V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
A PROTEÇÃO E A PROMOÇÃO DAS CONDIÇÕES DA SAÚDE HUMANA
DISPOSTAS NA ECO-92 EM GIRO PELA EDUCAÇÃO CRÍTICA AMBIENTAL 1
Rosa Gouvea de Sousa2
Isabela Saraiva de Queiroz3
Celso Sánchez Pereira4
Resumo
A proteção e promoção das condições da saúde humana integram, como diretriz, o acordo assinado em 1992,
durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. O ano de 2022 marca trinta
anos desta assinatura. Este estudo propõe a retomada do debate da saúde enquanto elemento constitutivo da
proteção ambiental, a partir do olhar da educação ambiental crítica. A partir de giros pelo Sul Global, o estudo
trouxe interpretações contemporâneas sobre a diretriz, permitindo evidenciar a indissociabilidade entre a saúde e
o debate ambiental.
Palavras-chave: Educação ambiental crítica. Eco-92. Promoção da Saúde. Sistema Único de Saúde. Sul Global.
PROTECCIÓN Y PROMOCIÓN DE LAS CONDICIONES DE SALUD HUMANA PRESTADAS EN ECO-92 Y LA
EDUCACIÓN AMBIENTAL CRÍTICA
Resumen
La protección y promoción de las condiciones de salud humana forma parte, como directriz, del acuerdo firmado
en 1992 durante la ECO-92. El año 2022 marca treinta años de esta firma. Este estudio propuso la reanudación
del debate sobre la salud como elemento constitutivo de la protección ambiental, en la perspectiva de la
educación ambiental crítica. Basado en recorridos por el Sur Global, el estudio trajo interpretaciones
contemporáneas de la guía. Este ejercicio crítico permitió resaltar la inseparabilidad entre la salud y el debate
ambiental.
Palabras clave: Educación ambiental crítica. Eco-92. Promoción de la Salud.Sistema Único de Salud. Sur
Global.
PROTECTION AND PROMOTION OF HUMAN HEALTH CONDITIONS PROVIDED IN ECO-92 AND CRITICAL
ENVIRONMENTAL EDUCATION
Abstract
The protection and promotion of human health conditions is part, as a guideline, of the agreement signed in 1992
during the ECO-92. The year 2022 marks thirty years of this signature. This study proposed the resumption of the
health debate as a constitutive element of environmental protection, from the perspective of critical environmental
education. Based on tours of the Global South, the study brought contemporary interpretations of the guideline.
This critical exercise allowed us to highlight the inseparability between health and the environmental debate.
Keywords: Critical environmental education. Eco -2. Health Promotion. Unified Health System.Global South.
4Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós
Graduação em Educação, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
E-mail celsosanchezp@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/ 0000-0001-5634-023X.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/377797026773134.
3Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, UFMG/ Brasil. Professora da
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: isabelasq@ufsj.edu.br.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0839-1512. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7352265290690280.
2Mestra em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getútio Vargas (FGV). Professora do
Departamento de Medicina da Universidade Federal de São João del-Rei. (UFJF). E-mail: rosags@ufsj.edu.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6734-4583. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4182734342692999.
1Artigo recebido em 06/04/2022. Primeira avaliação: 01/05/2022. Segunda avaliação: 10/05/2022. Aprovado em
30/06/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i4353976.
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Introdução
O ano de 2022 marca trinta anos da assinatura de uma série de documentos
e marcos legais sobre a temática ambiental, tais como a Agenda 21 Global, firmadas
durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
- Rio 92. À época, os desafios que constituíam o horizonte do Século XX falavam
sobre disputas acerca de modelos de crescimento a partir de um desenvolvimento
sustentável (BRASIL, 2004). Constituindo parte do arcabouço da sustentabilidade,
estava a proteção ambiental e a justiça social (BRASIL, 2004). No entanto,
atualmente, experimentamos, em escala global, um conjunto de decisões e ações
que operam contra este arcabouço. Em curso, dentro de um sistema-mundo
organizado pelo capitalismo e pela modernidade, se constrói uma relação
assimétrica e expropriadora tanto da natureza quanto dos povos (CISNE, 2018), o
que nos coloca diante de uma situação de colapso ambiental (MARQUES, 2017).
De acordo com Manrique (2015), a privatização da terra e dos recursos da
natureza, a expulsão de comunidades, a eliminação de formas alternativas de
produção, o tráfico humano, a depredação dos fundos de pensão, entre outros
seguem em execução pelo capital global, organizando uma geopolítica que se impõe
pelo desprezo à natureza. No caso do Brasil, a expropriação da vida se explicita por
um sistemático apagamento das políticas sociais e ambientais, conforme exposto
por Arraes e Bizerril (2020).
As estruturas de mercado e de Estado realocaram a agenda de proteção
ambiental e da justiça social para setores expropriadores da natureza e adoecedores
da vida. Promove-se a flexibilização do arcabouço político-legal sobre proteção
ambiental, como um atalho às propostas neoliberais em movimento (ARRAES e
BIZERRIL, 2019). As intenções protetivas à vida registradas nas Agendas 21 Global
e Brasileira passam cada vez mais ao largo de políticas públicas, sofrendo
isolamentos e desmontes.
Dentre estas intenções, destacamos, neste ensaio, a “proteção e promoção
das condições da saúde humana”, que assume, na Agenda 21 Global, o capítulo
seis, no qual a descrição do que seja saúde a partir de correlações com o
desenvolvimento, sucedida por objetivos e atividades que possibilitariam o alcance
desta saúde:
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Tanto um desenvolvimento insuficiente que conduza à pobreza como
um desenvolvimento inadequado que resulte em consumo excessivo,
associados a uma população mundial em expansão, podem resultar
em sérios problemas para a saúde relacionados ao meio ambiente,
tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos. Os
tópicos de ação da Agenda 21 devem estar voltados para as
necessidades de atendimento primário da saúde da população
mundial, visto que são parte integrante da concretização dos
objetivos do desenvolvimento sustentável e da conservação primária
do meio ambiente. Os vínculos existentes entre saúde e melhorias
ambientais e socioeconômicas exigem esforços intersetoriais
(CNUMAD, 1992).
No Brasil, a Agenda 21 ganhou contornos próprios, em 2003, compondo o
plano plurianual à época (2004/2007) (BRASIL, 2004). No documento brasileiro, a
saúde fica evidente no objetivo sete (BRASIL, 2004, p.3): “promover a saúde e evitar
a doença, democratizando o Sistema Único de Saúde”, seguindo para
recomendações e ações:
Promover a elaboração da Agenda 21 dos hospitais brasileiros, tendo
em vista a melhoria dos seus serviços médicos e a qualidade do
atendimento, introduzindo consultas com hora marcada, registrando
o diagnóstico médico e o seu receituário de maneira a permitir,
sobretudo para os mais pobres, o acompanhamento médico no curso
da vida. Para isso, usar a caderneta-saúde ou seu equivalente
eletrônico, que acompanharia o indivíduo do nascimento à morte.
Intensificar e universalizar ações de promoção à saúde, prevenção e
controle de doenças e de assistência integral, com base em
programas como dos agentes comunitários e de saúde de família,
partes integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Melhorar a rede de saúde hierarquizando o atendimento médico em
função de sua complexidade, nível de gravidade e de especialização;
estabelecer um sistema coerente que comece com forte política
preventiva e progressivamente envolva os postos de saúde, os
hospitais de emergência e os especializados.
Promover a articulação entre os setores governamentais e destes
com a sociedade, para uma política integrada de redução de risco à
saúde e melhoria das condições de vida da população.
Aprimorar mecanismos de implementação da vigilância em saúde
relacionada à qualidade de água, solo, produtos, serviços e
ambientes de trabalho, de forma a eliminar ou reduzir fatores de risco
à saúde.
Promover o desenvolvimento de ações educativas, preventivas e
curativas, com o fim de diagnosticar, tratar e acompanhar alunos com
problemas de saúde, impedindo que estes interfiram no processo de
aprendizagem.
Ampliar as ações de detecção precoce dos problemas de saúde,
como hipertensão, diabetes, câncer de colo de útero, desnutrição,
defeitos congênitos etc., garantindo condições para
acompanhamento e tratamento.
Priorizar como política de saúde pública as ações educativas quanto
ao tabagismo, uso do álcool e outras drogas, dietas adequadas,
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direção perigosa, comportamento sexual seguro, de forma a evitar
que esses fatores de risco se transformem em elementos
desencadeadores de processos patológicos graves e irreversíveis
(BRASIL, 2004).
Trinta anos depois, a exegese epistêmica da proteção ambiental sofreu
críticas, desmontes e se reorganizou. Existem coletivos e organizações que
identificam a permanência da colonialidade e seus efeitos de injustiça ambiental,
denunciando sua dimensão global e uma divisão internacional orientada por uma
alteridade radical cujas expressões são o racismo, a misoginia e a exclusão social
(SANTOS, 2010). Sua agenda foi ampliada por uma complexa rede de saberes e
práticas, passando a ter como elemento fundante a militância em defesa da vida e
por condições de existência e modos de ser diversos à tríade moderno-ocidental
capitalista. Elementos interpretativos de mundo como raiz, afeto e ancestralidade,
passam a compor movimentos investigativos e explicativos para a relação entre as
pessoas e a natureza (CARLE, 2019).
Participam desta rede de saberes e práticas diferentes corpos políticos que
denunciam imposições de regulações de vida e morte, e expropriações de corpos e
territórios. Morais et al. (2022) chamam a atenção para movimentos sociais cujas
pautas falam contra opressões por meio de giros epistêmicos e que denunciam a
dominação advinda da racialização, da colonização e da exploração capitalista, bem
como do sistema heterossexual. Morais et al. (2022) destacam ainda que tais
categorias operam em conjunto e devem ser disputadas de forma atenta a esta
imbricação.
Rufino, Renaud Camargo e Sanchéz (2020) também divulgam propostas que
se voltam para as questões da natureza, a partir da descolonização dessas, tendo
por argumento a Terrexistência como caminho para mudanças e como giro dentro do
campo da educação. Rufino, Renaud Camargo e Sanchéz (2020) apontam que este
posicionamento político-epistêmico da Terrexistência nomeia e cria sentidos para a
proteção ambiental a partir de desvelamentos de encruzilhadas que se abrem para
outras possibilidades de interpretação de mundo e de condições de existência para
o bem viver entre pessoas, natureza e seus encantamentos.
Neste ensaio, propomos revisitar a agenda ambiental, em específico a
temática sobre proteção e promoção das condições da saúde humana, à procura de
pensamentos críticos que questionam esta temática a partir de fundamentos do Sul
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Global. Nesse sentido, analisamos a proteção e a promoção da saúde no Brasil,
trinta anos depois da ECO-92, percorrendo argumentos contra hegemônicos
investigativos de mundo, tendo a proteção ambiental como elemento crítico em
disputa. Para isso, situamos esse giro a partir do Sistema Único de Saúde (SUS) por
entendermos que o SUS, assim como a totalidade da Seguridade Social no Brasil,
sofrem, desde seu nascedouro, constantes ataques e depreciações por
precisamente apresentarem garantias em defesa da vida e da dignidade.
A dimensão ambiental da Proteção e Promoção da Saúde
De acordo com o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (2021), o
Brasil, no ano de 2021, chegou a 619 mil mortes registradas desde o início da
pandemia. Destas mortes, se têm como maioria a população negra e a indígena,
caracterizando o que Sato et al. (2020) chamaram de “injustiças pandêmicas” sobre
os “condenados da pandemia”. Neste mesmo contexto pandêmico, a Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REDE
PENSSAN, 2021) denuncia que 19 milhões de pessoas se encontram em
insegurança alimentar, sendo que, nos últimos dois anos, houve o agravamento
desta condição para mais de 10 milhões de brasileiros. Novamente, as mesmas
populações encontram-se na berlinda da fome.
Em paralelo, houve o crescimento do crédito para a agricultura patronal com
fins à produção de commodities, o desfinanciamento da agricultura familiar, a
extinção do Programa Minha Casa Minha Vida e do Bolsa Família. Melo e Morandi
(2021) destacam que o momento pandêmico expressa fortemente a divisão
internacional sexual do trabalho, exemplificando pela sobrecarga, adoecimento e
morte das trabalhadoras do setor de cuidados, em especial as trabalhadoras da
saúde.
No SUS, por sua vez, foi revogada a portaria que dispunha sobre os serviços
do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) (Nota
Técnica 3/2020), houve o aprofundamento de ações proibitivas sobre álcool e
outras drogas (nota técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS) e o retrocesso na
Política Nacional de Saúde Mental, com a Portaria 3.588/2017, ao retomar
propostas como a eletroconvulsoterapia e a internação manicomial. Além disso, a
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Política Nacional de Atenção Básica teve seu financiamento reorganizado pela
Portaria Ministerial 2.979, de 12 de novembro de 2019, cujos fundamentos
agregam sentidos de caráter privatizante e mercadológico para a universalidade do
acesso (SETA et al., 2021).
Estas situações, acima descritas, se somam a um conjunto de tomadas de
decisão que se voltam para o extermínio de povos e territórios a partir de
necropolíticas (MBEMBE, 2018). O discurso em movimento pelo capital e pela
modernidade tensionam para a ideia de um inimigo em estado permanente de alerta
e que deve ser abatido pelo que representa (KRENAK, 2019). Esse argumento
legitima a construção de políticas e de estruturas que intencionam o controle sobre
corpos políticos. Historicamente, o Brasil se alicerça sobre práticas sociais de saúde
que operam por essa lógica do controle, promovendo exclusões desiguais de vida e
morte.
O fundamento científico que legitima essa relação assimétrica entre esses
corpos políticos é organizado pelo modelo biomédico. Este modelo tem elementos
constitutivos como ser curativista, hospitalocêntrico, centrado na doença e nos
procedimentos, bem como na categoria médica (BARROS, 2002). Seu arcabouço
epistêmico constrói uma ideia de ser humano condicionada a existências narcísicas
da branquitude, codificando “proteção à saúde” como um privilégio. Dessa forma, a
naturalização de saberes científicos “antiambientais” e "anti sociais" tornou-se uma
estratégia para a validação da expropriação desejada pela tríade moderno-ocidental
capitalista (LOUREIRO, 2004).
O modelo biomédico organiza-se por saberes e práticas estruturados por
alteridades que racializam e gendrificam corpos e territórios a partir destes padrões.
Paulo Rodrigues, Tiriba e Cordeiro Antunes (2021) reforçam que os fenômenos da
saúde alicerçam modos de produção e de reprodução que precarizam a vida e
destroem a natureza. Como exemplo destas afirmações têm-se as condições de
existência e de permanência dos sujeitos na saúde a partir de marcadores sociais
cujo padrão é o homem branco (COSTA, 2002). Rufino, Renaud Camargo e
Sánchez (2020) apresentam estes marcadores como contratualidades raciais e
antropocenas alicerçadas na construção histórica da Modernidade.
São exemplos de ação que se baseiam nesta ficção imposta pela tríade
colonial: a demarcação de territórios tradicionais por marcos temporais
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colonizadores, o desmonte dos Sistemas Únicos de Saúde (SUS) e de Assistência
Social (SUAS) e a depredação do ar, do solo, da terra e da água pelas corporações
empresariais. Ramalho e Leite (2020, p.5) descrevem esta hegemonia identitária
como o “homem-branco-heterossexual-europeu” que, aqui, denunciamos como
produtora de relações e acessos assimétricos entre as pessoas que fazem uso do
SUS, desde o início de sua construção.
Não à toa, logo no período de redemocratização brasileira e, portanto, do
SUS, são sancionadas leis (nº 8.080/1990 e 8.142/1990) com vetos ao
detalhamento do financiamento pela gestão tripartite (em destaque a parte que
caberia ao Governo Federal) e ao detalhamento do exercício do controle social no
SUS. A privatização e a depredação da “coisa pública” se mantêm como forças
paralelas que operam a favor da manutenção de privilégios representados na saúde
pelo acesso e por itinerários terapêuticos desiguais.
No ano de 2021, conforme detalhado pela Auditoria Cidadã da Dívida, o
Governo fez uso de 2,85% de seus gastos na saúde, frente aos 53,92% gastos em
amortizações e juros da dívida (SINTUFRJ, 2021). Estes gastos recebem o respaldo
do Banco Mundial, apoiado por estudos que reconstroem o argumento sobre o “risco
ambiental e à saúde”, por narrativas de culpabilização dos indivíduos e da pobreza,
isentando a relação entre consumo, valor, trabalho e capital (CEOLIN, 2014).
Nos artigos 196 a 200, da Constituição República Federativa do Brasil, de
1988, a saúde se delineou circunscrita à Seguridade Social. Na carta maior, a saúde,
então, passa a ser compreendida como um direito, cujo arcabouço ético-político
disputa saúde para todas e todos. Pretende-se com o SUS a universalização do
acesso e do cuidado a partir de princípios e diretrizes como equidade, integralidade,
descentralização e participação social. Dessa forma, a construção do SUS passa
necessariamente por uma reinterpretação da relação do ser humano com seu
entorno e, portanto, com a natureza. Sobre isso, o texto da Agenda 21 Global
destaca cinco pontos:
Satisfação das necessidades de atendimento primário da saúde,
especialmente nas zonas rurais; controle das moléstias contagiosas;
proteção dos grupos vulneráveis; o desafio da saúde urbana; e a
redução dos riscos para a saúde decorrentes da poluição e dos
perigos ambientais (CNUMAD, 1992).
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Para a construção de políticas públicas ambientais, a Agenda 21 apresenta
termos e destaques sobre rural e urbano, e sobre grupo vulnerável e de risco. A
evidência de um dado termo frente a outro se constitui na intelectualidade moderna
e pós-moderna a partir de argumentos da alteridade racializada e hierarquizada
(SPIVAK, 2010). Dessa forma, interpretações do sujeito enquanto um outro
inacessível, “enfraquecido” em sua existência, justificando o agenciamento deste por
quem lidera ou governa.
Se rural existe por meio do urbano e vulnerabilidade pela ideia de risco, o que
se produz é uma codificação de mundo que pratica “saúde” como forma de
regulação para a manutenção da diferença entre urbano rural e entre risco e
vulnerabilidade. Em última instância, isso configura a extinção radical dos corpos
políticos pela codificação capitalista patriarcal racista, com autorização para a
exploração com fins ao aprofundamento de exclusões abissais de vida e de morte.
Modos de vida diversos passam a representar um perigo iminente à existência
do capital e das relações humanas organizadas por este. O argumento do consumo
excessivo, por exemplo, não somente abarca na saúde o velamento sobre as
iniquidades de acesso aos serviços de saúde, como também a exclusão desigual de
cuidado a partir de interpretações de adoecimento atravessados por gênero, raça,
religião e classe (RAMALHO; LEITE, 2020). Saúde torna-se mercadoria.
Neste sentido, pelo Sul global, o rural, o urbano, a vulnerabilidade e o risco
perdem suas relações assimétricas para compreensões de mundo que se pautam
por coalizões e co-constituições (LUGONES, 2014) interessadas no bem viver e na
valorização da natureza e de seus encantamentos (RUFINO; RENAUD CAMARGO;
SÁNCHEZ, 2020). O bem viver, por sua vez, participa da constituição de várias
propostas de leituras de mundo e de horizontes que se abrem para futuros
possíveis.
Na contramão da precarização das relações entre sociedade e natureza,
encontra-se a Estratégia de Saúde da Família (BRASIL, 2011) e as políticas públicas
que singularizam, pela integralidade, o cuidado a populações específicas (BRASIL,
2014, 2016). Pelo permanente exercício da participação social, houve, a partir da
década de 1990, a construção de políticas públicas que se voltaram para
abordagens comunitárias e territoriais, promovendo aproximações entre o SUS e
modelos interpretativos de mundo diversos ao biomédico, hegemônico. No entanto,
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como nos alerta Rocha e Rozendo (2015), apesar de inegáveis avanços, permanece
a desvalorização das práticas populares pelos profissionais da área da saúde, o que
provoca distanciamento na relação entre o SUS e tais práticas, bem como "a
invisibilidade e falta de crédito deste conhecimento popular” (ROCHA e ROZENDO,
2015, p. 336).
Neste sentido, a coordenação da gestão do cuidado e seu compartilhamento
mobilizam um permanente exercício de criticidade para estes profissionais. As
trabalhadoras e os trabalhadores ao percorrerem os territórios, nas suas mais
diversas expressões locorregionais, encontram situações cujos caminhos de
resolução passam por interpretações e proposições distantes ao modelo biomédico.
A prática normatizada e prescritiva tem limites que dificultam o desenvolvimento de
propostas centradas nas necessidades e no cuidado em saúde, o que nos leva ao
segundo ponto deste ensaio: a atenção primária à saúde e a proteção ambiental
pontuadas nas Agendas.
As “necessidades de atendimento primário da saúde da população”
(CNUMAD, 1992) são tratadas neste ensaio a partir de dois argumentos: a
compreensão de "necessidade" enquanto elemento que compõe os determinantes
sociais de saúde, bem como, o entendimento sobre o atendimento primário estar
correlacionado a uma estrutura de atenção primária (APS).
A Comissão Nacional sobre os determinantes sociais da saúde (CNDSS)
introduz o conceito de determinantes como um conjunto de elementos “sociais,
econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais” que
atravessam e que constituem situações de saúde e de adoecimento. Para isso, a
CNDSS mobiliza sentidos sobre risco, vulnerabilidade e justiça (CNDSS, 2005, p.2).
Para a Comissão, a promoção e a proteção são termos que falam sobre
equidade e que estão implicados com o debate sobre o enfrentamento das
iniquidades no Brasil (BUSS e PELLEGRINI FILHO, 2007). Por sua vez, a questão
“iniquidade social” é um argumento partícipe do pensamento mobilizado pela
educação crítica ambiental (LOUREIRO, 2004). Por sua vez, equidade, integralidade
e universalidade são diretrizes importantes ao SUS.
No SUS, a atenção primária à saúde tem sua expressão máxima no modelo
político técnico-assistencial denominado Estratégia Saúde da Família (ESF). A ESF
teve seu início na década de 1990, como programa, para se complexificar como
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política anos depois. No ano de 2011, a ESF passa a compor a Política Nacional de
Atenção Básica (PNAB). Conforme explicado por Oliveira e Pereira (2003), a
caracterização da Estratégia de Saúde da Família atravessa ações que versam
sobre a promoção, a proteção e a recuperação da saúde. As autoras destacam que
tais ações demandam investimentos contínuos e perspectivas de cuidado integral.
A partir da ESF, as equipes de saúde mantêm vínculos com as pessoas em
seus territórios, agregando questões ambientais, culturais e sociais ao conjunto de
questionamentos da saúde. De acordo com Pereira e Oliveira (2013), isto
redireciona as práticas e saberes dentro do SUS para as necessidades daquela
população. Apesar desta proposta de modelo técnico-assistencial participar
explicitamente da PNAB (2011), o projeto ético-político que a embasa a antecede
mais de duas décadas.
O Brasil, a partir da reforma sanitária mobilizada pela redemocratização,
conquistou, em 1988, o Sistema Único de Saúde. No artigo 198, da Constituição da
República Federativa do Brasil encontram-se os três pilares do SUS:
“descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento
integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais; e participação da comunidade” (BRASIL, 2012, p. 6).
Tal centralidade promove-se a partir do encontro dos sujeitos históricos
envolvidos em um processo mais abrangente de saúde. Sujeito aqui também
compreendido como o “homem-sujeito que é parte integrante de uma sociedade
igualitária, que também é sujeito”, conforme apresentado por Tiriba, Rodrigues e
Antunes (2021, p.4). Pelo campo da saúde, estes sujeitos, como apontado por
Ceccim e Feuerwerker (2004), representam a reconstrução do que seja saúde no
Brasil e para quem ela se volta.
De acordo com os autores (2004, p.42), o “quadrilátero para a formação no
trabalho em saúde” seria um encontro entre estes sujeitos. Os autores destacam
que são parte dos sujeitos que compõem o SUS: as trabalhadoras e trabalhadores
do SUS, a gestão, o controle social e a educação (CECCIM e FEUERWERKER,
2004). Por conseguinte, a ordenação da formação e da atuação no SUS
reorganiza-se acompanhando os movimentos do SUS.
Como argumentado por Baptista, Guimarães e Sánchez (2020) para a
educação ambiental crítica (EAC), a formação das pessoas envolvidas em um dado
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projeto é pauta perene. Tal pressuposto é precioso, pois fortalece encontros
interculturais e expressa nossa latinoamericanidade. Este encontro intercultural
Dussel (2016), por sua vez, anuncia como um diálogo que foca interpretações de
mundo para leituras transmodernas. A EAC provoca rupturas epistêmicas e
ontológicas que direcionam os coletivos para proposições do bem viver.
A EAC enfrenta o processo de padronização globalizadora imposta pelo
colonialismo ocidental e defende uma pedagogia autêntica à história das
comunidades e dos territórios, destacando a identidade dos povos e os processos
relacionais das culturas envolvidas (BAPTISTA, GUIMARÃES e SÁNCHEZ, 2020).
Assim, as culturas não seriam, mas estariam dentro dos processos, culminando com
transformações. Na saúde, romper com as relações orientadas por padrões significa
romper com o controle sobre os corpos, com seu uso exploratório e com a ideia de
homogeneidade pela dominação e anulação do outro.
O projeto ético-político da educação ambiental crítica possibilita, neste
sentido, um necessário afastamento da tríade moderno-ocidental capitalista,
oportunizando o resgate de pautas ambientais a partir de críticas à sociedade
brasileira e às suas práticas sociais. Em detalhe e de forma potente, a ECA
movimenta a temática ambiental para a saúde e a saúde para as questões
ambientais. Isto desvela intenções e ações promotoras de exclusões, aproximando a
promoção e a proteção da saúde a sentidos e projetos que promovem a dignidade
humana. Neste ponto, a educação ambiental se transforma em caminhos de
resistência e persistência a favor do SUS. E quando em giro, a ECA desloca a saúde
para caminhos de re-existência, retomando as diretrizes da ECO-92, porém
reorientando-a para o Sul Global.
Considerações finais
O ano de 2022 marca trinta anos da assinatura do acordo a favor da proteção
ambiental debatido pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento. A Agenda 21 apontava o caráter predatório das sociedades
organizadas pelo capital, pelo patriarcado e pelo racismo, denunciando o colapso
ambiental. Constata-se, no entanto, o agravamento da exploração dos corpos e dos
territórios, permanecendo uma divisão internacional que opera pela invasão,
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exploração, genocídio e epistemicídio dos povos, acompanhados pelo desmonte da
proteção ambiental.
Dentre as diretrizes pactuadas na ECO-92, o estudo destacou a proteção e a
promoção das condições da saúde humana por ser elemento central para o debate
das condições de existência impostas por essa divisão internacional do trabalho.
Neste sentido, o estudo propôs a retomada do debate da saúde, situado a partir do
Sistema Único de Saúde, para realçar e aprofundar conquistas e desafios após trinta
anos da Eco-92.
Dentre estes desafios, destacamos a indissociabilidade entre saúde, ambiente
e bem viver, o necessário questionamento de políticas excludentes e a permanência
da luta pela dignidade dos povos e território latinoamericanos. Por aprofundamento,
apontamos o fortalecimento do SUS agora orientado pela equidade e integralidade,
a perenidade de propostas para a saúde que guardem sentido com os territórios e
as comunidades, bem como a compreensão da força das trabalhadoras e dos
trabalhadores envolvidos no cotidiano disruptivo do SUS.
Para tanto, apresentamos reflexões a partir da EAC, cujos elementos
constitutivos apontam para um arcabouço teórico-prático que milita pela proteção
ambiental. Isto possibilitou interpretações contemporâneas sobre a ECO-92, bem
como o destaque de giros epistêmicos a partir do Sul Global que se lançam por
trajetórias de defesa da vida a partir da relação entre povos, territórios e natureza,
circunscrevendo saúde e proteção ambiental como potentes reveladores de
condicionantes de existência.
Referências
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pensamento freireano: tecendo possibilidades de enfrentamento e resistência frente
ao retrocesso estabelecido no contexto brasileiro. REMEA - Revista Eletrônica Do
Mestrado Em Educação Ambiental, 37(1), 145–165, 2020. Disponível em:
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BARROS, J. A.. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo
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https://www.scielo.br/j/sausoc/a/4CrdKWzRTnHdwBhHPtjYGWb/?lang=pt. Acesso
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