V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799 X


PROCESSOS DE AÇÃO E FORMAÇÃO POLÍTICA: A CONTRIBUIÇÃO DE BETO RIBEIRO E DO MPA PARA A LUTA CAMPONESA1



Entrevista com Beto Ribeiro do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, realizada pelas professoras Jacqueline Botelho (UFF)2 e Leonilde Servolo de Medeiros (UFRRJ)3


1Entrevista recebida em 24/03/2022. Aprovada pelos editores em 25/03/2022. Publicada em 28/03/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.53633.

2 Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na Formação Social Brasileira. Pesquisadora permanente do Núcleo de Documentação e Dados em Trabalho e Educação da Universidade Federal Fluminense. Integrante do Grupo THESE - Trabalho, História, Educação e Saúde. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Educação Popular e Movimentos Sociais.. E-mail: botelho.jacque@gmail.com;

Lattes: http://lattes.cnpq.br/7423332568707388; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1989-5089.

3 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e Mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1983). Professora titular no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Política Públicas no Campo, do CPDA/UFRRJ e membro do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: leonildemedeiros@gmail.com; ORCID: https://Orcid.org/0000-0001-5030-8044; Lattes: http://lattes.cnpq.br/6874717097891723.

Jacqueline: Beto, queremos mais uma vez agradecer sua participação, como dirigente do MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores, para uma entrevista que faz parte do número 41 da revista Trabalho Necessário com a temática Questão agrária e lutas no campo: experiências camponesas. É importante sua fala para que possamos conhecer os desafios hoje impostos para a questão agrária no Brasil, neste número em que estamos abordando o tema a partir da perspectiva das experiências e lutas camponesas. Esse momento de entrevista nos permite conhecer os processos de luta e resistência na atualidade e também as análises que os próprios movimentos sociais vêm fazendo em relação a essa temática, para nós tão importante. Mais uma vez muito obrigada por estar conosco. Espero que possamos estar também juntos em outras oportunidades. Eu sou Professora da Escola de Serviço Social da UFF, coordeno também o NEPEQ – Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na formação social brasileira – da Universidade Federal Fluminense.

Passo para a Leonilde fazer a apresentação da relação deste trabalho nosso na revista com o grupo de pesquisa que ela coordena. É uma forma de estreitarmos os laços enquanto pesquisadoras, mas especialmente na revista.


Leonilde: Também agradeço muito, Beto, seu aceite a nosso convite. Meu primeiro contato com a Jacqueline foi na Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária - JURA, em 2018 ou 2019, não lembro bem. A partir daí, começamos algumas conversas que resultaram no convite para participar da edição deste número da revista Trabalho Necessário. Sou professora do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e lá coordeno o Núcleo de Documentação, Pesquisa e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo (NMSPP). É um grupo de pesquisa, mas também um núcleo que reúne documentação

e a disponibiliza no site http://r1.ufrrj.br/cpda/nms/, onde é possível acessar planilhas, com sínteses documentais, para que os interessados saibam o que temos e possam fazer consulta dos documentos in loco.


Leonilde: Acho que poderíamos começar, Beto, com sua apresentação: fale um pouco sobre você, sua trajetória, como chegou no Rio de Janeiro e ao MPA.


Beto: Tenho 36 anos. Sou baiano, do município de Bibas, da região de Vitória da Conquista, bem na divisa de Minas. É uma região de transição da Mata Atlântica para a Caatinga e tem um clima que a gente chama de “Mata do Cipó”: é uma região em que faz muito frio. Frio para a gente... 14 graus (risadas). É uma região que produz muito café, é um planalto, na verdade...

Minha origem é camponesa, agricultora e lavradora. Minha família, no caso mãe e pai, é um misto de rural e urbano. Até eu ter sete anos de idade, mais ou menos, minha família ficava migrando entre São Paulo e Bahia. Meu pai trabalhava em São Paulo e minha mãe acompanhava. Ficava seis meses em São Paulo, meu pai trabalhando, minha mãe em casa e depois mais seis meses na Bahia. Era muita instabilidade e minha mãe resolveu se separar do meu pai, também por essa razão de não se fixar muito num território. A gente ficou na Bahia, na roça.

Sou da região do rio Gavião. Eu falo do rio Gavião, porque, para compreender o MPA na região, tem que entender que houve a construção de uma barragem...

Nos anos 80, entre 85-88, houve a construção de uma barragem pelo DNOCS

- Departamento Nacional Contra a Seca, no rio Gavião, e houve uma luta de resistência contra a barragem. Como não foi possível impedir, houve uma luta pelo reassentamento e indenização por causa da inundação pelas águas. Minha família toda se envolveu, minha avó, minhas tias. Minha mãe participou pouco. Como ela ficava entre São Paulo e Bahia, pouco conseguia participar.

Cresci ouvindo essa história. Foram 40 dias de ocupação dos canteiros de obras da Andrade Gutierrez, que já era uma grande construtora nos anos 80. As famílias camponesas da região ocuparam o canteiro de obras e pararam por 40 dias as obras, enquanto não houvesse uma negociação para poder garantir minimamente

uma indenização das benfeitorias. Já que todo mundo era posseiro, ninguém tinha propriedade da terra, então só seria pago o que estava construído e plantado e a construção das casas. A casa da minha mãe, onde cresci, foi fruto dessa luta. Eu cresci ouvindo essa história, a história da comunidade.

Essa luta dos anos 80 foi impulsionada pelas Comunidades Eclesiais de Base

-CEBs, pela CUT – Central Única dos Trabalhadores. Na época, a CUT de Vitória da Conquista deslocou pessoas para acompanhar esse processo. Essa luta virou uma das principais dos anos 80 na Bahia. Houve muitas romarias da terra durante esses 40 dias, com eventos regionais e estaduais.

Cresci nesse ambiente religioso também, da Teologia da Libertação, de uma Igreja Católica comprometida com as lutas comunitárias camponesas. O sindicato dos trabalhadores rurais na época também estava envolvido com as lutas. Cresci ouvindo essas histórias, em uma comunidade muito marcada por essa organização comunitária vinculada à Teologia da Libertação. Para além de orar e crer em Deus, agir também. A terra onde corre leite e mel era a terra existente e não aquela que se tem quando a gente morre... Foram muitos missionários, padres e freiras que atuaram nesse território nos anos 80. Desde criança, no trabalho da comunidade, a forma de organização era a Igreja Católica: era o espaço social que tínhamos para nos reunir e discutir, desde a infância até a adolescência. Meu primeiro espaço de organização foi dentro da Igreja Católica, nas Comunidades Eclesiais de Base.

Posteriormente, nos anos 2000, quando já estava entrando na adolescência, nós organizamos uma associação de agricultores local. Então a gente saiu do espaço religioso e foi para o espaço político-social e econômico também, com a construção de uma associação local da comunidade e de agricultores dali da região com pautas locais. Eu lembro que a primeira pauta foi energia elétrica, isso no final dos anos 90 e início dos 2000. Não tinha energia elétrica e a gente se organizou em associações na comunidade para poder reivindicar.

Existia na região um trabalho, que eu diria partidário, do Partido dos Trabalhadores, muito vinculado aos núcleos de base. Parte da minha família, meus tios, era vinculada ao PT, um PT do território da base e que tinha como princípio fazer a luta direta, vindo da ocupação dos anos 80. Na luta da energia elétrica, por exemplo, a gente, a associação de moradores, ocupou a prefeitura várias vezes. Então, nossa

comunidade era inimiga dos prefeitos, não é... Todos os prefeitos odiavam nossa comunidade, porque era o pessoal que chegava e ocupava, no caso, a prefeitura.

Cresci nesse ambiente de organização comunitária vinculada à Igreja... Na igreja e associação. E nós começamos a organizar neste território, no município de Caraíba, todas as comunidades de base. Isso nos anos 2000. Enquanto, no geral, a Teologia da Libertação estava em descenso, a gente estava mobilizando lá. E, depois eu descobri, há uns 5 anos, que um dos padres que ajudou depois construir o MPA, acompanhava esse processo desde os anos 80, o Padre Picolle, um italiano, que foi do CEAS - Centro de Estudos e Ação Social, da Bahia, em Salvador. Depois eu descobri que ele vinha da Ação Popular - AP4. Ninguém sabia disso. E ele estava lá fazendo trabalho. Temos que aprender muito com esse pessoal!

Nós tínhamos 28 comunidades eclesiais de base no município e reuníamos mensalmente as 28 comunidades. Construímos uma cartilha junto com a Diocese, um livrinho, Cadernos de Reflexões. É uma estrutura, que eu diria que é muito leninista, de organização. Tinha um caderno de campo que era uma passagem da Bíblia com perguntas para discutir o cotidiano. Tinha grupos de reflexão por família, não tinha muito celular. Tinha mais de 30 famílias e tinha três grupos de reflexão, que se reuniam semanalmente e uma vez por mês se juntavam para poder socializar. Era uma metodologia muito interessante. Funcionou muito...


Leonilde: Beto, essas comunidades eram rurais e urbanas ou só rurais?


Beto: Rurais. Todas rurais. Na cidade tinha duas só. Deve ter hoje, sei lá, dez mil pessoas na cidade. É uma cidade bem pequena, no interior. Então a gente reunia uma vez por semana os núcleos por comunidade e uma vez por mês juntava todas as


4 A Ação Popular foi uma organização política nacional, fundada em 1962 em um congresso da Juventude Universitária Católica (JUC) em Belo Horizonte. Seu objetivo era formar quadros que pudessem “participar de uma transformação radical da estrutura brasileira em sua passagem do capitalismo para o socialismo”. Seu primeiro coordenador nacional foi Herbert José de Sousa, e seu principal ideólogo, o padre Henrique Vaz. A AP propunha-se a desenvolver seu trabalho prioritariamente junto aos setores operário e rural. Atuou nas universidades, nos centros populares de cultura, no Movimento de Educação de Base (MEB), movimento de alfabetização e conscientização das camadas populares, e nas campanhas de sindicalização rural do Nordeste. Seus militantes foram duramente perseguidos durante a ditadura, mas alguns continuaram atuantes (http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/acao-popular-ap, consulta em 21 de março de 2022).

comunidades para fazer a socialização das reflexões e tirar as ações. Essas ações é que permitiram, por exemplo, a ocupação da prefeitura na luta pela energia elétrica.

No ano de 2001, 2002 é quando o MPA5 chega nessa região. O MPA nasceu em 96 e quem trouxe o MPA para a região do sudoeste da Bahia foram justamente essas lideranças que já tinham uma articulação com a Comissão Pastoral da Terra - CPT. O Padre Daniel Picolle era um dos que tinha um mapa de todas as lutas na região. Já tinha tido também uma greve dos cafeicultores nos anos 80, em Vitória da Conquista. Ele também estava envolvido. Eu lembro que o Daniel era uma figura muito importante. O Padre Vasco também. E uma liderança que é dos anos 80 lá da comunidade: o Diacísio Ribeiro, que foi um interlocutor com o MPA nacional e o Daniel, porque já havia um processo de tentar organizar a central de associações.

Já existia um movimento nacional que tinha uma perspectiva de organização também em função da AP e o MPA fez essa interface entre o movimento nacional e esse processo de organização da comunidade. Na época, foi uma pessoa do MPA para lá, para fazer a rodada e já tinha um trabalho de mobilização nos municípios. O MPA chegou com uma pauta muito bem precisa. Foi um período que tinha muitos endividados em função do PRONAF6. O governo Fernando Henrique, quando criou o PRONAF, criou da pior forma possível. Tinha mais agricultores endividados do que agricultores que tinham tido sucesso com o PRONAF. O MPA chegou com luta para reivindicar a negociação da dívida dos agricultores. Fazer a negociação das dívidas e lutar por políticas públicas ali na região. Isso no governo Lula também, em 2003.

Eu ouvi falar do MPA pela primeira vez em 2002, pelo meu tio, que também era da associação (nesse período era vice-presidente)... Também pela liderança da comunidade católica, o Nilson. E quando o MPA chegou, as nossas dificuldades eram de estar lutando sozinho. Não era só da nossa comunidade, ou seja, lutar por energia elétrica, não era só um problema daquela região, era de todas as comunidades, era da região inteira. Por exemplo, lutar por renegociar a dívida não era problema só de uma associação.

O MPA chegou juntando essas reivindicações que estavam pulverizadas nos municípios do sudeste da Bahia e fez um grande encontro em 2002, uma mobilização.


5 MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores - mpabrasil.org.br

6 PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, um programa de crédito voltado para a agricultura familiar criado pelo decreto 1.946, de junho de 1996. Era uma antiga reivindicação dos então chamados “pequenos agricultores” e contemplava agricultores com até quatro módulos rurais.

Foi meu primeiro espaço de conhecer a mobilização de rua e eu fui para essa mobilização e saí de lá encantado! Eram 800 agricultores, que se encontraram por dois dias no Centro Diocesano de Vitória da Conquista. O sujeito aí tem um vínculo muito forte com a Igreja Católica. Ou seja, fui assim, nesse trabalho, de trabalho de massa do Movimento, de levar as pessoas que iam para mobilização. Na mobilização tinha pessoas endividadas e eu fui destacado para poder ir representando a associação de produtores da comunidade. E eu saí de lá apaixonado pelo MPA!!!!

A principal luta foi a ocupação do Banco do Nordeste, que era o agente do Governo Federal que implementava a política de crédito. Quando eu vi o pessoal ocupando o banco, eu saí maravilhado, por que não tinha um político! Era o povo revoltado, não é? Ocupando com facão, com foice... Lembro até que quebraram os vidros do banco, porque foi a forma do gerente descer para negociar.... Ou seja, o pessoal tinha protocolado antes com o gerente, mas ele não foi, só depois eu entendi isso. Não foram só dirigentes sindicais para negociar com o gerente do banco, foram 200 agricultores. Então essa é uma diferença também.

O MPA também surge numa tentativa de mudar o modelo de movimento sindical da região. Anteriormente iria o presidente do sindicato, o secretário e o tesoureiro. No máximo três pessoas para conversar com o gerente do banco, para negociar. Então a forma que o MPA trouxe ali também rompeu isso. Rompeu com essa lógica de negociação sindical, dos sindicatos de trabalhadores rurais - STRs da região. Foi tirada uma comissão em uma assembleia, uma pessoa por município, umas 20 pessoas. É claro que na comissão tinha militância que estava mais instruída sobre a negociação em si e sobre o que estava sendo discutido no Congresso Nacional, como deveria se implementar... E eu vi 800 pessoas negociarem juntas... Depois que o gerente recebeu o movimento, depois da ocupação do banco, houve a negociação e ali mesmo já houve uma assembleia em frente ao banco. Então a cidade nesses dias virou lugar de muito trânsito. Tinha um governo lá em Vitória da Conquista que era do PT. Se fosse agora, teria tropa de choque… Eu achei interessante aquilo e a formulação política da luta... Não tinha ainda, por exemplo, a literatura, diria, mais marxista. Era mais leitura da Teologia da Libertação: Frei Betto, Leonardo Boff era o que a gente estudava. Então achei fantástico aquilo ali!!! Todo mundo foi negociar juntos, não foram dois ou três e depois deram retorno.

Saí de lá muito animado!!! Estava no segundo grau também e meu tio estava muito nos encontros. Em 2003 participei já de um encontro de formação regional do MPA, como curioso. Estava indo porque também queria aproveitar o fim de semana com as pessoas... Em 2004, houve a Conferência Terra e Água, em Brasília, que foi uma grande conferência dos movimentos sociais do campo e sindical, com a ideia de construir uma plataforma para apresentar para o governo Lula. Da minha comunidade foram várias pessoas. Uma delas fui eu, porque eu já era da associação de agricultores e era um jovem que não tinha muitos compromissos, né? Meu compromisso era com a roça, com a escola.

Cheguei lá também fiquei encantado, tinha quinze mil pessoas. Foi quando eu conheci todos os demais movimentos do campo, MST, MMC7, ou seja, outras organizações. Foi um momento muito… foi assim meio... porque eu saí lá da roça... as minhas relações eram muito restritas e não conhecia o mundo, não é? Tinha delegações internacionais. Fiquei apaixonado pelo MPA, mas era o meu último ano no segundo grau e comecei a participar, ainda em 2004, de encontros regionais do MPA. E num desses encontros fiquei como interlocutor do município com a regional do MPA. Estava no final de 2004... Entre 2004 até março, mais ou menos, de 2005, o MPA da Bahia estava fazendo um mutirão que era para reunir todas as comunidades, para poder fazer um processo de organização do MPA no município.


Leonilde: Beto, quais as bandeiras de vocês nesse trabalho inicial de organização? Você falou do crédito...


Beto: A negociação das dívidas, energia elétrica e acesso ao PRONAF B8. Eram as três coisas que juntavam as comunidades. O que acontecia com o PRONAF? O agricultor tinha uma renda, lá, de dez mil reais por ano, e não podia pegar um crédito… O banco implementava um crédito para o agricultor que ele não tinha condição de pagar... E ele tinha que pagar com a terra no final. Também tinha um trabalho com os agricultores sobre a que linha de crédito iriam ter acesso. Então, na



7 O Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) se autodefine como pertencente à classe trabalhadora e engajado na luta pela causa feminista e transformação da sociedade. Disponível em < Quem Somos e Nossa Missão - MMC - Movimento de Mulheres Camponesas (mmcbrasil.org) > Acesso em 19 março de 2022.

8 Linha do PRONAF voltado para agricultores(as) familiares com renda bruta anual familiar de até R$ 20.000,00.

época, era o PRONAF B, o PRONAF que enquadrava na renda. Ou seja, isso foi um erro que o movimento sindical teve na época, que foi de organizar a linha de crédito para famílias que não conseguiam pagar, pois a renda era incompatível com pagar aquilo lá. Então tinha esse trabalho também de organização para receber o PRONAF

B. O PRONAF virou uma bandeira de uma luta, nas condições econômicas das famílias.

Eu vou contar para vocês também quando eu comecei a me ver nisto. Eu, até então, era admirador do Movimento. Então o Movimento em 2004, 2005 estava fazendo mutirões. Nos mutirões sempre dois militantes iam para os municípios. Então, vinha um militante mais experiente, com o militante que estava chegando. Era em dupla. Um companheiro e uma companheira. E eu era a pessoa do município responsável por organizar a agenda de reuniões no fim de semana com as associações. Todas as associações tinham uma comunidade eclesial de base. As reuniões que nós marcamos sexta, sábado e domingo (eram três reuniões por dia) eram para apresentação do MPA e para levantar os problemas da comunidade. Eram sempre depois dos cultos nas comunidades. Então, era tudo muito misturado, o trabalho religioso com trabalho das associações. Às vezes, tinha reunião da associação e depois já era o culto. Ou vice-versa: tendo culto, algumas pessoas iam embora e outras chegavam. Eu fiquei nessa etapa de organizar e, no dia que estava marcado para essa agenda, chegou uma companheira que veio de Vitória da Conquista, chamada Estela, ela estava recém chegando no MPA. Era o primeiro trabalho dela. O outro companheiro que era o militante mais velho e já tinha mais experiência do que a gente, não foi e aí eu me desesperei!! Liguei para a secretaria do MPA: “Ele não está aqui, só está a Estela e a Estela não tem experiência nas redes e eu vou cancelar!”. Aí a liderança da regional, que era a Maria, falou assim: “Não cancela não! Vai você e a Estela. Vai e conversa com as comunidades. Ou seja, vê o que tem na cartilha do movimento para militância, e vai”. Aí fomos a Estela e eu, dois inexperientes, para nossa rodada de reuniões.


Leonilde: É assim que a gente aprende: sendo jogado na fogueira.


Beto: Foi o fim de semana inteiro, intensivo. A gente montou um roteiro... A gente estava numa comunidade e não tinha carro. Não tinha veículo do Movimento. A

comunidade é que garantia toda a logística. A gente chegou na comunidade, fez a reunião, outra comunidade ia buscar a gente, de cavalo. Então rodamos nessas nove comunidades... uma era na sede do município, na casa paroquial. Aconteceu na casa paroquial, já criando uma coordenação municipal do MPA para fazer um levantamento da energia elétrica, da renegociação de dívidas, de novos PRONAFs e começar a organização de uma coordenação do MPA no município. Enfim, eu diria que vi que eu poderia ser militante do Movimento. Depois a gente começou a fazer um trabalho no município, fomos em outras comunidades, enfim... Comecei a participar de espaços de formação e, em meados de 2005, acho que em junho, mais ou menos, esse trabalho em Caraíbas já estava acontecendo, já tinha uma coordenação acontecendo e aí tinha um militante nessa coordenação municipal. E ali os coordenadores dos grupos de base do MPA iam fazer as reuniões mensais nas comunidades e depois voltavam. Tinha um fluxo de reuniões mensais entre as comunidades, a coordenação municipal e a coordenação regional do MPA. Isso é a estrutura política do movimento. Mais ou menos em junho de 2005, o MPA estava indo para uma região da Bahia na Chapada Diamantina, que é Rio de Contas. Cheguei em Livramento de Nossa Senhora. Fui deslocado para Rio de Contas. O MPA precisava mandar alguém para lá, para poder fazer esse trabalho de organização. E lá quem nos recebeu foi a Igreja Católica também.


Leonilde: Era a mesma diocese, Beto?


Beto: Nós estávamos na diocese de Caetité, na região de Caraíbas, e a diocese de Brumado é em outro município. É outra diocese. Depois eu descobri que naquela região teve padres muito progressistas! Só que ficava muito camuflado nos anos 90 em função dos traumas do pós-ditadura... E quando o MPA chegou, esses padres abriram as portas para o MPA. Então, eu fui ficando lá no centro diocesano, e a dona Maria, que era a liderança de lá, uma liderança da Pastoral da Saúde, conhecia todas as comunidades. E na primeira reunião que teve do município, a gente usou uma metodologia diferente. Ia ter uma reunião das comunidades no centro diocesano e uma das pautas era o MPA. Tinham 23 municípios que era Livramento de Nossa Senhora, Rio de Contas e Dom Basílio Isso fica mais ou menos a umas quatro horas

de viagem. Nesse processo, fui deslocado para lá, para morar lá. Fiquei lá um ano

mais ou menos, quase um ano e meio, acompanhando lá. Nesse processo, fui às assembleias marcadas nas comunidades. Cheguei lá em Itanajé. Tinha comunidade quilombola. Então, foi meu primeiro trabalho, foi quando eu me tornei de fato militante… Meu primeiro trabalho de base mesmo, enquanto militante que tinha todas as responsabilidades de um militante, foi nessa época e foi muito mais com os quilombolas, em Rio de Contas e Livramento de Nossa Senhora. A gente usou essa metodologia de rodar as comunidades, fazer as reuniões, criar as coordenações do MPA em cada comunidade e, posteriormente, a coordenação municipal. Nesses municípios, a pauta era energia elétrica e reconhecimento dos territórios quilombolas, o autorreconhecimento. Foi no boom também da Fundação Palmares. Eu acho que um dos grandes acertos dos governos do PT foi o autorreconhecimento. Criou o imbróglio jurídico entre a Fundação Palmares e o Incra, porque a Fundação Palmares criou um dispositivo legal sobre como se autorreconhecia. Independentemente do INCRA dizer que era ou não, depois o INCRA tinha dizer que era. Criou uma luta ali tremenda entre a Fundação Palmares e o INCRA.

A pauta era o reconhecimento das comunidades. Entre 2005, 2006, essa era pauta principal: energia elétrica, o autorreconhecimento das comunidades, e o Programa P1+29, um sistema das comunidades para ter água potável para beber e água para a agricultura. Isso era o que mobilizava nas comunidades. Viemos fazer um trabalho de mobilização e de formação política a partir dessas pautas.

Em 2005, 2006, 2007 queriam me mandar para o Rio Grande do Norte para poder criar o MPA lá. Então saí da minha condição de camponês, liderança local, não é? Fui promovido, já com trabalho de organização política do Movimento. Minha relação com a terra era uma vez por mês, quando eu estava uma semana na casa da minha mãe. Minha renda praticamente já não vinha mais da roça. Eu tinha minhas ovelhas, que minha família tocava, mas a minha renda já não vinha mais cem por cento da roça. Eu virei um liberado do MPA. A minha renda vinha do trabalho político. E minhas ovelhas se acabaram: depois de 2008, vendi tudo. Não dava mais conta de deixar lá, sem eu poder cuidar.


9 Programa Uma terra, duas águas, criado pela ASA - Articulação do Semiárido Brasileiro, em 2007, com o objetivo de ampliar o estoque de água das famílias, comunidades rurais e populações tradicionais para dar conta das necessidades dos plantios e das criações animais. Os objetivos são promover a soberania e a segurança alimentar e nutricional das famílias agricultoras e fomentar a geração de emprego e renda para as mesmas, estimulando a processos participativos para o desenvolvimento rural do Semiárido brasileiro

(https://www.asabrasil.org.br/acoes/p1-2#categoria_img, consulta em 22 de março de 2022).

Fui para o Rio Grande do Norte, teve um problema lá. Eu fui lá para poder fazer um diagnóstico, passei acho que dois meses, entreguei o diagnóstico para a direção do Movimento no Nordeste e fiquei atuando ainda em 2007, acompanhando.

Minha esposa estava em Livramento ainda, mas eu não morava mais lá. Passava 15 dias lá e 15 rodando por outras regionais da Bahia. Bastante gente, dado um processo de avançar na organização política. Eu ficava rodando as regionais e fui também contribuir no coletivo de formação do MPA. Então eu acabei virando um formador também, em outros municípios.

Em 2008, nós tínhamos uma brigada da Via Campesina na Venezuela (MPA, MST, MAB10 e os movimentos da Colômbia e do México).

A Via Campesina fez um convênio em 2006 com o governo da Venezuela, convênio que foi assinado no Fórum Social Mundial de 2005, para construir uma universidade camponesa na Venezuela. Uma universidade de Engenharia Agroecológica. Seria a primeira universidade de Engenharia Agroecológica! É a única da América Latina! A Via Campesina construiu com o governo da Venezuela as condições para a universidade e para os estudantes. A meta era formar dez mil engenheiros em dez anos. E foi uma turma de estudantes de 14 países.

Em 2008 o MPA tinha que enviar alguém para poder ajudar essa universidade, o IALA - Instituto Latino-Americano de Agroecologia Paulo Freire. E aí fui deslocado para a Venezuela para coordenar, ou seja, fazer parte da comissão político- pedagógica da universidade. Existia uma proposta também com o reitor sobre a estrutura de uma universidade: era uma outra proposta pedagógica, dos movimentos sociais, era uma relação do Ministério da Educação Superior da Venezuela com uma coordenação político-pedagógica da Via Campesina e aí dentro tinha uma estrutura organizativa que envolvia os estudantes, um tempo escola, um tempo comunidade, ou seja, não era ficar cem por cento dentro da sala de aula, mas partir da pedagogia da alternância: ir para as comunidades estaduais brasileiras, poder fazer o trabalho também de organização, não é? Aí eu fui para a Venezuela em 2008 e voltei no início de 2011. Nessa volta me casei também com uma companheira que era do MST. A



10 O MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens - nasceu na década de 1980, por meio de experiências de organização local e regional, frente às ameaças geradas pela implantação de projetos de hidrelétricas. Tornou-se uma organização nacional que luta pelos direitos dos atingidos e por um Projeto Energético Popular. Ver: https://mab.org.br/quem-somos/

gente teve uma filha na Venezuela. Nasceu na Venezuela nossa filha. Minha companheira era do Rio de Janeiro.

Antes de ir para a Venezuela, eu tinha passado pelo Rio em 2007, num encontro da Articulação Nacional de Agroecologia em Santa Teresa, no Colégio Assunção. Foi quando conheci a Claudinha Schmitt pessoalmente, a Nívea do MST. Tinha um pessoal da CPT, que eu não lembro mais o nome, que falou que, se desse para eu vir para o Rio, tinha umas demandas para o MPA em Valença. Que eu poderia chegar também para assistir uma ocupação e tinha umas comunidades no entorno. Eu devolvi isso para o MPA na época, mas, até 2013, o MPA não via o Rio como uma possibilidade, por um tremendo desconhecimento da realidade. Inclusive não conseguia ver camponeses no Rio de Janeiro. Porque a luta camponesa no Rio ficou bem invisibilizada nos anos 2000, ou seja…


Leonilde: Sempre foi, Beto. Sempre foi.


Beto: Sempre foi, não é? Mas até se pega alguma coisa nos anos 80. Nos anos 60 vai encontrar coisas, referências, mas nos anos 2000 não aparecia mais nada. Ou seja, o MST fez algumas lutas, de voltar para o campo, mas de pequenos agricultores não se tinha notícias. As notícias que se tinham era que o movimento sindical estava fragilizado também. Então, o MPA não deu muita atenção para isso. O foco da organização era o Nordeste, trabalho de organização de massa. Quando eu voltei, já com família, demorou pensar para onde iríamos. Nos oferecemos: “Estão voltando agora duas pessoas, três pessoas e a gente pode ir para qualquer região que o movimento indicar”. O Movimento demorou a chegar a um consenso do que seria e nós tomamos uma definição familiar de que nós iríamos ficar no Rio de Janeiro. Daqui eu iria contribuir no Coletivo Nacional de Formação do MPA e no Coletivo de Relações Internacionais. Cheguei em janeiro de 2011 e depois o MPA queria me convencer a ir fazer um trabalho na Tríplice Fronteira, região de Foz do Iguaçu, que é uma região em que a gente nunca conseguiu chegar e é muito estratégica, porque tem muito camponês e tem tensões permanentes, conflitos que a gente não vê, mas estão acontecendo e vão acontecer, em função das águas11.


11 O entrevistado refere-se a conflitos em torno do acesso à água.

Eu tinha tomado a decisão de ficar no Rio e em 2011 fui para a universidade que nós construímos: a Via Campesina, junto com o MST, construiu uma turma de Serviço Social com a UFRJ. E eu virei estudante do PRONERA12. Passei no processo seletivo e fui fazer Serviço Social na UFRJ. De 2011 até 2015 fiquei também estudando. Entre 2011 e 2012, sobretudo. E eu ficava, quando não estava estudando, nas tarefas do coletivo de formação do MPA. Acompanhava as escolas de formação nacional, ajudava a coordenar. A gente fez umas três ou quatro escolas de formação nacional e, inclusive, fui morar lá em Campos dos Goytacazes. Cheguei bem no boom da luta dos agricultores lá do Porto do Açu13, que, para mim, foi uma das maiores violências dos governos do PT, violências do projeto de desenvolvimento. Ou seja, é claro que, quando o desenvolvimento chega, não dialoga com as comunidades. Mil famílias estavam sendo expulsas.

Quando cheguei lá, a CPT nos procurou. Como Campos é muito perto do Espírito Santo, então o Espírito Santo deu um suporte no trabalho de acompanhamento da luta do Porto do Açu. Minha avaliação, no caso o movimento social, a pauta que seria do MPA era construir uma resistência para as pessoas não perderem suas terras, que é a pauta do Movimento. Chegamos muito atrasados em termos históricos, já no final das coisas. A LLX, junto com a empresa, já tinha feito um trabalho de cinco anos de desmobilização da comunidade, colocou o medo nas comunidades. Então as pessoas estavam amedrontadas, com receio de se organizar, porque a violência ali foi tremenda. Era tropa de choque, cachorro e trator para tirar as famílias... A minha avaliação é que nós chegamos já em um período que era muito difícil organizar e resistir. E aí ficou o grupo, um bravo grupo pequeno, resistindo. Até hoje tento acompanhar... Poucas lideranças conseguiram resistir, não vender seu sítio. São poucas, e quase cem por cento das famílias foram expulsas... Hoje é um


12 Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) surgiu e foi formalizado em 16 de abril de 1998, por meio da Portaria nº 10/98, o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, vinculado ao Gabinete do Ministro. a partir de uma demanda das organizações do campo, consolidadas no I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária – ENERA, realizado em julho de 1997. (https://antigo.incra.gov.br/pt/educacao.html?id=230, consultado em 22 de março de 2022). A política foi posteriormente regulamentada pelo decreto 7.352, de 04 de novembro de 2010. Hoje o Programa envolve além do ensino básico, cursos de Licenciatura em Educação no Campo, Agronomia, História, Geografia, Direito etc.

13 O Porto do Açu localiza-se em São João da Barra, no Norte Fluminense. Foi projetado como porto- indústria que atrairia empresas de vários setores para o distrito industrial que seria instalado a sua volta, em função das desapropriações propostas, que expulsaram da terra centenas de lavradores (https://oglobo.globo.com/rio/porto-do-acu-um-megaempreendimento-cercado-de-impasses- 20197027#ixzz7OI968SpQ, acesso em 22 de março de 2016).

deserto aquela região, praticamente só se vê pastos. Uma região que era muito produtora.

Então, o meu primeiro contato com o Rio, com a questão agrária, foi essa expulsão. Aí eu falei: “Opa!”. Comecei a ficar curioso, não me aguentava e comecei a pesquisar para poder entender o que eram esses três por cento dos dados oficiais que tem de população no campo. Depois a gente descobriu que esses três por cento é muita gente e eu comecei a convencer o MPA que nós tínhamos que prestar um trabalho aqui no Rio de Janeiro, porque é um estado politicamente muito ativo. Todas as pressões políticas estão no Rio de Janeiro, todas as pautas aqui têm maior possibilidade de se popularizar, de se nacionalizar.

Então, fui fazer um trabalho de base interna no MPA e em 2013 para 2014 fui morar na Baixada. E por que a Baixada? Porque eu conhecia a Leonilde, o CPDA14. E o MPA já tinha uma relação com o CPDA, pois, para nós, o CPDA foi fundamental no início da construção da coleção da História Social do Campesinato. Nós já tínhamos feito umas reuniões, não sei se a Leonilde lembra, com as companheiras do MPA, para discutir aquele último livro15. Acho que foi ali em 2013, 2014.


Leonilde: O livro das mulheres?


Beto: Sim... Veio uma companheira do Rio Grande do Sul, uma de Brasília, uma do Espírito Santo e eu fiquei na mediação, acompanhando, para fechar o livro das mulheres. Seria o último livro da coleção, não é?


Leonilde: Isso.


Beto: Então, por eu estar estudando, Campos era muito longe. E aí a minha companheira da época, pediu transferência para trabalhar em Itaboraí e nós compramos um terreno em Nova Iguaçu, na região de Tinguá, um lote urbano, com a


14 CPDA – Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

15 O entrevistado se refere à coleção História Social do Campesinato, composta por nove volumes, publicados pela Editora da Unesp, com apoio do Nead/MDA – Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário. Após o lançamento dos primeiros volumes, as mulheres do MPA cobraram um volume adicional, em sua atuação tivesse protagonismo. Assim foi desenvolvido o volume Mulheres Camponesas, organizado por Delma Pessanha Neves e Leonilde Medeiros, publicado em 2013 pela editora Alternativa.

casa. E aí conheci algumas lideranças de Nova Iguaçu, além de também pessoas ligadas à CPT.

Não consigo ficar em casa parado vendo as coisas acontecerem... Então me meti para conhecer as pessoas, é uma coisa que a gente chama de mística, não é? Para a UFRJ, nós construímos um projeto de extensão, na época do estágio. Uma das brigas que eu tive dentro da universidade, que a turma teve, é que nós achávamos que nosso estágio não era só fazer relatório ou pesquisa. Tinha que ser um estágio que vinculasse ao processo de organização militantes, junto com a universidade. E nós não iríamos para fazer o estágio ou pesquisa e extensão só enquanto universitários. Nós iríamos como militantes também e, como a profissão prega nas suas diretrizes, nós nos sentimos enquanto parte da classe, não é? Ou seja, enquanto profissionais, uma das profissões em que nós somos parte da classe trabalhadora. O Serviço Social tem muito disso. Nós batemos o pé que nós íamos transformar o estágio em processo de organização e os professores ficaram muito bravos com a gente na época. Ou seja, aproveitar a estrutura do estágio e da extensão para fazer trabalho de organização na área.


Jacqueline: Muito bom.


Beto: E a universidade queria fazer feira dentro do campus, que trabalha a extensão. E nós entendemos que a região que teria condição de atender isso seria a Baixada. Tinha um assentamento do MST também na Baixada, o Terra Prometida, tinha outros no entorno dele e nós descobrimos que tinha uma estudante do Serviço Social que era filha de um assentado da Fazenda Alpina, em Teresópolis. E aí, resolvemos fazer dois estágios, um na Baixada e um em Teresópolis. O na Baixada foi focado nas sementes, para a gente fazer um experimento de sementes. A gente fazia o lote do estágio. E o da região serrana seria um trabalho de identificar as condições sócio produtivas do assentamento. Então nós viemos fazer a pesquisa e estágio ao mesmo tempo e aí organizamos na universidade uma feira, uma feira da reforma agrária e da cultura camponesa. O MPA mandou produto, o MST mandou e nós trouxemos a produção do MST do estado e desses agricultores.


Leonilde: A feira era na Praia Vermelha?


Beto: Isso. No caso da Fazenda Alpina, havia um assentamento de reforma agrária que não tinha uma organização política, diria assim, tinha uma organização comunitária. E quando eu falo político, eu falo a FETAG – Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Rio de Janeiro. Ou seja, tinha uma mesma política do território. Nós começamos esse trabalho na Fazenda Alpina trazendo os camponeses para essa feira da UFRJ, ainda em 2015, e, nesse processo, a gente começou a criar um grupo de agricultores que começou a falar do MPA tanto em Nova Iguaçu, quanto na região serrana, e em Campos, em São João da Barra. Aí começaram a aparecer organizações urbanas querendo contribuir politicamente no movimento, querendo ser militante. Essa é uma coisa também nova do Movimento: militantes de origem urbana que querem ser militantes de movimento camponês. A gente viu que no Rio tínhamos que fazer isso (o MPA sempre teve uma resistência a isso). No Rio, seria impossível não incorporar pessoas urbanas da militância no movimento camponês. E nós chegamos à conclusão de que esse processo tinha sérios limites organizativos, porque, quando chove, ninguém sai de casa, não é? Ou seja, então não tinha feira e tinha chuva, voltavam tristes para casa porque não venderam, endividados.

Em algum momento teve apoio da universidade para logística. A universidade financiou o combustível para o carro. Depois começou a feira a se viabilizar. Nós já tínhamos um diagnóstico de que a Baixada, a região serrana, não sei se estou correto, ficaram muito desarticuladas politicamente. Ou seja, nós temos o MST no Rio, que faz a articulação dos acampados e assentados, nós temos o movimento sindical que tem dentro pequenos agricultores e assentados com muita dificuldade.

Em função de várias questões, uma das razões que eu acho, está vinculada a estruturas partidárias: os partidos não estão por dentro da questão agrária e camponesa, não é o centro da sua organização política. Seja PT, seja PCdoB não trabalham para mobilizar o campo, não têm uma tática de organização política para o campo. E o movimento sindical, que não tem esse vínculo partidário, acaba não tendo apoio da estrutura do partido para fazer o trabalho. Ou seja, quem está no movimento sindical aqui no Rio são bravos guerreiros, guerreiras que fazem um trabalho muito difícil, já que a organização política deles não dá o suporte necessário no que é dar o apoio, quando tem lutas urbanas, por exemplo.

É uma autocrítica que eu faço da esquerda no Rio de Janeiro. No Rio não, no Brasil inteiro. Se não tivessem surgido os movimentos sociais como MST, o MPA, o MAB, que foram estruturas de movimentos sociais não tão vinculados à estrutura partidária, eu acho que nós estaríamos com muito mais dificuldades. De alguma forma nós rompemos com a organização do campo vinculada à estrutura dos partidos. Os partidos, de alguma forma, deram visibilidade para as lutas camponesas. Depois contribuíram em alguns processos. Então isso viciou de alguma forma também a organização no campo, por não dar autonomia para os territórios se organizarem e ter pautas a partir da sua realidade. É o debate do marxismo na questão agrária sobre o que resultam das percepções quando vai pensar em formas de organização.

Então nós identificamos a pauta comum dos agricultores do Rio para o MPA chegar, ou seja, pensando no que, de alguma forma, une a classe. O que poderia ser a bandeira para a gente conseguir juntar agricultores que não se encontram? A minha experiência era a que eu falei anteriormente. Luta pela energia elétrica, pela água… Você tem que ter alguma coisa que mobilize, ou seja, vocês, por exemplo, têm alguma coisa entre os professores e junta todo mundo para fazer a luta. E aqui no Rio a gente viu que esse ponto em comum seria o que nós estamos chamando de agroecologia e abastecimento popular. Seria a parte de como organizar o processo da comercialização camponesa para chegar na cidade. Então, pensando organização camponesa, seria o ponto comum da classe. Mas, para os camponeses começarem a virar classe social, a pauta é a gente chegar na comunidade, com a produção agroecológica, a comercialização. É o vai fazer as pessoas pararem para escutar o MPA... Como é? E tem interesse pelo Movimento, pela forma de organização. Então esse foi o diagnóstico.

A gente começou a adentrar a Baixada Fluminense. Quando falo de Baixada, estou falando de Queimados, estou falando de Nova Iguaçu, de Mesquita, Magé e Caxias. Não conseguiam ter pernas ainda. Tem outra pauta que mobiliza em Japeri, que é a memória. Essa é outra pauta de Japeri para a qual a gente não conseguiu ainda dar forma. Lá misturam as duas pautas...


Leonilde: Quando você fala de Japeri, fala de onde? Da região de Pedra Lisa?

Beto: Pedra Lisa. Conversando com o pessoal de Japeri, ali tem muita memória de luta pela terra, para além de Pedra Lisa. Tem muitos assentamentos que foram feitos para poder também não deixar crescer nossa luta, não ganhou outro por ter outra conotação. Deu uma segurada. Dá a impressão que foi para poder conter o sujeito, ou seja, para o pessoal ficar quieto e depois eles não se organizarem mais. Então, são esses municípios da Baixada, Região Serrana, Petrópolis, Teresópolis, Duas Barras, já depois de Friburgo. Essa é a pauta que junta os agricultores.

Dentro da agroecologia tem o debate das sementes, tem o debate da produção de insumos. É o que mobiliza. Então, com essa pauta, começamos a organizar e o MPA começou a fazer um debate também, já nos final do ano de 2015, de que nós tínhamos que, de fato, construir uma aliança com a cidade pensando numa formulação de que ou a gente converte a soberania alimentar numa luta brasileira ou não tem soberania nacional.

E aí a gente começa a colocar a soberania alimentar dentro de uma plataforma política para poder pensar a revolução brasileira, para pensar a democracia brasileira, não tem como pensar a democracia sem pensar produção de comida. Não dá, não tem como pensar uma revolução brasileira se não pensar na produção de alimento. Os camponeses e camponesas tentam discutir isso. É um debate que a gente faz para a esquerda partidária inclusive: o agronegócio não tem nenhum compromisso com o Brasil, de produzir comida para o Brasil. Então quem tem compromisso histórico e quem foi produzir a comida no Brasil é quem estava às margens do agronegócio, não é? As grandes fazendas nunca produziram comida. Quem produzia comida para as grandes fazendas eram os posseiros. Descobri que esse sujeito social que produz alimento para o Brasil são os pequenos agricultores e quem pensa na luta política e soberania alimentar seriam eles, ou seja, não tem como a gente avançar no processo de organização e de transformação sem organizar comida e distribuição, haja vista o processo de distribuição de alimentos das grandes multinacionais. E, sendo só esse pessoal, em algum momento pode nos desabastecer. Ou seja, a gente avança, eles desabastecem. Isso foi feito em todos os lugares que tentou somar, em mudar parte da realidade, não é?

A gente falou sobre essa formulação do abastecimento popular, essa pauta, com a cidade. Como o MPA vai chegar na cidade? Pela comida. O MPA vai chegar no campo pela comercialização, pelo abastecimento, tentar criar um circuito de

distribuição direto, com isso fazendo um movimento político e fazendo movimento econômico também. Uma das nossas contradições é que nós não vamos organizar a economia. Tem todo um debate que a gente faz, um debate sobre a economia camponesa. Existe uma economia aí. Até dentro do marxismo há possibilidade de discussão disso … é possível uma economia camponesa dentro do capitalismo? Estamos nesse debate. Nós estamos achando que há espaços de que a gente não pode abrir mão. Ou seja, enquanto, por exemplo, alguns setores do movimento sindical defendem a integração com a agroindústria, a gente não defende. Vamos organizar a nossa base social para se integrar às grandes empresas?? Existe uma orientação partidária, inclusive de alguns partidos, algumas tendências partidárias de que esse é o caminho da organização no campo. Veja, isso não é nos anos 60 não, é de agora, da segunda metade deste século. Algumas tendências presentes nas organizações políticas acham que, para avançar a organização camponesa, tem que aumentar o processo de proletarização. Então tem que integrar os camponeses e as camponesas. Há um modelo vertical proposto pelo núcleo duro que pensa no Brasil e no mundo. E junta setores de esquerda e de direita nessa mesma formulação, de que falar de agricultura camponesa é algo atrasado. Ou seja, a pessoa discutia a fome no Brasil e falava que a agricultura camponesa é coisa do passado, que a gente tem que integrar de fato os agricultores à agroindústria. Mas enfim, isso é para outra conversa.

Então, a gente começou a formular um pouco essa ideia de que, no Rio, a pauta comum não é a luta pela energia elétrica, nem a luta para negociar dívida, nem a luta pelo crédito, porque não soa entre os agricultores. Se aqui tem pouca gente endividada é porque não teve acesso [a crédito]. E sobreviveu, não é? Sobreviveu a todas as condições, houve várias tentativas de expulsar, inclusive… Quem não pegou o crédito é um vitorioso, inclusive, por que, senão, teria perdido a roça. Então, o MPA não iria chegar aqui no Rio com a pauta de crédito, já que historicamente os camponeses também se negaram. E naquela desconfiança camponesa, de não pegar uma coisa que sabe que não vai pagar. E a pauta comum seria essa: organizar a produção agroecológica ou fazer a transição e organizar a cidade na distribuição.

Então, a partir dessa pauta é que nós estamos organizando o MPA aqui no Rio, estamos chegando nas comunidades. Aí é que surge o Raízes do Brasil16.


Leonilde: Eu ia perguntar isso.


Beto: É aí que surgiu Raízes, porque a gente criou a cesta camponesa como esse instrumento. E aí começamos a pensar no seguinte também: é um espaço…é onde tem uma intelectualidade que debate alimentação saudável. É onde existe um grupo muito forte de gourmetização da comida saudável. Então a gente tem que fazer ou tentar, a partir da nossa perspectiva, a perspectiva que é do movimento social. Tentar dialogar inclusive com essas construções, fortalecer algumas narrativas ou com outras narrativas também. É aí que surge o Raízes do Brasil, uma primeira experiência de ser um espaço de encontro entre campo e cidade, a partir da comida e da cultura.


Leonilde: Existem outros espaços semelhante ao Raízes em outros lugares?


Beto: Existe no Piauí, foi tirado este ano, um em Sergipe que não abrimos um espaço por conta da pandemia, mas já existe.


Leonilde: Mas o do Rio foi o primeiro?


Beto: Foi o primeiro. Foi o primeiro.

E qual é o espaço físico na cidade? Esse espaço de encontro, um espaço de logística que a gente consegue de alguma forma. A gente viu que nós não tínhamos algumas estruturas de entreposto. Então o Raízes funcionaria como entreposto para facilitar a logística. Ponto de encontro entre a cidade e o campo, a partir da comida e um espaço também em que se poderia oferecer formação. Ter um espaço de encontro de outras organizações também. Então, o Raízes se transformou entre 2017 e 2020.


16 O Raízes do Brasil é um espaço organizado para integrar “agroecologia camponesa e a sociedade urbana, através da alimentação saudável, atividades culturais e hospedagem. Está localizado no Bairro de Santa Tereza e abriga atividades culturais e seminários. Ver https://raizesdobrasil.org.br/rj/. Para uma exposição sobre o que é o Raízes, ver vídeo onde Beto Ribeiro narra brevemente a experiência: https://www.youtube.com/watch?v=wNZLNUzAB7Q.

Conseguiu cumprir bem esse papel. Esse espaço de encontro para o qual a gente conseguiu dar visibilidade e atingir setores em cada lugar, no papel de ser um propagandista das bandeiras do MPA em outros setores intelectuais, dos artistas, que nós não tínhamos contato... Nosso contato era muito restrito anteriormente... Ser um espaço que permitiria aos camponesas ter uma estrutura. Uma terceirização direta que permitisse dormir e ter um maior planejamento também da produção. Então Raízes foi se tornando isso.

E ele só foi possível também em função da relação com os operários urbanos. Vou dar um passo atrás para voltar depois: nós começamos a debater entre 2013 e 2015 com alguns setores do movimento sindical. Começamos a nos aproximar politicamente dos metalúrgicos, enquanto categoria, e dos petroleiros. O que nós achávamos e achamos é que eles têm uma capacidade de influenciar maior do que a nossa. Então, na nossa avaliação, eles têm o poder, pela sua posição no mundo do trabalho, que pode irradiar pautas, não é? E nós começamos. Eu participei de dez reuniões com os petroleiros para eles entenderem o que era soberania alimentar, por exemplo. Foram várias reuniões que eu fui acompanhar, falar da pauta, de eles entenderem a Petrobras. Eles não conseguiam fazer essa vinculação, porque a comida é cara, porque o combustível... ou seja, como a Petrobras influencia a agricultura... E eles entenderam isso, os metalúrgicos entenderam também e nós começamos a ensaiar. E isso a gente precisava documentar em algum momento. Não foi documentado, não foi sistematizado. Nós começamos a ensaiar entre 2013 e 2015, foi um negócio muito interessante, que eram essas duas categorias incluindo em seu acordo coletivo o debate da agroecologia e da alimentação. Nós começamos a debater com os metalúrgicos do Sul, de São Paulo, da Bahia e de Rondônia para incorporar a alimentação saudável. Para incluir na pauta aquela ideia do PAA e PNAE e que os restaurantes das fábricas comprassem alimentação do agricultor familiar17.


17 O entrevistado refere-se ao Programa de Aquisição de Alimentos e ao Plano Nacional de Alimentação Escolar. O PAA criado pelo art. 19 da Lei nº 10.696, de 02 de julho de 2003, possui duas finalidades básicas: promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar. Para tanto, compra alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação, e os destina às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional e àquelas atendidas pela rede socioassistencial, pelos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional e pela rede pública e filantrópica de ensino (http://mds.gov.br/assuntos/seguranca-alimentar/programa-de-aquisicao-de-alimentos-paa, acesso em

22 de março de 2022). O PNAE oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. Com a Lei nº 11.947, de 16/6/2009, 30% do valor repassado pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE deve ser investido na compra direta de produtos da agricultura familiar, medida que estimula o desenvolvimento

Nós fizemos a conta de que seria a maior política de Estado se acontecer com essas duas categorias. Nós chegamos a desenhar com os petroleiros, onde tinha Petrobras, onde tinha restaurante, onde a gente poderia abastecer. Nós temos que ir para a porta da fábrica com petroleiros, com os metalúrgicos. Tinha as assembleias deles no Espírito Santo, na Bahia, em São Paulo. Nós íamos e chegávamos com um carro cheio de comida para vender e fazer o debate, com café, farinha e verdura. E fizemos debates sobre alimentação saudável e a vida deles enquanto trabalhadores. Isso pegou ao ponto de que, no acordo coletivo da greve de 2015 dos petroleiros, por exemplo, existe uma cláusula que a Petrobras aceitou porque a Petrobrás também não entendeu muito... Ou seja, não era pauta principal: que em toda unidade da Petrobras deveria ter uma feira de agricultura familiar. E que devia comprar 30% da agricultura familiar. Isso não foi para frente, porque houve o golpe e a gente sabe o resto da história, não é? O desmonte... Mas essas duas categorias entenderam isso. Então, no caso do Raízes, os petroleiros ajudaram, pois eles entenderem e ofereceram a logística e estrutura. Ou seja, a forma de ser solidário: a gente oferece uma estrutura para vocês... Então eles bancaram grande parte do aluguel, por exemplo, que é o custo maior do Raízes daqui de Santa Teresa. É esse movimento econômico do Raízes para conseguir se autosustentar. Então, o Raízes também é fruto dessa aliança com urbanos. E os urbanos, nesse caso, é uma categoria pequena, mas que tem um poder econômico grande, que é a categoria petroleira, enquanto

movimento social e sindical. O Raízes é fruto dessa aliança com os petroleiros.

Então, nós passamos a transformar o Raízes nessa integração campo e cidade: distribuir cestas, vender e comercializar cestas e ser um espaço cultural e espaço de formação. E também ser um espaço de encontro de outras organizações. Então o CPDA fez encontro aqui, a ANA - Associação Nacional de Agroecologia fez encontro aqui, a ABA - Associação Brasileira de Agroecologia fez encontro aqui, o MST. Até os funcionários do BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social fizeram encontro aqui na associação, virou espaço de encontro de outros sujeitos que conheciam o MPA a partir do espaço também. Ou seja, porque a comida toda era a comida direta dos agricultores, tinha lojinha... E espaço de música também, era vinculado à cultura popular. E nós do Raízes construímos uma relação: nós não


econômico e sustentável das comunidades rurais (https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a- informacao/acoes-e-programas/programas/pnae, acesso em 22 de março de 2022).

sabíamos que no Rio tem um movimento de viola muito forte. Existe um movimento forte de violeiros no Rio e ninguém sabia disso... E o Raízes permitiu um encontro desse movimento que se chama Rio de Violas.

Então o Raízes se transformou nesse espaço de encontro do campo e da cidade, pela comida e pela cultura, eu diria. Politicamente nós achamos que deu certo, economicamente precisa dar certo também, porque não pode ser só uma política. Tem que dar certo no econômico, porque, no caso dessa estrutura, nós imaginamos que poderia ser uma estrutura pensada a partir de uma política de Estado. Ou seja, para poder criar uma infraestrutura e logística tem que ser política pública. Coisa que o movimento social não tem, que é essa logística básica de espaços.

Aqui no Rio tem casarões antigos. Quando falo em política de Estado é isso: converter alguns casarões desses em espaços como o Raízes, numa relação de concessão de uso. É onde há subsídio do Estado para essas estruturas, haja vista que aluguel no Rio é mais caro que em qualquer outro lugar. São muitas dificuldades. Aqui no Rio, o Raízes permitiu à gente ampliar essa demanda de comercialização ao ponto de que o que aconteceu aqui não aconteceu em outro lugar. Tem um professor que a gente conhece, que é da Universidade Rural, e que também já vem de movimentos agroecológicos parceiros. Ele ligou para a gente: “Olha, eu faço um trabalho aqui no assentamento em Queimados e a pauta do pessoal é essa da comercialização e acho que vocês têm que conversar com eles”. “Tá, vamos marcar”. E aí chegou aqui um dia em Santa Teresa uma Kombi cheia de agricultores de Campo Alegre, para conversar com o MPA, para a gente falar do MPA para eles. Acabou acontecendo o reverso, ou seja, os agricultores ficaram sabendo do Raízes e do MPA pela mediação, ou seja, por outros parceiros. Para conversar, para ver como é que a gente funcionava, como é que organizava, como eles poderiam participar ou não. O

trabalho está acontecendo em função disso.

Hoje voltou a ser a principal questão que permite ao MPA chegar nos territórios camponeses: agroecologia e abastecimento popular. Na agroecologia a gente coloca o tema das sementes e o tema da produção de insumos. E quando eu falo de abastecimento, eu falo de pensar as formas por fora dos tradicionais de comercialização, que são as CEASAs18 ou as feiras que existem. E há uma


18 CEASA é a sigla e denominação popular das centrais de abastecimento, que são empresas estatais ou de capital misto destinadas a promover, regular, dinamizar e organizar a comercialização de produtos da hortifruticultura a nível de atacado em uma região de ação.

possibilidade também de, em algum momento, a gente abrir diálogo para essa política pública de comercialização. É uma coisa que não puxamos, pois a gente não tem pernas ainda para poder dar conta. Seria pautar de outra forma as chamadas públicas. Em algum momento nós conversamos com a Prefeitura do Rio, quando o César Benjamin teve sua pequena passagem pela Secretaria de Educação.

Tinha algumas coisas para resolver. Inclusive, quem me atendeu foi o Jean Marc [Van der Weid, da ASPTA19], que é bem amigo dele, tem relações históricas... Se a Prefeitura do Rio estruturasse para poder incorporar a agricultura familiar, o estado do Rio não daria conta... Se existe uma pessoa, das figuras políticas, que teve no Rio uma visão mais estratégica de pensar na produção do que o Brizola, eu não conheço. Na época do Brizola tinha uma empresa pública, a gente descobriu isso, uma logística para distribuir comida. E isso acabou, não é? Assim, não tem como entrar e pensar na distribuição pelo MPA, porque não tem logística. O Estado não subsidia isso. Então, a gente nunca consegue entrar. Tem um edital, está lá, a gente não consegue entrar porque a gente não tem condições de entrega. E tem umas empresas que já tem tudo montado, não é? Ou a gente faz negócio com as empresas ou a gente não consegue pensar... Talvez consiga fazer uma coisa pontual em duas escolas, três escolas. Para nós, por exemplo, seria impossível hoje fazer isso. E quando a gente vai para o campo, aí... A gente está começando um trabalho há um ano já da pandemia... Quando chega a pandemia, está finalizando lá em Magé no assentamento [Cachoeira Grande]. As pessoas têm é que ter alguma esperança. Durante o governo Brizola permitia a gente fazer a luta, não é? E permitiu ter diálogo, mas um diálogo menos autoritário. Isto em todas as regiões, as pessoas falam isso. Então, o que aconteceu? A gente vem em 2018, 2019, o Raízes em 2017.

Então, eu tenho que dar um impulso no MPA do Rio de Janeiro. Até então nós não tínhamos uma estrutura de organização política. Aí nós passamos 2018, 2019 nessa parte da visão política do que é criar coordenações territoriais, as formulações de militância. Fazer encontros comunidades. E isso tudo acumulou no nosso primeiro encontro estadual que foi no final de 2019, com 120 pessoas. Dessas, 90% eram agricultores e agricultoras. Os outros 10% era quem contribuiu na mobilização, é parceiro que foi contribuir na sistematização, a militância que não é camponesa, que


19 A AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia é uma associação de direito civil sem fins lucrativos que, desde 1983, atua para o fortalecimento da agricultura familiar e a promoção do desenvolvimento rural sustentável no Brasil (https://aspta.org.br/, consultado em 22 de março de 2022).

é urbana. Foi em dois de novembro. Nesse encontro, já viemos com processo de diagnóstico dos territórios, nós temos um grande planejamento de trabalho territorial. E, nesse processo, nós já tínhamos, começamos em dois quilombos, o quilombo em Mangaratiba e um quilombo em Quatis. E esses dois trazem, além dessas pautas de que eu falei, a luta pela defesa do território, que não está nas outras comunidades. Essas duas pautas dos quilombos devem ser um processo de organização de luta de outro nível, porque são tensões que começam a acontecer agora, porque pode ser que haja desapropriação de parte desse território. Estou falando de Mangaratiba se enfrentar com a especulação imobiliária. Ou seja, os coronéis ali do Sul Fluminense que ainda resistem lá e arcaicamente estão lá... Seria enfrentar esse latifúndio do Sul fluminense. Então, são dois territórios que trazem uma outra pauta, que é a defesa do território, e que passa pela comida, mas realmente passa por questões jurídicas e por formas de organização que as pessoas não querem. Há mais de duzentos anos. Só que assim, chega a um limite também da resistência: ou se resiste para vencer ou vai embora, não é? E essas 12 regiões pode ser que tenham conflitos dessa natureza, e dentro desse diagnóstico que nós estamos fazendo, pensamos em como podemos contribuir.

E aí veio essa questão da pandemia e esse planejamento do encontro foi por água abaixo... Planejar, fazendo reuniões territoriais, fazendo formações, avançando na produção de insumos, de semente, ou seja, implementar o que nós chamamos de Plano Camponês nas comunidades... A pandemia veio e parou tudo! Não fizemos em 2020 nenhuma ação, não fizemos nenhuma atividade presencial, não é? Então, a pandemia meio que deu uma parada nesse movimento político do MPA no Rio. Só teve alguns territórios em que a gente teve contato com algumas famílias e lideranças em função da comercialização, ou seja, a estrutura econômica avançou. Mas tem coisas políticas, processos que a gente não conseguiu fazer. Esse movimento da comercialização, a gente conseguiu manter: eles deixam em tal ponto, a gente chega tal hora lá para se encontrar. E fica duas horas conversando. Teve quilombos em que morreu muita gente, morreram tipo assim, 20% faleceram na comunidade. E é agricultor militante, mais difícil de ser substituído..., né? Morreu, não tem como colocar outro agricultor ali.

Nos cuidamos muito, não fazíamos encontros presenciais. Mantivemos mais as atividades econômicas. Só que aí está a questão da pauta de que eu falava, não é?

E nós avançamos em dois territórios, durante a pandemia, para a pauta da agroecologia. A gente começou a fazer um trabalho mais político lá no assentamento Fazenda Pau Grande, que nós conhecemos em março e abril de 2020. Com a pandemia, vários agricultores que tinham canais de comercialização... chegamos a mapear umas 600 famílias que não sabiam o que fazer com a sua produção. Porque o a CEASA diminuiu, as feiras fecharam e perdeu muita produção. E aí circulou não sei por onde que o MPA poderia contribuir nesse processo. E aí, literalmente, ligou um jovem, Mateus, que é filho do Zé Teixeira, uma liderança da luta pela terra da América Fabril. Alguém tinha passado o nosso contato e ele queria saber como funcionava. Eu que atendi o telefone: “Mateus o que é que você tem na sua roça que você vai perder?” “Por aqui, eu vou perder o milho...” Começou o processo de aproximação com ele ao ponto de que, na fazenda Pau Grande, nós fizemos a nossa primeira atividade presencial do MPA no Rio. Nós conseguimos mobilizar 22 pessoas. Fizemos um curso lá.


Leonilde: Beto, quando você fala em Fazenda Pau Grande é da Cachoeira Grande que você está falando ou é Pau Grande mesmo?


Beto: É Pau Grande, mas é na região da Cachoeira Grande. É bem próximo de onde está a fazenda. Na estrada.


Leonilde: Estrada das Andorinhas? No caminho de Piabetá para Magé?


Beto: Isso, isso.


Leonilde: Estamos falando do mesmo lugar então.


Beto: Isso, o mesmo lugar. Nossa primeira atividade presencial este ano com os agricultores e com parte da militância foi lá no assentamento. Foi uma oficina de produção de fertilizante para 22 pessoas. Foram alguns vizinhos do Zé Teixeira, um agricultor de Rio D’Ouro, também ali de Magé, veio o pessoal do MPA de Petrópolis. Essa produção de biofertilizantes foi em função de um diagnóstico que nós tínhamos

feito a partir da comercialização: nós tínhamos que avançar na produção. Nas conversas com o Mateus, eu disse: “Vamos fazer uma experiência aqui, com o MPA”. Uma produção de feijão. Nessa experiência, a gente vive uma chamada dos insumos, para fazer o controle das pragas se fosse necessário. Já está na colheita desse feijão, vai dar pouca coisa, porque a chuva atrapalhou agora e nesse meio tempo nós tínhamos que produzir os insumos para a próxima safra. Essa foi nossa primeira atividade presencial no assentamento Pau Grande.

A segunda atividade presencial com agricultores foi em Teresópolis, uma conversa no vale dos Lúcios, que é uma comunidade camponesa com 70 famílias, no caminho para Friburgo. Parte dessas famílias são agroecológicas e com certificação orgânica, outras não. Eu conhecia uma liderança dessa comunidade da época da universidade, das extensões da vida, e uma semana antes de quando veio a notícia que tudo ia fechar, nós pensamos: se vai fechar tudo, a demanda por comida vai aumentar. É uma coisa muito do instinto, não é? Vamos ter que fechar o Raízes ao público por uma questão de segurança, mas a gente não pode deixar de organizar produção de comida, essa é nossa vida! Ou seja, começamos uma campanha “Fica em casa, a gente produz comida!”. Fiz contato com a liderança do Vale dos Lúcios para ir conversar, para falar do MPA e a primeira coisa que ela falou foi: “Eu estou muito preocupada porque a partir da segunda-feira ninguém vai conseguir comercializar mais na comunidade. Porque os caras da CEASA não vão mais e nós estamos preocupados se a pessoa passar fome também. Ou seja, vai comer o que produz que é da região. Não produz outras coisas”. Aí nós falamos do MPA, da cesta camponesa, começamos a conversar. É uma liderança que já tinha um trabalho comunitário fantástico. É da Associação dos Produtores do Vale dos Lúcios. É uma região que foi desmontada pela chuva de 2011 e eles reconstruíram a região e com muita produção. São 70 famílias, então a gente conseguiu fazer nossa segunda atividade presencial lá para 25 pessoas, agricultores. Os agricultores, nesse processo da pandemia, foram mobilizados para abastecer a cesta camponesa, eles participaram da oficina de produção de biofertilizantes e uma pessoa de Friburgo e de Petrópolis também. É uma região também estratégica para a gente, com muita produção, mas que usa muito veneno. E uma das pautas para os agricultores que produzem com veneno, “tá bom, eu produzo com veneno, mas o que que eu vou fazer, né?” Por isso, sistematizamos, no MPA, os biofertilizantes, que são produtos que têm

na roça, biofermentados, biocontroladores para substituir o agrotóxico. E então nós estamos apostando que nós vamos produzir biologicamente. Vamos produzir agora mil litros na região serrana e vamos distribuir para algumas famílias, para experimentar. Como a gente acha que o resultado vai ser positivo, a gente vai abrir a porta a outros agricultores que usam agrotóxicos e queiram fazer transição agroecológica. E também em todos esses lugares… Tem pouca produção de sementes aqui no Rio de Janeiro.

A terceira atividade nossa presencial foi numa favela, foi numa formação em uma horta urbana no morro de São Carlos. Foi uma oficina de produção de biofertilizantes. Eles têm problemas com controles de pragas e a gente fez uma oficina lá com o pessoal da horta e com o pessoal de outras hortas que a gente está contactando. Uma horta lá da Marcílio Dias, uma da Penha e uma horta do Catete.

Durante a pandemia também lançamos um mutirão contra a fome, que é uma campanha de solidariedade para levar comida para os territórios de favela. Nesse mutirão, o Raízes acabou sendo entreposto também. É uma proposta metodológica: não é só levar a cesta de alimentos para essas famílias. Isso muita gente já está fazendo. Nós tínhamos uma nova proposta de trabalho de organização comunitária. Nós não somos um movimento urbano, só que a gente viu também que seria injusto nós não querermos contribuir com algo. Não sabemos no que isso vai dar, mas estamos fazendo.


Leonilde: Maravilha!


Beto: Então nós nos preocupamos em construir comitês populares de alimentos. Naquela nossa ideia anterior de que ou a alimentação vira pauta da sociedade, a soberania, ou a gente vai seguir perdendo todas para o agronegócio. Nós procuramos criar comitês populares de alimentação, mas deixamos claro que, nessa campanha de solidariedade, o nosso foco central não era entregar cestas básicas toda semana para uma família e sim tentar concentrar as distribuições para as mesmas famílias. Foi um debate que nós fizemos com algumas lideranças. Nós não queremos toda semana entregar cesta a umas 50 famílias diferentes, porque essas cestas não vão acabar com a fome das pessoas, vão aliviar. Não temos a esperança de que as cestas básicas vão acabar com a fome, mas a gente acha que

deve se aproximar dos territórios para debater também agroecologia, produção de alimentos e soberania alimentar. Ou seja, tentar construir nesse meio de favela e comunidade, espaços de diálogo para começar a entender também as questões da agricultura. E nós começamos, desde abril do ano passado, a construir os comitês do Plano de Alimentos. Um é na Rocinha, o maior, com 60 famílias. No Morro dos Prazeres, Morro dos Guararapes, Tavares Bastos no Catete, Morro dos Macacos, em Vila Isabel, Mangueira e estamos projetando em Niterói. Conseguimos organizar as saídas uma vez por mês, e são 300 famílias, no total, com as quais a gente está construindo essa relação. E uma dessas comunidades, Marcílio Dias, começou a construir uma horta na comunidade em função desse trabalho. Nós estamos acompanhando.

Depois de um ano, essa esquerda em que nós nos incluímos não construiu relações nesses territórios. Falar de produtos de alimentação saudável, de agroecologia, de direito à alimentação, enquanto um direito constitucional, está longe desses espaços. Nesses espaços está uma das piores experiências das igrejas neopentecostais. Ou seja, eu falo porque há experiências de igrejas neopentecostais boas e positivas. Nós temos uma experiência muito boa no Morro da Providência com o grupo Esperançar, grupo evangélico vinculado ao Instituto Caminhantes, que é ligado ao pastor Henrique Vieira. É um trabalho com 20 famílias, e construímos também durante a pandemia, agora com um curso com leitura popular da Bíblia.

Todas essas comunidades, tirando o morro dos Guararapes, são evangélicas. No Guararapes, as lideranças são de matriz africana, há poucas igrejas evangélicas. A religião das lideranças de matriz africana é a umbanda.

Então, nós fizemos um curso de leitura popular da Bíblia com o grupo Esperançar para também entender os códigos dos evangélicos, palavras que eles usam no cotidiano e que nós não sabemos, como “avivamento”. É outra linguagem... Eu vim dessa relação do cristianismo que se vinculou à luta política. Nós fizemos isso como parte desse processo também. Foi um curso nacional de que participaram as lideranças do Rio. Nós estamos, por exemplo, em um quilombo de Mangaratiba e no quilombo de Ipatinga, que são evangélicos. Isso acumula para nós. Eu falo: é diferente fazer um trabalho onde a comunidade vem de origem católica, da Teologia da Libertação, e onde a comunidade vem de tradição evangélica, Teologia da Prosperidade, não é? Ou seja, inconscientemente as pessoas dizem: “Ah, no

Quilombo trabalham para ficar ricas, porque a riqueza é fruto do trabalho, não é?” É assim que eles compreendem no trabalho da igreja... Então, com o pastor Henrique Vieira nós estamos construindo esses cursos nessas comunidades para poder transformar também a religião. A religião era um instrumento de trabalho de base.

As pessoas acreditam em Deus e tem fé em Deus ou tem fé nos orixás, mas também isso é um instrumento para a gente se aproximar e fazer organização popular. Então, nessa pandemia, a gente também falou: “Olha, se a gente não entende essa linguagem da prosperidade e do mundo neopentecostal, a gente vai ficar falando para os muros e para as pedras”. Na pandemia a gente conseguiu também desenvolver isso. Aqui no Rio estamos tendo que nos desafiar, ao contrário de outros estados do Brasil e só agora entendemos que estávamos com resistência. O desafio é entender esse mundo neopentecostal, estudar as linguagens... Nós estamos vendo um vazio organizativo nas periferias. Um espaço vazio que alguém vai ocupar. E aí nós fizemos um mutirão contra a fome aqui no Rio, nós vamos ter que ter um espaço para a gente poder... E se nós formos contribuir nas reflexões, a gente tenta sempre nas entregas. Nós fizemos agora em outubro atividade com as crianças... Só de alimentar com essas cestas alguns filhos dessas famílias, a gente já faz o trabalho....


Leonilde: Excelente Beto, excelente! Queria te fazer mais uma pergunta. Tem um aspecto que chama muito a atenção na agricultura camponesa, em várias dimensões, e aqui no Rio isso é particularmente forte: saída dos jovens, não é? Como vocês trabalham isso?


Beto: Esse é, talvez, o principal desafio. Tirando o território dos quilombos, tem muito pouco jovem. Na região serrana têm jovens, mas eles não estão vinculados ao mundo da produção, estão vinculados ao mundo da logística. Quem é o motorista do caminhão? É o jovem. Em Magé tem uma exceção, a família José Teixeira: o filho dele, acho que tem 28 anos, fez escola agrícola, terminou, foi trabalhar na construção civil da Odebrecht e agora, do ano passado para cá, começou a voltar para a roça e não quer mais construção civil. Não se vê mais trabalhando tendo como renda principal a construção civil. Mas, segundo o relato, ele é o único jovem que está com essa perspectiva. Mas isso não é só do Rio, isso é do Brasil inteiro. Mas isso é mais

forte no Sul. No Rio Grande do Sul tem municípios que daqui a dez anos não têm mais ninguém. Os filhos não moram mais lá. Os pais já estão com 70 anos. A menos que acontecesse uma reforma agrária massiva para os jovens voltarem, alguns territórios vão ficar vazios. Vazios de produção camponesa.

Parte dessa juventude que saiu, para além das questões econômicas, saiu também por questões de relações familiares. No caso das mulheres, é muita dificuldade nas relações com o pai, sobretudo, sair e poder tentar avançar a liberdade. Aí entra no debate a questão LGBTQI+. Muito jovem saiu também para poder se emancipar afetivamente. Nós estamos debatendo tudo isso. Essa reprodução camponesa não é aquela família que deve se reproduzir, ou seja, no debate da nova geração camponesa nós estamos experimentando algumas experiências. Qual seria essa volta para o campo de uma juventude camponesa, que foi para a cidade e que não deu certo na cidade. Mas voltar para o campo da forma que ele sempre foi? Não vai voltar, não é?


Leonilde: Não, volta outro, não é? A experiência urbana pesa. Isso é interessante de pensar, se a gente considerar que grande parte das ocupações da Baixada, pelo menos em Nova Iguaçu, Caxias é toda de pessoas que saíram, foram para a cidade e voltaram.


Jacqueline: O Beto completou falando sobre a questão da reforma agrária, do porquê dessa saída do jovem do campo e a perspectiva. A não ser que tenha uma reforma agrária, porque as condições do campo são adversas, além das questões familiares que ele pontuou. Eu tenho a impressão também de que você já tocou sobre a questão da escola de formação. Não sei se tem alguma coisa mais específica sobre a escola de formação e o lugar da memória camponesa. Eu lembro que teve alguma questão de memória que você tocou quando falou de Japeri. Se você quiser falar um pouquinho.


Beto: Eu não falei muito da memória. O MPA surgiu nos anos 90 e isso é uma formulação bem mais recente, de uns dez anos. Uma das razões políticas pela qual o MPA surgiu é que a gente não conseguia se encontrar dentro do movimento sindical.

Tinha alguma coisa, por exemplo, com os mais velhos... Faltava alguma coisa... E o MPA surgiu oficialmente em 96, mas, para mim, a ideia de MPA surgiu em 92, no Congresso do Departamento Rural da CUT, que houve em São Bernardo do Campo. Politicamente, nós tínhamos a CONTAG –Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura que, em algum momento, ficou influenciada muito pelo PCB, nas suas estruturas. Aí o PT tentou, com o DNTR – Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT, disputar a CONTAG. Depois conciliou com a CONTAG, dividiu as diretorias, uma longa história, que a Leonilde sabe melhor do que eu... Tem um documentário, a Leonilde deve conhecer, Os rurais da CUT.


Leonilde: Beto, neste mesmo número da Trabalho Necessário, vai ser publicado um artigo sobre a produção de documentários do Beto Novaes.


Beto: Maravilha, são fantásticos esses documentários do Beto Novaes.


Beto: A carta final do congresso [da CUT] dá conta de uma dimensão que não abarca, por exemplo, as comunidades quilombolas. Abarca muito pouco esse campesinato que o MPA hoje organiza, que é um o campesinato roceiro e agricultor, que produz comida, que não está na luta pela terra e não está na contradição da luta salarial. O pessoal fala que estava naquele espaço porque não tinha outro, mas não se sentia bem, não se sentia completamente representado. Então, quando essa turma, os mais velhos, começaram a se encontrar em função das articulações da CPT e de uma liderança do PT chamado Geraldo Pastana, do Pará, de Santarém, começaram a ver que existia uma insatisfação. Aquela camisa não comportava outros corpos. O pessoal começou a ser firme, fazia uma coisa diferente, não estava muito contente também com aquela forma de negociação, feita por dois ou três. Aquela forma de movimento sindical. E não tinha maior participação efetiva, ou seja, uma estrutura mais pela sua estrutura... Ele consegue convergir uma forma que eu diria horizontal e vertical de organização. Nossa estrutura organizativa está mostrando que é possível ter espaços horizontais e espaços verticais dentro das organizações políticas, o compartilhamento da mesma estrutura de formas distintas. Esses territórios não entravam na pauta da CUT. Ou seja, inconscientemente, é isso que o

pessoal tentava dizer... O MPA não cabia dentro da CUT. E aí em 96 teve um fator climático que foi o estopim, que fez o povo se juntar e se mobilizar e construir um movimento nacional. Era uma percepção também de que ou a gente se juntava nacionalmente por essas dificuldades, pelo fato da pauta econômica e política do movimento, ou.... E a gente foi atrás, a gente foi estudar o campesinato, ou seja, começou a questionar também: nós somos lavradores e ser lavrador não se encaixava muito bem em alguns aspectos, quando só se falava de trabalhador rural. Não nos sentíamos incomodados com esse conceito. Depois, quando começou a falar muito de agricultura familiar, surgiu aquela desconfiança: nós não somos isso também. Somos isso, mas somos muito mais coisa.

Então, a gente começou a falar de campesinato. Fomos com o boné da Via Campesina. E o pessoal começou a se perguntar: o mundo inteiro fala de camponês, até a Europa fala de camponês, a América Latina inteira, nos movimentos, fala de camponês... Porque no Brasil os movimentos camponeses não falam de camponeses? A gente foi estudar um pouco e saiu uma sistematização bacana, de que a Leonilde participou, que é a coleção de livros História Social do Campesinato... Nós somos do movimento camponês, que se torna uma classe camponesa e luta e que tem memória... Se tem uma coisa que é fundamental para entender o que a família camponesa é, é a memória. Essa memória, infelizmente, é muito oral e se perde... Pensando na formação política: se as novas gerações não tiverem acesso a essa memória, não vai saber para onde vai. Então, em função dos 50 anos do golpe civil militar de 1964, nós retomamos o debate da luta camponesa antes do golpe. Ou seja, resgatar essa memória de luta dos anos 30 até os anos 60 no campo, porque você estuda muito pouco isso no ensino médio, na universidade, no Serviço Social não estuda nada... Nada, nada... Se for trabalhar no campo, não conhece a questão agrária, nem a questão agrícola. Ou seja, vai com a cabeça totalmente urbana, industrial, para intervir na questão social do campo. É uma crítica que eu faço.

Em 2014, nós fomos fazer a primeira escola camponesa da memória. Que é uma escola com jovens de 15, 17 a 25 anos, para eles irem estudar essa memória camponesa. Nós fizemos essa primeira escola em Brasília, por questões de logística na época, prestando atenção na juventude. Sempre estudar e fazer uma ação direta.

Foi quando a gente fez um escracho para aquele coronel, o Brilhante Ustra20. Ele estava vivo, a gente descobriu a casa dele e fomos lá, colocamos faixa, pintamos a frente da casa dele, como atividade para a juventude. Ou seja, é uma ação em que a juventude ia se sentir protagonista.

Fizemos outras escolas, na Paraíba, na região de Sapé e já foi uma escola onde nós fomos visitar as regiões, fomos ao Museu das Ligas, tivemos um encontro com Elizabeth Teixeira.

Leonilde: Ah, que maravilha!


Beto: E em 2015 a gente conseguiu levar o Clodomir dos Santos Moraes. E os dois se encontrarem... Eu me arrepio toda vez que lembro desse encontro. Foi muito emocionante! Ele conversou muito com a Elizabeth, ela já com a memória um pouco vaga... E eles contavam coisas que a gente não... esse processo da luta da organização que tem coisa escrita e coisa que não está escrita, porque eles falaram para a gente e a gente não gravou, ficou só na memória... A conversa com o Clodomir e com a Elizabeth foi fantástica!

Aí nós começamos a repetir duas vezes por ano essa escola da memória com a juventude, para os jovens que estão saindo do ensino médio, na idade entre 17 a 25 anos, porque essa geração não teve acesso e não participou de movimento de organização comunitária. Essa juventude pega um período muito ruim de organização no campo, não é? Foi um boom das políticas públicas de acesso à escola. Era o PROUNI, o FIES, um maior acesso do ensino público21... E esse processo não veio com junto com organização e formação política, conscientização. É ir para a universidade apenas. Não vem junto de um processo de contar a história de fato... Ter acesso à universidade é muita coisa...

Essa geração anterior a minha, não conhecia nada das Ligas Camponesas, da própria CONTAG, dos conflitos que tinha na Via Camponesa. Só dá o papel dos comunistas no campo nos anos 60 e os debates da questão agrária da época... Então,


20 Carlos Brilhante Ustra foi o primeiro militar condenado pela justiça brasileira pela prática de tortura na ditadura. Faleceu em 2015.

21 O PROUNI, Programa Universidade Para Todos, oferta bolsas de estudo, integrais e parciais, em cursos de graduação em instituições de educação superior privadas (https://acessounico.mec.gov.br/prouni). O FIES, Fundo de Financiamento Estudantil, é um programa do MEC destinado a financiar ensino superior a estudantes matriculados em escolas privadas, avaliadas pelo MEC (https://sisfiesportal.mec.gov.br/?pagina=fies).

essas escolas da memória cumprem esse papel de contar uma história não contada e o MPA é parte dessa história. Ou seja, para entender o MPA tem que entender essa história. Até as nossas escolhas políticas... O conceito escrito não explica a realidade em alguns aspectos. Então, para cuidar da memória tem sido boa essa ideia de que o conhecimento é contínuo... Mas, se a gente perde a memória, há um processo de ruptura que a gente não vai saber o que fazer. Isso que falei da comercialização dos operários é uma coisa do MPA. Mas eu fui descobrir depois que, em Niterói, as Ligas Camponesas, a ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil faziam isso com o movimento sindical. Isso nos anos 60.


Leonilde: José Pureza falava muito disso.


Beto: Pureza fazia isso. O sindicalizado tinha um desconto na compra da produção. Isso era disputado no movimento político, nos partidos.

Quando a gente ouviu o Clodomir, a Elizabeth, a gente conheceu também o filho do Julião e, numa dessas histórias, ele participou também.


Leonilde: O Anacleto?


Beto: O Anacleto. Para além de filho do Julião e da Alexina22, que é outra pessoa que nós não conhecíamos e que era muito maior do que Julião... Julião era o falador, como diz o Clodomir [Moraes]. Mas quem formulava e articulava era a Alexina. E ninguém conhece a Alexina…


Leonilde: Você conhece o filme Memórias Clandestinas, não é?


Beto: Conheço o filme...

A gente viu que tem coisa que a gente tem que melhorar o que já foi construído, potencializar, ressignificar. Então, o papel da memória é muito forte dentro do MPA. As coisas não nasceram com a gente, já têm uma história, temos que continuar e


22 Alexina Crespo foi esposa de Julião e militante das Ligas Camponesas. Para conhecer sua trajetória, ver o documentário Memórias Clandestinas, dirigido por Maria Thereza Azevedo (https://www.youtube.com/watch?v=iaXDBoslmCY).

seguir, ou seja, um povo que perde a memória dificilmente sabe para onde vai, não é?

Leonilde: Eu acho que o trabalho que vocês fizeram, o estímulo que vocês deram à elaboração da História Social do Campesinato foi incrível! São nove volumes, e vocês conseguiram juntar os “pesos pesados” do mundo acadêmico. Para mim é uma obra essencial para quem quer conhecer a história do Brasil. Com os dois volumes sobre as mulheres, que acabaram sendo menos históricos, dá um total de onze volumes...


Beto: No aspecto da memória, o que a gente não conseguiu sistematizar ainda, e o Fabrício [Teló] começou, é o aspecto das formas de organização, que a ULTAB tinha e se perdeu muito isso. O Clodomir é uma das grandes lideranças camponesas desse período... Ele conta histórias que não estão nas histórias oficiais dos partidos. Por exemplo, o filtro entre o PCB e o PCdoB. Tinha uma parte do PCB que foi expulso, mas também que não foi aceita dentro do PCdoB, pelo debate da questão agrária... Tem coisa que não está sistematizada. ... precisa saber quais eram as discussões, não é? Como a gente vai fazer o trabalho de organização popular? Porque, às vezes, essas ditas novas formas organizativas, elas não são tão novas... Ou elas são formas que levam a outros caminhos da emancipação política e social dos trabalhadores.


Leonilde: Beto, foi maravilhoso!!


Jacqueline: Obrigada por você fazer o nosso dia melhor! Mesmo com esses tempos, você conseguiu trazer coisas tão importantes, sua trajetória, sua memória militante viva e ativa. Aqueceu os nossos corações militantes também. Fortalece para a gente continuar na academia com ações concretas, como essas e outras, para fortalecer essas lutas, que é o que a gente deseja. Quero agradecer demais, Beto, a sua generosidade por estar aqui tanto tempo com a gente proseando, com tanta generosidade, a sua experiência militante riquíssima. Muito obrigada.


Leonilde: Beto, eu te agradeço muito também!