V.20, nº 41, 2022 (jan-abr) ISSN: 1808-799X
Jacqueline Aline Botelho Lima2 Leonilde Servolo de Medeiros3
A partir da proibição do tráfico internacional de escravos, resultado da Lei Eusébio de Queirós datada de 1850, a Lei de Terras tornava a terra cativa no Brasil (Martins, 2010), definindo que ela só poderia ser acessada por meio de compra. Com essas leis, o Brasil inicia a longa transição de sociedade escravista para uma sociedade capitalista dependente, continuando o campo (e, em grande medida a sociedade brasileira) sendo palco do poder derivado da forma de propriedade da terra resultante da grande concentração fundiária. Desta forma, compreendemos que não é possível entender o Brasil, sem uma análise da questão agrária, ainda pouco revisitada em nossa contemporaneidade. Esse conteúdo imprescindível nos permite analisar as dinâmicas das classes sociais, as origens agrárias do Estado brasileiro, a formação das classes urbanas, o surgimento das cidades, e, especialmente, os processos de lutas e resistências camponesas e indígenas, evidenciadas na relação
1 Artigo recebido em 27/03/2022. Aprovado pelos editores em 28/03/2022. Publicado em 28/03/2022 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i41.53717.
2 Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da UFF/Niterói. Doutora em Serviço Social pela UERJ. Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pelo PPFH/UERJ. Graduada em Serviço Social pela UERJ. Pesquisadora Permanente do NEDDATE/UFF. Coordenadora do NEPEC (ESS/UFF).
E-mail: botelho.jacque@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7423332568707388. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1989-5089.
3 Professora titular no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da UFRRJ. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela USP. Mestre em Ciência Política pela USP e Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Política Públicas no Campo, do CPDA/UFRRJ e membro do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura da UFRRJ.
E-mail: leonildemedeiros@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6874717097891723. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5030-8044.
que trabalhadores e trabalhadoras do campo estabelecem com a terra e, nas últimas décadas com o poder derivado da força econômica, social e política do agronegócio. Numa primeira aproximação, o sumário do número 41 da Revista Trabalho Necessário, que se dedica à análise da Questão agrária e lutas no campo: experiências camponesas, mostra a importância das abordagens relacionais para entender o que está em jogo no meio rural brasileiro (mas nem só no rural e, muito menos, só no Brasil): como entender as dimensões contemporâneas da questão agrária sem adentrar nas complexas relações em que ela está imersa e que se relacionam com as diferentes expressões de poder e do papel do agronegócio? Onde
e como se manifesta? Como se evidenciam suas práticas?
Esta edição se inicia com a seção Homenagem, que contempla o documentarista, professor aposentado do Instituto de Economia da UFRJ, José Roberto Pereira Novaes, conhecido como Beto Novaes, autor de uma ampla filmografia sobre as condições do trabalho no campo, com destaque para os canaviais paulistas; as formas de organização; o trabalho das mulheres, com destaque para pescadoras e marisqueiras (“mulheres das águas”); jovens rurais; assentados; efeitos dos agrotóxicos sobre os trabalhadores etc. O artigo, escrito por um parceiro de trabalho por longos anos em pesquisas, documentários, artigos, livros, Francisco José da Costa Alves, professor aposentado da UFSCar, narra a trajetória dessa relação, os temas tratados por Beto Novaes, mas principalmente fala de uma determinada concepção do cineasta que acompanha a produção dos documentários: a ideia de educação através de imagens. Ao longo do texto, o autor reitera a sensibilidade de Beto Novaes para diferentes dimensões do cotidiano apreendido nos filmes e a importância que dá à divulgação de sua produção entre os próprios trabalhadores, de forma a provocar debate e aprendizado entre eles.
A seção artigos do número temático inicia-se com o texto de Paulo Alentejano, intitulado “Contrarreforma agrária, violência e devastação no Brasil” onde o autor apresenta um balanço da reforma agrária no Brasil nos últimos anos, com ênfase no desmonte promovido a partir do governo Temer, mas em especial no governo Bolsonaro. Não por acaso, Alentejano usa o termo “contrarreforma agrária”, utilizado por diferentes analistas em contextos diversos. Ou seja, trata-se de um conjunto de medidas que estimulam não a distribuição de terras aos que nela trabalham, mas sim processos de expropriação e a concentração, com base na
violência contra as populações demandantes de direitos, intimidando seus porta- vozes, buscando anular resistências. Dessa perspectiva, o autor mostra que se, no governo Temer, houve um total desmonte das instituições e da legislação que foram se constituindo a partir da aprovação da Constituição de 1988, no governo Bolsonaro há uma forte pressão pela construção de novos aparatos legais que estimulem a grilagem e a devastação ambiental, além de colocar na pauta iniciativas que visam inserir no mercado as terras conquistadas pelos assentados. Com efeito, a possibilidade de titulação individual dos lotes certamente conduzirá a uma ativação do mercado de terras. Cercados pela precariedade, com apoio frágil à produção, à saúde, à educação, sem estradas para escoamento do que produzem para permitir o acesso aos consumidores, sem telefonia e pouco alcance da internet, não é difícil entender quão tentadora é a possibilidade de venda da terra e consequente saída do lote ou para ir morar com outros membros da família nas próprias áreas rurais ou para tentar a vida nos centros urbanos. Com isso, criam-se condições para o avanço do agronegócio, corporificado não só na concentração fundiária, mas também na concentração de investimentos em logística, infraestrutura, produção de máquinas, insumos e sementes, grande parte deles controlados por indústrias globalizadas e regidas por uma lógica que não se prende ao local, mas sim às estratégias globais de reprodução do capital investido. A essa lógica, que fragilizou a capacidade de resistência dos movimentos sociais, somam-se os efeitos da pandemia, que dificultam ainda mais (mas não eliminam) as formas de resistência. Como aponta Alentejano, estas cada vez mais assumem um caráter local e se reinventam.
Como perspectiva teórico-metodológica, consideramos na organização deste número que o Estado não é o demiurgo das relações sociais, mas que estas, na particularidade brasileira, abriram espaço para uma sociedade autoritária e de cultura autocrático-burguesa que contribuiu para processos de tipo “não clássico” no enfrentamento de tarefas de transformação social, diferenciados das experiências pelas quais passaram países “que terminaram por gerar sociedades de tipo “ocidental”, “liberal-democráticas” (COUTINHO, 2006, p.174).
Ainda na atualidade, o processo de expansão territorial é estratégia fundamental da burguesia brasileira e internacional, o que tem trazido consequências drásticas ao meio ambiente e à preservação e à manutenção da vida. Os grupos sociais organizados contra a antiga ordem no Brasil acumularam experiências de luta
que nos trazem ensinamentos para a atualidade, tal como manifestado pelos camponeses, pelos quilombolas e indígenas, em que pese séculos de brutal repressão.
O artigo de Douglas Ribeiro Barboza, intitulado “Políticas de terra e trabalho no período pré-republicano: elementos para pensar a questão agrária no Brasil” faz uma análise das políticas de terra e de trabalho no período pré-republicano brasileiro, com o objetivo de mostrar justamente a importância da questão agrária para a compreensão das formas históricas assumidas pelo Estado ante a permanente presença dos interesses vinculados à propriedade territorial na composição do poder. Com esse objetivo, o autor analisa o colapso do sistema colonial e a continuidade da escravidão e do poder ligado à propriedade da terra, os mecanismos de coerção instituídos com a crise do escravismo, e as marcas incidentes sobre a formação social brasileira.
No artigo de Thereza Cristina Cardoso Menezes, “Colunas de fogo, cortinas de fumaça e narrativas inflamáveis: multiplicação de incêndios florestais e as novas dinâmicas sociais da expansão da fronteira agropecuária amazônica”, a autora propõe uma reflexão sobre os desdobramentos da questão ambiental no Brasil, que se agrava no contexto de expansão do capital no campo, por meio da ação ostensiva de queimadas na Amazônia, atingindo áreas de diferentes estados da federação, especialmente a partir da ação da agropecuária. O crescimento da disponibilidade de terras para fins da expansão da fronteira agropecuária, desde a década de 1990, chega a um momento alarmante no governo Bolsonaro, mediante aumento de estratégias que favorecem expectativas de uma possível regularização e valorização do estoque de terras disponíveis no mercado informal. O governo Bolsonaro e sua campanha internacional de ataque à demarcação de terras indígenas, demonstra haver uma inflexão no destino socioambiental amazônico, que irá legitimar práticas de devastação ambiental, com graves impactos aos agricultores e comunidades tradicionais
Analisando os desafios conjunturais para os povos indígenas, o artigo “Movimento e resistência indígena no contexto pandêmico brasileiro”, de Luiz Eloy Terena, denuncia o atual modelo de desenvolvimento que tem afetado de forma predatória os territórios tradicionais e nos oferece uma contextualização da política indigenista brasileira, apresentando as articulações atuais que o movimento indígena
brasileiro, liderado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), vem empreendendo. O artigo argumenta sobre como a FUNAI se comporta de maneira autoritária e colonial, criminalizando lideranças indígenas, nos permitindo também enxergar como os povos indígenas têm, apesar de toda violência, conseguido construir estratégias de resistência desde o processo de colonização do Brasil, e que na atualidade se fazem ainda mais necessárias mediante medidas agressivas do governo Bolsonaro, que sinalizam para o ataque aos direitos dessa população na reprodução do seu modo de vida, tal como o Projeto de Lei 191/20 que prioriza durante a pandemia a abertura de terras indígenas para a exploração da mineração.
O colonialismo cultural segue como estratégia na disputa dos territórios, o que impõe desafios para pensarmos as lutas e reconhecermos as resistências históricas. Apesar das interpretações eurocêntricas de que a invasão e a colonização europeia e seus efeitos foram aceitos passivamente pelos indígenas, e das reais investidas dos dominantes na cooptação dos lutadores em diferentes frentes, consideramos que, para além da presença da resistência em suas ações, os povos e comunidades tradicionais foram fundamentais na preservação da floresta, e da vida no campo, por meio de seus modos de vida e saberes.
Dessa perspectiva, entendemos que o movimento de resistência nas terras cumpre uma tarefa histórica na defesa dos territórios camponeses. Na realidade brasileira, a expansão da agropecuária que vem desde os anos 1960, com o avanço das políticas modernizadoras, também evidenciou a multiplicação dos movimentos camponeses em luta por terra, ampliando a conflitualidade e a criação de assentamentos rurais, estando o MST à frente desse processo. Corporações nacionais e transnacionais ampliaram o modelo agroexportador através do agronegócio que aglutina, com pesos diferenciados, os sistemas agrícola, pecuário, industrial, mercantil, financeiro, tecnológico, científico e ideológico (FERNANDES, 2008). Nas primeiras décadas do século XXI, as mudanças conjunturais da questão agrária, com o fortalecimento do agronegócio, geraram diferentes conflitualidades, visto que os movimentos camponeses e indígenas confrontam-se agora com corporações transnacionais.
Entendemos que a feição antidemocrática, assumida pela revolução burguesa no Brasil (FERNANDES, 2006), sustenta o processo de desigualdade de temporalidades históricas, na medida em que a transição do capitalismo competitivo
ao monopolista no país ocorre por caminhos que fogem ao modelo de democracia burguesa, ou seja, a burguesia brasileira nunca possuiu forte orientação democrática e nacionalista, direcionada à construção de um desenvolvimento autônomo.
Desta maneira, a propaganda do agronegócio e os ataques à educação do campo são parte da feição autocrática do Estado brasileiro e do seu descompromisso com a construção da democracia. Os artigos de Regina Bruno e de Tássia Cordeiro nos auxiliam a pensar nas estratégias de dominação dos setores agrários pelo convencimento no campo da cultura e educação.
Regina Bruno, no texto “O processo de construção da hegemonia do agronegócio no Brasil: recorrências históricas e habitus de classe” se volta para a análise do trabalho político no interior desse segmento, de forma a lhe assegurar a manutenção do poder de definir seus contornos. Um trabalho que, ao mesmo tempo em que se volta para dentro do amplo grupo que se agrega no que chamamos de agronegócio, num esforço de produzir uma identidade de classe, também se volta para a criação de uma imagem própria frente à sociedade, uma imagem totalizante e que procura não deixar brechas (“o agro é tudo” e está presente em todos os momentos de nossas vidas). A autora, ao longo do texto, mostra como é construída uma retórica que busca a ampla legitimidade social, mas, ao mesmo tempo, sem descuidar da procura de espaços no Legislativo, onde é capaz de influenciar na elaboração de leis. Se é conhecida e denunciada a dimensão de violência física que acompanha sua expansão, não menos relevante é a violência simbólica, desqualificadora dos que se opõem à sua expansão.
Focando uma dimensão mais específica do poder do agronegócio, em “Agro sem partido? Coerção e consenso - a investida do agronegócio na educação brasileira”, de autoria de Tássia Gabriele Balbi de Figueiredo e Cordeiro, é analisada a inserção do agronegócio na educação, tomando como objeto empírico a campanha De Olho no Material Escolar e suas relações com as propostas do movimento Escola sem Partido. A partir de uma abordagem gramsciana, a autora procura mostrar a inserção do agronegócio na educação, como contraposição à política de Educação do Campo e suas análises do campo brasileiro a partir de uma perspectiva crítica. Sob responsabilidade do grupo que se autodenomina como “mães do agro”, com uma ampla difusão no Instagram, a campanha visa atualizar e dar embasamento técnico/científico a materiais escolares relacionados ao campo, de
forma a se contrapor ao tratamento dado a temas como desmatamento, uso de agrotóxicos, lugar da agricultura familiar e da questão agrária, de maneira a produzir uma narrativa que produz fundamentos para a expansão da hegemonia do agronegócio. Trata-se de um investimento analítico que busca mapear a forma como o agronegócio interage com a educação, investe na produção de material didático etc, enfatizando uma dimensão político-ideológica que, regra geral, tem sido pouco explorada nas análises sobre o agronegócio.
Continuando as reflexões em torno do agronegócio, o artigo de Heráclito Santa Brígida da Silva, “Agronegócio na Amazônia e o avanço do capital: ataque aos povos do campo”, discute o avanço do agronegócio no norte do país, tratando dos conflitos lá gerados e da política sistemática de negação de direitos dos povos do campo, não só os individuais como também dos chamados direitos difusos (ambientais, territoriais). O autor chama a atenção para o papel central do Estado nesse processo. O texto “A Revolta do Cachimbo e a luta pela terra no Quilombo da Caveira”,
de autoria de Gessiane Nazario, analisa os conflitos fundiários e a luta pela terra, que se prolongam desde os anos 1950, na comunidade quilombola da Caveira, em São Pedro da Aldeia, no estado do Rio de Janeiro. O caso analisado além de tratar da ruptura do pacto moral entre fazendeiros e moradores, descendentes de escravos, da antiga Fazenda Campos Novos, mostra outa face do processo de expropriação que marca determinadas regiões do país: o avanço dos loteamentos urbanos, em especial com finalidades turísticas. Nesse processo de longa duração, o conflito ganha novas formas. A autora apresenta os desdobramentos históricos e mostra como a luta por permanecer na terra se transforma em luta pelo reconhecimento do território secularmente habitado por comunidades de origem escrava que, nos anos 1950 a 1980, lutaram por permanecer na terra a partir dos direitos de posse e, nos anos 1990, passaram a se identificar como quilombolas.
Nesse cenário de diferentes formas de conflito pelo direito à terra, há que considerar ainda a perseguição aberta aos Sem Terra e a política de militarização do INCRA. Nos primeiros dias do governo Bolsonaro, a reforma agrária foi suspensa por tempo indeterminado, arquivando cerca de 250 processos em andamento. Desde
2015, como tem sido noticiado, a reforma agrária vem sofrendo cortes drásticos no financiamento4.
O conjunto de retrocesso corroborados pelo governo Bolsonaro reitera como linha política o ataque aos direitos, e aprofunda medidas de contrarreformas, difundidas como “necessárias” para o capital superar sua crise. Torna-se um desafio para as esquerdas articularem uma reação, quando a ordem da direita ultraliberal é reduzir o valor da força de trabalho com corte brutal de direitos como educação e saúde, com ampliação da barbárie.
Na seção Resenha são apresentadas duas contribuições fundamentais para a discussão por aqueles que, de alguma forma, encontram-se envolvidos no debate sobre as várias dimensões da questão fundiária no país. Elaine Moreira apresenta o livro de Débora Franco Lerrer, intitulado ‘MST: como um movimento de ‘gaúchos’ se enraizou no nordeste”, que analisa como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra chega ao Nordeste brasileiro para levar suas formas de luta. O texto evidencia os processos menos visíveis de expansão e consolidação das organizações e as dificuldades advindas das relações entre grupos portadores de culturas distintas. A segunda resenha, escrita por Ricardo Braga Brito, trata do livro de Caio Pompéia “Formação Política do Agronegócio”. É destacada a multiplicidade de entidades criadas para evidenciar e estabelecer os interesses compartilhados de amplos setores que estariam articulados em torno do que hoje se convenciona chamar de “agronegócio”. O resenhista também destaca como o livro, ao mesmo tempo em que aborda a história e a emergência do agribusiness e do agronegócio como construções políticas, revela um conjunto de mecanismos de organização e estratégias discursivas de enunciação para criação de consensos e espaços de socialização que serão, ao longo do tempo, responsáveis pela aparente homogeneidade de interesses, discursos e práticas do campo do agronegócio.
Na seção Ensaio, Jesús Jorge Pérez García em “Necesidades sentidas: ensayo sobre luchas comunitarias en territorios rurales en Cuba y en la amazonía tocantina paraense – Brasil” identifica a resistência como uma experiência prática, a partir das análises da realidade de Cuba e Brasil no tocante às comunidades rurais.
4 CAMARGOS, D; JUNQUEIRA, D. Governo Bolsonaro suspende reforma agrária por tempo indeterminado. Disponível em:< https://reporterbrasil.org.br/2019/01/governo-bolsonaro-suspende- reforma-agraria-por-tempo-indeterminado/>Acesso em 15 de mar. de 2022.
Como proposta, o autor apresenta o debate sobre o conceito de necessidades sentidas, realizando uma abordagem de base materialista histórico-dialética, na escolha metodológica de revisão de literatura, observações e anotações de campo. O trabalho também evidencia as necessidades sentidas desde os processos educativos/comunitários, que fazem sentir, pensar, atuar em uma dimensão sociocultural.
O número 41 da revista Trabalho Necessário traz ainda na seção Entrevista, importante contribuição de uma liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores(MPA), Humberto Ribeiro, onde ele narra a sua trajetória, encontro com o MPA e principais atividades realizadas no estado do Rio de Janeiro. Ao longo da entrevista, Beto desvela dimensões importantes do processo de formação de lideranças, bem como apresenta relevantes reflexões sobre as relações entre movimentos sociais urbanos e rurais em torno do tema alimentação. Beto Ribeiro também fala da importância da criação do espaço Raízes do Brasil, em cujo processo de construção as articulações campo/cidade ganharam materialidade e forma específica de colaboração.
Na seção Teses e Dissertações, são apresentadas três importantes produções sobre o tema. William Kennedy do Amaral Souza, em sua tese de doutorado intitulada “Trabalho-Educação, economia e Cultura em povos e comunidades tradicionais: a (re)afirmação de modos de vida como forma de resistência” evidencia, a partir dos fundamentos teórico-metodológicos do materialismo histórico, modos de vida de povos e comunidades tradicionais nos vales dos rios Guaporé e Madeira, em Rondônia, trazendo os nexos entre trabalho- educação, economia e cultura, entendidos como unidades dialéticas. O autor parte do pressuposto de que a defesa do território e a afirmação de suas maneiras de ser, fazer, sentir e pensar o mundo é elemento de estruturação de suas identidades e, ao mesmo tempo, condição para sua existência. Ou seja, para resistir ao processo de expansão capitalista na Amazônia e à produção destrutiva do capital que, na contemporaneidade do agronegócio e do neoextrativismo corroboram para a desestruturação dos modos de vida, homens e mulheres insistem em conservar formas de estar no mundo que requerem a produção de saberes em sintonia com a natureza e com a comunidade, tendo como horizonte a reprodução ampliada da vida.
Como procedimentos de pesquisa, o autor realizou a observação das práticas cotidianas, entrevistas semiestruturadas e rodas de conversa.
A tese de Marisa Oliveira Santos, intitulada “Memórias do trabalho familiar em casas de farinha: transformação dos modos de vida de homens e mulheres do campo” teve como objetivo analisar as memórias do trabalho familiar em casas de farinha. Trata das transformações no processo de trabalho e nos modos de vida de homens e mulheres do campo, atingidas pelo capital em duas comunidades rurais da Bahia: Campinhos (Vitória da Conquista) e Peri Peri (Belo Campo). A autora trabalha a memória como um construto social que, por meio do vivido, também é capaz de revelar as contradições e as transformações observadas nos modos de vida e no processo de trabalho, em detrimento da inserção da reprodução ampliada do capital na vida em comunidade. Assim, expõe as objetivações e subjetivações da memória e das transformações no processo de trabalho realizado no interior das farinheiras, refletindo a respeito da sobreposição do capital no modo de produzir e de viver das famílias. As entrevistas e as rodas de conversas foram procedimentos utilizados na investigação para revisitarem as memórias do sujeito de pesquisa, homens e mulheres do campo, trabalhadores e trabalhadoras em casas de farinha, tomando o materialismo histórico como suporte teórico metodológico.
A dissertação de mestrado de Thaís Henriques Dias, com o título “O desastre de fundão e a advocacia em questão” analisa a prática advocatícia no contexto do rompimento, em 2015, da barragem de rejeitos de mineração de Fundão, da empresa Samarco Mineração S.A e de suas controladoras Vale S.A e BHP Billiton, no município de Mariana, Minas Gerais. A autora busca identificar a diversidade de agentes e grupos específicos relacionados ao universo da advocacia no desastre e suas consequências na trajetória político-profissional de algumas dessas advogadas(os), da advocacia privada, pública e popular. Também procura desvendar o campo da advocacia empresarial, de forma a apresentar tendências no Direito relacionadas a esse campo. A autora analisa ainda o conflito entre advogados das empresas e advogadas populares sobre os processos de reparação do desastre de Fundão, em meio a um processo judicial. A dissertação usou métodos da pesquisa qualitativa: estudo de caso, conversas informais e entrevistas semiestruturadas com advogadas(os) que atuaram em diferentes momentos a partir de tipos de advocacia distintos; pesquisa e caderno de campo, nos territórios em conflito com a mineração
e atingidos; análise de documentos jurídicos referentes à litigância por direitos das populações atingidas em tensão com os interesses das empresas por reduzir custos da reparação; perfis de advogados empresariais, para identificar atributos comuns, contrapostos e divergentes entre outros.
Na seção Memória e Documentos, Gaudêncio Frigotto revisita o filme Cabra marcado para morrer, dirigido por Eduardo Coutinho ainda nos anos 1980. No artigo “Cabra marcado para morrer, sessenta anos depois: a infâmia do latifúndio contra os que lutam pelo direito à terra e à vida” chama a atenção para a importância de voltar ao documentário, que pode ser visto como um alerta tanto para os perigos que atravessam a atual conjuntura, quanto para a necessidade de retomar a agenda das reformas estruturais. Dessa perspectiva, Frigotto chama a atenção para o fato de que as Ligas Camponesas foram um momento importante da luta pela reforma agrária, uma política que, como aponta Paulo Alentejano no artigo que inicia o dossiê deste número da revista, passou um processo de desmonte institucional e legal. O autor, inspirado em Walter Benjamin, dá destaque para a importância da apropriação do passado, tal como ele se apresenta ao sujeito histórico, de forma a jogar luz sobre o perigo que ameaça a tradição: “entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento”.
Para além dos textos dedicados a temas do meio rural, objeto da reflexão dos artigos do número temático, há três outros artigos que tratam de temas de interesse. Finalizamos a apresentação deste número trazendo as contribuições da seção Artigos de outras temáticas, que mesmo não articulada à questão do campo, não deixa de tocar em elementos que fazem chegar até ele, no que se refere ao papel da escola, às políticas e aos desafios postos para ela, enquanto instituição, na formação da classe trabalhadora, contribuindo como um dos instrumentos para a sua emancipação
O artigo de Elydimara Durso dos Reis e Felipe Alencar, “Educação profissional paulista na antessala da reforma do ensino médio: Vence e Novotec no Centro Paula Souza, 2012-2020”, discute os caminhos delineados nos programas Vence e Novotec, no Centro Paula Souza, como tendências de serem modelos para a reforma do ensino médio no estado de São Paulo. Os autores resgatam a disputa histórica no campo da educação profissional técnica no Brasil, apontando como a Reforma do Ensino Médio de 2017 e a aprovação da Base Nacional Comum
Curricular, em 2018, atualizaram o dualismo entre a formação de cultura geral, humanística, propedêutica e a formação técnica e profissional. Segundo os autores, os programas analisados tendem a acompanhar o aprofundamento desta dualidade na rede estadual de ensino e a preparar os estudantes para atividades laborais precárias, o que seria uma ameaça ao futuro dos cursos integrados.
No artigo “EJA integrada à educação profissional: avanços no PNE-retrocessos na BNCC”, Sandra Regina de Oliveira Garcia, Ceuli Mariano Jorge, Patrícia da Silveira analisam como meta do Plano Nacional de Educação – PNE 2014-2024 a ampliação da oferta da Educação de Jovens e Adultos –EJA- integrada à Educação Profissional nas etapas dos Ensinos Fundamental e Médio. A realização desse objetivo estaria relacionada ao cumprimento de 11 estratégias que tratam da expansão, do currículo, da infraestrutura, do acesso das pessoas com deficiência e das condições de permanência. Partindo dessas considerações, os autores argumentam que há uma insuficiência dessa oferta, o que se agrava com as Novas Diretrizes Curriculares da EJA, alinhadas à BNCC, que impõem mudanças curriculares que empobrecem e descaracterizam o currículo e definem obstáculos à escolarização dos trabalhadores.
Compreende-se, em diálogo com o conteúdo trazido pelos textos que resgatam o tema educação, que uma escola “viva e criadora” deva garantir o “desenvolvimento intelectual de seus alunos, de modo que possam se tornar dirigentes” (Ramos, 2004,
p. 50). O currículo integrado é pressuposto do ensino médio integrado, fundado sob uma pedagogia que busca a construção conjunta de conhecimentos gerais e específicos, no sentido de que os primeiros devem fundamentar os segundos e estes evidenciem o caráter produtivo concreto dos primeiros (Frigotto; Ramos; Ciavatta, 2005).
A preparação profissional no ensino médio é uma imposição da realidade, em que admitir legalmente essa necessidade tornou-se um problema ético. O que se pretende nas lutas dos educadores por ensino médio de qualidade não é meramente atender a esta necessidade do jovem que está nesta etapa do ensino, mas pautar a urgência de mudar as condições em que este ensino se desenvolve, na luta pela obrigação ética de que o ensino médio integrado ao ensino técnico se realize sob uma base unitária de formação humana, como condição necessária à realização da travessia para uma nova realidade que supere a desumana divisão entre os que
pensam e executam, entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre o trabalho e a educação em nossa sociedade, no lugar relação entre mercado e educação. (FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005, p.43).
Em “Educação jurídica no contexto da formação integrada de jovens e adultos diante da precarização de direitos trabalhistas”, Élida Cristina de Oliveira, Marcos Antônio Andrade da Costa e Wanderley Azevedo de Brito trazem uma interessante contribuição para pensar os usos do direito nas lutas sociais, entendendo-o como conhecimento necessário para possibilitar uma vida digna e o exercício pleno da cidadania pelos indivíduos. Por esse caminho, após fazerem uma análise da literatura a respeito da precarização das relações de trabalho, os autores defendem que a disseminação do conhecimento jurídico é uma ferramenta para o “desenvolvimento de uma postura crítica capaz de fazer os indivíduos compreenderem a historicidade dos direitos atuais e a necessidade de luta para a manutenção e ampliação desses direitos”.
Neste número da Trabalho Necessário há uma preocupação de alertar os coletivos organizados em defesa da educação no sentido de identificar as experiências populares em curso e as possibilidades de unidade nas lutas em prol de mudanças. Os movimentos sociais reafirmam na atualidade a necessidade do debate sobre a educação popular, transformadora, num contexto de recrudescimento das ações autoritárias do Estado e de políticas crescentemente excludentes. O grande desafio que nos é colocado é o de pensar a relação entre ciência, cultura e trabalho- mediante as evidências históricas de descarte das experiências dos sujeitos- como conteúdo pedagógico, com vistas a fomentar processos de humanização.
Por esta razão, torna-se cada vez mais urgente pensarmos as contribuições dos movimentos sociais para a consolidação de projetos democráticos de reivindicação por direitos. Os movimentos sociais têm emprestado às lutas por educação um sentido político e transformador, ao vincular o debate sobre o direito à escola à luta por direitos humanos elementares, associados à construção de vida digna para seus filhos e filhas.
Experimentamos na atualidade um dos cenários mais brutais da história do país, marcado por uma política de estratégia neofascista implementada pelo então presidente da República Jair Bolsonaro e seus aliados, que organizou políticas de incentivo aos crescimento de lucros dos setores dominantes às custas da destruição
cotidiana das condições de manutenção do modo de vida camponês, impondo desafios às lutas sociais na construção de alternativas capazes de barrar o aprofundamento da questão agrária. Sendo assim, convidamos à leitura do número temático, compreendendo ser este o resultado de um esforço intelectual coletivo, a fim de contribuir para o entendimento de que a superação do atual cenário exige, para além da superação da ordem capitalista, o fortalecimento do pensamento crítico e da produção do conhecimento científico como mediações fundamentais na ação transformadora sobre a realidade dos diferentes territórios, que permanentemente nos exigirá novas indagações.
Que tenham uma boa leitura!
COUTINHO, C. N. O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas. In: LIMA, Júlio César F.; NEVES, Lúcia M. W. (orgs.). Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006, p. 173-200.
FERNANDES, B. M. O MST e as Reformas Agrárias no Brasil. Boletim DATALUTA
– Artigo do mês: dez. 2008.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. 5ª. ed. São Paulo: Editora Globo, 2006.
FRIGOTTO, g; CIAVATTA, M; RAMOS, M. Ensino Médio Integrado: concepção e contradição. São Paulo: Cortez, 2005.
MARTINS, J. S. O cativeiro da terra. 9. ed, São Paulo: Contexto, 2010.
RAMOS, M. O projeto unitário de ensino médio sob os princípios do trabalho, da ciência e da cultura. In: Ensino Médio: Ciência, cultura e trabalho. Brasília: MEC, SEMTEC, 2004.