI, 2007) and as a research instrument it's based on document analysis to apprehend the role of the network in the execution of the hegemonic project. It was found that the capital agenda for initial training is based on modeling behavior with the objective of conforming and disintellectualizing teachers (SHIROMA, 2003b).

Keywords: Reduca; Initial formation; Teacher training policies; Global education; international organizations


1 Artigo recebido em 16/03/2022. Primeira avaliação em 09/05/2022. Segunda avaliação em 09/05/2022. Aprovado em 20/05/2022. Publicado em 21/07/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.53531.

2 Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Membro do Laboratório de Investigações em Estado, Poder e Educação (LIEPE/UFRRJ).

E-mail: liviaherdade@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0102582400152727. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6095-6878.

3 Doutoranda e Mestra em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (2017). Docente do Departamento de Ciências Humanas do Colégio de Aplicação João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Membro do Laboratório de Investigações em Estado, Poder e Educação (LIEPE/UFRRJ) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Política Educacional e Gestão Escolar (GEPPEGE/Unifesp). E-mail: vanessa.santana@ufjf.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1382510508695083. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0788-0875.

Introdução


Este artigo pretende discutir as políticas de formação inicial expressas na agenda do capital para a América Latina por meio do projeto engendrado pela Rede Latino-americana de Organizações da Sociedade Civil pela Educação (Reduca). Compreende-se que as contrarreformas educacionais4 na América Latina e Caribe deflagradas nos anos de 1990 tiveram como centralidade a universalização do ensino no sentido do acesso à escolarização e na sequência conduziu-se a “reforma” da formação docente com enfoque no papel desempenhado pelos professores da educação básica pública.

As mudanças nos processos de produção e acumulação do capital, correlacionadas às lutas de classes no final do século XX e a formação de uma nova sociabilidade, levaram a mudanças nas estruturas econômicas, sociais e políticas. A crise orgânica do capital5 de 1970 ascendeu um novo projeto de dominação social colocando em xeque os processos de produção taylorista/fordista, os quais sofrem alterações e demarcam-se novos modos de relações sociais de produção com o regime de acumulação flexível ou toyotista relacionado ao novo sistema de regulamentação política e social (HARVEY, 2008).

O toyotismo parte da produção sob demanda, melhor aproveitamento do tempo (jus in time) que inclui além da produção de fato, o controle da qualidade, do estoque e do transporte. De acordo com esse novo processo de produção, o trabalho deveria se efetivar no menor tempo com melhor qualidade com a inserção de novas tecnologias produtivas e novas formas de organização de trabalho em que este baseia-se na flexibilidade dos produtos, dos padrões de consumo e do próprio trabalho, surgindo novos setores de produção e tipos de mercados e serviços financeiros (HARVEY, 2008). O trabalho se estrutura então, nesta perspectiva, na “multifuncionalidade”, “polivalência”, “trabalho em equipe”, “gestão participativa”. Segundo Antunes (2009, p. 54), esses enunciados apresentam no âmbito discursivo


4 O termo contrarreforma usado em relação à educação com base nos estudos de Coutinho (2008), que se pauta nos estudos gramscianos. O autor compreende que as “reformas” estão presentes na agenda neoliberal e apesar de se autodenominarem “reformas”, na verdade, objetivam a restauração das condições próprias do capitalismo. Portanto, entende-se que a utilização de contrarreforma(s) expressa(m) a predominantemente conservação em detrimento do novo.

5 A crise orgânica se diferencia das crises conjunturais por ser mais ampla e profunda e acontece quando os “[...] elementos ‘variáveis e em desenvolvimento’, que determinam as crises conjunturais, até o momento em que também os elementos ‘relativamente constantes’ sejam por estes modificados, ocorrendo assim a crise orgânica” (GRAMSCI, 1999, p. 447, C 8, § 216).

o “envolvimento participativo”, mas denotam uma participação alicerçada nas condições de trabalho alienado e estranhado.

Essas reconfigurações não ficaram restritas à divisão social do trabalho, mas foram desencadeadas no plano político e social a fim de atender as demandas do capital que se tornou predominantemente financeiro e foi mediado “numa nova configuração do capitalismo mundial e nos mecanismos que comandam seu desempenho e regulação”, ocorrendo a mundialização do capital6 (CHESNAIS, 1996, p.13).

A mundialização do capital a nível político teve estreita relação com as forças sociais da esfera financeira, pelos conflitos de interesse dessa fração e pelas relações de força com a classe trabalhadora, então, com a evidência de um novo projeto que assumiu a direção e “as pressões dentro e fora da aparelhagem estatal foram sendo absorvidas e transformadas em políticas públicas favoráveis aos interesses dominantes” (MARTINS, 2009, p. 48). Nesse sentido, na busca da retomada das bases de acumulação e reprodução do capital, ocorreu a recomposição da burguesia mundial e a refuncionalização do Estado que passou do chamado Estado de Bem- Estar Social para um Estado Neoliberal que se fundamentou, principalmente, em iniciativas privatizantes e gerencialistas.

Nessa nova fase de acumulação do capitalismo, a financeirização da economia e as relações de produção da existência demandaram do capital ações baseadas na internacionalização com a finalidade de “garantir concomitantemente a reprodução ampliada do capital e a reprodução das relações de dominação burguesa sobre o conjunto das sociedades contemporâneas” (NEVES; PRONKO, 2008, p. 91). Nesse contexto, a educação não fica isenta da reprodução ampliada do capital e passa a ser indicada como um instrumento de mudanças sociais, inclusive, como responsável por superar as desigualdades sociais e reduzir a pobreza. Isto é, com a redimensão do papel das políticas sociais, do mesmo modo, a educação é redirecionada para adesão ao projeto neoliberal.

No conjunto das contrarreformas da educação dos anos de 1990, orientações foram elaboradas por organismos internacionais que têm a função de garantir o triunfo


6 Chesnais (1996, p.34) assevera que a mundialização do capital é o resultado de dois movimentos conjuntos, relacionados e distintos: i) longa fase do capitalismo sucedida sem interrupções desde de 1914; ii) refere-se “às políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o início da década de 1980, sob impulso dos governos Thatcher e Reagan”.

do capital, das grandes corporações e empresas, dos detentores das riquezas e das atividades de poder, além de dar instruções às reformas indicadas aos países em desenvolvimento (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2003). No âmbito discursivo, vislumbra-se os jargões do capital, tais como “eficácia”, “eficiência”, “competência”, “qualidade”, “excelência” em relação aos docentes. Atualmente, essa retórica ainda permanece, bem como aparecem outros aspectos em relação aos professores da educação básica pública, alegando que eles que devem ter “boas práticas”, “práticas exitosas”, “metodologias ativas” e desenvolver nos estudantes além das competências cognitivas, as socioemocionais (OCDE, 2018; BANCO MUNDIAL, 2018). Assim, produz-se o prisma da qualidade da educação, indicando que esta deveria ser medida, avaliada e monitorada pelos sistemas escolares. Nos preceitos do capital, esses instrumentos de desempenho auxiliariam na melhoraria da qualidade de vida e das condições sociais e econômicas das pessoas por meio da formação docente atribuída aos professores.

Sendo assim, nas disputas travadas entre as classes e frações de classe, as políticas de formação inicial latino-americanas são expressões das adesões burguesas dos países da região, cada qual com suas especificidades históricas. Esses fatores têm relação com o projeto político e ideológico dos organismos internacionais, do empresariado e das grandes corporações nacionais e mundiais. Sabe-se que a classe dominante tem fundamental interesse na formação dos trabalhadores e, por isso, não deixa escapar, em certa medida, a tentativa de domínio quanto à formação de professores. Acerca do assunto, concorda-se que:


A burguesia não desconhece a substancialidade do professor na difusão de suas ideias, na formação da classe trabalhadora e na manutenção das condições de produção e reprodução da sociabilidade capitalista, assim como o vê como “portador” de poder de compra de certificação – caso não tenha, ela ou o Estado financiarão (EVANGELISTA, 2021, p. 181).


Nesse sentido, quanto à formação inicial, impulsionou-se, ainda nos anos de 1990, um processo que Maués (2014, p. 49) denominou de “universitarização”, fenômeno que ocorreria fora do âmbito universitário, em nível superior, porém:


[...] sem obedecer necessariamente aos princípios básicos que caracterizam a instituição universitária desde o seu surgimento no século XIX, ou seja, o ensino ligado à pesquisa, à autonomia em

relação a ensino e pesquisa e à socialização dos conhecimentos (MAUÉS, 2014, p. 49).


Nos últimos anos, observa-se, de certo modo, na América Latina, a formação inicial sendo retirada do lócus universitário. Como exemplo, destacam-se as políticas de formação inicial na Argentina em que a certificação do ensino superior para os docentes foi direcionada, em certa medida, para Institutos de Formação Docente, após a publicação da Ley de Educación Nacional, nº 26.206, publicada em 2006 (ARGENTINA, 2006), e no Brasil em que a maior quantidade de matrículas das licenciaturas está nas instituições de ensino superior privadas, muitas das quais não inseridas no ensino superior7, com intenso crescimento do ensino à distância8 (EVANGELISTA; SEKI; SOUZA, 2019).

Salienta-se também que as contrarreformas educacionais ocorridas nos últimos 30 anos foram realizadas por meio de uma articulação empresarial que pode ser expressa, nos últimos anos, pela Reduca (LAMOSA, 2017), composta por 16 países da América Latina e suas respectivas organizações9.

A Rede foi criada em 2011, em Brasília, no Encontro Latino-americano de Organizações da Sociedade Civil pela Educação, parte do congresso promovido pelo Todos pela Educação, denominado Educação: uma agenda urgente (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2011), entre 13 e 16 de setembro, no auditório do Conselho Nacional de Educação (CNE). A Reduca denomina-se como uma rede livre para troca de experiências entre os seus membros; que promove o desenvolvimento de projetos em conjunto em prol de uma mobilização da região latino-americana para a intervenção nas políticas públicas com a finalidade de propor soluções para os desafios na educação dos referidos países (REDUCA, S/D).

Diante dos aspectos elencados, o objetivo geral deste artigo é analisar as políticas de formação inicial, no projeto da Reduca, entre 2018 e 2021, buscando compreender os determinantes que incidem na educação da América Latina. Este


7 Trata-se aqui de institutos de formação, centros de educação, entre outros.

8 Para mais detalhes sobre a distribuição de matrículas das licenciaturas de ensino superior no Brasil e os conglomerados que as dominam, consultar Seki et. al. (2019).

9 Argentina “Proyecto Educar 2050”; Brasil “Todos pela Educação”; Chile “Educación 2020”; Colômbia “Fundación Empresarios por la Educación”; Costa Rica “Fundación Omar Dengo”; Equador “Grupo FARO”; El Salvador “Fundación Empresarial para el Desarrollo Educativo”; Guatemala “Empresarios por la Educación”; Honduras “Fundación para la Educación Ernesto Maduro”; México “Mexicanos Primero”; Nicarágua “Foro Educativo Nicaragüense ‘EDUQUEMOS’; Panamá “Unidos por la Educación”; Paraguai “Juntos por la Educación”; Peru “Asociación Empresarios por la Educación”; República Dominicana “Educa Acción Empresarial por la Educación”; Uruguai “EDUY21”.

trabalho está subsidiado na perspectiva de Estado Ampliado (GRAMSCI, 2007) como ferramenta teórico-metodológica (MENDONÇA, 2014). De acordo com Gramsci (2007), o Estado é dialético, articulado indissociavelmente entre as dimensões da sociedade política que tem o papel coercitivo, buscando a manutenção da ordem social por meio político, jurídico e legal, considerando que a dominação da sociedade política pode acontecer mediada pela violência e repressão. A sociedade civil é o âmbito da produção e da reprodução de consenso em que se tem o intento da construção da hegemonia por meio dos seus aparelhos privados de hegemonia vinculados às classes sociais. A sociedade civil é a arena da luta de classe, onde se constrói a direção intelectual e ideológica da sociedade.

Este texto tem como base epistemológica o materialismo histórico e como instrumento de investigação a pesquisa bibliográfica e a análise documental, primordialmente, do Mapa de Brechas de Evidencia sobre formación docente en América Latina (MBE) (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021) e seus correlatos10, para compreender a agenda do capital para a formação inicial nos materiais da Reduca. Acerca da análise documental, é fundamental indicar que:


[...] as fontes [documentais] possuem objetividade, mas elas não se apresentam claramente. Documentos derivam de determinações históricas que devem ser apreendidas no movimento da pesquisa, posto que não estão imediatamente dadas na documentação (EVANGELISTA; SHIROMA, 2019, p. 111).


O artigo está organizado em três partes, a saber: uma discussão a respeito da formação docente na mundialização da educação, apresentando as recomendações dos organismos internacionais, Unesco, Banco Mundial e OCDE, de forma breve, desde o conjunto das contrarreformas educacionais; o projeto hegemônico da Reduca para a educação e as relações dessas organizações com as agências multilaterais e fundações empresariais; e, por fim, a formação inicial no projeto da Reduca, considerando os determinantes que repercutem na educação básica pública.



10 Produções no site da Reduca estão relacionadas com o MBE, produzido pela Reduca e Fundación Sura, então, apesar de se ter o foco na análise do documento, considera-se também o material produzido no site da organização. Os documentos de análise têm o recorte temporal de 2018 a 2021, mas foram utilizadas produções da rede de 2014 a 2017 para sua contextualização.

Recomendações para a formação docente na mundialização da educação


Este tópico tem o intuito de depreender as recomendações em prol da formação docente na mundialização da educação. Para Melo (2003), a mundialização da educação é realizada como um processo hegemônico de direcionamento das políticas da educação, sendo elas elementos do processo histórico da mundialização do capital. Nesse caso, consiste em um processo global que tem vertentes regionais, constituintes da internacionalização e acumulação capitalista, assim como é um processo que é cimentado, conforme o discurso de integração do mundo e região, e, concomitantemente, torna-se excludente como incide a própria história do capitalismo (ibidem).

Considerando a condução realizada pelos organismos internacionais, Banco Mundial, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), é importante circunscrever o marco das contrarreformas educacionais. A Conferência Educação para Todos foi realizada em 1990, em Jomtien, na Tailândia com patrocínio e cooperação do Banco Mundial (BM) e organizações vinculadas à Unesco, tais como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) com a participação de 155 países signatários.

Dessa Conferência, originou-se a ‘Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem’ (UNESCO, 1990) que definiu uma agenda em torno da “Educação para Todos” que, segundo o documento, abrangeria a universalização do acesso à educação e promoção à equidade; enfoque na aprendizagem; aumento dos meios e raios de atuação da educação básica; ambiente adequado de aprendizagem e fortalecimento de alianças entre a escola, famílias, órgãos do governo, grupos religiosos, comunidades locais e com o setor privado (ibidem).

As contrarreformas da educação, ainda na década de 1990, no que tange à formação docente, promoviam estratégias e ações de qualificação dos professores para que o ensino fosse de acordo com os padrões definidos pelos objetivos de mercado (GANDIN; HYPOLITO, 2003), alegando que os professores deveriam se

profissionalizar, porque a falta de formação seria um impeditivo para a melhoria da educação.

Ressalta-se também, de acordo com Shiroma (2003), que os vocábulos em torno da formação docente foram variados e apresentados sob o ângulo do senso comum, de forma positiva, para criar o consenso da necessidade de um novo perfil de professor, profissionalizado, que deveria ser competente e qualificado. Shiroma (2003) destacou os termos “competência”, “excelência”, “qualidade”, “mérito”, “produtividade” e “profissionalização” e, dentre eles, a profissionalização foi se afirmando como um dos conceitos centrais no conjunto de reformas latino- americanas, movimento identificado em 1993 na V Reunião do Comitê Regional Intergovernamental do Projeto Principal de Educação da América Latina e Caribe (PROMEDLAC) quando foi colocado como uma das condições para o bem-estar e eficácia social latino-americanos esforços para o alcance da profissionalização e o protagonismo da escola e dos professores (PROMEDLAC, 1993).

A proposta de profissionalização docente era um recurso da burguesia para adaptar os docentes à reestruturação produtiva e aos preceitos do neoliberalismo. Ou seja, a política de profissionalização de professores, da forma pela qual foi sendo estabelecida, “tem por objetivo não o aumento da qualificação do quadro do magistério, mas, sim, a sua desintelectualização para, desse modo, torná-los pragmáticos, diminuindo-lhes a capacidade de intervenção consciente” (SHIROMA; EVANGELISTA, 2004, p. 535).

Na esteira da Conferência “Educação para Todos” (UNESCO, 1990), o Relatório ‘Educação um tesouro a descobrir: Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI’ (DELORS, 1996) colocou os professores como agentes das mudanças necessárias para o século XXI e na centralidade das “reformas da educação”. Segundo o documento, a “reforma educacional” não teria sucesso sem a contribuição dos docentes. Por causa disso, recomendou a necessidade de se priorizar e reconhecer o status docente a fim de desempenhar a “educação ao longo da vida”11, cimentada nos quatro pilares da


11 No âmbito discursivo, a “educação ao longo da vida” na aparência demarca que os trabalhadores estão permanentemente incluídos no que se denomina de “sociedade do conhecimento” por meio de diferentes espaços como casa e trabalho, por exemplo, que formariam para o mercado de trabalho. No entanto, concorda-se com Rodrigues (2014, p. 230) que essa ampliação da formação propiciada em diversos tempos e espaços sociais opera na retórica como um instrumento democrático de possiblidade de acesso à educação, “por isso, pacificadora, que transforma desempregados em “estudantes”, “acalma os ânimos” e “ensina” o sujeito a lidar pacificamente com a incerteza”. Entretanto, segundo a

educação: “aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a viver e aprender a aprender” (ibidem).

O programa de contrarreforma educacional na América Latina, na década de 1990, em relação à formação docente, promoveu um movimento de desqualificação do trabalho dos professores e sustentava que a baixa qualidade da formação inicial teria, de acordo com Shiroma, Moraes e Evangelista (2002), com base no do documento produzido por Castro e Carnoy (1997), supostamente, como solução uma melhor gestão, administração, assistência técnica, objetivos claros e a participação das famílias nas atividades escolares. Nos anos 2000, o documento oriundo do Fórum Mundial de Dakar (UNESCO, 2001) expressou que os professores deveriam assentir com as responsabilidades profissionais que teriam de perpassar, em certa medida, pelos seus pares e a comunidade. Também indicou que os professores deveriam exercer um novo papel docente, pois teriam que preparar os estudantes para a economia emergente fundamentada no conhecimento e tecnologias, criando ambientes estimulantes e participativos para os estudantes (UNESCO, 2001).

Em 2002, na Conferência de Havana, dando continuidade ao Projeto Principal de Educação (PPE), foi criado o Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe (Prelac) que afirmava a intenção de constituir um fórum técnico e político para dialogar e construir alternativas entre todos os agentes sociais para estimular a inovação das políticas educacionais em prol de minimizar as desigualdades sociais (PRELAC, 2004).

Redução da pobreza e das desigualdades sociais foram slogans também utilizados em relação à formação docente quando foi atribuído ao professor o papel de protagonista12 das contrarreformas educacionais. No momento em que foi colocado como indispensável às mudanças, aponta-se para o fato de que deveria prover uma educação de qualidade e, ao mesmo tempo, seria responsabilizado pelas não aprendizagens e pelas mazelas sociais. Dessa forma:


A inversão ideológica se torna evidente na equação redutora: professor mal formado + escola de má qualidade + aluno mal preparado = pobreza nacional! A solução apresentada é simples:


autora, “ao justificar a educação ao longo da vida, desqualificam-se os valores produzidos na escola e pela escola; clama-se pelo cidadão ativo, pelas responsabilidades compartilhadas e nega-se o ensino estandardizado. Essa estratégia é apresentada, portanto, como solução para a crise nas relações sociais, para ineficiência da escola, para o desemprego” (Ibidem).

12 Alves (2017) afirma que o termo protagonista e seus similares foram bastante utilizados nas formulações da Unesco nos anos 2000.

preparar adequadamente o professor + reestruturar a escola + qualificar a mão-de-obra = desenvolvimento nacional (SHIROMA; EVANGELISTA, 2014, p. 13).


As desigualdades sociais são provenientes dos antagonismos das classes sociais, da materialidade das relações de produção, assim como “a educação, a saúde etc. são produtos das relações entre as classes sociais e que buscam, dialeticamente, reproduzir a ordem social da qual emergem” (FRIGOTTO, 2015, p. 217).

O Banco Mundial, por sua vez, publicou o documento ‘Aprendizagem para Todos: Investir nos Conhecimentos e Competências das Pessoas para Promover o Desenvolvimento’ (BANCO MUNDIAL, 2011), explicitando que o alcance da aprendizagem para todos não envolveria apenas o acesso à escolarização, mas incluiria a aprendizagem. Assim, ocorreu um deslocamento do “Educação para Todos” para a “Aprendizagem para Todos”. No léxico tanto do Banco Mundial quanto da OCDE, os professores devem ser eficazes e eficientes para a garantia da qualidade da educação e da vida dos estudantes. Nesse sentido, no documento Políticas docentes efectivas: Conclusiones del informe PISA (OCDE, 2018), essa agência multilateral defendeu que:


Melhorar a eficácia, eficiência e equidade na educação depende, em grande medida, de assegurar que aqueles que pretendem dedicar-se à docência sejam pessoas competentes, que o seu método de ensino seja de boa qualidade e que todos os estudantes tenham acesso a uma educação de excelência (OCDE, 2018, p. 17).


O que seria essa educação excelente? Quais métodos de ensino são entendidos como de boa qualidade? Quais propostas dessas agências são apresentadas para a melhoria dessa eficácia e eficiência? Essas indagações direcionam para pensar como são as orientações para a formação inicial na América Latina.

No relatório do Banco Mundial ‘Aprendizagem para realizar a promessa da educação’ (BANCO MUNDIAL, 2018), a “solução” para se adquirir professores eficazes é corrigir as denominadas falhas que o documento apontou ser advinda do desenvolvimento profissional em que, em sua maioria, é inconsistente e excessivamente teórico. Na perspectiva do banco, os sistemas educacionais necessitam de instrumentos eficazes para direcionar e motivar os professores. O Banco Mundial, na referida produção, ainda destacou que “essas falhas podem ser

iluminadas por meio de modelos de comportamento humano” (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 131).

Assim sendo, compreende-se que o Banco Mundial tem recomendado que as práticas docentes devem inserir os modelos mentais e que eles influenciam as escolhas das pessoas e inclusão dos resultados sociais (BANCO MUNDIAL, 2015). O Banco Mundial tem concentrado sua atenção para disciplinar as condutas e ações da população para que haja a aceitação do trabalho precarizado sem reações críticas ou contraposições. De acordo com Pronko (2019, p. 168), “esses enfoques vêm ao encontro de uma lógica baseada nas aprendizagens, não necessariamente escolares, e permitem a disseminação de iniciativas tópicas de intervenção para amenizar a pobreza”.

Nessa lógica, a tentativa da burguesia é conformar os docentes para que as acepções da classe dominante se mantenham hegemônicas na educação. A ideia é que esses docentes com o comportamento modelado13 deveriam também ensinar as competências socioemocionais e precisariam modelar também o comportamento dos estudantes com a finalidade de explorar e expropriar a classe trabalhadora.


Rede Latino-americana de Organizações da Sociedade Civil pela Educação


Este tópico pretende apreender o papel da Reduca e suas articulações na América Latina. A Reduca é um marco da organização empresarial na América Latina em prol da educação, pois na última década tem produzido propostas uniformizantes baseadas na atuação dos empresários em relação ao direito à educação latino- americana, bem como tem direcionado as organizações vinculadas a ela por meio de “exemplos a serem seguidos” (LAMOSA, 2017).

Ressalta-se que na América Latina, de acordo com Martins (2019), os empresários não se atêm à realização de doações de recursos, mas utilizam outras estratégias, sendo elas: se associam às instâncias de poder participando das decisões compondo o Estado; firmam acordos sem, de forma obrigatória, recorrer aos seus capitais e constroem laços orgânicos com a política, transformando-se em agentes considerados indispensáveis para a formulação de políticas e tomadas de decisão.


13 Para um aprofundamento sobre o tema, consultar Pronko (2019).

Os empresários podem ser considerados intelectuais por ter uma atividade organizativa e de direção. Deste modo,


Se não todos os empresários, pelo menos uma elite deles deve possuir a capacidade de organizar a sociedade em geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, até o organismo estatal, tendo em vista a necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão da própria classe; ou, pelo menos, deve possuir a capacidade de escolher os “prepostos” (empregados especializados) a quem confiar esta atividade organizativa das relações gerais exteriores à empresa (GRAMSCI, 2001, p. 15-16 C 12 § 1).


Os empresários como intelectuais orgânicos da classe dominante, por meio dos aparelhos privados de hegemonia vinculados à classe à qual pertencem, elaboram, organizam e difundem concepções de mundo atreladas aos interesses do capital. Nesse sentido, a Reduca é formada atualmente por dezesseis organizações da sociedade civil14, todas promovidas por empresários vinculados a diferentes frações da classe dominante. Na sua constituição, teve apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da União Europeia, assim como coordenação do Todos pela Educação na sua fundação.

O critério para a escolha das organizações foi o desenvolvimento de trabalhos voltados para a melhoria da “qualidade da educação” assentado na performance dos testes padronizados; vinculação entre sociedade civil e governos; experiência na “promoção de programas de fomento à participação empresarial na política educativa de seus países de origem, como o PAEE15 do PREAL16” (MARTINS, 2019, p.100). A rede constituiu-se a partir de um projeto educacional hegemônico que busca atender tanto aos objetivos dos organismos internacionais, quanto aos interesses do empresariado (ibidem). Por meio da incisão na formulação de políticas educacionais, a Reduca colocou como compromisso o de:



14 As organizações que formam a Reduca estão descritas na nota de rodapé 5. Dentre essas organizações, destacam-se o Todos Pela Educação (Brasil), o Educación 2020 (Chile) e o Mexicanos Primero (México), que coordenam a Reduca.

15 O Programa de Aliança Empresa e Educação (PAEE) foi uma aliança entre empresários latino- americanos que buscavam vincular-se ativamente à educação básica de seus respectivos países, direcionando sua ação para a incidência nas políticas públicas (MARTINS, 2019).

16 Compreendemos o Programa de Reforma Educativa na América Latina e Caribe (PREAL) como um intelectual orgânico do capital, que promove um modelo de educação e ideias sobre políticas e reformas educacionais na América Latina. Para Uczak (2014, p. 103), seria uma “versão atualizada da intervenção dos Estados Unidos via [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional] (USAID), na educação latino-americana”.

[...] trabalhar como uma rede no estudo, monitoramento e verificação das metas através de um observatório regional de indicadores, políticas públicas e melhores práticas, bem como dar atenção especial aos trabalhos sobre primeira infância, profissionalização docente e de diretores e o combate ao abandono escolar (REDUCA, 2014).


Apesar de heterogêneos, os grupos de cada país associados à rede buscam construir uma agenda a longo prazo com propostas e objetivos em comum. Ao observar essas agendas, além de notas, manifestos e documentos com os objetivos e o balanço anual feito pelos grupos da rede, nota-se que essa construção tem base nos documentos orientadores produzidos por organizações internacionais, como o Banco Mundial e a OCDE, que compartilham um discurso mercadológico para a educação.

O delineamento das pautas e das ações a serem realizadas nos próximos anos é definido por meio dos encontros organizados pela Reduca. Desde o primeiro, que oficializou sua criação, em 2011, a rede realiza encontros anuais em parceria com os grupos vinculados à rede, com apoio novamente do BID e da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). É notável que o roteiro das reuniões segue a fim de constituírem uma agenda que vai se desenvolvendo ao longo dos anos. Em 2013, o tema foi justamente a necessidade de se estabelecer uma agenda para a educação latino-americana, que sucedeu o encontro acerca da importância de tornar a educação uma prioridade. De 2014 a 2017, eles foram desenvolvendo suas principais pautas até hoje: a capacitação dos professores e dos diretores, educação primária e evasão escolar.

A partir de 2019, a Reduca começou a organizar, juntamente ao BID e à OEI, encontros com Ministros da Educação17 de diversos países da América Latina, como Nicolás Trotta (Argentina) e Marcela Cubillos (Chile), além do representante da França, Jean-Michel Blanquer, que vêm ocorrendo, também, anualmente. O último, realizado em 2021, contou com ministros da educação e intelectuais da sociedade civil de onze países18, como OREALC/UNESCO. A reunião dividiu-se em três pontos


17 Os Ministros da Educação dos seguintes países participaram do encontro de 2019: Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, Guatemala, Nicarágua, Peru, República Dominicana e Uruguai. Abraham Weintraub, Ministro da Educação do Brasil em 2019, não participou do encontro.

18Participaram desse encontro os Ministros da Educação de alguns dos países que a Reduca tem seus representantes, são eles: Argentina, Equador, Colômbia, Peru, Honduras, El Salvador, México, Costa Rica, República Dominicana, Guatemala, Panamá, Uruguai, Chile e Paraguai. Também estiveram presentes a diretora do Escritório Regional de Educação para a América Latina e o Caribe (OREALC/UNESCO Santiago) Claudia Uribe e Marcelo Cabrol, Gerente do Setor Social do BID.

de pautas: 1) ações concretas para a melhoria da qualidade da educação e do retorno ao ensino presencial, devido à pandemia do Corona Virus Disease (COVID-19), concentrando-se na necessidade de transformação curricular com foco nas aprendizagens essenciais; 2) definição de estratégias direcionadas às políticas educacionais para além do período pandêmico, discutindo a necessidade de sistemas educacionais flexíveis, adaptáveis, eficientes e efetivos; e 3) a necessidade de atuação conjunta entre sociedade civil e os ministérios da educação na garantia da educação em toda a América Latina (REDUCA, 2021).

Analisando-se a agenda da Reduca nos últimos anos, nota-se que as pautas vão ao encontro da padronização e do controle docente em nome da solução para uma suposta “crise da qualidade da educação” em toda a América Latina. Em consonância com as ideias difundidas pelos organismos internacionais já mencionados, a rede “culpa” o Estado e os professores pela atual situação da educação latino-americana, difundindo a ideia de que estes “falharam” no provimento de uma educação pública de qualidade (MARTINS, 2019, p. 110).

Assim, alegam que a solução seria intervenção da sociedade civil. Martins (2019) identifica que para a Reduca e seus membros apoiadores, os sistemas educativos latino-americanos devem elaborar uma estratégia conjunta para superar a crise educativa. Desse modo, ao mesmo tempo em que o órgão aponta o problema, também apresenta uma dita solução, criando condições que tornam o momento propício para as mudanças e possibilitando que suas sugestões ascendam à uma agenda regional única” (ibidem, p. 164). A tentativa de assimilação da escola enquanto “fracassada”, em que a única solução seria entregá-la às organizações e às competências administrativas, ou seja, ao capital, é apontado por Santos (2012) como a investida na mercantilização da educação.

A Reduca tem afirmado que esses problemas educacionais giram em torno da formação e da atuação dos professores e dos diretores de escola que está diretamente relacionado à educação primária e à evasão escolar, segundo a rede. Os parâmetros de escolha da pauta giram em torno da:


i) Relevância na priorização do tema nos planos de desenvolvimento e investimento, ii) Relevância nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, iii) Incorporação na agenda internacional de pesquisa, e

iv) Disponibilidade de informação, entendida como a existência de relatórios produzidos por organismos multilaterais, trabalhando

documentos que foram publicados e a preparação de avaliações governamentais (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021, p. 12).


Por meio dos diversos relatórios divulgados durante o ano de 2021 pelas organizações que compõem a Reduca e de parcerias da própria rede com outras organizações, como a produção do relatório ‘Mapa de Brechas de Evidências sobre a Formação Docente na América Latina’, produzido com a Fundação Sura, que será analisado mais adiante neste trabalho, percebe-se, na análise realizada, que a Reduca coleta dados sobre a educação pública, inclusive governamentais, em todos os países em que se faz presente por meio das organizações que a compõem, bem como sistematiza e analisa esses dados a fim de orientar a condução das políticas, programas e reformas educacionais. A partir desse levantamento, oferece soluções a partir de outros levantamentos feitos pelo Banco Mundial, por exemplo, buscando adaptar a educação latino-americana às demandas do capital.

A Reduca consegue esse protagonismo convencendo as pessoas acerca da necessidade de corresponsabilidade pela educação – “todos pela educação” -, apresentando como alternativa a incidência da sociedade civil nas políticas educacionais. Assim, a Reduca reúne-se aos governos de turno a fim de produzir e orientar as políticas públicas educacionais, além de promover reformas de cunho metodológico para orientação da educação nos países em que a rede se faz presente. Concorda-se com Martins (2019, p. 137) quando afirma que essa rede disponibiliza uma plataforma para a reforma empresarial no âmbito educacional. Além disso, tem o foco de incorporar as premissas da classe dominante à educação pública e, concomitantemente, age de “intermediária” com os “[organismos internacionais] OI’s que expressam o padrão de dominação imperialista na América Latina. Sua forma de atuação projeta os empresários como protagonistas na condução das políticas públicas (MARTINS, 2019, p.137).

Assim sendo, verificou-se a articulação da Reduca com os organismos internacionais em que, muitas vezes, as pautas convergem. No entanto, é característico da Rede uma forte atuação difusora da pedagogia empresarial para educação pública. Nota-se a incidência da estratégia de colocar o Estado somente como executor das políticas educacionais e a sociedade civil como contraponto do Estado. De forma apelativa, a Reduca posiciona a sociedade civil no lugar de quem contribui com as políticas sociais. A contrapelo, conforme Fontes (2018), a respeito da sociedade civil:

Gramsci, como um estrategista que procura esclarecer a forma concreta das lutas sociais, não apresenta a sociedade civil (e seus aparelhos privados de hegemonia) nem como espaço por excelência do convencimento e da autonomia (angelical) nem como local de uma concertação maquiavélica pela dominação (o que lhe conferiria um aspecto demoníaco). Ela é um dos ambientes – e quiçá o mais importante, por ser o lócus do Moderno Príncipe, o partido – do embate de classes, em especial através da formação cultural e ideológica e da organização das vontades sociais dispersas (FONTES, 2018, p. 224, grifo nosso).


Outro elemento que é possível destacar na Reduca, principalmente após 2014, é o direcionamento para a formação docente e de diretores de escola, o qual começa a ser um dos enfoques da organização, uma vez que os docentes são intelectuais estratégicos na disseminação da pedagogia hegemônica do capital.


Agenda educacional da Reduca: formação inicial para o capital


Esta seção pretende discutir as acepções da Reduca no que tange à formação inicial docente, dado que uma das pautas da organização é o enfoque nas políticas educacionais para a formação docente. Desde 2014, a Reduca vem direcionando suas propostas para formar professores e diretores escolares. Destaca-se que o foco nos docentes é um dos mecanismos da burguesia, uma vez que eles são intelectuais substanciais na formação da classe trabalhadora, portanto, são conformados para difundir a pedagogia hegemônica do capital na educação.

Apesar de considerar a formação docente, observa-se que os diretores de escola também são associados, de acordo com o documento ‘Super professores e super diretores: estudo de percepção estudantil sobre a caracterização de competências docente e diretivas na América Latina e no Caribe e seus marcos regulatórios’ (REDUCA, 2017a), no qual manifestou que professores, diretores e estudantes seriam peças-chave para as aprendizagens e que o “fator docente” interfere no desenvolvimento delas.

Ainda em 2017, a Reduca publicou o ‘Posicionamento da Reduca para a Reunião Regional de Ministros de Educação da América Latina e do Caribe - E2030: Educação e habilidades para o século XXI’ (REDUCA, 2017b), no qual declara que seria necessário:

Renovar a identidade e o alcance da profissão docente e da liderança escolar para que educadores profissionais sejam agentes eficazes de transformação com o devido apoio, o reconhecimento social, o avanço profissional e econômico garantido por mecanismos igualitários, significativos e transparentes. Que a sua formação inicial e seu desenvolvimento contínuo foque em suas habilidades didáticas, criativas e de construção de e para a diversidade e a incerteza, com demonstrações regulares e o intercâmbio de experiências e recursos (REDUCA, 2017b, grifo no original).


No fragmento supracitado, identifica-se a propagação de que os professores devem ser eficazes junto à ideia de que a formação inicial deveria dar ênfase à criatividade e à troca de experiências entre os pares. No mesmo ano, a Reduca participou do Foro Regional de Políticas Educativas, organizado pela UNESCO. Nesse evento, a proposta da organização foi ressignificar a profissão docente e a liderança escolar para que fossem agentes das mudanças reconhecidas socialmente. A formação inicial foi apontada considerando que essa deveria ser concentrada nas capacidades didáticas, criativas e de adaptação à diversidade e incertezas do século

XXI. Esses elementos são fundamentados na formação pragmática, o que denota um esvaziamento teórico da formação, haja vista que o conhecimento do docente é fundante também na socialização dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade (SAVIANI, 2011).

Em 2021, a rede juntou-se à Fundação SURA para a produção do documento ‘Mapa de Brechas de Evidências sobre a Formação Docente na América Latina’ (MBE) (REDUCA; FUNDAÇÃO SURA, 2021), que apontou a formação dos professores como eixo fundamental para melhoria da educação e da aprendizagem na América Latina. O mapa teve como objetivo:


[...] refletir as práticas marcantes para a tomada de decisão no sistema de ensino e evidenciar as lacunas nas informações sobre a formação de professores, desagregadas em formação prévia ao serviço docente e durante o serviço. Para atingir esses propósitos [...] [o MBE] foi projetado (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021, p. 7).


Criada em 1971 pelo Grupo SURA, a Fundação SURA articula projetos sociais e está presente na Colômbia, no Chile e no México, além de atuar em outros diversos países19 da América Latina por meio de seus projetos e investimentos. O Grupo SURA


19 A Fundação SURA também está presente através de seus projetos e investimentos nos países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, México, Panamá, Peru, República Dominicana e Paraguai.

foi fundado na Colômbia, em 1944, dedicado à atividade de seguros e, hoje, administra diversas empresas do ramo de seguros, previdência e investimentos, além dos grupos Nutresa e Argos, voltadas para o ramo de alimentos transformados, cimento, energia e infraestrutura. A maioria das iniciativas da fundação são voltadas para a educação, com projetos para a educação básica e para o ensino superior, bem como para a formação de professores como líderes20.

A Reduca e a Fundação SURA vêm trabalhando juntas desde 2017 com propósito de um “desenvolvimento sustentável por meio do fortalecimento de capacidades que melhorem as condições educacionais, cívicas e culturais como eixos de transformação social na América Latina” (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021, p.8). Em 2018, essa mesma parceria produziu o documento Aprender es Más: hacer realidad el derecho a la educación en la América Latina (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2018), que, segundo eles, buscou enfatizar a urgente necessidade da união de esforços de toda a sociedade, principalmente da sociedade civil, para preconizar a educação como ponto central para os desenvolvimentos dos países latino- americanos. O documento enfoca na necessidade de garantia da educação, educação ao longo da vida e reforça a dimensão que a formação inicial e continuada dos professores e diretores escolares é substancial nesse processo.

No referido documento, a formação inicial docente foi articulada à seleção de docentes. A indicação foi a de que seria necessário atrair os melhores docentes para a carreira do magistério. Também salientou que esse recrutamento de professores perpassaria um filtro no ingresso nos programas de formação docente, sendo que a saída seria aumentar os requisitos e nível acadêmico para ingressar na formação inicial (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2018).

Para realizar esse recrutamento, a ideia da Reduca, associada aos organismos internacionais, foi a de criar uma mensuração das aprendizagens, de acordo com as competências cognitivas e socioemocionais, aquelas que modelam o comportamento e adaptam os professores ao capital. Desse modo, a partir dos dados levantados entende-se que os conhecimentos filosóficos, artísticos e científicos são descartados para adaptar a formação psicofísica dos docentes que irão atuar na carreira do magistério.


20 Informações coletadas no site da Fundação SURA, disponível em: https://www.fundacionsura.com/iniciativas/.

O MBE surgiu enquanto um desdobramento desse documento, promovendo recomendações para influenciar as deliberações políticas e os investimentos na América Latina, tendo sido proposto enquanto ferramenta fundamental para tomadas de decisões. Assim, o MBE apresentou-se como um mapa sobre a formação docente, que agrupou informações sobre diversos programas voltados para a área educacional que vêm sendo realizados nos países que são membros da Reduca21.

Segundo as organizações, o levantamento de informações e as discussões decorrentes do documento Aprender es Más: hacer realidad el derecho a la educación en la América Latina (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2018) salientaram o papel dos professores e dos diretores enquanto influenciadores diretos da aprendizagem dos estudantes. Por isso, no MBE, determinaram a formação docente enquanto eixo fundamental para a melhoria da qualidade da educação na América Latina.

No documento, apontam que um dos parâmetros22 para a escolha do tema seria a “incorporação da agenda de investigações internacionais” (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021, p. 12). Posto isso, é significativo considerar que os pressupostos das organizações sobre a “qualidade dos sistemas educacionais dependem da qualidade dos seus professores e que isso está diretamente relacionado com as políticas e orientações” (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021, p. 11) parte dos organismos internacionais — OCDE, Banco Mundial, UNESCO. O documento baseou-se nos pressupostos desses organismos, que buscam difundir a agenda neoliberal na educação, apontando também que as políticas voltadas para a formação dos professores – formação inicial, desenvolvimento profissional, carreira e avaliação docente – devem ser um componente central de todas as “reformas educacionais”, condicionando a melhoria da qualidade da formação dos docentes à melhoria das qualidades das aprendizagens dos estudantes.

Como observado, a formação inicial docente foi um ponto central nessa discussão. O documento apresentou as principais políticas e as adaptações implementadas nos países membros da Reduca, explicitando os contextos que


21 Com exceção da Costa Rica que não integrava a rede na época de produção do documento.

22 Segundo o documento MBE, a escolha do tema sobre formação docente segue os parâmetros de viabilidade técnica e a importância do tema para o contexto nacional e internacional. São estes: 1) pertinência do tema para o investimento e desenvolvimento da área; 2) pertinência dos objetivos para o desenvolvimento sustentável; 3) incorporação da agenda de investigações internacionais; e 4) disponibilidade de informações sobre o tema produzidos por organizações multilaterais, documentos de trabalho e avaliação de governos (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021).

contribuíram para a situação atual e os programas que vêm trazendo melhorias em relação à formação de professores. Como exemplo, cita o Instituto Nacional de Formação Docente (INFOD), o programa argentino, vinculado ao Ministério da Educação, que faz parcerias com a UNESCO e tem a função de articular a política de formação inicial e continuada no sistema educacional.

No que se refere à formação inicial dos professores, levantaram projetos e estudos acerca do processo de admissão à carreira docente na busca de atrair e reter os melhores estudantes para a profissão, que deve estar em conformidade com a qualidade dos programas e das instituições de formação, determinando, assim, na qualidade e na nova identidade dos professores. Os melhores alunos seriam aqueles recrutados em avaliações de desempenho com descritores próprios que buscam um trabalhador de novo tipo. Isso é fundamentado a partir de uma política de controle de desempenho escolar que reflete na formação e no trabalho docente que utiliza como pretexto a defesa da qualidade (SANTOS, 2012).

Outra categoria analisada no documento foram os projetos que intervêm no processo de formação de competências — pedagógicas, didáticas e curriculares —, assim como nos estágios, através do acompanhamento dos futuros professores por mentores.

Accioly e Lamosa (2021) apontaram o controle e a flexibilidade que o currículo por competências tem para realizar ajustes na formação do trabalhador de acordo com as demandas do capital. Tais ajustes ocorrem no âmbito quantitativo, contendo o excesso de escolarização de acordo com a demanda de cada contexto socioeconômico, bem como no âmbito qualitativo, controlando o conteúdo da formação docente e reduzindo a autonomia e a possibilidade do desenvolvimento da produção científica e formação humana na educação escolar.

O documento faz também um levantamento relativo às políticas de formação docente nos quinze países que compunham a Reduca na época, analisando marcos normativos, gastos públicos, recursos humanos e físicos. Como exposto no próprio documento, todas as categorias vão ser criticadas a partir das orientações dos organismos internacionais, bem como as soluções propostas que seguem a mesma linha. Os marcos normativos analisados foram definidos pela UNESCO, que também determinaram as estratégias a serem seguidas para a capacitação docente. Já a

OCDE, delimitou quanto deve ser gasto com os docentes e elencou o quanto os países em que a Reduca se faz presente vem gastando com os professores.

O avanço das políticas neoliberais na educação tem influência da ação contínua desses intelectuais orgânicos na imposição da pedagogia de mercado na educação pública. A padronização do processo pedagógico e a incidência na formação e trabalho docente, e, por fim, na formação humana, como aponta Santos (2012), são traços requeridos pela mercantilização da educação, que ao pressionarem a melhoria da qualidade educacional, busca atender a qualidade do mercado:


Esta qualidade, longe de pautar-se na valorização do profissional da educação, tanto no que tange às condições de trabalho quanto à formação, desenha a caricatura de uma educação de baixa qualidade, responsabiliza e Estado e os trabalhadores da educação, alega ser o mercado o único capaz de formular, implementar e avaliar um modelo de ensino eficaz. Investe contra a autonomia do trabalho pedagógico, atribui a culpa pelo fracasso escolar à inércia dos docentes, inércia esta fomentada por planos de carreira que garantem remuneração e estabilidade, “independentemente de critérios de desempenho” (SANTOS, 2012, p. 94).


Assim, as soluções apresentadas nos documentos estão em consonância aos ideais desses intelectuais orgânicos. No documento, afirmam que as transformações necessárias na formação dos professores devem focar no diagnóstico das competências que precisam ser aprimoradas. Para isso, os sistemas educacionais devem estabelecer padrões e critérios de seleção dos docentes, “identificando os melhores candidatos para trabalharem nas escolas públicas” (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021, p.80). As proposições de mudanças nas políticas de formação docente têm:


O objetivo final dessas propostas é reformar a carreira docente, tornando-a mais meritocrática, de modo que as promoções e oportunidades de trabalho estejam mais vinculadas ao desempenho docente (REDUCA; FUNDACIÓN SURA, 2021, p. 80).


A associação da Reduca com a Fundação SURA que resultou no MBE é uma das formas articuladas dos intelectuais orgânicos de viabilizar o projeto de educação mercadológica na América Latina. As soluções apresentadas no documento inferem a ideia de controle e direcionamento da formação docente, assegurando uma formação voltada à qualificação e à profissionalização dos professores, segundo os preceitos neoliberais.

Considerações finais


O direcionamento das políticas de formação docente segue um projeto hegemônico do capital para a mundialização da educação. Tal projeto vem sendo efetivado nas políticas educacionais latino-americanas por meio da Reduca, que busca atender tanto às demandas do empresariado – que a constituem – quanto aos interesses dos organismos internacionais.

Sendo composta por um heterogêneo aglomerado de intelectuais orgânicos, a Reduca efetiva a adesão ao projeto neoliberal na educação latino-americana, importando para a formação docente as teorias administrativas e a pedagogia empresarial, visando a qualificar os professores, conforme os conceitos de eficiência, produtividade, excelência e eficácia.

O novo perfil do professorado indicado no MBE revela a necessidade dos representantes da ideologia do capital sobre o domínio da formação docente. Trata- se da tentativa de desintelectualizar (SHIROMA, 2003b) os professores, criando um perfil docente que seja profissionalizado e qualificado de acordo com o projeto neoliberal para a educação da periferia do capitalismo.

No que diz respeito às soluções apresentadas no MBE para as políticas de formação inicial, são utilizados exemplos julgados exitosos por eles, com o intento de padronizar as atividades e filtrar a escolha dos novos professores. O referido documento aponta que essas proposições devem seguir o modelo de competências disciplinares, além das cognitivas e socioemocionais apontadas nos documentos da OCDE e do Banco Mundial.

Por fim, constata-se o interesse do capital pela modelação comportamental dos docentes desde sua formação inicial, objetivando educar professores conformados, desintelectualizados, que tenham “práticas exitosas” por meio das “metodologias ativas” e que reforcem a pedagogia do mercado na educação.

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