V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
Marcela Alejandra Pronko2
Neste artigo, após um breve percurso conceitual sobre o processo contemporâneo de empresariamento da educação, trataremos da atuação da Corporação Financeira Internacional – IFC, braço de financiamento empresarial do Grupo Banco Mundial, na promoção da criação de mercados de “oportunidades de aprendizagem”, conforme as orientações de políticas definidas na sua Estratégia 2020: “Aprendizagem para Todos”. Examinaremos o caso da Plataforma Coursera, caracterizado como “de sucesso”, como exemplo paradigmático e representação modelar da concepção de educação estimulada por este organismo.
En este artículo, luego de un breve recorrido conceptual sobre el proceso contemporáneo de empresariamiento de la educación, trataremos la actuación de la Corporación Financiera Internacional – IFC, brazo de financiamiento empresarial del Grupo Banco Mundial, en la promoción de mercados de “oportunidades de aprendizaje” conforme las orientaciones de políticas definidas en su Estrategia 2020: “Aprendizaje para Todos”. Examinaremos el caso de la Plataforma Coursera, considerado “exitoso”, ejemplo paradigmático y representación modelar de la concepción de educación de este organismo. Palabras clave: Empresariamento de la educación; privatización; Grupo Banco Mundial.
In this article, after a brief conceptual journey on the contemporary process of educational entrepreneurship, we will deal with the performance of the International Finance Corporation - IFC, World Bank Group's corporate financing branch, in promoting the creation of markets for "learning opportunities", in line with the policy guidelines set out in its 2020 Strategy: “Learning for all". We will examine the case characterized as “successful” of the Coursera Platform as a paradigmatic example and model representation of the concept of education stimulated by this organization.
1 Artigo recebido em 11/04/2022. Primeira Avaliação em 25/04/2022. Segunda Avaliação em 29/04/2022. Terceira Avaliação:10/05/2022. Aprovado em 19/05/2022. Publicado em 21/07/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i4.54021.
2 Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fundação Oswaldo Cruz, EPSJV/Fiocruz, Brasil. Graduada em Ciências da Educação, Universidad Nacional de Luján – UNLu, Argentina; Mestre em Educação e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estado, Política e Espaço Público.
E-mail: pronkom@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8643905602454259. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2735-1914.
É necessária uma ação urgente para realizar uma nova visão para a educação: uma visão em que o aprendizado aconteça para todos em
todas as partes. (SAAVEDRA CHANDUVI et al, 2020, p. 6, tradução nossa)
Quando Jan Amos Comenius, filósofo da Europa Central, publicou em 1657 sua Didática Magna, onde se propunha, antecipando o melhor do espírito do Iluminismo, “ensinar tudo para todos”, não imaginava que, quase quatro séculos mais tarde, sua utopia universalista seria atualizada em chave ultraliberal. A nova palavra de ordem seria “ensinar tudo para todos, lucrativamente”, transformando o conhecimento em parcelas vendáveis, flexíveis e adequadas, para que os trabalhadores possam se inserir no mercado de trabalho, segundo as determinações e necessidades da empresa capitalista.
Na perspectiva liberal, a utopia do pleno funcionamento do mercado inclui o desenvolvimento de um mercado educacional, “visto como um processo que se auto aperfeiçoa, na medida em que avança para sua destinação final: a autorregulação concorrencial da qualidade da educação (ou seja, a sobrevivência do mais forte) inserida na lógica radical das leis do mercado” (FREITAS, 2018, p. 56). Essa perspectiva, conduzida pelo empresariado global, através de um conjunto difuso, mas muito articulado de organizações diversas (ROBERTSON e VERGER, 2012) tem no Grupo Banco Mundial um catalizador da experiência internacional e um forte indutor de políticas, que amplifica estratégias e argumentos em prol da construção de sociedades reguladas pelo mercado.
Do ponto de vista das políticas educacionais, nas últimas décadas, numerosos estudos têm analisado o processo cada vez mais intenso de empresariamento da educação brasileira (FREITAS, 2018; ADRIÃO, 2018; COLEMARX, 2020; MOTTA e
ANDRADE, 2020; PERONI e GARCIA, 2020), como expressão concreta de uma tendência que se revela global (MOSCHETTI, FONTDEVILA e VERGER, 2019). Para caracterizar esse processo, os autores do campo crítico têm utilizado diversas categorias: privatização, mercantilização, mercadorização, comoditização da educação pública. Essas são algumas das principais expressões utilizadas, às vezes como sinônimos, às vezes como distinções concretas de processos mais amplos. Em todos os casos, desde a última década do século passado, destaca-se a aceleração
e a consolidação desse processo, concomitantemente à expansão da neoliberalização (HARVEY, 2005), com forte participação e influência dos organismos internacionais, particularmente para a periferia do capitalismo (PRONKO, 2014, 2019). Neste artigo, após um breve percurso conceitual que toma como referência algumas produções publicadas no último lustro, nos propomos a tratar da atuação da Corporação Financeira Internacional – IFC (sigla em inglês), braço de financiamento empresarial do Grupo Banco Mundial, na promoção da criação de mercados de “oportunidades de aprendizagem”, de acordo com as novas orientações de políticas definidas pelo Grupo na sua Estratégia 2020, conhecida como “Aprendizagem para Todos”.
Na tentativa de caracterizar a forma de atuação da IFC, examinaremos, particularmente, o caso da Plataforma de Aprendizagem Coursera, qualificado como “de sucesso”, que oferece diversos tipos de formação online, desde cursos livres de poucas horas de duração até cursos completos de graduação e pós-graduação, de acordo com as necessidades variáveis de “aprendentes”3 ao redor do mundo. A venda de “oportunidades de aprendizagem” altamente padronizadas e fortemente determinadas pela mediação tecnológica, capazes de burlar fronteiras e regulações nacionais, de flexibilizar trajetórias e níveis de ensino de acordo com as demandas variáveis do mundo da produção, se apresenta, no caso da Coursera, como exemplo paradigmático e modelar da concepção de educação estimulada por este organismo, e assumida como desejável por boa parte dos consultores do Grupo Banco Mundial e seus governos clientes.
Para o neoliberalismo, o parâmetro de funcionamento da sociedade é a própria ‘organização empresarial’, tomada como modelo racional da organização, apagando a historicidade das ‘instituições’ e transformando-as em miniorganizações empresariais de prestação de serviços (...) Esta concepção de sociedade corrói a escola como uma instituição social, alterando a concepção de educação e a própria política educacional (FREITAS, 2018, p. 49).
O empresariamento da educação tem sido frequentemente associado às formas de privatização da educação pública, entendendo-a numa perspectiva mais ou menos específica. Mas, entre esses dois conceitos, parece haver algumas distinções
3 O termo “aprendente” é utilizado pela própria Plataforma.
que merecem destaque. Sem pretensão de aprofundar o debate conceitual que, entretanto, resulta imprescindível, propomos revisitar algumas produções recentes para, na sequência, destacar algumas dimensões que consideramos constitutivas desse processo de empresariamento, em uma perspectiva geral, sem distinção entre os níveis do ensino4.
Em artigo que analisa as formas pelas quais vem se materializando a privatização da educação básica no Brasil, Adrião (2018, p. 9) defende a utilização do termo privatização, para se referir às “medidas que tem subordinado, direta e indiretamente, a educação obrigatória aos interesses das corporações ou de organizações a estas associadas”. A autora sustenta que o processo de privatização vem se dando principalmente em três dimensões: privatização da oferta educacional, da gestão da educação pública e do currículo. Para cada uma dessas dimensões, Adrião (2018) identifica e caracteriza as formas que essa subordinação assume em cada caso. Partilhando da perspectiva da autora, Peroni e Garcia (2020) adotam, em suas pesquisas, a definição de privatização de Belfield e Levin, “entendida pelos autores como um ‘guarda-chuva’ capaz de abranger desde a transferência de ativos, criação de novos mercados, liberalização, até a transferência de responsabilidades do setor público para o setor privado” (PERONI e GARCIA, 2020, p. 3). Nesse sentido, elas destacam o caráter relacional do público e do privado como expressão de projetos societários em disputa, sublinhando que estas propostas não são pura abstração, mas decorrem da atuação de sujeitos individuais e coletivos. No caso das políticas educacionais, o projeto privatista é defendido por “intelectuais orgânicos, organizados em think tanks e institutos vinculados ao capital e ao neoconservadorismo [que] têm atuado na educação” (PERONI e GARCIA, 2020, p. 5).
Moschetti, Fontdevila e Verger (2019), em artigo que apresenta uma revisão e sistematização da literatura e de fontes primárias sobre os processos de privatização da educação na América Latina, também manifestam preferência pelo uso do termo “privatização”, baseados na já clássica distinção de Ball e Youdell (2008), entre privatização exógena (abertura do setor público à participação privada ou privatização
4 Entendemos que os trabalhos escolhidos para fazer essa breve referência conceitual não esgotam o conjunto de produções contemporâneas que exploram o processo de empresariamento da educação, levando em consideração os diferentes níveis e modalidades de ensino. Interessa-nos, nesse primeiro momento, desenvolver uma reflexão mais geral, capaz de dar conta da perda de centralidade da educação escolar em detrimento da promoção das chamadas oportunidades de aprendizagem, proposta pelos documentos mais recentes do Grupo Banco Mundial (PRONKO, 2019).
no sentido clássico) e endógena (incorporação nas instituições públicas de lógicas e práticas próprias do setor privado). Embora reconhecendo que “a privatização exógena e a endógena costumam se apresentar de forma imbricada e híbrida” (MOSCHETTI, FONTDEVILA e VERGER, 2019, p. 6), os autores examinam principalmente as formas exógenas e definem seis trajetórias modelares sobre como a privatização se manifesta na região: a) como parte da reforma estrutural do Estado;
b) como reforma incremental; c) por defeito; d) como alianças público-privadas históricas; e) por via do desastre; f) como privatização latente.
Por sua vez, Motta e Andrade (2020) desenvolvem um esforço teórico importante, na tentativa de caracterizar o “empresariamento da educação de novo tipo”, como expressão do interesse e da ação das classes dominantes sobre a educação escolar na contemporaneidade. Nesse processo, distinguem analiticamente o que consideram as dimensões centrais desse conceito:
a mercantilização (processo pelo qual a educação escolar é subsumida à forma e à lógica da mercadoria), a mercadorização (processo pelo qual a educação escolar é transformada em nicho de mercado) e a subsunção da educação ao empresariado (processo pelo qual o empresariado brasileiro assumiu, em íntima relação com Estado estrito e organismos internacionais, as direções moral e intelectual das educações pública e privada) (MOTTA e ANDRADE, 2020: 4, grifo das autoras).
Ainda sobre esse debate, Freitas (2018) qualifica o mesmo processo como ‘reforma empresarial da educação’, expressão que dá título ao livro de referência. Seguindo a denominação estadunidense, o autor considera que essa expressão caracteriza o modelo empresarial que se preconiza para a escola - assim como para todos os direitos sociais, definindo a autoria e a intencionalidade da proposta: a reforma é empresarial porque se organiza a partir da visão de mundo da fração dominante do empresariado, altamente internacionalizado e financeirizado, e se orienta a subsumir a educação a uma lógica de mercado, colocando em xeque o sistema público em prol do “livre” desenvolvimento de processos formativos regulados (quase) exclusivamente pelo mercado. Para Freitas, a reforma empresarial da educação que, embora apresente princípios globais comuns, se desenvolve de maneira específica em cada contexto nacional, “gera um vetor em direção à privatização e ao livre mercado na educação” (FREITAS, 2018, p. 43, grifos do autor), podendo se traduzir em modalidades de privatização diferenciadas.
Embora todos os autores mencionados apontem a centralidade do processo de privatização da educação na contemporaneidade, é importante salientar que a distinção entre público e privado na modernidade capitalista surge, de maneira contraditória, na própria construção do direito liberal e, principalmente, do Estado. Como destaca Dantas (2020, p. 166), no contexto das relações sociais capitalistas,
o indivíduo burguês, no exercício do seu direito sagrado de possuir e acumular no interior da esfera privada, convive com a expressão genérica e universal do cidadão, ao qual corresponde a esfera pública que, se por um lado contrasta com o que não pertence ao domínio do público, por outro, existe para garantir a delimitação de uma fronteira que protege e blinda o que pertence ao domínio do privado.
Assim, “o mesmo direito que garante é o direito que veda a propriedade privada, evidenciando e legitimando a desigualdade real (e não formal) entre possuidores e não-possuidores.” (DANTAS, 2020, p. 166). O problema se coloca, segundo o autor, porque o público se forjou como expressão da suposta universalidade do Estado, produzindo um “igual genérico”, o cidadão, como representação ideal de uma igualdade puramente formal. Dessa maneira, como a relação entre público e privado é, inicialmente, uma relação entre classes e, portanto, entre projetos societários em disputa, a distinção entre privatização e empresariamento da educação remete a ênfases analíticas diferentes no exame de processos sob óticas semelhantes.
Tomando como referência alguns dos elementos apontados acima, optamos, neste artigo, pela categoria empresariamento da educação, no sentido apontado por Freitas (2018), distinguindo nesse processo, analiticamente, três grandes dimensões. Uma primeira dimensão estaria vinculada ao que é conhecido como privatização direta da educação, que é transformar a educação numa mercadoria, portanto, oferecer educação como um serviço vendável, em condições “livremente pautadas”, reguladas em uma economia de mercado. Todas as instituições educacionais de caráter empresarial, que visam o lucro, consideram que seu produto a ser vendido é algum tipo de processo formativo, ou como o Banco Mundial tem definido no seu documento de estratégia, uma “oportunidade de aprendizagem”. Assim, a mercadoria “oportunidade de aprendizagem” pode ser oferecida no mercado e, ao ser comprada, gera lucro a partir da exploração do trabalho docente, e de um conjunto de trabalhadores que participam da sua produção. Esse é o sentido mais
clássico de uma educação de cunho privado, ou de uma educação "empresariada''.
Entretanto, o empresariamento da educação não se esgota nesse formato, embora ele constitua o horizonte da utopia liberal para a educação. No processo de empresariamento, pode-se distinguir, pelo menos, duas outras dimensões possíveis de serem identificadas como parte do percurso. Por um lado, uma dimensão do empresariamento que está ligada à definição privada dos fins da educação pública. A pergunta que orientaria nossa indagação é quem e como se definem os conteúdos da educação pública? Esses conteúdos são definidos publicamente? No processo da definição, eles observam as necessidades do conjunto da classe trabalhadora, por exemplo? Ou operam a partir dos interesses específicos do conjunto da burguesia?
É claro que se trata de levantar perguntas absolutamente retóricas, porque numerosos estudos têm demonstrado que, ao longo das últimas décadas, os conteúdos da educação têm sido orientados para dar conta das necessidades variáveis do conjunto da burguesia, tanto no que diz respeito às características técnicas, como comportamentais, dos aprendizados que os futuros trabalhadores precisam ter para se inserir no mercado de trabalho, ou para sobreviver como exército industrial de reserva. Essa é, também, uma dimensão de empresariamento, porque a atuação empresarial, de uma maneira geral, definir o caráter e a finalidade dos conteúdos que deve ter a educação do conjunto da população, é uma forma de subordinar, se não direta, indiretamente, o funcionamento da educação pública.
Uma terceira dimensão desse processo diz respeito ao empresariamento das formas e lógicas de funcionamento da educação pública. E, aqui, as perguntas seriam: como funciona e se organiza o trabalho escolar? A partir de quais princípios e lógicas? Outros estudos têm constatado que, ao longo das últimas décadas, cada vez mais a lógica do trabalho escolar tem sido subsumida a uma lógica empresarial gerencial, a uma gestão feita a imagem e semelhança da forma de organização específica da empresa capitalista, que coloca então sua marca na forma do funcionamento da educação. Isso se revela de maneira dramática na própria formação docente e na regulação do processo de trabalho docente. A construção de sofisticados sistemas de avaliação da educação, a introdução de processos de responsabilização pelos resultados educacionais, a implantação de uma lógica custo-benefício no planejamento educacional, a elaboração de uma base nacional comum para formação de professores, entre outros aspectos, obedecem a essa lógica que caracteriza essa dimensão do empresariamento.
Poderíamos, ainda, levantar a hipótese de uma quarta dimensão, que também pode ser entendida como um desdobramento da primeira, relacionada ao lugar da educação na cadeia de produção, como uma consumidora de insumos educacionais. Existe uma série de mercados que cercam a educação pública, e que são cada vez mais diversos nas suas características e nos produtos, que vão desde equipamentos eletrônicos e plataformas tecnológicas (que, por exemplo, durante a pandemia da COVID-19 têm sido impostas como a única saída para não perder a continuidade pedagógica) até diversos materiais didáticos e sistemas de ensino, incidindo diretamente na forma e no conteúdo da educação.
Assim, o processo de empresariamento da educação tende, de maneira permanente, à criação de mercados de formação, a tal ponto que o próprio escopo do que seja sistema educacional, tal como o conhecemos hoje, precisa ser redefinido. Não por acaso, na “Estratégia 2020 para a Educação” do Grupo Banco Mundial, documento publicado em 2011, a centralidade da escola foi explicitamente colocada em xeque, ao redefinir os sistemas educacionais não mais como compostos por um conjunto de instituições educacionais, organizadas em níveis sequenciais, mas por um conjunto flexível e difuso de oportunidades de aprendizagem5. Essas oportunidades de aprendizagem podem ser obtidas tanto em uma instituição de ensino clássica, como no próprio processo de trabalho, ou nos numerosos novos formatos que estão surgindo e que oferecem possibilidade de aprender habilidades e comportamentos necessários à inserção produtiva no mundo em que vivemos. Afirma o documento referido:
No nível dos países, o Grupo do Banco irá concentrar-se em apoiar reformas dos sistemas educacionais. O termo “sistema educacional” refere-se tipicamente às escolas públicas, universidades e programas de formação que fornecem serviços de educação. Nesta estratégia, “sistema educacional” inclui a gama completa de oportunidades de aprendizagem que existem num país, quer sejam fornecidas ou financiadas pelo sector público quer privado (incluindo organizações religiosas, organizações sem fins lucrativos ou com fins de lucro). Inclui programas formais ou não formais, para além de toda a gama de beneficiários e interessados nestes programas: professores,
5 Essa redefinição das formas regulares de organização dos sistemas educacionais nacionais já vinha se ensaiando, desde a década anterior, quando o Banco Mundial adotou a definição, proposta pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, de “educação terciária”, em substituição da “educação superior”. Segundo a definição adotada, a educação terciária se caracteriza, de maneira genérica e flexível, como etapa de estudos posterior à educação secundária e não pressupõe, necessariamente, instituições específicas. Para uma discussão mais desenvolvida sobre as implicações desse aspecto ver NEVES e PRONKO, 2008.
formadores, administradores, funcionários, estudantes e as suas famílias e empregadores. Inclui também as regras, políticas e mecanismos de responsabilização que aglutinam um sistema de educação, bem como os recursos e mecanismos de financiamento que o sustentam. Este conceito mais inclusivo do sistema educacional permite ao Grupo do Banco e aos países parceiros aproveitar as oportunidades e eliminar as barreiras que se situam fora dos limites do sistema tal como ele é tradicionalmente definido. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 5, grifo nosso).
Resulta importante destacar que o processo de empresariamento da educação, do qual distinguimos analiticamente diferentes dimensões, não é resultado da mão invisível do mercado, mas da mão bem visível da atuação dos Estados Nacionais em determinado contexto histórico. Essa atuação se ancora na atividade de um conjunto de aparelhos privados de hegemonia, de caráter empresarial, com variados formatos e diferentes escopos, articulados internacionalmente através, também, dos chamados organismos internacionais, que catalisam, adaptam e disseminam propostas de como deve ser a educação no capitalismo contemporâneo. No campo internacional da educação, o Grupo Banco Mundial desenvolve uma atuação chave a esse respeito (PRONKO, 2014).
O Grupo Banco Mundial se constitui de um conjunto de organizações que, atuando em funções ou segmentos específicos, confluem no objetivo de disseminar “prescrições políticas e ideias — produzidas ou avalizadas por ele — sobre o que fazer, como fazer, quem deve fazer e para quem em matéria de desenvolvimento capitalista” (PEREIRA, 2010: 474), particularmente, na periferia do capitalismo.
Uma dessas organizações é a Corporação Financeira Internacional, criada em 1956 como braço do Banco Mundial, que opera diretamente no fortalecimento e expansão da atividade privada nos chamados países pobres e de renda média. Sem depender do aval governamental para o desenvolvimento das suas ações de consultoria e empréstimo, uma das suas atividades principais é, entretanto, a intermediação de interesses públicos e privados através da promoção de marcos regulatórios nacionais ou subnacionais que permitam e promovam a criação e o funcionamento pleno de novos mercados (PEREIRA, 2010; PRONKO, 2014).
No campo internacional da educação, a atuação da IFC se deu de forma maciça
a partir dos anos 2000, através da ampliação considerável dos empréstimos na área e do incentivo à implantação de parcerias público-privadas, como forma privilegiada de atuação. Segundo Robertson e Verger (2012), a IFC teve um papel fundamental na constituição e funcionamento de uma rede de “empreendedores de políticas e especialistas em educação” que, na perspectiva de promover a ideia de Parcerias Público-Privadas em Educação - PPPEs no interior do debate sobre desenvolvimento, produziu um conjunto de documentos que se tornaram referência em âmbito internacional. Entre eles, se destacam o Handbook on PPPs and Education (IFC, 2001) e o The evolving regulatory context for private education in emerging economies (FIELDEN e LAROCQUE, 2008)6.
Dando concretude ao slogan da IFC –“Criando mercados, criando oportunidades” – sua atuação na educação se baseia na premissa de uma atividade coordenada entre governo e setor privado. Um arranjo segundo o qual
Os governos têm a obrigação de assegurar aos seus cidadãos que recebam uma boa educação, independentemente de quem a forneça. No caso das escolas públicas, isso significa que os mecanismos devem estar no local para garantir que pessoal docente, instalações, equipamentos e materiais sejam da melhor qualidade que possa ser fornecida com os fundos disponíveis. No caso de fornecimento do setor privado, aplicam-se os mesmos princípios, com a necessidade de desenvolver instrumentos de monitoramento e controle, para garantir que a prestação de ambos os setores, público e privado, seja da mais alta qualidade possível. (FIELDEN e LAROCQUE, 2008, p. 4; tradução própria, grifos nossos).
Isso implica a manutenção de uma lógica dual de funcionamento que contrapõe e naturaliza a “austeridade” da educação pública frente a “qualidade” da educação privada.
Para além da elaboração de documentos e das consultorias pontuais, a IFC também age, no campo da educação, através da promoção de diversos Fóruns e eventos, como o chamado “Colóquio Internacional sobre Educação Privada”, realizado a cada dois anos7, desde o início do presente século.
6 Uma relação completa dos documentos produzidos por essa rede até 2012 encontra-se em Robertson e Verger, 2012.
7 O último colóquio em formato presencial foi em 2018 e teve como tema-título “Aprendendo para o Trabalho do Futuro”, em sintonia com o tema do Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial do Grupo Banco Mundial desse ano – “Aprender para concretizar a promessa da Educação” e antecipando o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2019 – “A natureza mutável do trabalho”, em construção à época da realização do evento.
Do ponto de vista da atuação financeira, o investimento da IFC no âmbito da educação tem como espaço privilegiado, a partir dos anos 2000, a América Latina, e, particularmente, o Brasil. Segundo Pronko (2014), em 2013 o país concentrava 23% de todos os investimentos do organismo na educação. Este volume de recursos estava direcionado, principalmente, para o financiamento do processo de expansão e consolidação, através de fusões e aquisições, dos conglomerados empresariais no ensino superior brasileiro. Não por acaso, um dos casos de sucesso da sua atuação nacional era, à época, a Estácio Incorporações que, naquele momento, concentrava 1/3 das matrículas de estudantes de nível superior no Brasil. Desde então, assim como o processo de empresariamento da educação, a atuação da IFC no país também se expandiu para todos os níveis e modalidades. Hoje, as duas experiências de financiamento de corporações educacionais em destaque são a Cruzeiro do Sul, que é descrito como uma corporação que trabalha com todos os níveis e todas as modalidades de educação, e com alto potencial de expansão, sobretudo na área da educação à distância8, e a holding Anima Educação que articula um conjunto de instituições de educação superior com o desenvolvimento de um conjunto de iniciativas tecnológicas para educação, principalmente plataformas de conteúdo a serem oferecidas da maneira mais ampla possível.
De acordo com o Relatório Anual da IFC de 2021,
En el ejercicio de 2021, el total de la cartera de compromisos de IFC en el mundo ascendió a USD 31 500 millones, de los cuales USD 11 900 millones correspondieron a países frágiles, afectados por conflictos y empobrecidos. (IFC, 2021, p. 9).
Desse total de recursos, 10,59% foram destinados para saúde e educação, o segundo campo de investimento mais importante do IFC depois dos Mercados Financeiros. América Latina e Caribe continuam sendo espaços privilegiados de atuação, acolhendo 22,39% dos compromissos financeiros realizados em 2021. O Brasil é o quarto país em volume de operações, com 5,75% dos recursos comprometidos, ficando atrás somente da Índia, China e Turquia.
A atuação do IFC durante a pandemia (2020-2021) teve como eixos estratégicos mitigar os impactos econômicos produzidos pela crise sanitária, através
8 O portal Edtech, que está na página da Cruzeiro do Sul Educação, é um dos elementos destacados por considerar que possui muito potencial de criar mercado, constituindo uma das razões do apoio da Corporação Financeira Internacional.
do alívio, da restruturação e da recuperação resiliente, e a criação de oportunidades para novos investimentos do setor privado, através de atividades de prospecção e desenvolvimento, em alinhamento com a atuação do Grupo Banco Mundial e suas orientações9. Nesse contexto,
El enfoque de IFC incluye un fuerte énfasis en el capital humano, dado que la pandemia amenaza con revertir décadas de avances que tanto ha costado conseguir, especialmente para las mujeres, las niñas y otros grupos vulnerables. Entre nuestras principales áreas de trabajo se encuentran (…) la educación, donde ayudamos a diversas universidades a acelerar su transformación digital y a llegar a los estudiantes a través de Internet para contribuir a que desarrollen las competencias necesarias para la fuerza laboral del futuro. (IFC, 2021, p. 29).
A estratégia de digitalizar a educação superior, acelerada pelas restrições ao convívio social colocadas pela pandemia de Covid-19, impulsionou a criação de um programa específico de financiamento do IFC destinado à estruturação de um novo mercado educacional: as chamadas EdTechs. Conforme referido no relatório de 2021:
La transformación digital de la educación superior se ha vuelto urgente en el contexto de la pandemia de COVID‐19. Muchas universidades de los países en desarrollo no estaban preparadas para este cambio repentino y se dieron cuenta de que transformar su modo de trabajar no era una elección, sino una necesidad. Ahora deben repensar por completo sus modelos de negocio para ampliar su alcance de una manera que resulte comercialmente viable y sostenible. IFC reunió conocimientos, experiencia y opiniones de expertos de todo el mundo sobre la transformación digital y creó el Programa para la Digitalización de la Educación Terciaria (D4TEP), un producto de alcance mundial y aplicable en otros contextos destinado a ayudar a las instituciones de educación superior a desarrollar, implementar y financiar sus estrategias y planes de transformación digital. Este programa, que fue elaborado, puesto a prueba y lanzado en el transcurso del ejercicio de 2021, ya dio como resultado varias actividades de prospección y desarrollo con numerosas instituciones en todas las regiones en las que trabaja IFC, con lo que se ha mejorado la propuesta de valor de la entidad y se han catalizado inversiones específicas en el sector. (IFC, 2021, p. 37, grifo do autor).
Embora destinada inicialmente para sustentar as atividades das instituições de educação superior ou terciária, a “aprendizagem por plataforma” constitui um
9 Segundo o presidente do Grupo Banco Mundial, David Malpass, durante a pandemia “Trabajamos para salvar vidas, proteger a los pobres y los grupos vulnerables, apoyar el crecimiento de las empresas y la creación de empleo, y lograr una reconstrucción mejorada, que conduzca a una recuperación verde, resiliente e inclusiva”. (IFC, 2021, p. 5).
poderoso nicho de mercado que já fazia parte das iniciativas apoiadas pelo IFC. Essas iniciativas alcançaram máxima legitimidade e expansão a partir da pandemia. Articulada à compreensão sobre os sistemas educacionais, afirmada pelo Grupo Banco Mundial na Estratégia 2020 para a Educação, a promoção de plataformas tecnológicas de aprendizagem se coloca como novo horizonte de formação das sociabilidades humanas, disponíveis para modelar habilidades e comportamentos exigidos pela natureza mutável do trabalho no futuro (PRONKO, 2019).
Segundo documento do Banco Mundial, assinado por um coletivo de consultores, a pandemia provocou uma crise de aprendizagem, agravada pela concomitantemente crise econômica e sanitária. Para enfrentar essa crise - “fazer realidade o futuro da aprendizagem” e passar “da pobreza de aprendizagens para a aprendizagem para todos em toda parte” - a solução tecnológica se impõe como o caminho natural e obrigatório (SAAVEDRA CHANDUVI et al., 2020). Afinal, a tecnologia nos ajuda a “reimaginar as conexões humanas”, cada vez mais determinadas pela mediação tecnológica, o que permite, ao mesmo tempo, restabelecer as relações sociais em novas bases e acelerar o processo de circulação do capital10. Se, para o Banco, “a educação é, em sua essência, sobre conexões humanas — entre alunos, professores, pais, cuidadores, diretores e comunidades mais amplas” (BANCO MUNDIAL, 2020, p. 6), elas devem ser priorizadas, alavancando seu desenvolvimento em formato adequado às exigências do futuro.
Para isso, uma das principais estratégias definidas pelo Banco tem sido o apoio ao desenvolvimento da chamada EdTech:
A tecnologia educacional — ou “EdTech”, o uso de hardware, software, conteúdo digital, dados e sistemas de informação na educação — apoia e enriquece o ensino e a aprendizagem e melhora a gestão e a prestação de serviços educacionais. A EdTech pode criar novas e mais amplas conexões entre professores, alunos, pais e comunidades para criar redes de aprendizagem. Os investimentos em EdTech podem tornar os sistemas de educação mais resistentes a choques futuros e ajudar a reformar e reimaginar a forma como a educação é oferecida. (...) O Banco Mundial apoia o uso apropriado e custo-efetivo da EdTech em todos os níveis de educação e apoia os países na expansão do acesso e na melhoria da qualidade, tanto dentro como fora da sala de aula – para que a educação alcance todos os alunos. Em busca desse objetivo, o Banco Mundial trabalha para descobrir soluções de tecnologia em educação baseadas em
10 “A crise da Covid-19 expôs a inadequação e as desigualdades no acesso à educação fora da escola, limitando a quantidade e a qualidade dessas conexões” (BANCO MUNDIAL, 2020, p. 6).
evidências, implementar soluções, em nível piloto e em escala, difundir amplamente esse conhecimento entre os formuladores de políticas, e apoiar o desenvolvimento de capacidade para melhor uso desse novo conhecimento. (BANCO MUNDIAL, 2020, p. 6, grifo nosso).
A criação de redes de aprendizagem exige, nessa perspectiva, a sintonia e a atuação articulada de um conjunto de organizações sociais diversas, entre as quais o setor privado desempenha um papel dinamizador fundamental. Ele é objeto de reconhecimento e apoio por parte do Grupo Banco Mundial de maneira ampla, e de incentivo específico por parte do IFC. Assim está expresso no documento de referência:
O Banco Mundial trabalha em parceria com governos, instituições acadêmicas, organizações não governamentais, empresas privadas, sociedade civil e comunidades em todo o mundo para apoiar projetos inovadores, pesquisa e compartilhamento de conhecimento sobre a EdTech, com o objetivo final de melhorar o ensino e a aprendizagem. O Banco Mundial reconhece o papel desempenhado pelo setor privado e busca aproveitar suas inovações e engenhosidade para aumentar a eficiência no setor público. Essa abordagem de experiência em rede é crítica para garantir que a experiência da EdTech seja efetivamente compartilhada entre regiões e fronteiras e que o suporte local às instituições educacionais facilite a implementação de programas governamentais. Além disso, o Banco Mundial participa de uma série de eventos de aprendizagem pontuais e estruturados para que os clientes compartilhem conhecimentos de ponta, práticas promissoras e informações bem-sucedidas sobre “como fazer” em apoio aos programas nacionais. (BANCO MUNDIAL, 2020, p. 21).
Assim, as plataformas educacionais ou “de aprendizagem”, surgidas do dinamismo e da “engenhosidade” do setor privado, passam a constituir elementos fundamentais das novas redes de aprendizagem que colocam a disposição do consumidor (os pais, os estudantes, os trabalhadores) oportunidades de aprendizagem variadas, e disponíveis de acordo com as necessidades e com as possibilidades de cada um, para além do formato “engessado” dos sistemas educacionais nacionais. Constitui-se, assim, um novo nicho de mercado na chamada “indústria da educação”, a ser apoiado e desenvolvido pela atuação da Corporação Financeira Internacional, tal como aparece no caso de sucesso apresentado no portal
institucional11, referente à Coursera, paradigma global da aprendizagem por plataforma.
Coursera é uma plataforma tecnológica para aprendizagem on line que, segundo dados do Relatório de Impacto Coursera 2021, articula diversos desenvolvedores de conteúdo, entre os quais 175 parceiros universitários, através da oferta de 4.400 cursos (desde cursos livres de poucas horas até cursos completos de pós-graduação) com 92 milhões de aprendentes localizados em mais de 190 países12 (COURSERA, 2021). Tem sua atuação disseminada mundialmente, graças ao formato livre das formações oferecidas, sem se prender a níveis ou modalidades educacionais específicas. Entre os países cujos habitantes mais utilizam a plataforma, destacamos os 5 primeiros: Estados Unidos (17,3 milhões); Índia (13,6 milhões); México (4,8 milhões); Brasil (3,7 milhões) e China (3,3 milhões). A plataforma oferece cursos em 20 línguas, com legendas para 40 línguas (IFC, 2020).
A plataforma se oferece também para atender segmentos específicos e necessidades de aprendizagem pontuais. Assim, inclui formações desenhadas por “parceiros industriais” que “criam conteúdos e credenciais para preencher lacunas de competências e satisfazer necessidades dos empregadores” (COURSERA, 2021, p. 18, tradução própria). Além disso, a plataforma lançou planos empresariais que se comercializam através da venda de licenças de uso, para aqueles utilizadores institucionais que não criam conteúdo específico. Nessa linha, existe o Coursera for Business voltado exclusivamente para o desenvolvimento de competências críticas de negócios, que atende em torno de 2900 empresas e 620 mil aprendentes. O Coursera for Campus consiste numa solução específica para universidades em transição para o ensino digital que pode ser articulada, ou não, à oferta mais ampla disponibilizada pela Plataforma. Nesse formato, Coursera administra 3600 campus,
11 Segundo a contracapa da publicação: “Os estudos de caso destacam como os clientes do IFC têm contribuído para alcançar os seus objetivos estratégicos na educação: 1) desenvolver competências e melhorar a empregabilidade dos formandos e 2) aumentar o alcance e impacto em todos os níveis de ensino” (IFC, 2020, p. 2, tradução própria, grifo nosso).
12 A distribuição desses 92 milhões de aprendentes é a seguinte: 20 milhões na América do Norte, 16 milhões na Europa, 28 milhões em Ásia Pacífico, 17 milhões na América Latina, 5 milhões no Oriente Médio e 3 milhões na África (COURSERA, 2021).
atendendo nesse segmento 3 milhões e 800 mil estudantes. Já o Coursera for Goverment está voltado exclusivamente para agências governamentais, desenvolvendo principalmente programas de requalificação profissional, com vistas a superar a “crise de competências”. Por fim, a plataforma trabalha com organizações sem fins lucrativos oferecendo “recursos de aprendizagem gratuitos” para setores e grupos considerados socialmente vulneráveis.
Embora a Coursera exista desde 2012, a pandemia de C ovid-19 alavancou um crescimento sem precedentes do seu alcance: o número total de aprendentes individuais passou de 44 milhões em 2019, para 71 milhões em 2020 e 92 milhões em 202113. Em relação ao número total de matrículas, passou de 76 milhões em 2019, para 143 milhões em 2020 e 189 milhões até 30 de setembro de 2021 (COURSERA,
2021).
No estudo de caso desenvolvido pela IFC, surge a pergunta que a dimensão dos números anteriores torna evidente:
Porque a escala sem precedentes de Coursera e o seu alcance é relevante? Por causa da procura global não satisfeita e crescente do ensino superior que é confrontada com as limitações de capacidade existentes. A Holon IQ prevê que até 2030 a procura de ensino superior aumentará em mais 350 milhões de diplomados pós- secundários. Além disso, McKinsey estima que em 2030 entre 75 e 375 milhões de pessoas poderão ser deslocadas por automatização e terão de mudar de ocupação e aprender novas competências (...). Coursera contribui a superar a lacuna entre oferta e procura de educação, aumentando rapidamente o acesso a educação de qualidade em todo o mundo. Ao desagregar partes do ensino superior, com cursos e micro-credenciais, oferece uma via de acesso mais ampla e mais acessível. (IFC, 2020, p. 3, tradução própria).
Esse novo nicho de mercado, explorado por Coursera, com enorme potencial de crescimento e expansão, foi reconhecido pelo IFC desde 2013, ano que começou a apoiar financeiramente a plataforma, contribuindo para a expansão internacional da ferramenta, em um formato cada vez mais abrangente e colaborativo. O IFC estava interessado em
trabalhar com a Coursera devido ao forte encaixe com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 e a missão do IFC de promover o acesso a uma educação de qualidade, acessível e relevante que conduza a uma maior empregabilidade. Oferece uma oportunidade de abordar o crescente desalinhamento entre a oferta e a procura de uma
13 Com dados coletados até 30 de setembro de 2021.
educação de qualidade. O IFC acredita que o impacto do desenvolvimento, embora ainda em incubação nos mercados emergentes, poderia ser permanente e grande. (IFC, 2020, p. 3, tradução própria).
A Coursera nasceu em 2011, a partir da experiência de dois professores da Universidade de Standford, que começaram a experimentar formatos virtuais para algumas das suas atividades de ensino, disponibilizadas de maneira gratuita na internet. O alcance real e potencial do experimento os levou a desenvolver uma start- up tecnológica para oferecer Cursos Online Abertos Massivos (MOOCs – sigla em inglês), um mercado nascente que os levou a atrair investidores de risco para fazer o primeiro grande aporte de capital. A associação precoce com parceiros universitários de público reconhecimento acadêmico14, permitiu que, após 3 meses de funcionamento efetivo, em julho de 2012, já registrassem 680.000 estudantes em 43 cursos.
O modelo de negócio da Coursera foi se desenvolvendo com o tempo. Se os cursos eram, por definição, abertos (ou seja, gratuitos), o que pôde ser vendido para rentabilizar o produto oferecido pela plataforma foram, inicialmente, os certificados: o estudante poderia realizar o curso de maneira gratuita, mas deveria pagar um valor ainda acessível (em torno de U$ 50) para receber um certificado de conclusão “verificado”. Outra estratégia utilizada, quando a plataforma começou a oferecer cursos mais longos e sistemáticos, como Graduações, Especializações e, posteriormente, Mestrados, foi a fragmentação dos mesmos em unidades menores e acumuláveis, que implicavam desembolsos menores e flexíveis para os interessados, “fidelizando” os clientes e criando economia de escala.
Atualmente, a Coursera é considerada uma empresa líder no mercado educacional. Como sintetiza o estudo de caso promovido pela IFC,
Com o tempo, o modelo empresarial da Coursera amadureceu a partir de um simples fornecedor de MOOC para uma plataforma de três lados mais complexa, servindo aprendizes, educadores e empregadores. Os três segmentos criaram um ecossistema que gera
14 As parcerias iniciais incluíram, além da Universidade de Standford, as Universidade de Princeton, Michigan e Pensilvânia. Embora essas parcerias tenham se disseminado por outros países ao longo desses anos, um mapa publicado no estudo de caso do IFC mostra que as instituições acadêmicas parceiras estão fortemente concentradas nos Estados Unidos, na Europa, e em algumas regiões específicas do sudeste asiático. Ou seja, as instituições que produzem conteúdo estão predominantemente associadas à visão de mundo produzida pelos países do capitalismo central, com forte influência anglo-saxã, embora boa parte dos consumidores desse conteúdo se localize na periferia do capitalismo. Para maiores informações consultar IFC (2020).
efeitos de rede, ou melhorias no valor do serviço que é gerado, devido ao aumento do número de participantes na plataforma. Isto ajudou a Coursera a melhorar os seus produtos, crescer, e manter uma vantagem competitiva. (IFC, 2020, p. 19, tradução nossa).
Esta capacidade de intermediação que a plataforma oferece, constituindo as chamadas “redes de aprendizagem”, assim como a vantagem comparativa de garantir uma presença global sem necessidade de se submeter à regulação de qualquer Estado em particular, foram os principais atrativos para o IFC apoiar, financiar e promover o caso da Coursera como exemplar. Afinal, as oportunidades de aprendizagem constituem um mercado pujante e em expansão, cuja qualidade e pertinência só podem ser realmente avaliadas por aqueles que consomem, diretamente, essa mercadoria: aqueles que se formam através dela e aqueles que compram a força de trabalho dos formados por esta ferramenta. Essa é a democracia do mercado, o verdadeiro “mundo da liberdade”, que organiza a sociedade segundo capacidades de compra e de escolha de cada um. Nessa perspectiva, o IFC destaca, no estudo de caso, as declarações de James Devaney, Vice-reitor Associado para a Inovação Acadêmica da Universidade de Michigan, que afirma:
O que se avizinha é uma oportunidade para acabar com os privilégios educacionais. Não devemos estar satisfeitos com a democratização do acesso aos conteúdos. Precisamos democratizar o acesso à escolha, a percursos e a redes que proporcionem uma vida inteira de apoio e inspiração. (IFC, 2020, p. 25, tradução nossa).
A experiência da Coursera destacada pelo IFC como Caso de Sucesso revela, de maneira clara e direta, as concepções de educação e sociedade que orientam a atuação dos defensores do empresariamento da educação: o entendimento de que os direitos universais, conquistados pelas lutas populares, são “privilégios” que devem ser “abolidos” em nome da “verdadeira democracia”, aquela que se pauta na liberdade de escolher, de acordo com os recursos que cada um angaria como resultado do seu esforço individual por fazer valer seu mérito. Na luta concorrencial pela sobrevivência, “democratizar o acesso à educação” é, na perspectiva empresarial, “democratizar o acesso à escolha” das “melhores oportunidades” que o dinheiro (disponível) possa pagar.
Entretanto, se o exemplo apresentado constitui incipiente concretização da utopia liberal da implantação de um mercado educacional autorregulado, na experiência concreta dos nossos países, o processo de empresariamento da educação se desenvolve, de maneira desigual em ritmos e estratégias, ao sabor das lutas concretas, oferecendo avanços e recuos em cada uma das suas dimensões. A defesa de um projeto de educação e de sociedade decididamente oposto ao que descrevemos, ainda em construção, deve partir da defesa da escola pública no seu sentido mais pleno, entendendo que, como aponta Freitas (2018), não existe “meia privatização” ou “quase mercados”.
No Brasil contemporâneo, por exemplo, a lógica empresarial na educação, nas suas variadas dimensões, tem encontrado terreno fértil de adesão e difusão, inclusive entre segmentos importantes da própria classe trabalhadora. Não por acaso, a articulação empresarial Todos pela Educação, que se apresenta como organização da sociedade civil que trabalha em prol de uma escola pública de qualidade para todos, constitui hoje uma expressão exemplar desse processo, promovendo o empresariamento da educação brasileira como se fosse o caminho único e desinteressado para alcançar “a educação que o Brasil precisa”15. Essa presumida universalidade com que são apresentadas suas propostas particulares, em tempos de importante recuo das forças populares, tem contribuído para consolidar um imaginário que atravessa as classes, onde a educação, embora compreendida como bem público, pode (e, em muitos casos, deve) ser oferecida ou estar sujeita à lógica privada.
Nesse sentido, desnaturalizar os cantos de sereia das propostas empresariais, identificar as formas particulares que assumem e os articuladores locais que as viabilizam, são tarefas urgentes no processo de conhecer a (nossa) realidade para transformá-la.
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