V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


O QUE ESTÁ RESERVADO AO TRABALHO DOCENTE NAS IES PRIVADAS EM TEMPOS DE AUTOMAÇÃO DO ENSINO? 1


Francieli Araujo2


Resumo

Neste artigo examina-se alguns elementos de precarização do trabalho docente nos marcos da expansão do ensino superior privado no Brasil, sobretudo nas primeiras décadas do século XXI. Face ao sistemático processo de automação do ensino, que se espraia sob a aparência de inovação, vimos se aprofundar traços de desqualificação e degradação do trabalho docente nas IES privadas. O estudo aponta ainda expressiva ampliação dos contratos de trabalho com a marca da flexibilização, característica presente no mercado que conjuga educação e tecnologia.

Palavras-chave: Trabalho docente; Precarização; Automação do ensino.


¿QUÉ SE RESERVA PARA EL TRABAJO DOCENTE EN LAS IES PRIVADAS EN TIEMPOS DE AUTOMATIZACIÓN DOCENTE?


Resumen

Este artículo examina algunos elementos de la precariedad del trabajo docente en el contexto de la expansión de la educación superior privada en Brasil, especialmente en las primeras décadas del siglo

XXI. Frente al proceso sistemático de automatización de la docencia, que se difunde bajo la apariencia de innovación, hemos visto que se profundizan las huellas de descalificación y degradación del trabajo docente en las IES privadas. El estudio también apunta a una importante expansión de los contratos de trabajo con la marca de la flexibilidad, una característica presente en el mercado que combina educación y tecnología.

Palabras clave: Trabajo docente; precariedad; Automatización de la enseñanza.


WHAT IS RESERVED FOR TEACHING WORK IN PRIVATE HEIS IN TIMES OF TEACHING AUTOMATION?


Abstract

This article examines some elements of the precariousness of teaching work in the context of the expansion of private higher education in Brazil, especially in the first decades of the 21st century. Faced with the systematic process of teaching automation, which spreads under the guise of innovation, we have seen that the traces of disqualification and degradation of teaching work in private HEIs are deepening. The study also points to a significant expansion of employment contracts with the brand of flexibility, a characteristic present in the market that combines education and technology.

Keyword: Teaching work; precariousness; Teaching automation.


1 Artigo recebido em 14/04/2022. Primeira avaliação em 09/05/2022. Segunda avaliação em 22/05/2022. Aprovado em 15/06/2022. Publicado em 21/07/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.54040

2 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, São Paulo – Brasil. Mestra em Educação pela Universidade Estadual de Londrina – UEL, Londrina - Paraná, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social (GEPECS) da Faculdade de Educação da UNICAMP. E-mail: f235712@dac.unicamp.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4306250140464593. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9490-2704.

Introdução


No Brasil, a década de 1990 marca um período no qual as políticas voltadas ao ensino superior são atravessadas por profundos processos de privatização, por parte do governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), e de modo mais específico a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Na agenda governamental anunciada, mostrou-se, desde o início, que as referidas políticas estariam inseridas no leque do ideário neoliberal. Esta tendência se confirmaria com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, 1995), encabeçado pelo então ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, que em sua estrutura atendia às recomendações dos organismos internacionais, principalmente do Banco Mundial, bem como suas diretrizes de desenvolvimento para a América Latina. Tais orientações se traduziam no imperativo de um Estado racionalizado e enxuto que, a fim de reduzir custos, era chamado a realizar reformas na educação, o que, como rapidamente se revelou, conduziu a profundos retrocessos a educação brasileira.

Já neste momento era clara a intenção de ampliar a educação superior, atrelando-a à expansão da lógica mercantil por meio da abertura de condições favoráveis ao setor privado, de tal modo que o Estado atuou, via fundo público, no sentido de tornar rentável, do ponto de vista capitalista, os empreendimentos a se constituírem. Distante de ser uma situação isolada, este debate estava inserido no contexto global de privatização da educação, articulado ao movimento dominado pela financeirização, no qual estavam implicados bancos e fundos de investimentos.

A partir daí, o estrondoso crescimento do ensino superior brasileiro constituiu em menos de uma década verdadeiros conglomerados, concorrendo, principalmente, através de processos de aquisições e fusões, fenômeno ao qual Marx (2013) se refere como centralização3. No Brasil algumas poucas empresas educacionais estão listadas na bolsa de valores, todavia, juntas reúnem, atualmente, mais matrículas do que todas as Instituições de Ensino Superior (IES) públicas (universidades, faculdades, institutos federais etc.), ao mesmo tempo que conseguem diversificar suas atividades monopolizando todos os tipos de serviços (SEKI, 2020). Cabe salientar que o indicador mais evidente dos processos de financeirização que foram colocados em


3 Nos dizeres do autor: “Se aqui o capital cresce nas mãos de um homem até atingir grandes massas, é porque acolá ele se perde nas mãos de muitos outros homens. Trata-se da centralização propriamente dita, que se distingue da acumulação e da concentração” (MARX, 2013, p. 702).

prática nos últimos anos, se revelam quando a educação superior privada superou a educação pública em termos de predominância massiva de matrículas, concentrando- as, mais recentemente, no segmento de IES privadas. Em síntese, são 77,5% no total de matrículas nas IES privadas em nível de graduação, das quais cerca de 35% encontram-se em empresas de capital aberto4, sendo elas: Cogna/Kroton, Cruzeiro do Sul, Ser Educacional, Ânima e YDUQS (BRASIL, 2022).

Cabe salientar que os cenários mais recentes dos processos de privatização das políticas sociais têm raízes profundas na história do país. A crise do sistema capitalista, desde o final dos anos de 1970, impulsionou uma série de reformas estruturais que inibiram os gastos públicos, ao mesmo tempo em que estimularam as chamadas leis do mercado. Tal período foi marcado também pela “[...] paulatina preferência de empresas e bancos pela acumulação de ativos financeiros desvinculada do compromisso com inversões futuras no setor produtivo” (LAVINAS; GENTIL, 2018, p. 197). Desse momento em diante, prevaleceu a acumulação capitalista sob a centralidade dos capitais fictícios, sendo que por meio deles:


[...] os produtores encontram renovados meios de alavancagem, de refinanciamento de suas dívidas sobre uma base anual, ou de lançamento de títulos no mercado sobre seu capital e sua produção de mais-valia futura, o que garante a este capital plasticidade e liquidez, e proporciona mecanismos de ajustes (MELLO, 2014, p. 21).


Frente a essa lógica, capital financeiro e formas de rentabilização dos capitais fictícios se alastram, produzindo efeitos no conjunto das políticas sociais e na sua relação com o Estado. A educação superior, a exemplo, ingressa com força em meados dos anos 2000, na rota dos “grandes investidores do mercado de capitais no Brasil e do exterior” (LAVINAS; GENTIL, 2018, p. 195).

O movimento que fortalece a expansão privatista do ensino superior aportou, também, desdobramentos significativos e negativos no que concerne ao avanço da modalidade de Educação a Distância (EaD) e as precárias condições de trabalho docente, sob a guarida do incremento tecnológico e da automação do ensino. O que conduz a algumas questões pontuais: com o ensino superior submetido à lógica do mercado, cujas atividades são orientadas pela lucratividade, estaria o trabalhador docente submetido à simplificação e, até mesmo, à substituição do seu trabalho como


4 Essas empresas possuem ações na Bolsa de Valores de São Paulo (B3).

forma inevitável de aumento das forças produtivas no campo educacional? A modalidade de Educação a Distância, ao fornecer formação aligeirada, tende também a esvaziar o próprio sentido do trabalho docente?

Em síntese, no âmbito do quadro estrutural mais amplo, temos: i) predomínio do capital financeiro na economia, ii) introdução massiva de novas tecnologias no trabalho buscando extrair máximo lucro, iii) expansão do controle sobre o trabalho, e

iv) flexibilização crescente dos contratos de trabalho.


Tendências do mundo do trabalho frente às inovações tecnológicas


O acelerado processo de desenvolvimento das forças produtivas, do qual as novas tecnologias de informação e comunicação constituem uma expressão direta, impactou diretamente na estruturação de novas formas de organização do trabalho. Não escapa a esta realidade o trabalho docente realizado nas IES privadas que, principalmente, a partir das últimas décadas, carrega a marca da desqualificação e desproteção, sobretudo com o intenso avanço tecnológico e a vertiginosa expansão da EaD, fatores que impulsionaram o investimento no setor por parte de empresários do ensino, com vistas a oportunidades de negócio.

Desse modo, sem perder de vista a centralidade do trabalho como organizador social no interior do modo de produção capitalista, faz-se necessário considerar, como afirma Antunes (2019), a nova fase de “desantropormorfização do trabalho” (eliminação do trabalho vivo pelo trabalho morto), caracterizada pela intensificação da subsunção real do trabalho à nova máquina-ferramenta-informacional.

As novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) não só ampliaram a automação e robotização dos processos produtivos, como também intensificaram a exploração do trabalho vivo, ao permitirem maior controle e cobrança sobre a atividade laboral. Tendência já apontada por Marx (2013), no capítulo “Maquinaria e grande indústria”, Livro I d’O Capital, no qual expõe a posição do proletário, expressão do trabalho vivo, convertido em apêndice da máquina. Nessas condições, opera-se de forma radical a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, aprofundando, na ótica de Marx (2013), a alienação do gênero humano.


Toda produção capitalista, por ser não apenas processo de trabalho, mas, ao mesmo tempo, processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem emprega as condições

de trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador; porém, apenas com a maquinaria essa inversão adquire uma realidade tecnicamente tangível. Transformado num autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. [...] A habilidade detalhista do operador de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa diminuta e secundária perante a ciência, perante as enormes potências da natureza e do trabalho social massivo que estão incorporadas no sistema da maquinaria e constituem, com este último, o poder do patrão (master) (MARX, 2013, p. 495, grifos nossos).


A substituição do trabalho vivo por trabalho morto continuou a se estender na medida em que o capital se expandiu e se concentrou, recorrendo a forças produtivas cada vez mais sofisticadas. A revolução ininterrupta dos meios de produção, ou seja, instrumentos de produção como a tecnologia, penetraram rapidamente em todos os espaços sociais. Em tempos mais recentes, a educação incorporou massivamente a modalidade de EaD, desenvolvendo na esfera privada um novo proletariado do ensino. Parece-nos possível afirmar que este movimento está em sintonia com os princípios da indústria moderna, que revoluciona continuamente sua base sociotécnica, com desdobramento na própria divisão social do trabalho e as relações sociais de produção em geral.

Observa Marx, neste sentido, que a grande indústria condiciona a “variação do trabalho, a fluidez da função, a mobilidade pluridimensional do trabalhador” (MARX, 2013, p. 557), mantendo, no entanto, inalterada a velha divisão do trabalho entre trabalho assalariado e capital. Essa contradição elimina toda “tranquilidade, solidez e segurança na condição de vida do trabalhador, a quem ela ameaça constantemente de privar-lhe” de seu meio de trabalho e de subsistência, tornando o próprio trabalhador supérfluo (MARX, 2013). Tem-se aí uma necessidade inerente à lógica e dinâmica do capital, permitindo-lhe ampliar o exército industrial de reserva ao mesmo tempo que comprime os salários dos trabalhadores que se encontram empregados, na medida em que desqualifica a força de trabalho, reforçando as formas precárias de contratação (ANTUNES, 2020).

As mudanças que o universo do trabalho vem evidenciando no que concerne à expansão das novas forças produtivas, que viabilizam formas de controle, regulação e organização do trabalho por aplicativos e plataformas digitais, estão intimamente entrelaçadas com as estratégias contemporâneas do capital para elevar em níveis

jamais vistos a produtividade e rentabilidade do trabalho vivo com o uso intensivo e extensivo do trabalho morto.

Um exemplo neste sentido é destacado por Woodcock (2020), referindo-se ao uso de algoritmos nas plataformas do trabalho na Deliveroo, empresa centrada na entrega de alimentos. Para Woodcock, está-se diante de uma metáfora de panóptico, mediante o qual se estabelece a configuração de um novo tipo de gestão e controle da força de trabalho.

Ainda, segundo Woodcock (2020), as plataformas digitais se apresentam como forças produtivas decisivas à subordinação de uma enorme massa de trabalhadores, ao estabelecerem em tempo real tarefas e metas de produtividade. Nessa perspectiva, a gestão do trabalho, em geral, ocorre remotamente por meio do algorítmico, difundindo a crença de que o trabalhador seria uma espécie de empreendedor individual (gerente-de-si), acreditando ser capaz de definir sua dinâmica de trabalho, quando na verdade ele está sendo administrado pela plataforma. Ideia essa que, em grande medida, encontra respaldo na ausência da figura física de supervisores ou gestores, uma vez que se “automatiza a maior parte da gestão do processo de trabalho [...] (WOODCOCK, 2020, p. 42).

Destarte, surgem corporações que expressam a mais nova feição do capitalismo; empresas que atuam por meio de plataformas digitais, cujo fenômeno manifesta como uma nova forma de controle e organização do trabalho. Esse tipo de empresa já alarga seus negócios para outras categorias profissionais, isto é, para além de entregadores e motoristas de aplicativos, envolvendo inclusive professores da educação básica e do ensino superior.

Em linhas gerais, o trabalho nas plataformas digitais escamoteia o assalariamento, além de não garantir o vínculo empregatício, impedindo qualquer forma de proteção dos trabalhadores assalariados. Os mecanismos contemporâneos de valorização do capital, marcados por processos de oligopolização e concentração de riqueza, refletem no aumento da produtividade do trabalho, na eliminação de direitos conquistados ao longo da história e no deslocamento dos custos e riscos para os trabalhadores dentro dos novos arranjos produtivos.

No lastro dessa lógica marcada pelos interesses do capital, expande-se e se interioriza a ideia do empreendedorismo, com a aparência de autonomia/autogerência, sobretudo em um contexto social onde as políticas

neoliberais asfixiam os direitos trabalhistas. No Brasil, crescente é a massa de trabalhadores cuja liberdade de escolha oscila entre a informalidade exacerbada, o desemprego e o desalento.

Diante de tais formas contemporâneas de exploração do trabalho, vimos surgir um novo léxico em torno da organização laboral centrada no indivíduo (autocontrole, autogerenciamento, autorregulação, autoeficácia), com evidente articulação ao perfil de trabalhador que se pretende conformar, ou seja, aquele responsável pela sua própria formação profissional, saúde, educação, habitação, aposentadoria e remuneração.

Outo elemento importante na discussão do trabalho por plataformas digitais envolve a remuneração por demanda, ou, nas palavras de Marx (2013), o “salário por peça”. Marx, em O Capital, (2013, p. 621) explica que:


No salário por peça, temos a impressão, à primeira vista, de que o valor de uso vendido pelo trabalhador não é função de sua força de trabalho, trabalho vivo, mas trabalho já objetivado no produto, e de que o preço desse trabalho não é determinado, como no salário por tempo, pela fração valor diário da força de trabalho/jornada de trabalho de dado número de horas, mas pela capacidade de produção do produtor.


Essa forma de pagamento visa objetivamente “transferir os riscos do modelo de negócio aos trabalhadores” na ausência de uma supervisão física (WOODCOCK, 2020, p. 39). Nessa perspectiva, “o pagamento por peça é uma ferramenta poderosa para os gestores encorajarem uma maior produtividade”, haja vista que o fetiche do capital está também presente neste tipo de remuneração, na qual os trabalhadores buscam incessantemente ultrapassar as metas de trabalho esperadas (WOODCOCK, 2020, p. 26). Isso significa engendrar formas de controle que passam pelo incentivo financeiro, isto é, uma modalidade de remuneração flexível que está vinculada à produtividade e ao desempenho.

Retomemos o caso da Deliveroo, que alterou o método de pagamento, antes por hora e agora por peça, com o intuito de ‘incentivar’ os trabalhadores a realizarem entregas no horário previsto: “O pagamento por peça significa que os trabalhadores podem calcular a relação entre o próprio desempenho e o que recebem: quanto mais entregas forem feitas em um turno, mais dinheiro eles ganham” (WOODCOCK, 2020, p. 39).

No salário por peça o trabalhador eleva ao grau máximo a intensidade do seu trabalho, à custa do prolongamento da sua jornada, bem como da sua saúde física e mental. Neste regime de salário, o preço do trabalho é determinado por uma quantidade de produtos, entretanto, é preciso considerar as diferenças individuais dos trabalhadores no que se refere à habilidade, produtividade, resistência etc., aspectos importantes que implicam na intensidade da produção.

Portanto, a percepção dos elementos perversos que rondam o trabalho por plataformas digitais é muito sutil, o que dificulta para o trabalhador reconhecer que está sendo controlado, engendrando uma sensação de liberdade. Desse modo, sob a aparência de autonomia, são transformados em sujeitos de desempenho e produção, sem a garantia de ao menos receber um salário mínimo.

No Brasil essa situação foi agravada pelo contexto da contrarreforma trabalhista, Lei nº 13.467 de 13 de julho de 2017 (BRASIL, 2017) que ajustou a legislação às novas relações de trabalho, ampliando as possibilidades de utilização de regimes de contratação que flexibilizam a utilização do tempo de vida do trabalhador. A demolição dos direitos do trabalho ocorre, a exemplo, com a pejotização5 além das contratações por trabalho intermitente, ambas previstas na contrarreforma trabalhista.

Nessa direção, o trabalho docente não fica imune a estas formas “atuais” de contrato. No ensino superior privado-mercantil, é crescente o processo de demissão de professores e contratação de novos profissionais na forma de pessoa jurídica (PJ) para a prestação de serviços já antes realizados pelo trabalhador contratado em regime da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Esse modelo contratual por ser mais descontínuo e firmado no curto prazo, tende a reforçar no trabalhador docente certas condições, tais como: a adaptabilidade, a mobilidade e a aceitação ao risco (GEMELLI, CLOSS, FRAGA, 2020). Situação ainda mais frequente na modalidade de Educação a Distância.


5 De acordo com Nascimento (2018) “A ‘pejotização’ é conhecida como uma prática do empregador em contratar um funcionário como pessoa jurídica (PJ) ou de dispensar um empregado com registro em carteira e recontratá-lo na forma de pessoa jurídica. Em qualquer dos casos, é necessário que o funcionário constitua formalmente uma PJ”.

O avanço da precarização do trabalho docente nas IES privadas: o que fazer?


A mundialização financeira e neoliberal promove impulsos à flexibilização do trabalho, amplamente facilitada pelos avanços no campo das tecnologias digitais e da inteligência artificial. A massiva utilização das novas tecnologias tem operado transformações na natureza e na processualidade da organização e regulação do trabalho.

No campo educacional o avanço tecnológico, aliado aos interesses do Estado e do capital, fez progredir vertiginosamente a modalidade EaD. Nos últimos anos, a modalidade tornou-se importante instrumento de lucratividade somada ao cenário de aquisições/fusões de empresas de ensino superior.

O avanço da EaD se confirma, ano após ano, conforme dados divulgados pelo Censo da Educação Superior. Em 2019, por exemplo, 63,2% das vagas ofertadas foram nessa modalidade. Ademais, no mesmo ano, pela primeira vez o número de ingressantes em cursos de EaD ultrapassou a quantidade de estudantes que iniciaram a graduação presencial, na rede privada. No total, 50,7% dos estudantes que ingressaram em IES privadas optaram pela EaD (BRASIL, 2020).

O retrato é dramático e, portanto, não pode ser superestimado em face dos demais elementos constitutivos da totalidade do capital social. Vale ressaltar que o desenvolvimento tecnológico e científico deve ser analisado como incremento de modelos econômicos. Estudos como os de Elias e Navarro (2019) têm problematizado os efeitos do processo de reestruturação produtiva envolvendo o uso de tecnologias e novas formas de modernização da gestão da força de trabalho no campo educacional. Depreende-se, nesse sentido, que as tecnologias digitais têm desempenhado papel estratégico ao sofisticar formas de controle e cobrança do trabalho e do trabalhador, uma vez que


As ditas ‘novas’ formas de organização das relações submetem as pessoas a modelos de gestão que desconsideram a humanidade, tratando os homens como máquinas, de modo a operacionalizar as ações e diminuir o tempo para a execução das atividades. Em consonância a esse fato, a reestruturação produtiva, sustentada na revolução tecnológica, altera a organização do processo de produção e modifica a estrutura e as relações de trabalho (ELIAS; NAVARRO, 2019, p. 51).

Concordamos com Minto (2021) ao destacar que o trabalho educativo, em específico, encontra-se subsumido à tendência geral de degradação do trabalho como pressuposto do avanço produtivo no capitalismo contemporâneo. Logo, mesmo as atividades predominantemente intelectuais, como é o caso da docência, não asseguram que “[...] sob determinadas formas de organização, trabalhadores e trabalhadoras da área não estejam exercendo cada vez mais suas atividades básicas sob o jugo dos processos de precarização e simplificação” (MINTO, 2021, p. 142).

Diante do exposto, parece bastante evidente que uma parcela dos professores seja facilmente substituída por funções menos especializadas – tutores, facilitadores, aplicadores, monitores, avaliadores etc. – que, em geral, não exigem formação específica e titulação em nível de mestrado e doutorado. Soma-se a isso o atual estágio de organização do trabalho educacional, estabelecido nas empresas de ensino superior privado, que permite visualizar a forte inclinação do trabalho docente destituído de autonomia e conhecimento para ceder lugar ao manejo das TICs, monitoramento e instrução dos estudantes. São processos estes que tendem a se reforçar à medida que se expandem nos espaços de trabalho educacionais sob o controle do capital a automação do ensino, ou seja, na perda de controle sobre parcelas do processo de trabalho, distanciamento de momentos de concepção e execução do trabalho pedagógico. Destaca-se, contudo, recorrendo mais uma vez a Marx, que a máquina não é boa e nem ruim, não tem vontade própria. Portanto, se faz sempre necessário observar o uso social dentro do qual ela está inscrita.

Foi notório, nesse sentido, o caso da Laureate International Universities, em abril de 2020, quando a empresa utilizou um software de inteligência artificial (robô), para substituir professores na correção de atividades acadêmicas (DOMENICI, 2020a). Na ocasião, alguns docentes relataram que em um arquivo enviado por e-mail havia a recomendação para que a informação não fosse divulgada aos estudantes, persuadindo-os a omitir o uso de robôs nas correções das atividades (DOMENICI, 2020b). Passados 15 dias da denúncia de uso de robôs, mais de 90 professores que atuavam, em sua maioria, na modalidade de educação a distância foram demitidos através de videochamada com a presença de um coordenador e de um membro do Recursos Humanos. Alguns professores entrevistados disseram que seriam substituídos por um “profissional monitor”, isto é, “uma espécie de operador de chat”, responsável por “tirar dúvidas” dos conteúdos das disciplinas. A proposta de

remuneração para os monitores seria de 1.200 reais por oito horas de trabalho diário, menos da metade do que se costumava pagar aos professores (DOMENICI, 2020b). Iniciativas como da Laureate não apenas buscam elevar a valorização dos capitais de ensino superior, como também aprofundam a expropriação das atribuições do trabalho docente, deslocando-as a robôs e sistemas de inteligência artificial.

Há muitos outros casos que comprovam os processos de expropriação e intensificação do trabalho docente nas IES privadas. Convém, contudo, sinalizar que o uso indiscriminado das tecnologias no campo educacional não é exclusivo do setor privado, mas já se faz presente na rede pública do país6, potencializado, de maneira especial, pelo contexto pandêmico.

Assim, considerando as medidas sanitárias divulgadas em março de 2020 a fim de mitigar os efeitos da pandemia da COVID-19, a hibridização do ensino foi a ‘solução’ encontrada diante da necessidade de distanciamento físico. Para os grandes conglomerados educacionais a referida situação foi bem menos nociva se comparada às empresas menores, como as faculdades isoladas, por exemplo. Além de contarem com uma vasta experiência formativa na EaD, as empresas de capital aberto não restringem a vida financeira a mensalidades diretas, ao contrário disso, contemplam muitas oportunidades de capitais de ensino, desde a produção e comercialização de produtos e serviços educacionais diversos, tais como “sistemas apostilados, planejamento e consultorias educacionais, formação continuada, sistemas de ensino, plataformas complementares de aprendizagem parcerias com bancos e empresas, assim por diante” (SEKI; SOUZA; EVANGELISTA, 2019, p. 109). Em síntese, o cenário pandêmico se traduziu em uma “janela de oportunidades” a partir de elementos que se encontram ao alcance de tais empresas; adequação metodológica com ênfase em conteúdos gravados (atividades assíncronas) e reproduzidos nas modernas plataformas de ensino.

Não obstante, vimos proliferar o regime de teletrabalho, forma de trabalho mediada por plataformas digitais (PREVITALI; FAGIANI, 2020), no qual se estabelece uma aparente relação de trabalho não explorado, mas que, na essência, dilui o limite entre a vida privada e a profissional, excedendo a jornada de trabalho ‘normal’, além de exigir do docente a utilização de recursos próprios (computador, celular, conexão com a internet), como alternativa a manutenção das condições materiais de trabalho;


6 Sobre este debate, ver os estudos de Venco (2019) e Silva (2019).

situação tornada possível em virtude das tecnologias digitais e de leis trabalhistas flexíveis.

Nestes termos, desde o início da pandemia vimos avançar um contexto que já estava em curso nas últimas décadas, qual seja, o fortalecimento da racionalidade instrumental e o uso desmedido dos recursos digitais na modalidade EaD, com aprofundamento nas formas de controle das atividades docentes, isto é, “seu conteúdo, ritmos e intensidade [...] mediado por sistemas informatizados, aplicativos ou softwares” (MINTO, 2020, s/p).

Nota-se que a docência, enquanto atividade de tipo singular envolvida por práticas específicas de cunho intelectual, tem se tornado hoje, na EaD das grandes IES privadas, uma atividade secundária submetida à comercialização de matrículas7. O trabalho docente é esvaziado de tarefas basilares, como a elaboração do planejamento e avaliações, sendo cada vez mais frequente a adoção de sistemas de ensino (sistema apostilado) dispostos pelas próprias matrizes. Tal fenômeno reflete diretamente no cerceamento da relação professor-aluno, ao tornar mais restrito o tempo com os estudantes e, como consequência, menos sistemático o processo de ensino-aprendizagem.

No conjunto de elementos apresentados, destaca-se a imposição de material didático elaborado pela própria matriz, viabilizado, em geral, pelo uso de apostilas- livros impressos ou virtuais, cuja finalidade principal é a padronização da prática pedagógica nas IES privadas e o rebaixamento da qualificação do trabalho docente. Constitui-se uma estratégia com dupla função: permite não só que as instituições efetuem a comercialização de diversos insumos aos estudantes, aumentando o faturamento e a lucratividade; como também cria condições para formar um exército industrial de reserva, uma vez que um mesmo docente passa a ministrar aulas em várias disciplinas/cursos, pois, no limite, os referidos materiais “facilitam” a preparação, a avaliação e o ministério das aulas (SEKI, 2020), dispensando, com isso, a contratação de professores mais qualificados, isto é, com titulação mais alta.

Outro ponto relevante é o exemplo bastante recente da Portaria nº 2.117 (BRASIL, 2019), que altera de 20% para 40% a oferta de carga horária na modalidade



7 A “comercialização de matrículas” nos remete a algo mais concreto e coerente com o processo de financeirização em detrimento de “comercialização de ensino”, pois partimos do pressuposto de que o que está sendo comercializado não é nem ensino e nem mesmo diplomas, e sim “quantidades de matrículas” que ficam nos sistemas desses grupos por certo período de tempo.

EaD em cursos de graduação presenciais de graduação nas instituições do Sistema Federal de Ensino. Parece-nos possível afirmar que se trata de uma estratégia explícita de manter altas taxas de lucros das IES privadas, inclusive como forma de compensação diante do declínio dos programas sociais como o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e o Financiamento Estudantil (FIES).

Uma das consequências ao forte apelo às ferramentas digitais e uso da internet, no contexto de pandemia, foi o rápido deslocamento do trabalho docente, antes realizado nas instituições de ensino, para o ambiente doméstico. O trabalho remoto acentuou as precárias condições de trabalho de professores e professoras, cuja jornada de trabalho foi intensificada com a ampliação das atividades laborais para além do espaço da sala de aula, ao mesmo tempo que criou grande dificuldade de organização e pautas coletivas.

A relação da produtividade e os sistemas de inovações, com forte amparo na EaD, abrangem o desenvolvimento de um conjunto de mecanismos de “captura” da subjetividade do trabalhador, no estímulo da concorrência e produtividade, a saber: o salário vinculado ao aumento da produção (gratificação pela produtividade/salário por peça); engajamento mensurado pelo número de visualizações das aulas gravadas; performance e flexibilidade; ênfase na corresponsabilidade com a empresa. Como desdobramentos, temos: aumento do nível da insegurança, tensões ante a constante instabilidade e a responsabilização individual pelos avanços na carreira docente.

Assim, vai se tornando cada vez mais evidente que na relação da produtividade – na modalidade a distância – com a valorização do capital, constroem-se as condições para a sua reprodução ampliada. Nesse sentido, cabem algumas indagações à luz do exposto: com o ensino superior entregue ao setor privado, cujos princípios são orientados pelo lucro, estaria o trabalhador docente condenado ao estranhamento/simplificação do seu trabalho como forma inevitável de aumento das forças produtivas no âmbito escolar? Complementar à primeira questão: que tipo de formação a modalidade EaD fornece ao mesmo tempo que tende a esvaziar o próprio trabalho docente? Por último: a simplificação e alienação do trabalho docente, no limite, são condições máximas para a manutenção das relações de dominação pautadas na divisão hierárquica de trabalho?

Um embrião de resposta está presente em Minto (2021), para quem toda essa dinâmica mercantil é orientada para que as organizações de ensino superior coloquem suas finalidades financeiras no lugar de atividade principal, ou seja, o ensino.

Outro aspecto da questão que merece ser investigado se refere ao problema da qualidade da formação oferecida pelas IES lucrativas que, por motivos já sinalizados, preferem priorizar a modalidade EaD e a formação no curto prazo. Seki, Souza e Evangelista (2019) evidenciam uma realidade que se defronta com a privatização da formação docente8. De acordo com os autores, o capital se aproxima da formação e trabalho docente pelo interesse estratégico, não apenas ocupando-se “[...] da produção dos conteúdos e métodos propriamente escolares, fornecendo recomendações políticas por meio de seus aparelhos privados de hegemonia, reformando diretrizes curriculares nacionais...”, mas tomando para si a “formação do principal ‘insumo’ da constituição da força de trabalho: os professores” (SEKI, SOUZA, EVANGELISTA, 2019, p. 132).

Há outro ponto agravante que se refere ao domínio do capital sob a oferta da formação docente pelo comércio de matrículas. Esse retrato dramático é marcado pelo aligeiramento da formação via modalidade de EaD, especialmente no caso das licenciaturas. Numa experiência relatada nos estudos de Seki, Souza e Evangelista (2019) indica-se qual deve ser o futuro da docência no Brasil: um estudante matriculado em um curso de formação de professores na modalidade EaD concluiu uma disciplina em apenas 16 minutos, sendo que no ensino presencial equivaleria as habituais 72 horas de curso. O que está em discussão é a “captura e reconfiguração da formação de professores pela exploração privado-mercantil das grandes instituições de ensino superior” e o aprofundamento das condições precárias nas quais se realiza o trabalho docente (SEKI; SOUZA; EVANGELISTA, 2019, p. 110).

Contexto impulsionado pela financeirização dos capitais no ensino superior que, em profunda articulação com o Estado, fomentam políticas de desregulamentação, apropriando-se do fundo público e sua consequente conversão em fundo de acumulação de capital. Trata-se do domínio das organizações educacionais pelo comércio de dinheiro (MARX, 2017), sob formas específicas de controle que associam expropriação do conhecimento e precarização do trabalho.


8 Sobre esse debate, ver os estudos de Evangelista; Seki; Souza; Titton e Avila em Desventuras dos professores na formação para o capital (2019).

Considerações finais


O trabalho docente no ensino superior privado, em especial na EaD, se entrelaça à particularidade histórica do capitalismo contemporâneo, ao mesmo tempo que carrega marcas profundas de desregulamentação da legislação trabalhista, com clara intenção de desqualificar e desproteger a força de trabalho docente, garantindo a continuidade de reprodução do capital.

As novas formas de organização e controle do trabalho ganham uma feição repaginada ante as plataformas digitais, contribuindo com o aumento do desemprego, a expropriação de direitos no campo do trabalho e a interferência na subjetividade do trabalhador. No entanto, isso não ocorre desvencilhado da utilização do aparato tecnológico e da EaD para fins de intensificação do trabalho docente e expropriação do conhecimento próprio das atividades de ensino. Artifício vastamente utilizado pelas IES privadas na intenção de ampliar os fluxos de capital financeiro, criando novas formas e possibilidades de investimentos pautadas em especulações fictícias.

É notório que a elevação dos índices de lucro das IES privadas ocorre mediante a diminuição de contratações (trabalho vivo) e investimentos mais pontuais em equipamentos e tecnologias (trabalho morto). Nestes termos, as tecnologias são inclinadas à obtenção de capital a partir do encurtamento dos processos produtivos, proliferando possibilidades de desqualificação do trabalho docente.

Por fim, cabe frisar que a crítica aqui construída não se detém às tecnologias ou educação a distância de maneira isolada, mas concernem ao uso desmedido de tais instrumentos como algo prioritário no campo educacional, até mesmo salvacionista. Assim, ressaltamos que as corporações recorrem a tais incrementos para fins de lucratividade, ao mesmo tempo que propõem condições inadequadas de ensino e aprendizagem. De acordo com Minto (2021), toda essa dinâmica mercantil é orientada para que as organizações de ensino superior coloquem suas finalidades financeiras no lugar de atividade principal.

Referências


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