V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


A ESTRATÉGIA DO ESTADO CAPITALISTA NO SETOR DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: DESLOCALIZAR OS PROCESSOS EDUCATIVOS1


Maria de Fatima Felix Rosar2


Resumo

Apresenta-se uma análise do empresariamento da educação, evidenciando as articulações entre Estado capitalista e universo corporativo. A partir dessa estratégia, associando as dimensões políticas e econômicas, produz-se um deslocamento das decisões do campo das instituições públicas para o setor de negócios. Impõem-se na gestão pública padrões do gerencialismo empresarial. Para relocalizar a educação no campo da produção de teorias e práticas críticas, urge superar a ideologia do neoliberalismo responsável pelo agravamento da violência e da guerra civil. Redefinir os rumos da educação supõe lutar pela educação democrática e a superação do capitalismo.

Palavras-chave: Estado capitalista. Empresas de educação. Neoliberalismo. Educação democrática.


LA ESTRATEGIA DEL ESTADO CAPITALISTA EN EL SECTOR EDUCATIVO EN BRASIL: DELOCANDO LOS PROCESOS EDUCATIVOS


Resumen

Se presenta un análisis del emprendimiento de la educación, destacando las articulaciones entre el Estado capitalista y el universo empresarial. A partir de esta estrategia, asociando las dimensiones política y económica, se produce un desplazamiento de las decisiones desde el ámbito de las instituciones públicas al sector empresarial. En la gestión pública se imponen los estándares del gerencialismo empresarial. Para reubicar la educación en el campo de la producción de teorías y prácticas críticas, es urgente superar la ideología del neoliberalismo responsable del agravamiento de la violencia y la guerra civil. Redefinir los rumbos de la educación significa luchar por la educación democrática y la superación del capitalismo.

Palabras clave: Estado capitalista. Empresas de educación. Neoliberalismo. Educación democrática.


THE STRATEGY OF THE CAPITALIST STATE IN THE EDUCATION SECTOR IN BRAZIL: DELOCATING EDUCATIONAL PROCESSES


Abstract

An analysis of the entrepreneurship of education is presented, highlighting the articulations between the capitalist State and the corporate universe. From this strategy, associating the political and economic dimensions, there is a shift in decisions from the field of public institutions to the business sector. Standards of business managerialism are imposed in public management. In order to relocate education in the field of the production of critical theories and practices, it is urgent to overcome the ideology of neoliberalism responsible for the aggravation of violence and civil war. Redefining the directions of education means fighting for democratic education and overcoming capitalism.

Keywords: Capitalist state. Educational enterprise. Neoliberalism. Democratic education.


1 Artigo recebido em 24/03/2022. Primeira avaliação em 20/04/2022. Segunda avaliação em 24/04/2022. Terceira avaliação em 05/05/2022. Aprovado em 22/05/2022. Publicado em 21/07/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.53629.

2 Doutora em Filosofia e História da Educação em Administração e Supervisão Educacional pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente aposentada da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), tendo atuado como professora do quadro de magistério da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), da UFMA e da Unicamp. Email: mffrosar@uol.com.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5395235360205509. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3238-9191.

Preâmbulo


Na segunda década do século XXI, ultrapassados os anos dos governos denominados democrático-populares, entre 2003 e 2016, ampliou-se a possibilidade de reconhecimento das raízes de um processo amplo e profundo de deslocalização das atividades realizadas pelas instituições públicas, não somente na área da educação, de modo particular, mas também nos demais serviços destinados às classes trabalhadoras. Sob a forte dominação das corporações empresariais e financeiras, o Estado, no Brasil, tem realizado transformações no seu modus operandi, como expressão da economia e da política, desvinculadas do compromisso com direitos, interesses e demandas das classes majoritárias e vinculada organicamente com a burguesia do Brasil e dos países capitalistas hegemônicos, com destaque para os Estados Unidos.

Em outras palavras, de forma mais visível aos olhos do contingente da pequena burguesia e de forma menos compreendida pelo proletariado, excluído e, portanto, não reconhecido como “sujeito de direitos”3, o Estado brasileiro torna-se cada vez mais atrelado às forças políticas e econômicas que atravessam as suas instâncias executivas, legislativas e judiciárias. Desfaz-se o simulacro do liberalismo do Estado como aparelho constituído e organizado para arbitrar os conflitos e as contradições entre as classes antagônicas. Ele expande de forma sistêmica, no seu funcionamento, elementos da sua essência derivada da hegemonia das classes que controlam o sistema mundial do capital, em suas articulações orgânicas nacionais e internacionais.

Sendo assim, como de fato se constata na realidade do contexto nacional, as políticas de setores estratégicos para o desenvolvimento humano e da sociedade, como a educação, ganham “novas modelagens”, definidas fora do âmbito das escolas de educação básica e das universidades públicas, direcionadas a projetos prioritários, com objetivos, conteúdos e metodologias que se originam em outros espaços e organizações.


3 De fato, na condição de proletário, o trabalhador está apartado do direito de propriedade, portanto, ser admitido como sujeito de direitos pelo Estado liberal é o que o capitalismo lhe acena; ou seja, ele jamais será proprietário, mas também não alcançará na sua plenitude a totalidade de direitos. Em última instância, para o Estado capitalista, ele é um suposto sujeito de direitos. A reforma trabalhista de 2017, no Brasil, tornou ainda mais evidente o caráter do neoliberalismo nesse sentido, desconstruindo as normas trabalhistas e “subvertendo as negociações coletivas”.

Trata-se de um complexo conjunto de cânones formulados segundo os princípios definidos no universo empresarial, corporativo, privado, sacralizados pelo mercado. A lógica que se impõe está ancorada na produtividade, eficiência, eficácia, competência e transnacionalidade, como um padrão considerado aplicável a um amplo espectro de instituições. Em grande medida, destacam-se as formas de adaptação dos indivíduos às organizações, de modo a promover o seu envolvimento, para reduzir conflitos e aumentar os resultados produtivos previstos. Na realidade, uma importante tendência dos estudos sobre o comprometimento organizacional abrange a gestão do conhecimento e as dimensões afetiva, normativa e instrumental, conforme o modelo de Meyer e Allan. (CANÇADO et al., 2006). De acordo com Silva e Vizeu (2007, p. 90),


Tendo em vista as características da sociedade moderna, que valoriza o utilitarismo e o pragmatismo, é de se esperar que a tendência seja a de valorizar no campo da teoria administrativa aquilo que funciona. O que funciona tende a ser acompanhado de forte conteúdo prescritivo. Como a academia é fragmentada em termos de produção de conhecimentos, os profissionais acadêmicos que trabalham esquemas teóricos que funcionam tendem a ser melhor assimilados pelo mundo empresarial, em especial no campo da estratégia, bem como pelos profissionais que atuam em escritórios de consultoria empresarial pela importância que atribuem à dimensão normativa, até mesmo por questão de sobrevivência.


Sem dúvida, o universo da educação tem sido avaliado como um dos mais florescentes para a conversão do conhecimento em capital, potencializando os negócios que se definem como inovadores e lucrativos, na modalidade de EaD, executada em plataformas digitais. Essas plataformas, concebidas e operacionalizadas em consonância com o ideário do capitalismo fictício, tem possibilitado alcançar dois objetivos estratégicos: a ampliação exponencial do lucro e, ao mesmo tempo, a formatação de novos perfis profissionais a serem “consumidos” pelo mercado. Não há nada mais inovador do que o processo de formação profissional constituindo subjetividades adaptadas às “novas formas de trabalho”, na segunda década do século XXI, como resultado de um modo continuado de deslocalização dos processos educativos.

Diante dessas evidências de um processo em curso, em que o capital subsume praticamente todas as dimensões da vida humana, interessa-nos apresentar questões candentes desse movimento, no qual a educação e a formação humana tornam-se homogeneizadas, e cada vez mais mercantilizadas, sob os mecanismos do capitalismo

potencializados no século XXI, por meio da adoção mais profunda dos recursos da gestão empresarial e da comunicação virtual, com a finalidade de controlar as subjetividades dos trabalhadores e as suas práticas de trabalho presencial ou a distância. Para que se compreenda esse processo em sua totalidade, é fundamental reconhecer a influência do universo corporativo na área da educação; realizar uma imersão profunda nas dimensões da ideologia do neoliberalismo, com a perspectiva de estabelecer um programa permanente de debate coletivo para redefinir os rumos da educação no Brasil.


Contribuições do universo corporativo ao processo deslocalizante da educação


Desde os primórdios da administração científica, com Taylor e Fayol, até as mais modernas tendências da administração, com conhecimentos absorvidos das teorias da psicologia, da informática e das novas tecnologias de informação e comunicação, para configurar um modelo de relações humanas em que sejam minimizados os conflitos entre o capital e o trabalho, estabeleceram-se formas de controle objetivo e subjetivo sobre os trabalhadores em organizações de trabalho presencial e virtual. Esse conteúdo tem sido transposto para a educação, a partir de manuais de Administração Escolar, Gestão Educacional, Políticas de Educação de Qualidade, segundo as tendências importadas do universo corporativo.

Nos anos de 1970, foram elaboradas proposições teóricas para conceber-se a escola como uma empresa. Sob a lógica derivada do modo de produção que regula os processos de organização do trabalho manual e intelectual na sociedade capitalista, interessa ao capitalismo homogeneizar a organização do trabalho, de tal modo que possam ser diluídas especificidades de processos subjetivos no âmbito da produção de ideias, conceitos, concepções, objetivos, finalidades últimas de instituições de cultura e de educação e, no âmbito da materialidade concreta, possam ser incluídas instalações físicas, equipamentos e materiais utilizados em atividades-meio e nas atividades-fim.

Os princípios que regem essa dinâmica estão subsumidos no modo de produção capitalista e devem ser absorvidos como científicos, tanto nas linhas de produção industrial quanto nas escolas, de acordo com o pensamento neoliberal, de modo que sejam padronizados e internalizados os tempos de trabalho em jornadas previamente definidas e supervisionadas, para que se alcancem os resultados pré- concebidos, em

nível de órgãos de administração central. Não cabe, do ponto de vista do capitalismo, distinguir objetivos do desenvolvimento humano daquilo que diz respeito à produção, mercantilização e reprodução de processos, bem como perfis profissionais e padrões de conduta estandardizados.

Nesse contexto, pode-se compreender de que modo, no transcorrer da história da educação – dos anos de 1970 do século XX até a segunda década do século XXI – foi se configurando e materializando a tendência de empresariamento da educação. Mediante o processo de mercantilização da educação, sob diferentes formas e modalidades, e pela via da privatização da gestão das escolas públicas e privadas e dos sistemas de ensino, tanto na dimensão administrativa, como na dimensão pedagógica. Essa tendência, de acordo com os delineamentos dos organismos internacionais, fundamentou a reforma do Estado implementada nos anos 1990 e veio sendo atualizada nos anos 2000, por meio de uma intervenção potente das empresas no Estado brasileiro, participando efetivamente na concepção e execução da política educacional no Brasil.4

A realização das reformas educacionais dos anos de 1990, sob forte contingenciamento dos organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), atingiram países da Europa e da América. No caso da Europa, como analisou Laval (2019), a hibridação institucional entre universidades e empresas foi sendo induzida pela OCDE, por exemplo, em nome da inovação necessária para a expansão do crescimento econômico. Na França, existem universidades subordinadas diretamente às corporações. No caso da América, nos Estados Unidos, esse movimento foi muito anterior. Desde os anos 1950, foram criadas as “universidades de empresa”, possibilitando a expansão dos negócios num novo campo aberto para a acumulação de capital, como também possibilitando a transformação de instituições universitárias em “fábricas de saber eficiente”. (LAVAL, 2019, p. 57).

Do mesmo modo, no Brasil, foram introduzidas essas instituições denominadas


4 “[…] entendemos que a ação coletiva empresarial é igualmente induzida por questões ideológicas, garantindo “a defesa da apropriação privada e sua acumulação contínua que, nas formas democráticas liberais vivenciadas, não teria demonstrado estar suficientemente protegida ou seria ineficaz para barrar reivindicações de grupos organizados, que promovem a cooptação de políticos contra o livre mercado”. (FREITAS, L. C. A reforma empresarial da educação. Nova direita, velhas ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p. 23 apud MARTINS, 2019, p. 79 – os destaques são de Martins).

de universidades corporativas ou universidades de empresas, adquirindo maior autonomia em sua atuação nos anos 2000, no âmbito do mercado e em termos de um modus operandi descompromissado com a legislação da educação superior, como se tivesse sido criado um setor independente da política educacional, principalmente com a expansão do sistema EaD.

Essas empresas que atuam desenvolvendo seus próprios programas e projetos também exercem sua influência nos órgãos governamentais, em muitos setores e, particularmente, na área da educação, assumindo a liderança do processo de concepção e implantação de modelos de gestão administrativa, financeira e até mesmo pedagógica em sistemas de ensino estaduais e municipais, favorecendo a expansão dos negócios na área da educação.5

Na realidade, segundo Bastos (2017), seguindo as tendências já desenvolvidas nos Estados Unidos, também no Brasil foi incorporado o modus operandi do gerencialismo empresarial. Ocorre um processo híbrido de centralização e descentralização, pois o que se constata é que o


Estado, sem abrir mão do controle sobre essa esfera social, descentraliza para as escolas decisões operacionais corriqueiras e de menor relevância e lhes imputa responsabilidade por sua eficiência e eficácia, ao passo que acirra o controle sobre as decisões de caráter estratégico, sob a ascendência das frações hegemônicas da classe burguesa. (BASTOS, 2017, p. 220).


As evidências desse modo de articulação orgânica entre o universo corporativo e o Estado no Brasil foram amplamente analisadas por diversos grupos de pesquisa das universidades públicas, demonstrando a vinculação entre o Movimento Todos pela Educação (TPE)6 e as grandes empresas que têm investido, de forma sistemática, na


5 “Dois exemplos de fundações vinculadas ao mundo corporativo e alçadas à interlocutores privilegiados dos governos auxiliam na compreensão desse processo. O primeiro refere-se à atuação do Instituto Ayrton Senna (IAS), que vem operando diretamente junto a estados e municípios por meio da implantação de “tecnologias educacionais” adquiridas com recursos públicos (ADRIÃO; PERONI, 2013). Em 2014, o IAS demandou da Agência de regulação e financiamento do ensino superior no Brasil (CAPES), autarquia do governo federal, o lançamento de um edital (nº 44/2014) para desenvolvimento de pesquisa sobre medição de “habilidades socioemocionais”, com subsídio público no valor aproximado de US$ 242 mil. Entretanto, é o segundo exemplo o que merece destaque nesta reflexão: a Fundação Lemann, cujo fundador, Jorge Paulo Lemann, é também um dos principais investidores do Grupo Eleva Educação, holding de educação, criado em 2013, que atua tanto na oferta direta de educação privada, por meio de escolas próprias, quanto no desenvolvimento de um sistema privado de ensino adotado por cerca de 80 escolas. Por sua vez, parte do investimento necessário à criação dessa holding veio do Gera, empresa de investimento de risco, do mesmo grupo, com foco em empreendimentos educacionais”. (ADRIÃO, 2017 apud ADRIÃO; DOMICIANO, p. 5-6, 2018).

6 O TPE, que, como foi visto, vem pautando a política educacional oficial desde 2007, ao aglutinar grande

gestão do Ministério da Educação e dos órgãos relacionados à educação em todos os níveis, além de na área da Ciência e Tecnologia. Assim, pode-se afirmar que a hegemonia do setor privado sobre as políticas públicas do Estado brasileiro, em todos os níveis da federação, confirma a efetiva internalização dos padrões da lógica empresarial no aparelho de Estado.

Noutras palavras, o Estado capitalista potencializou o seu arcabouço por meio do qual alcança sólida capilaridade para atuar, usando a justificativa ideológica da defesa da educação como direito constitucional da população brasileira, ao mesmo tempo que constrói formas de canalizar recursos públicos para diferentes segmentos do setor corporativo, os quais se arrogam o direito de se instituírem como coparticipantes da ação estatal, uma vez que à sociedade também é atribuída a responsabilidade de realizar a educação.7

Destaca-se, ainda, o fato de que essa tendência se fortaleceu e se expandiu não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina, alcançando ampla escala à medida que organismos internacionais, como o BID, subsidiaram uma articulação mais ampliada denominada de Rede Latino-americana da Sociedade Civil pela Educação (REDUCA), com a efetiva colaboração do TPE para a sua composição.8


A Rede Latino-americana de Organizações da Sociedade Civil pela Educação — REDUCA foi lançada no ano de 2011, em Brasília. Seu lançamento marca um impulso dos interesses empresariais e da renovação da ação organizada empresarial prol educação, alterando, de forma significativa, a ação coletiva destes atores. Desde sua gênese, assinala-se uma perspectiva de um projeto educativo hegemonizante que, simultaneamente, atenderia aos objetivos de OI’s vinculados às grandes potências econômicas e aos interesses de frações do empresariado nacional e internacional (MARTINS, 2019, p. 104).

Essas ações de ingerência explícita no funcionamento dos órgãos da educação têm possibilitado que, de modo subliminar, sejam veiculados os novos paradigmas do


parte da burguesia nacional em torno de seu projeto hegemônico, arvora-se o agente da modernização da educação brasileira, tendo por base os cânones da gestão empresarial, de forma a incorporar definitivamente a lógica capitalista na política educacional da nação, e a dissimular os conflitos de classe decorrentes da sua investida privatista sobre a educação pública. (BASTOS, 2017).

7 Diz o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2016): “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

8 A REDUCA indica que para atingir seus objetivos, as organizações que a compõem trabalham com diferentes atores da sociedade civil, setor privado, mídia e governos e, “embora mantenham fortes relações com as autoridades educacionais, todas são organizações autônomas e independentes de seus governos” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2011, p. 150 apud MARTINS, 2019, p. 102 – os destaques são do original citado por Martins).

gerencialismo empresarial, definindo as práticas de deslocalizar a educação de seu campo próprio de conhecimento vinculado à sua finalidade de contribuir para o desenvolvimento humano, na perspectiva de emancipar e construir condições de transformação dos fundamentos da sociedade capitalista.

Dentre outras ações, destacam-se os processos pelos quais foram elaboradas as diretrizes e bases da Base Nacional Comum Curricular (BNCC): a imposição de novas estruturas curriculares para definir o que passou a ser denominado de “Novo Ensino Médio”, as diretrizes para a formação de professores em cursos de licenciatura, que devem se adequar às novas configurações do ensino fundamental e médio, bem como os processos de avaliação cada vez mais delineados a partir das competências, habilidades e atitudes a serem desenvolvidas pelos jovens, considerando a sua articulação com o tão propalado “projeto de vida”.

É necessário um esforço teórico de incorporação da historicidade como dimensão fundamental de uma análise crítica sobre a relação cada vez mais estreita entre o universo empresarial e o universo da educação, como uma das táticas do Estado e do mercado, para que se tornem naturalizadas e assimiladas: concepções, objetivos, padrões de comportamento e procedimentos organizacionais, processos de avaliação e consecução de resultados cada vez mais ambiciosos. A ampliação do isomorfismo entre as instituições de educação e as empresas9 tem se evidenciado, sobretudo, pela possibilidade de tornar cada vez mais distanciado e mais invisível o controle sobre o conhecimento produzido e disseminado, por meio das tecnologias agregadas aos processos de produção material e de produção imaterial, de modo definitivo.

O incentivo à participação dos trabalhadores e dos educadores em processos de gestão administrativa e pedagógica tem significado, sobretudo, persuadi-los das necessidades institucionais existentes, portanto, da expectativa dos administradores de que aceitem as propostas de mudanças internas e adotem as novas práticas de trabalho em que as novas tecnologias assumem papel central. Em geral, “os programas de mudanças técnicas enfatizam educar os trabalhadores, e não os envolver na decisão antes que ela seja tomada – esta é uma prerrogativa da administração.” (CLEGG, 1992,


9 “[...] apesar da propalada distância entre o mundo empresarial e o mundo acadêmico, as organizações empresariais atuam com base em certa conformidade em relação aos parâmetros produzidos pela academia ao mesmo tempo que influenciam a produção desses parâmetros. A academia e as organizações empresariais, portanto, são simultaneamente estruturadas e estruturantes na área da administração em geral e da estratégia especificamente.” (SILVA; VIZEU, 2007, p. 90).

p. 87).

Na prática, constata-se, desde que foram introduzidos os meios tecnológicos de

microprocessamento, que essas ferramentas estão produzindo um processo de “desespecialização” e deslocamento dos trabalhadores em diferentes áreas, submetidos ao controle e à exploração realizada, de forma sutil, pelos gestores. Assim, por um lado, os trabalhadores foram sendo substituídos progressivamente nas fábricas e, por outro, professores têm sido também substituídos pelos programas computadorizados em redes gigantescas de EaD.10

No entanto, essa tendência deslocalizante dos processos educativos de seu “locus” não se circunscreve apenas aos cursos de EaD ofertados pelo sistema on- line. O Novo Ensino Médio traz em seu bojo a possibilidade de os próprios estudantes criarem os itinerários formativos ou “trilhas de aprendizagem”, levando- os a uma prática pedagógica mais “personalizada”, exponencializando o individualismo de massa e distanciando os estudantes entre si. Por meio de uma diversificação curricular atrelada às expectativas individuais inscritas nos seus projetos de vida, os jovens buscarão alcançar a meta de se tornarem “empreendedores de si mesmos”, numa sociedade em que se liquefaz a atividade laboral nos regimes de semiescravidão moderna.


Assistimos a um aprofundamento do processo neoliberal de globalização que descentralizou a produção por meio de filiais e terceirizações, com a finalidade de tornar menos localizáveis as formas de controle e gerenciamento do trabalho. Aos poucos, empresas internacionais oligopolizadas tomam conta do trabalho informal, organizando, regulando e definindo o que é o trabalho. Na dinâmica da suposta neutralidade do gerenciamento algorítmico, não há hora, lugar ou ferramentas de trabalho. Todos os riscos e custos são deslocados para os trabalhadores, que usam seus próprios bens, casas, veículos, máquinas de costura ou sola de seus sapatos num “autogerenciamento subordinado”, controlado de forma centralizada por mecanismos obscuros, mas extremamente eficazes na gestão racionalizada de trabalhadores informais (INSTITUTO TRICONTINENTAL DE PESQUISA SOCIAL, p. 27, 2021).


Compreendendo que a educação, assim como a cultura, a ciência e a tecnologia estão subsumidas num amplo processo de reprodução dos fundamentos do capitalismo, parece necessário que se retome as teses basilares do pensamento marxiano para


10 Em termos concretos, eleva-se a composição orgânica do capital pela incorporação, em níveis cada vez mais ampliados de capital constante, reduzindo a presença do capital variável. Isto quer dizer que o trabalho morto assume a primazia no processo de produção, dispensando o trabalho vivo já incorporado no acervo tecnológico da educação nessa nova modalidade para o aumento da acumulação de capital.

articular novamente às dimensões dos processos administrativos e organizacionais o elemento intrínseco e inevitável que os constitui: o poder. Claro, o poder na sociedade capitalista e as ideias hegemônicas numa estrutura de classes têm a sua gênese no âmago das classes dominantes e nas relações sociais de produção. Há, portanto, uma correlação entre o processo de desenvolvimento e formação humana que se distingue entre as diferentes classes na sociedade capitalista. Ocorre que, com a efetiva introdução da tecnologia em todos os campos de atuação humana e, particularmente, no processo de ensino-aprendizagem, visando à formação profissional de novas gerações, torna-se ainda mais urgente que se possa qualificar os jovens, a partir do domínio das ciências da natureza, das ciências sociais e humanas, das ciências exatas e computacionais, para que compreendam em que mundo estão imersos, quais as perspectivas e os conhecimentos potentes para que se realize a transformação social.

Segundo a socióloga Ludmila Abílio (2019, apud INSTITUTO TRICONTINENTAL DE PESQUISA SOCIAL, 2021, p. 28),


Vivemos a consolidação vitoriosa do modelo de trabalho sob demanda (just in time), com desenvolvimento tecnológico que permite aos capitalistas gerenciar uma mão de obra que fica à sua disposição, a ser acionada somente quando necessária. Talvez o campo de guerra vivido pelos trabalhadores da circulação de mercadorias nos dê pistas para pensarmos as formas de resistência às novas configurações da exploração, opressão e dominação do trabalho contemporâneo.


Confrontando essa realidade desvelada pelos pesquisadores que se dedicam a analisar as relações entre educação e trabalho, pode-se afirmar que a implantação do Novo Ensino Médio constitui uma estratégia de grande alcance do Estado capitalista, para submeter as classes populares a um processo de formação básica e profissional reduzida ao seu principal escopo não declarado: transformar as gerações de jovens empobrecidos em exércitos de reserva para o trabalho sob comando das Big Techs, como apêndices de um processo de produção “renovado”, em que não se necessita refletir sobre as causas e as consequências da formação profissional e da prática de trabalho subordinadas aos recursos tecnológicos11, como se este fossem neutros e não


11 “Os resultados das avaliações das plataformas no Brasil demonstram a fragilidade na comprovação dos itens mais básicos em relação à dignidade de trabalhadores(as). Além disso, mostram que há muito o que fazer em termos de políticas públicas e regulação do trabalho por plataformas para assegurar esses princípios. Tendo por base os relatórios já divulgados em outros países, o Brasil posiciona-se como uma das piores avaliações. Em países como Gana, Índia, Indonésia e África do Sul, por exemplo, há plataformas com pontuações maiores em relação aos mesmos princípios. Mesmo na América do Sul – o continente com as piores classificações – o Brasil apresenta um cenário semelhante, mas pior, pois o

portadores de uma intensa e forte dicotomia: libertação versus alienação.


A imersão necessária e urgente para superar a ideologia do neoliberalismo


Nesse contexto, aproxima-se a aparente neutralidade dos atuais processos de empresariamento dos sistemas de ensino, das instituições de ensino superior e das redes de educação pública às finalidades mais invisíveis do modo de produção capitalista, na atual condição de crise estrutural do capitalismo e de sustentação de suas formas políticas e econômicas em direção à hiper-reificação do real, em que as mercadorias e, portanto, o trabalho objetivado expressam a magnitude da escala das relações sociais de produção, em patamares articulados de realidade palpável (material) e realidade imaterial (virtual) numa progressão acelerada em períodos de tempo abreviados, com aprofundamento da massificação e homogeneização das subjetividades singulares.

Alguns autores franceses, como Anselm Jappe (2014), reintroduziram análises relevantes sobre a compreensão mais pertinente dos conceitos marxianos de alienação, reificação e fetichismo. Jappe retoma Postone12 (2009, p. 242 apud JAPPE, 2014, p. 25) e escreve que


a sua abordagem reinterpreta a concepção de alienação de Marx em relação à sua crítica do trabalho sob o capitalismo – situa essa concepção reinterpretada da alienação no coração de sua crítica do capitalismo”. Ele recusa, entretanto, uma leitura da superação da alienação como auto- realização de um sujeito de que já se supõe a existência e que, por sua essência, se coloca fora do capitalismo; ao passo que, na verdade, tal sujeito não é senão o “sujeito automático” constituído pelo trabalho abstrato. Em sua perspectiva, é preciso antes: “abolir o Sujeito que se move e que funda a si mesmo (o capital) e a forma de trabalho que constitui e é constituída pelas estruturas da alienação; isso permitiria à humanidade apropriar-se daquilo que foi criado sob forma alienada”. Para ele, é evidente que, “em Marx, o conceito de fetichismo está ligado de maneira central à sua teoria da alienação, enquanto constituição social”.


Essa observação conceptual parece importante, no sentido de que se possa ultrapassar a crítica interna que se faz do empresariamento da educação, tendo como



máximo de pontuação no Chile e no Equador foi 3, enquanto no Brasil foi 2”. (GROHMAN, 2022). Ver: Os laboratórios do trabalho digital, de Rafael Grohmann (org.), São Paulo: Boitempo, 2022.

12 POSTONE, M., Temps, travail et domination sociale. Une réinterprétation de la théorie critique de Marx, Paris: Mille et une nuits, 2009, p. 242.

pressuposto que, se fosse eliminada a conexão orgânica entre empresas e educação, seria possível construir outras perspectivas de práticas pedagógicas emancipadoras, sem que se materializasse a superação do capitalismo. Na realidade, o capitalismo tem avançado, não confirmando, empiricamente, no seu atual estágio de desenvolvimento, o pensamento inicial de Marx, que previa a dessacralização da sociedade moderna. De fato, tem sido verificada, no sentido inverso, a divinização do sistema econômico justificado pelo neoliberalismo, a partir dos anos de 1980 (PRADO, 2022).13 Pode-se afirmar que o capitalismo tem agudizado a reificação da mercadoria ao mesmo tempo que se imiscuiu em todas as dimensões das relações sociais, a ponto de ganhar um caráter quase sobrenatural, dilacerando mentes e corpos.

Ao fazer uma crítica a esse caráter sacralizado do sistema capitalista, Prado (2022, p. 4) afirma, dialogando com Johnston, um autor freudo-marxista:


A liberdade que o próprio capitalismo requer para o seu funcionamento é defendida com fervor religioso. A austeridade é assumida como um dever de Estado independentemente de sua funcionalidade. O próprio sistema deixa de ser encarado como uma ordem natural para ser tomado como uma ordem moral pela economia política contemporânea. Eis que Deus, nas palavras de Johnston, caiu do céu e se tornou “subterrâneo”.


Essa afirmação não tem apenas uma dimensão metafórica e simbólica na sociedade contemporânea. Ao contrário, é preciso ir além das aparências da dinâmica do funcionamento do capitalismo em sua amplitude máxima, porque, na atualidade, as configurações que expressam as complexas relações entre a infraestrutura e a superestrutura mostram e também escondem as condicionalidades produzidas numa interação recíproca e quase simultânea entre a economia e a religião, por exemplo.

Sugerindo a crítica de Johnston, Prado (2022, p. 5) nos confronta com uma reflexão relevante:


Em consequência, Johnston acredita que a crítica da economia política tem também de sofrer uma reversão em sua orientação. Se ela nasceu,


13 Da proposição resultante do diálogo estabelecido entre Prado e Johnston não se vislumbra derrogar a categoria marxiana de fetichização da mercadoria. De fato, a observação está centrada na evidência de que não se dessacralizou a sociedade moderna, tal como previra Marx. No entanto, a sacralização no sentido teológico se acentuou na medida em que o capitalismo ascendeu a uma posição de alternativa única de organização da sociedade, na sua fase recente do neoliberalismo, predominante a partir dos anos de 1980 na Europa e nos anos de 1990, na América Latina. O fetichismo da mercadoria não foi substituído, mas, ao contrário, a mercadoria se autonomizou e adquiriu um caráter ainda mais sacralizado do que nos primeiros séculos do capitalismo. Sendo assim, a religião alcançou centralidade no processo de reprodução ideológica dos pressupostos do sistema capitalista, intensificando a ação de reciprocidade entre a superestrutura e a infraestrutura. A teologia da prosperidade amalgamou o mercado e a religião.

como se sabe, da rejeição da crítica da religião, mantida na Alemanha pelos jovens hegelianos, agora essa rejeição tem de ser rejeitada. Ela não pode mais se cingir à crítica da política econômica, da má compreensão das tendências do capitalismo ou da ideologia em prol do mercado, pois tem de alcançar também a sacralização do econômico; não só da dupla produção/circulação, mas também e em especial do Estado. “Ainda não somos, mas precisamos nos tornar ateus econômicos”.


Admitindo que se tem vivido uma experiência traumática com os impactos provocados por diversas camadas de contradição, complementaridade, ruptura e continuidade que se articulam no território brasileiro, desde o início do mandato do atual governo, pode-se atribuir às ações estratégicas adotadas pelos governantes da União uma tendência ao mesmo tempo ampla e profunda de destruição e construção, que não diz respeito apenas à dimensão política, mas também às dimensões econômica, social e cultural. Foram acionadas simultaneamente várias baterias de combate político- ideológico, em um amplo front de enfrentamento das forças sociais organizadas no campo progressista.

Constata-se no Brasil uma fortíssima inflexão da política educacional, entre o final da primeira década do século XXI e os primeiros anos da segunda década, a partir da introdução de elementos marcados pelo hibridismo entre o mercado dos negócios na área da educação, a rede de plataformas digitais na educação pública e nas escolas privadas, a disseminação de concepções anticientíficas nas redes de comunicação virtual, a ampla publicidade do sucesso de escolas militarizadas e, juntamente, a divulgação de “fórmulas religiosas” para o enfrentamento das dificuldades materiais, culminando com a debilitação de parte das frentes de resistência de movimentos sociais da área da educação.

Na realidade, as evidências apreendidas na área da política e gestão educacional, sob a ótica do empresariamento da educação, podem ser analisadas a partir da perspectiva do materialismo histórico-dialético. Entretanto, um percentual expressivo de educadores ainda se encontra refém das ideologias construídas pelo capitalismo, de modo sistemático, sob a sombra do autoritarismo militar, do fetichismo do mercado e da fantasmagoria de um “ente sagrado”, ao qual se vinculam os “donos do poder” do bloco hegemônico do governo central, ocupando o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Ou seja, fortalece-se o processo de sacralização do poder.

As teorizações sobre o poder, de Hobbes e Maquiavel a Marx e Gramsci, passando por Foucault e Mészáros, sob diferentes abordagens do ponto de vista

histórico, econômico e político, reconhecem a prevalência de um sistema de poder soberano, com suas representações e instituições modificadas, no decorrer dos séculos, mantendo a sua finalidade preservada: o domínio das classes consideradas subalternas. Interessa retomar a ênfase de Marx, Gramsci e Mészáros no sentido de evidenciar a escalada de dinamização dos elementos estruturais da constituição do poder exercido pelas classes hegemônicas, na transição para a modernidade e para o período recente da história, em que se agudizaram as condições de reprodução do capital num sistema mundial. Como nos adverte Mészáros (2021, p. 185):


Já que o capital, durante a vida de Marx, estava muito distante de sua moderna articulação como um sistema verdadeiramente global, sua estrutura geral de comando político, como sistema de Estados globalmente interligados, era muito menos visível em sua precisa mediaticidade. Não é, portanto, de modo algum surpreendente que Marx nunca tenha tido sucesso em sequer rascunhar os meros esboços de sua teoria do Estado, apesar de este receber um lugar muito preciso e importante no seu sistema projetado como um todo. Hoje a situação é absolutamente diferente, à medida que o sistema global do capital, sob uma variedade de formas muito diferentes (na verdade, contraditórias), encontra seu equivalente político na totalidade das relações interdependentes entre Estados e no interior deles. É por isso que a elaboração da teoria marxista do Estado hoje é ao mesmo tempo possível e necessária. Na verdade, é vitalmente importante para o futuro das estratégias socialistas viáveis.


Como Mészáros alertava em suas obras fundamentais14, é por meio do trabalho, do capital e do Estado que o sistema sociometabólico se constituiu e se reproduz como um sistema mundial de poder exponencial, do ponto de vista econômico e político, condicionando a humanidade ao enfrentamento de uma crise estrutural de enormes proporções e de profundas e trágicas consequências. Os graves problemas produzidos por essa crise foram por ele considerados como efeitos de uma “tripla destrutividade do sistema do capital”, assim explicitados por Mészáros (2021, p. 136-7):


1. No campo militar, com as intermináveis guerras do capital desde o início do imperialismo monopolista nas últimas décadas do século XIX e de suas armas de destruição em massa cada vez mais devastadoras; 2. A intensificação mediante o óbvio impacto destrutivo do capital sobre a ecologia, que afeta diretamente e atualmente põe em risco o fundamento natural elementar da própria existência humana; 3. No domínio da produção material, um desperdício em constante crescimento, devido ao avanço da “produção destrutiva” no lugar da “destruição criativa” ou “destruição produtiva” elogiada no passado.


14 A teoria da alienação em Marx, Para além do capital e Para além do Leviatã, publicados no Brasil pela Boitempo


No contexto da história recente do Brasil e do mundo, tem se evidenciado que a destrutividade do sistema do capital se expande com o recrudescimento da atuação do imperialismo, desde o final da Segunda Guerra Mundial. Por meio de práticas políticas e econômicas de sufocamento de tendências de mobilização crítica às políticas materializadas pelos organismos internacionais, ocorre o enquadramento econômico dos países periféricos do sistema mundial. Ao mesmo tempo, agudiza-se a subordinação política dos blocos no poder, ao emergirem elementos de caráter revolucionário, como se verificou na Venezuela e na Bolívia, mais recentemente. A prática é manter grupos e partidos do campo progressista subordinados politicamente e fazer ressurgir a ameaça concreta de hegemonia de partidos, grupos civis e militares neofascistas, financiados por um segmento poderoso do universo das corporações que controlam o mercado e o Estado.

De fato, Marx e Gramsci15 destacaram a finalidade estratégica e ideológica do Estado liberal, ao afirmar em seu interior a separação entre a política e a economia. E assim permanece no Estado neoliberal o mesmo modo de atuar, executando medidas políticas que permitem a concentração do capital e da renda sem interrupção e, portanto, permitindo que a apropriação privada da riqueza produzida coletivamente pelos trabalhadores seja garantida, embora, em alguns momentos, como se constata na atualidade no Brasil, a alta classe média sofra impactos diferentes daqueles que atingem a burguesia propriamente dita. Os burgueses continuam a auferir dividendos muito acima dos níveis já considerados muito elevados, e ilícitos, como é o caso da remuneração garantida pela Petrobras aos seus acionistas e pelo Estado capitalista por meio da remuneração da dívida pública. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD Anual, divulgada pelo IBGE no início de 2022 e concluída em 10 de março (DRUMMOND, 2022), os indicadores apontam uma queda de 34,2% do grupo da alta classe média, em 2020, o que corresponde a 1,08 milhão de indivíduos num total de 3,16 milhões de integrantes em 2019.

Os efeitos negativos se avolumaram com as consequências cruzadas da redução de renda que alcançou os vários grupos que compõem a alta classe média.16 Assim, foi


15 Cf. Antonio Gramsci. Concepção dialética da história e Maquiavel: a política e o estado moderno. Karl Marx. Contribuição à crítica do direito de Hegel.

16 Empregadores, colarinhos-brancos autônomos, colarinhos-brancos assalariados, trabalhadores

possível identificar o efeito cascata sobre as demais classes. A análise dessa conjuntura econômica, segundo Waldir Quadros, produz a multiplicação dos efeitos negativos, como segue demonstrando Drummond em artigo da Carta Capital de 11 de março de 2022 (p. 3):


A redução do tamanho do contingente denominado de “empregadores” em 410 mil indivíduos, identificada na pesquisa, retrata o fechamento ou grande abalo de centenas de milhares de empresas que faliram ou pediram recuperação judicial, fizeram demissões em massa, suspenderam contratos com fornecedores, interromperam a distribuição de lucros e deixaram de pagar aluguéis e impostos. No caso de firmas de médio e grande porte com ações negociadas no mercado, interromperam também o pagamento de dividendos. Alguns desses efeitos comprimiram a renda da turma “sem ocupação com renda”, que justamente vive de aluguéis e dividendos.


Desdobrando-se os efeitos em cadeia dessa situação na pequena burguesia, o resultado se sobrepõe ao segmento do proletariado, como se pode evidenciar nas grandes capitais do país, pelo aumento do contingente de desalentados e pessoas sem- teto. O impacto mais brutal ocorreu sobre 10 milhões de brasileiros empurrados para a miséria. Essa crise econômica, política, social e cultural, sem precedentes, na qual estão imersos o país e o segmento majoritário da sua população, ainda mais empobrecido, parece fazer emergir os elementos necessários ao processo de elaboração de uma consciência histórica e crítica sobre a realidade do sistema mundial do capitalismo. Entretanto, sabe-se que esse movimento entre a realidade e o pensamento não se processa de modo espontâneo, nem mecânico, razão pela qual sempre é possível que ocorra ainda mais dificuldade de se compreender a realidade mediada por uma grande parte dos recursos midiáticos que produzem os discursos baseados na “pós-verdade”.

Por essa razão, é cada vez mais urgente e necessário que os educadores- militantes de um modo mais ampliado possam apreender a racionalidade neoliberal para decompô-la e superá-la, na medida em que adicionam às suas lutas pela educação e pela democracia a dimensão da crítica radical ao capitalismo. É preciso compreender a história do século XX e seus desdobramentos no século XXI para saber que, “para o neoliberalismo, entre a ditadura e a democracia não há diferença de valor, mas de eficácia na garantia do direito privado dos indivíduos e da ordem de mercado.” (TELES, 2021, p. 9). Ao escrever o “Prefácio” de importante obra do Groupe d’études sur le


autônomos e outras ocupações.

néoliberalisme et les alternatives (GENA)17, Teles (2021, p. 16) reitera essa indistinção entre regimes políticos:

Certamente há diferenças profundas entre uma ditadura e uma democracia, mas há também continuidades e permanências, e tais estruturas servem perfeitamente à racionalidade neoliberal da guerra civil. A indiferenciação entre regimes políticos se torna plausível, uma vez que o modelo neoliberal investe na lógica normativa e na produção de subjetividades de controle, reduzindo a democracia a mero procedimento formal, ou fazendo de uma ditadura o simulacro de um estado legalista. Tais estratégias buscam se opor a uma democracia da soberania popular e com plena participação política.


A disseminação de ideologia e práticas autoritárias de governos autocráticos, como os de Trump e Bolsonaro, podem ser tomados como exemplo de processo de redução da democracia a mero procedimento formal. Foi possível constatar dois eixos fundamentais desses governos que caracterizam uma tendência de liberalismo autoritário, em sua vertente neoliberal, como expressão de violência e de guerra civil18. Essa escolha política de implementação de uma racionalidade híbrida preserva as liberdades individuais e os interesses econômicos das empresas que controlam o mercado e a economia do país, ao mesmo tempo que ataca os dissidentes, os insurgentes e militantes do campo progressista, retirando-lhes as garantias individuais, além de subtrair os direitos sociais das populações periféricas, de modo sistemático, durante o período mais crítico da pandemia.

Embora os estudiosos da história do nazismo e do fascismo19 ressaltem que não se pode denominar esses governos, sob tutela da extrema-direita, como sendo nazistas ou fascistas, pois não existem as principais características daqueles regimes na história presente, no entanto, os fundamentos das políticas desses governos fazem reverberar elementos ideológicos e políticos, além produzirem efeitos deletérios sobre parcela majoritária da sociedade. Do ponto de vista da economia, seguem aplicando


17 Trata-se do livro de Pierre Sauvêtre et al. A escolha da guerra civil. Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021.

18 O uso das forças militares e das milícias organizadas em vários estados do Brasil não deixa dúvidas sobre a tática de guerra civil em curso, atingindo predominantemente as populações negras que habitam as periferias, exponencializando o índice de letalidade entre jovens. Aliás, a guerra civil, em diferentes épocas, foi sempre utilizada pelo capital como uma estratégia eficiente de extermínio de massas de trabalhadores e, posteriormente, de reconstrução da economia e do poder das classes dominantes. Karl Marx e Friedrich Engels produziram textos fundamentais sobre a Guerra Civil na França e a Guerra Civil nos Estados Unidos.

19 O livro de Marcelo Badaró Mattos, Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, traz uma contribuição relevante para a compreensão dessa diferença.

“religiosamente” os princípios do neoliberalismo, reduzindo a intervenção do Estado no que se refere às políticas sociais universais (o caso da vacinação no Brasil é emblemático), ampliando, porém, os canais de associação da burguesia financeira aos objetivos de sustentação da reprodução do processo de acumulação do capital (o caso da Petrobras é paradigmático).

Parece cada vez mais necessária e urgente a desconstrução da ideologia liberal e neoliberal e, para tanto, os pesquisadores do Groupe d’études sur le néoliberalisme et les alternatives (GENA) trazem contribuições relevantes no Capítulo 10 do livro A escolha da guerra civil. Uma outra história do neoliberalismo. Nesse capítulo, cujo título é “Governar contra as populações”, encontra-se uma análise fundamental, a partir do subtítulo “Gênese e forma de guerra interna”, tal como se observa a partir desta citação:


A restauração contemporânea da problemática da soberania do Estado não é um retorno ao absolutismo nem uma recusa do neoliberalismo; ela corresponde às necessidades do presente. A nova forma de soberania é indexada à guerra interior que o Estado deve realizar para impor a contrarrevolução neoliberal a uma população reticente ou claramente hostil. É pelo recurso a essa nova forma de soberania que a racionalidade estratégica da guerra interior se articula à do governo pela concorrência. A violência do Estado contra os governados não é, de fato, algo novo; ela é a própria história do Estado, por mais que isso desagrade aos seus defensores. (SAUVÊTRE et al, 2021, p. 249).


Historicamente, essas formas de violência foram sendo modificadas, no entanto, continuando essa análise, o autor faz a caracterização do modo como ela se realiza na atualidade, sob a nova lógica do Estado capitalista, ao afirmar:

A nova racionalidade da guerra interna tem algo de paradoxal: realiza- se contra um inimigo que não está organizado, que não quer tomar o poder, ainda menos pela violência armada, e que, se o quisesse, seria incapaz disso, tornado impotente pelo enfraquecimento das forças coletivas do assalariamento. (SAUVÊTRE et al., 2021, p. 249).


Diante dessas análises, é imperativo que as forças aglutinadas no campo progressista da área da educação avaliem o que pode ser feito, concretamente, para que educadores e estudantes militantes se apropriem do conteúdo dessas pesquisas mais atualizadas e mais críticas, do ponto de vista histórico, no sentido de poder, coletivamente, conceber estratégia e táticas de combate ao pensamento único e às práticas políticas e pedagógicas que dele derivam, ao mesmo tempo que tratem de construir novas perspectivas para a educação no sentido mais amplo das políticas educacionais, além de novos delineamentos de práticas pedagógicas.

Claro, o pensamento único – o neoliberalismo –, com seu corolário adequado à gestão dos sistemas de ensino e às escolas, concebeu o gerencialismo empresarial. Foi justamente resultante da sua intervenção na política educacional, com a presença efetiva de representantes do universo corporativo no Ministério da Educação (MEC) e no Conselho Nacional de Educação (CNE), que se elaborou e se impôs ao país e aos jovens, de forma particular, pelos efeitos que lhes atingirão no presente e no futuro, o “Novo Ensino Médio”. Também os futuros professores serão atingidos frontalmente, caso seja implementada pelas universidades a Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019.20

Desnecessário fazer aqui uma digressão sobre essa resolução e seus efeitos deletérios no processo de formação de novas gerações de educadores, uma vez que foram produzidas análises muito pertinentes pelos pesquisadores dos grupos de pesquisa que se dedicam ao tema da formação de educadores21 e que debatem em vários fóruns nacionais as políticas do governo federal antagônicas às concepções historicamente construídas pelos educadores. Desde os anos de 1980, tem sido elaborada e apresentada aos órgãos da educação, MEC e CNE, a defesa de uma formação geral, ampla e profunda, além de especializada na realização das práticas de gestão educacional e das práticas pedagógicas, especificamente.

Esses pesquisadores demonstraram como essa Resolução de 2019 estabelece uma articulação orgânica com a BNCC e as demais políticas de empresariamento dos sistemas de ensino e das universidades, que continuarão a desconstruir uma parte da história da educação muito significativa, em que professores de todos os níveis de ensino, participando de congressos nacionais, regionais e locais, debateram os temas candentes da educação nacional, para os Planos Nacionais de Educação (PNEs), definindo outras perspectivas para o desenvolvimento da educação brasileira.


Um debate permanente para a redefinição dos rumos da educação


A intervenção desastrosa do atual governo na educação, em todos os níveis, tem


20 Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica Educação Básica (BNCC-Formação).

21 Fundamental a leitura crítica acerca da formação de professores que se encontra no livro de Elza Peixoto, Para a crítica dos fundamentos da formação de professores no Brasil – O problema da prática.

provocado uma reação vigorosa por parte dos educadores de todas as regiões do país. Congressos, seminários, cursos e lives foram realizados por professores e pesquisadores, sistematicamente nos anos de 2020 e 2021, bem como continuam a ser fontes de debates fundamentais no ano de 2022, um ano absolutamente crucial, para que se faça uma travessia na história do país. O Brasil se encontra imerso em uma crise ampla, geral e devastadora, em todas as dimensões, dada a ação organizada e executada, de forma planejada, pelas forças de direita e de extrema- direita que ocuparam o governo central, aplicando, em 2016, um duro golpe na frágil democracia brasileira e, em especial desde a última eleição para presidente, em 2018, produzindo um aprofundamento da crise política, econômica, social e cultural, sem precedentes, apesar de fazer uso de formas e mecanismos assemelhados à ditadura militar dos anos de 1960, 1970 e 1980.

Se pensarmos no volume e na qualidade da produção científica das universidades brasileiras em todas as áreas e, particularmente, na área da saúde, como ficou demonstrado pelo trabalho efetivo ao combate ao SARS-CoV-2, responsável pela pandemia de Covid-19; se avaliarmos a extraordinária rede federal de instituições de ensino superior, dos institutos federais de educação e institutos estaduais de educação em vários estados, além das escolas de educação básica, poder-se-ia afirmar que temos um potencial extraordinário de conhecimento acumulado.

Elaborar e apresentar propostas consistentes e concretas de políticas para o desenvolvimento da educação, da ciência, em todas as áreas, e da cultura, parece ser o grande desafio para 2022. Portanto, não faltarão possibilidades de resgate de perspectivas, concepções, teorias e práticas científicas, filosóficas e pedagógicas para um debate atual e contextualizado de redefinição dos rumos da educação do Brasil, que possa apresentar referências fundamentais para o próximo governo do país, a partir de 2023.

Sem dúvida, alguns indicadores poderão contribuir para que possam ser estabelecidas bases para consensos possíveis e inadiáveis, no que se refere à gestão da educação em todos os níveis. À guisa de considerações para a reflexão e o debate em diversos espaços, são enumerados aqui alguns aspectos prioritários, com a finalidade de contribuir para esse momento estratégico de preparação para as lutas sociais e educacionais que virão.

Em primeiro lugar, compreende-se como condição sine qua non para um giro

epistemológico, lógico, ideológico, político e pedagógico, que se faça a instituição de um Fórum de Educação Nacional, com caráter de instância efetiva de participação política da sociedade civil na definição de políticas educacionais, no qual estejam como integrantes os representantes dos fóruns especializados da área da educação, além dos representantes de movimentos sociais historicamente envolvidos com as lutas pela educação pública.

Sem que exista uma sequência nas considerações que se seguem, mas que decorrem, naturalmente, da primeira proposição acima explicitada, pode-se reduzir a influência das estruturas burocráticas e empresariais que assumiram a função de dar a direção para a educação do país, em todos os níveis. Na realidade, existe uma sobreposição de estruturas e de custos para os orçamentos públicos, com a expansão de órgãos, assessorias e consultorias, quando se dispõe das universidades públicas, em que se encontram os professores e pesquisadores do ensino superior, com produção científica amplamente divulgada e avaliada por seus pares, cuja qualidade e pertinência têm se elevado, historicamente, como indicam os resultados dos cursos de mestrado, doutorado e os estágios de pós-doutorado, nas diversas regiões do país.

É despropositado que representantes do universo corporativo assumam a liderança dos processos de planejamento, execução e avaliação da educação em órgãos dos entes federados, oportunizando aos governos federal, estaduais e municipais ações para o fortalecimento de atividades-meio, produzindo o desinvestimento de recursos nas atividades-fim e contribuindo com a precarização da carreira do magistério, por meio das contrarreformas em andamento, no nível da educação básica e do ensino superior, nos cursos de pedagogia e das licenciaturas.

O argumento que sustenta essa deslocalização dos processos educativos é sempre apresentado pelos órgãos oficiais como sendo uma imposição dos organismos internacionais, dos quais “compramos em dólar” os pacotes de propostas “com ideias para educação fora do lugar”, no entanto, adequadas aos propósitos dos donos dos negócios da educação, com altíssima rentabilidade, como bem analisa Seki (2020, p. 40) em sua tese22, ao apresentar seu objeto de pesquisa.


Nosso objeto de estudos são as transformações ocorridas no Ensino


22 SEKI, Allan Kenji. Determinações do capital financeiro no Ensino Superior: fundo público, regula- mentações e formação de oligopólios no Brasil (1990-2018),Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis, 2020.

Superior brasileiro com a entrada de grandes bancos e fundos de investimentos no setor. Esse processo avança a partir de meados dos anos 2000, mas tem raízes históricas profundas. Situa-se, nesse sentido, como legatário dos programas de estímulos à expansão privada do ensino no período da ditadura empresarial-militar dos anos 1960, entendendo que essas políticas foram incorporadas numa posição estatal em favor da mercantilização e privatização da Educação Superior. Nessa esteira, como ponto nodal, temos a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (BRASIL, 1996), na qual as disputas em torno da forma social desses processos (mercantilização, privatização e oligopolização) deixaram alguns traços que evidenciam, hoje, como essa política de Estado estava sendo preparada em largos passos nos sucessivos governos.


Então, trata-se de recuperar a gestão social e participativa dos orçamentos públicos pelos setores organizados da sociedade civil, com destaque para a educação, considerando os desvios de recursos praticados com a cumplicidade do Poder Legislativo, em conluio com as práticas do Executivo no atual governo, que se pode denominar de (des)governo contrário aos interesses nacionais relacionados às necessidades cruciais da população brasileira, em todos os setores estratégicos, privatizados ou em vias de privatização, a partir dos anos de 1990.

Além dessas proposições, parece pertinente que se constituam conselhos populares articulados pelos movimentos sociais, com a representação dos segmentos mais atingidos pela política econômica e social do atual governo, de modo que se perenize a participação política ativa e permanente da sociedade organizada, para avaliar os processos de execução das políticas públicas, cujos planos, programas e projetos devem ser amplamente divulgados, acompanhados e analisados, para referendar a própria legitimidade dos governantes que assumem os cargos do Poder Executivo, além da legitimidade do exercício dos mandatos dos políticos que ocupam o Poder Legislativo.

Sem dúvida, as propostas apresentadas aqui, como provocações à reflexão e ao debate por diversos segmentos da educação, precisam também descer ao nível dos processos de ensino-aprendizagem, como nos indica Silva (2022. p. 1), ao analisar tendências atuais da educação brasileira, sob sua ótica, apresentando uma síntese importante.


[…] particularmente no campo progressista com que escolhemos dialogar, o debate configurou-se por meio de duas atitudes intelectuais recorrentes: a melancolia pedagógica e a compulsão modernizadora. Com essas duas figuras analíticas tentamos mapear os dois posicionamentos predominantes no estudo da escolarização

contemporânea em nosso país. De um lado, aqueles que advogam pela defesa da escola, dos conhecimentos e experiências relevantes, idealizados como um direito no projeto de escola erigido na Modernidade. De outro, os autores que assumem posicionamentos voltados para o futuro e que perceberam na pandemia a oportunidade de acelerar a modernização, pela via da combinação entre metodologias inovadoras e tecnologias digitais.

Certamente, a retomada da prática de ensino-aprendizagem presencial na educação básica, após longos dois anos de trabalho doloroso dos estudantes e professores pelo sistema on-line, poderá requerer atenção especial para um retorno do debate sobre a BNCC, inclusive para a efetiva suspensão do Novo Ensino Médio obrigatório e prejudicial ao futuro da juventude brasileira, bem como o debate necessário de temáticas que estão atravessando as condições de vida e de estudo das crianças e dos jovens no Brasil e no mundo, mas, prioritariamente, recuperar a capacidade de leitura e de compreensão da realidade.

Relocalizar os processos educativos nos espaços formais e informais pode ser uma estratégia importante para a retomada do projeto de uma escola democrática na qual as lutas pela educação pública e pela construção das bases de uma sociedade justa, igualitária e democrática se tornem compartilhadas por estudantes, professores, técnico-administrativos, comunidades de pais e vizinhos das escolas, tornando esta uma temática refletida coletivamente, por ser do interesse comum de todas as pessoas que desejam a transformação da sociedade. Silva (2022, p. 4), numa perspectiva convergente à que se apresenta nessa reflexão final, sugere:


[…] podemos sinalizar o advento de novas temáticas: cidadania digital, crise climática, migrações internacionais, diferenças e diversidades, novas morfologias do trabalho, pandemias e saúde coletiva, tecnologias 4.0, leitura crítica das mídias e críticas ao negacionismo científico, dentre outras. A efetivação de uma agenda democrática, horizontalmente construída com nossos estudantes, docentes e comunidades educativas, precisará enfrentar temáticas como essas. Ainda poderíamos acrescentar as lutas por novas formas de vida, outros modos de associação ou mesmo as formas econômicas pós-capitalistas.


Uma última proposição, mas não menos importante, é efetivamente a ideia de retomar a educação como prática pedagógica coletiva, fundamental para o desenvolvimento humano, portanto, relocalizar os processos educativos, sob a direção dos educadores e dos segmentos sociais que têm na escola pública a possibilidade de adentrar ao universo da filosofia, das ciências, da cultura e da arte, apropriando-se de conhecimentos estratégicos para a luta pela renovação do projeto de existência coletiva

e solidária dos seres humanos, elaborando sentidos mais construtivos à sociedade, do ponto de vista ético e estético, fora das garras do capital, do capitalismo global e da sua lógica que reduz os seres humanos à condição de mercadoria. Frigotto (2021, p. 13), no “Prefácio” ao livro Conhecimento Escolar e Lutas de Classes, recorda Florestan Fernandes, que situava a educação como o maior dilema brasileiro, igual ou até maior que a miséria. Isto porque a sua negação priva os miseráveis e os excluídos de tomarem consciência de sua exploração e, desse modo, buscarem os meios para resistir. É certo que o desafio que se apresenta aos educadores requer uma formação teórica consistente, na perspectiva de uma pedagogia revolucionária. Assim, os educadores- militantes necessitam de uma formação continuada para superar os limites históricos de seus cursos de graduação, a partir da perspectiva de apreensão de uma teoria da educação que trabalhe o processo de ensino-aprendizagem, ancorada na teoria do conhecimento marxista, em que o concreto assume a posição de categoria central, como explica Saviani (2021), ao apresentar a sua concepção de pedagogia histórico-crítica como uma pedagogia concreta.

É inadiável a apreensão da perspectiva de uma teoria da educação e de uma pedagogia marxista para que se possam retomar os processos educativos e os valores da ciência e da cultura como prioridade de políticas educacionais que sejam concebidas e elaboradas por educadores, estudantes e comunidade educativa como um todo, no sentido da superação teórica e prática do paradigma do gerencialismo empresarial, pois a escola não é uma empresa23, e a educação não é uma mercadoria. Porém, Laval (2019, p. 280) enfatiza: “[…] as contradições que surgem da escola neoliberal revelam um impasse geral. A lógica do capitalismo global, baseada na acumulação de capital, tende a tomar todas as esferas da existência”.

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23 No ano de 1984, foi publicada a primeira edição do livro Administração escolar: um problema educativo ou empresarial, cuja quinta edição ocorreu em 2012. Em 2019, foi publicado no Brasil o livro A escola não é uma empresa – O neoliberalismo em ataque ao ensino público, de Christian Laval.

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