V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X


MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA E ACUMULAÇÃO CAPITALISTA: O LICENCIAMENTO AMBIENTAL EM MINAS GERAIS1


Gustavo Soares Iorio2

Lucas Magno3 Guilherme Barbosa de Faria Umbuzeiro4

Resumo

As recentes alterações no processo de licenciamento ambiental no estado de Minas Gerais chamam a atenção, dado o contraste com as recentes tragédias socioambientais que assolaram o estado. Neste texto, buscamos entender como as mudanças no marco regulatório ambiental (Lei nº. 21.972/16, os Decretos Estaduais nº 46.953/16 e nº 47.042/16 e a Deliberação Normativa (DN) nº 217/17 do Conselho Estadual de Política Ambiental [COPAM]) ensejaram formas mais intensas de apropriação da natureza no processo de acumulação capitalista. Palavras-chave: Política ambiental; Licenciamento Ambiental; Minas Gerais; Mercantilização; Natureza.


MERCANTILIZACIÓN DE LA NATURALEZA Y ACUMULACIÓN CAPITALISTA: EL LICENCIAMIENTO AMBIENTAL EN MINAS GERAIS


Resumen

Los cambios recientes en el proceso de licenciamiento ambiental en el estado de Minas Gerais llaman la atención, dado el contraste con las recientes tragedias socioambientales que asolaron el estado. En este texto, buscamos comprender cómo los cambios en el marco normativo ambiental (Ley N° 21.972/16, Decretos Estatales N° 46.953/16 y N° 47.042/16 y Deliberación Normativa (DN) n° 217/17 COPAM]) dieron lugar a formas más intensas de apropiación de la naturaleza en el proceso de acumulación capitalista.

Palabras-clave: Política de medio ambiente; Licenciamiento Ambiental; Minas Gerais; Mercantilización; Naturaleza.


COMMODIFICATION OF NATURE AND CAPITALIST ACCUMULATION: ENVIRONMENTAL LICENSING IN MINAS GERAIS


Abstract

Recent changes in the environmental licensing process in the state of Minas Gerais draw attention, given the contrast with the recent socio-environmental tragedies that devastated the state. In this text, we seek to understand how changes in the environmental regulatory framework (Law No. 21,972/16, State Decrees No. 46,953/16 and No. 47,042/16 and Normative Deliberation (DN) n° 217/17 COPAM]) gave rise to more intense forms of appropriation of nature in the process of capitalist accumulation.

Keywords: Environmental policy; Environmental Licensing; Minas Gerais; Commodification; Nature.


1 Artigo recebido em 29/04/2022. Primeira avaliação em 28/06/2022. Segunda avaliação em 17/07/2022. Aprovado em 23/09/2022. Publicado em 10/11/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54260.

2 Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: iorio@ufv.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0977036613684187. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0079-9647.

3 Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do Núcleo de Ciências Humanas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG - campus Muriaé) e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Viçosa (PPGeo/UFV). E-mail: lucas.magno@ifsudestemg.edu.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5483158857821393. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8799-4113.

4 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Viçosa.

E-mail: gbarbosa909@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8907779277846184. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7009-5912.

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Introdução


O estado de Minas Gerais sofreu nos últimos anos uma significativa reestruturação do seu processo de licenciamento ambiental. Ao contrário do que se poderia pensar, frente aos escandalosos desastres dos rompimentos de barragens da Samarco (2014) e Vale S.A. (2019), ao invés de fortalecer o controle público e estatal sobre os empreendimentos e seus impactos, o que se fez foi exatamente o oposto, como pretendemos demonstrar nesse artigo.

O licenciamento ambiental é um dos instrumentos através dos quais está normatizada no campo jurídico a relação entre natureza e o processo econômico de acumulação do capital. Por isso de sua extrema relevância, em particular em um país marcado por um padrão exportador de especialização produtiva (OSORIO, 2012), como é o caso do Brasil desde a última década do século XX, pautado pelo uso intensivo e extensivo de recursos naturais para produção de commodities.

Este texto aborda as recentes alterações no processo de licenciamento ambiental no estado de Minas Gerais. Buscamos entender como as mudanças no marco regulatório ambiental (Lei nº. 21.972/16, os Decretos Estaduais nº 46.953/16 e nº 47.042/16 e a Deliberação Normativa (DN) nº 217/17 do Conselho Estadual de Política Ambiental [COPAM]) ensejaram formas mais intensas de apropriação da natureza no processo de acumulação capitalista.

Na primeira parte do texto, discutimos o papel da natureza no processo de acumulação capitalista do ponto de vista dos regimes de propriedade. Na sequência, contextualizamos a emergência das políticas ambientais, desde a escala global, nacional e estadual para, por fim, analisarmos o processo de licenciamento ambiental em Minas Gerais, revelando alterações e inovações advindas com a publicação da Lei nº 21.972/16, com os Decretos Estaduais nº 46.953/16 e nº 47.042/16 e com a DN do COPAM nº 217/2017. Demonstramos que a sequência de alterações legais e institucionais sofreu forte influência de mineradoras, especialmente da Vale S.A, e reduziu o rigor no processo de licenciamento e diminuiu a capacidade dos órgãos de controle ambiental analisar as condições de elevação de riscos associados a grandes empreendimentos.


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Natureza e acumulação capitalista


Para compreendermos o significado das alterações no licenciamento ambiental em Minas Gerais em tela, reivindicamos antes o entendimento de qual é o papel da regulação do uso da natureza no processo geral de acumulação capitalista.

Marx (2013) começa o seu livro de O Capital com a já conhecida frase: “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma enorme coleção de mercadorias” (p. 113). A riqueza na sociedade capitalista é mensurada pela mercadoria que, por sua vez, é dotada de um caráter duplo. Ao mesmo tempo que porta uma utilidade em sua forma (do contrário não poderia ser uma mercadoria de fato), ela porta também um valor, determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário e passível de se converter em um valor de troca.

No modo de produção capitalista, o sentido do processo produtivo não é atender às necessidades através dos valores de uso; mas sim, valorizar o valor, isto é, acumular capital. Neste sentido, do ponto de vista do capital, os valores de uso são o suporte material para a acumulação capitalista, e não uma finalidade em si mesmo (CARCANHOLO, 2021).

A produção e apropriação de mais-valor, finalidade última do capital, só pode ocorrer através do trabalho vivo. A natureza, que entra no processo produtivo enquanto matéria prima, assim como o trabalho morto, não atuam sobre a criação de valor, apenas transferem seus próprios valores às mercadorias. Ou seja, somente a parcela do capital variável cria valor, o que não é possível para a parte constante do capital.

No entanto, disto não se pode concluir que os preços5 das matérias-primas extraídas da natureza são irrelevantes para o capitalista, já que estes são guiados pela taxa de lucro. Lucro e mais-valor são a mesma coisa, em níveis de abstrações diferentes. Enquanto a taxa de mais-valor é obtida pela razão entre o mais-valor e o capital variável, a taxa de lucro se alcança pela razão entre o mais-valor e o capital total adiantado6 (MARX, 2017). Ao capitalista interessa incrementar sua taxa de lucro,


5 Preços e valores são categorias que remetem a níveis de abstrações distintos. Sobre a diferença entre preços e valores ver seção I do Livro III de O Capital (MARX, 2017) e Carcanholo (2021).

6 “A taxa de mais-valor medida sobre o capital variável chama-se taxa de mais-valor; a taxa de mais- valor medida sobre o capital total chama-se taxa de lucro. Trata-se de duas medições distintas da mesma grandeza, as quais, em decorrência da diversidade dos padrões de medida, expressam simultaneamente proporções ou relações distintas da mesma grandeza.” (MARX, 2017, p. 68).

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sua noção mais aparente de riqueza. Deste ponto de vista, o rebaixamento do preço da matéria-prima é fundamental: “Assim, mantendo-se constantes as demais circunstâncias, a taxa de lucro cai e sobe em sentido inverso ao preço da matéria- prima” (op.cit p. 136). Visando a potencialização dos lucros, o capital depende do princípio da natureza barata (PATEL; MOORE, 2017).

A apropriação da natureza no processo de produção do capital se dá através de um regime de propriedade privada. A natureza enquanto ativo econômico é irreproduzível, não pode ser produzida pelo próprio trabalho. O proprietário ou a proprietária de um bem natural a ser convertido em recurso econômico, dado seu caráter exclusivo, converte esta condição em um meio de apropriação de valor, categorizado por Marx como a renda da terra (2017)7. A renda é a forma pela qual a propriedade do solo se realiza economicamente.

A renda é uma apropriação de valor, que, por sua vez, nunca é demais lembrar, só pode ser produzido pelo trabalho (ANDREUCCI; et al, 2017). Portanto, a renda é uma forma de apropriação e não de produção de valor. Segundo Marx (2017):


Portanto, a propriedade da terra não cria a parcela do valor que se transforma em lucro extra, apenas capacita o proprietário fundiário, o proprietário da queda-d’água, a transferir esse lucro extra do bolso do fabricante para seu próprio bolso. Ela é a causa não da criação desse lucro extra, mas de sua conversão à forma da renda fundiária e, assim, da apropriação dessa parte do lucro ou do preço da mercadoria pelo próprio proprietário fundiário ou proprietário da queda-d’água. (p. 710).


O lucro extra é obtido por uma situação produtiva que faz com que o capitalista arrendatário (que paga a renda ao proprietário) se beneficie do caráter exclusivo de determinado bem natural para elevar a sua produtividade e diminuir os seus preços de produção para aquém do capital médio regulador do preço8. Este lucro extra é, no caso da renda, um mais valor socialmente produzido e apropriado por um capitalista individual que na esfera distributiva remunera o proprietário do bem natural que lhe proporcionou o ganho produtivo. Mais uma vez, nos dizeres de Marx (2017):


7 O conceito de renda em Marx se estende para além da terra em si: “Onde quer que forças naturais possam ser monopolizadas e proporcionem um lucro extra ao industrial que as explora, seja uma queda d’água, uma mina rica, águas com abundância de peixes, seja um terreno para construção bem localizado, a pessoa cujo título sobre uma parte do globo terrestre a caracteriza como proprietária desses objetos naturais subtrai esse lucro extra, na forma de renda, ao capital em funcionamento.” (MARX, 2017, p. 833).

8 Para a discussão sobre preços de produção e lucro extraordinário, ver capítulo 9, seção II do Livro III de O Capital (MARX, 2017).

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A propriedade da terra capacita o proprietário a apoderar-se da diferença entre o lucro individual e o lucro médio; o lucro assim embolsado, que se renova anualmente, pode ser capitalizado e aparece, então, como preço da própria força natural. (p. 710).


A renda enquanto realização econômica da propriedade privada só o pode ser através de um regime de disciplinarização, de uma forma jurídica que a torna válida. É exatamente sobre esta forma jurídica que estamos a falar quando analisamos o licenciamento ambiental. Todo o marco regulatório que incide sobre as formas de apropriação de um bem natural enquanto recurso econômico é um mecanismo de distribuição do excedente econômico ou, em um nível mais elevado de abstração, uma apropriação do mais-valor total.

O que nos leva a tomar esta forma jurídica como algo nada trivial, muito pelo contrário, pois aí está colocada a luta de classes e a concorrência intercapitalista. No que tange à natureza, as normas são o regulamento através do qual os regimes de propriedade são convertidos em ativos econômicos. Assim sendo, cumprem função importante na institucionalização das formas de dominação de uma classe e fração de classe sobre as outras.

Na relação entre as classes, os capitalistas se apropriam da natureza objetivada pelo trabalho concreto das classes subalternizadas num regime de espólio (HARVEY, 2004). As classes subalternas são despojadas de seus meios de reprodução social, como a água e a terra, sendo lançadas enquanto mão de obra para o capital. Esta é a forma da acumulação primitiva de que nos fala Marx (2013):


Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas, acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, o camponês, constitui a base de todo o processo (p. 787).


No entanto, a acumulação primitiva, ou a expropriação em um sentido mais largo, não é um processo exclusivo de uma fase originária do capitalismo, tanto pelo contrário, constitui-se como traço característico deste modo de produção. A separação do campesinato e seus meios de produção configuram o que Virgínia Fontes (2010) chamou de primeira onda de expropriações, seguida de uma segunda na qual os trabalhadores e as trabalhadoras, já despojadas de seus meios de produção, são


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agora apartadas dos seus meios de reprodução através do avanço da mercantilização. A natureza convertida em mercadoria é exemplo contundente deste processo.

A partir da legislação ambiental se define qual a magnitude e o grau de mercantilização da natureza, se definem usos e apropriações prioritários. No enquadramento do modo de produção capitalista, os usos legítimos são pautados pelo princípio da produção do valor, ou seja, os mais produtivos são prioritários (WOOD, 2014). Este traço está muito explícito nas alterações no marco regulatório do licenciamento ambiental em Minas Gerais, como demonstraremos na próxima seção. Mas a legislação ambiental não incide somente sobre as relações entre as classes. Ela é expressão da correlação entre as frações de classe articuladas no bloco no poder (POULANTZAS, 2019). O bloco no poder define um padrão de reprodução do capital9 (OSÓRIO, 2012), ou seja, como o capital vai ser posto e reposto com o fito de dar continuidade no processo de acumulação capitalista. A continuidade da reprodução do capital depende de normas explícitas e implícitas que materializam a estratégia de acumulação da fração de classe hegemônica no bloco no poder. Neste sentido, a legislação ambiental responde à institucionalização da estratégia de reprodução do capital da fração de classe hegemônica no seio de um bloco no poder. Em suma, a análise das alterações na legislação competente ao licenciamento ambiental em Minas Gerais que tomamos aqui, parte do entendimento de que as mesmas resultam das relações entre classes e frações de classe, disciplinando o uso e apropriação da natureza no processo de acumulação capitalista. Sigamos na apreensão destas alterações, mas cabe, antes, apreciarmos o contexto de

emergência da assim chamada “questão ambiental”.


9 “A noção de padrão de reprodução do capital surge para dar conta das formas como o capital se reproduz em períodos históricos específicos e em espaços geoterritoriais determinados, tanto no centro como na semiperiferia e na periferia, ou em regiões no interior de cada um deles, considerando as características de sua metamorfose na passagem pelas esferas da produção e da circulação […], integrando o processo de valorização […] e sua encarnação em valores de uso específicos […], assim como as contradições que esses processos geram.” (OSÓRIO, 2012, p. 40-41).

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A institucionalização da política ambiental


As origens de um marco regulatório ambiental remontam à década de 1970, quando emerge uma “questão ambiental” e, junto com ela, a necessidade de um debate sobre a constituição de instâncias supranacionais com finalidade ambiental (DUPUY, 1980; LEFF, 1994; SACHS, 2000). A “questão ambiental” foi a expressão de uma percepção segundo a qual um esgotamento dos recursos naturais se avizinhava (notadamente o petróleo), e que tal processo incorreria no comprometimento da continuidade do próprio processo de acumulação capitalista (ALTVATER, 2010).

A questão ambiental então estimulou a formulação de vias de desenvolvimento que pudessem evitar o colapso ambiental (ALTVATER, op. cit.), sem prejudicar a continuidade da exploração capitalista. Para tanto, necessário seria convencionar elementos de disciplinarização da exploração dos recursos, a serem formulados em um patamar internacional, e incorporado nos marcos regulatórios nacionais e subnacionais.

Este é o ponto fulcral da emergência ambiental no seio do capitalismo mundial: como garantir a continuidade da reprodução capitalista mesmo diante de um fator externo de instabilidade (ALTVATER, op. cit.). Portanto, conforme observou John Foster (2005), assim como Marx (2013) entendeu que a legislação trabalhista inglesa do século XIX respondeu não a uma complacência para com a classe trabalhadora, mas sim à necessidade de disciplinar a exploração da força de trabalho de tal maneira que equiparasse as condições de concorrência intercapitalista; igualmente, as restrições ambientais e a “consciência ambiental” dos agentes capitalistas deve ser entendida enquanto equiparação das condições de exploração da natureza.

Nesse contexto, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), formou- se o Clube de Roma, uma espécie de comissão internacional de especialistas que produziu o relatório denominado “Os limites do crescimento econômico”; e, em 1972, em Estocolmo, foi realizada a I Conferência Mundial sobre Meio Ambiente.

O debate travado nessa conferência chegou à noção de “desenvolvimento sustentável” como uma estratégia de desenvolvimento capitalista que supostamente seria capaz de conciliar crescimento econômico e meio ambiente. Esta noção, com todas as suas contradições, passou a balizar a questão ambiental em todo o mundo,


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aparecendo pela primeira vez de forma institucionalizada em 1987, no relatório “Nosso futuro comum”, elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. A ideia central presente neste relatório era a da compatibilização entre “desenvolvimento”, diminuição de desigualdades sociais e preservação dos recursos naturais; e, para isso, seriam necessárias medidas aplicadas pelos Estados nacionais e também medidas internacionais (LEFF, 1994; SACHS, 2000).10

Segundo Carneiro (2003), antes mesmo que a noção de “desenvolvimento sustentável” se tornasse hegemônica internacionalmente, diferentes governos adotaram ao longo da história uma série de medidas para regulamentar os usos das condições naturais, ora voltadas para a gestão ambiental, ora por motivações conservacionistas. Essas medidas, contudo, não levavam o rótulo de políticas ambientais. No Brasil, por exemplo, tais “políticas” estavam presentes desde a década de 1930, criadas no bojo do processo de industrialização do país. Ainda segundo Carneiro (2003), a maior parte das normas ambientais entre 1930 e 1964 concentrava- se nas áreas de recursos hídricos e minerais, a exemplo do Código das Águas (1934) e do Código de Minas (1940)11. O aumento de demandas ambientais em diferentes esferas governamentais influenciou uma variedade de normas e temas a serem abordados por políticas públicas (VIOLA; VIEIRA, 1992; SANCHÉZ, 2013).

Na estrutura administrativa brasileira, a primeira vez que a pauta ambiental ganhou uma forma estatal específica foi no âmbito do extinto Ministério do Interior, com a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), através do Decreto nº 73.030/1973 (IORIO, 2015). Porém, a institucionalização das políticas ambientais no Brasil ganharia impulso em 1981, com a publicação da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), que criou o Conselho Nacional de Meio Ambiente.

Em Minas Gerais os debates e movimentações institucionais para a constituição de uma política ambiental é anterior à publicação da Lei nº 6.938/81. Em meados da década de 1970 já havia se formado nesse estado uma “tecnoburocracia ambiental”, formada por engenheiros com fortes vínculos com a elite política local, conforme apontou Carneiro (2003). O discurso presente, ainda segundo este autor,


10 Sobre a crítica à noção de desenvolvimento sustentável desde o ponto de vista crítico, ver Monerat (2020).

11 Os recursos hídricos e minerais eram considerados estratégicos pelo Estado, seja para o potencial de geração de energia elétrica, seja para alavancar a indústria de base. O Código de Minas, por exemplo, se inscreve no esforço de desenvolvimento da siderurgia nacional, precedendo a criação, em 1942, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).

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centrava-se na formação de um núcleo institucional capaz de planejar e gerenciar o “desenvolvimento” de Minas Gerais no que tangia ao aproveitamento “racional” dos seus recursos naturais, sobretudo os minerais.

A estruturação político-institucional desse processo ocorreu em 1976, através da Lei nº 6.953/76, que criou a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia (SECT). Essa secretaria, embora não incluísse em sua estrutura organizacional a pasta “meio ambiente”, assumiu competências específicas relacionadas à “área ambiental” (FEAM, 1998). Em 1977, no âmbito da SECT, criou-se a Comissão de Política Ambiental (COPAM) - Decreto nº 18.466/77 -, órgão colegiado com poder deliberativo a respeito de questão ambientais no estado12.

Nos primeiros anos de sua atuação, o COPAM deu ênfase à aplicação de multas ambientais e não a processos de licenciamento ambiental como havia sido planejado, o que caracterizava a atuação dessa comissão mais como fiscalizadora do que propriamente como reguladora da política ambiental mineira. Exemplo disso é a própria Lei nº 7.772/80, que fixava as diretrizes de atuação do COPAM e que se fundamentou em uma concepção de meio ambiente que tinha como preocupação a identificação e o controle de fontes de poluição de origem industrial (FEAM, 1998).

Em meados da década de 1980, já sob os efeitos da Política Nacional de Meio Ambiente, o estado de Minas Gerais passou a edificar uma estrutura própria para tratar de questões ambientais. Essa estrutura, em boa medida, foi influenciada pela Resolução CONAMA 001/86, que normatizou o licenciamento ambiental no país. Os sistemas preexistentes que atuavam com esses processos se modificaram. Segundo Sanchéz (2013, p.99):


A avaliação de impactos não apenas se soma ao que já havia em termos de legislação. Associada ao licenciamento ambiental, a Avaliação de Impacto Ambiental exigiu a estruturação de órgãos ambientais em todos os Estados da União, e vai, paulatinamente, impor aos empreendedores privados e públicos novos requisitos para a planificação de projetos (...).


Assim, em 1983, foi criada a Superintendência do Meio Ambiente (Decreto nº 22.658/83) e, em 1988, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Decreto nº 28.163/88). Posteriormente, já influenciado pelos debates da Rio-92, o governo


12 Posteriormente, em 1987, a Comissão de Política Ambiental se transformou em Conselho Estadual de Política Ambiental (Lei nº 9.514/87).

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mineiro criou, através da Lei nº 11.903/95, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) com a seguinte estrutura: i) Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM) e Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH); ii) Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), Instituto Estadual de Florestas (IEF) e Departamento de Recursos Hídricos do Estado de Minas Gerais (DRH) (FEAM, 1998).

Cada uma dessas estruturas administrativas era responsável pelas análises dos impactos ambientais de empreendimentos de sua área. Por exemplo, ao IEF cabia avaliar impactos em intervenções sobre a vegetação e a regularização de reservas legais; ao DRH, posteriormente transformado em Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM - Lei nº 12.584/97), as análises sobre as intervenções que envolviam recursos hídricos; à FEAM, a avaliação de impactos oriundos de resíduos sólidos, efluentes líquidos e atmosférico, além de atividades industriais, minerárias e de infraestrutura. Todos estes órgãos são técnicos, isto é, responsáveis pelas análises dos documentos apresentados pelos empreendedores (Estudos de Impactos Ambientais, Relatórios de Impactos Ambientais, Planos de Controle Ambiental, etc.) (RODRIGUES, 2010; ZHOURI, et. al., 2005).

Já o COPAM e o CERH são órgãos deliberativos da política ambiental mineira, ou seja, as instâncias institucionais onde são tomadas as decisões acerca do modo como se deve dar a apropriação e uso do meio ambiente pelos empreendimentos para os quais se exigem licenciamento ambiental13.

A ideologia do “desenvolvimento sustentável”, construída desde a I Conferência Mundial sobre Meio Ambiente, balizou os debates e a própria necessidade de se institucionalizar a questão ambiental em Minas Gerais (Carneiro, 2003). Não resta dúvida que edificar uma estrutura destinada a avaliar e a debater uma política ambiental foi um avanço político. Entretanto, várias críticas aos procedimentos referentes ao licenciamento ambiental no estado foram feitas (CARNEIRO, 2005; ZHOURI, et. al., 2005; ZHOURI; ROTHMAN, 2008; CARDOSO; JUCKSCH, 2008;


13 Considerando essa estrutura, que vigorou até 2003, para que um empreendimento tivesse início ele deveria passar por três fases de licenças ambientais, quais sejam: Licença Prévia (LP); Licença Instalação (LI); e Licença Operação (LO). Cada uma delas deveria ser aprovada pelo COPAM. Este conselho, à época, possuía Câmaras Técnicas Especializadas (centralizadas em Belo Horizonte - MG) para analisar os pedidos de licença, a saber: Câmara de Atividades Industriais (CID); Câmara de Atividades Minerárias (CMI); Câmara de Atividades de Infraestrutura (CIF); Câmara de Proteção à Biodiversidade (CPB); Câmara de Atividades Agrosilvopastoris (CAP); e Câmara de Recursos Hídricos (CRH) (ZHOURI, et. al., 2005).

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VIEIRA, 2008; LASCHEFSKI, 2014; LEROY, 2014; dentre outros). Tais críticas referem-se à oligarquizarão do campo ambiental, em especial do COPAM, à ausência ou dificuldade de participação das comunidades afetadas por grandes empreendimentos e a problemas procedimentais em relação às análises técnicas dos Estudos de Impacto Ambiental e seus respectivos Relatórios de Estudos Ambientais (EIA/RIMA).

Nesse contexto, Zhouri et. Al. (2005) argumentaram que o licenciamento ambiental em Minas Gerais deixou de cumprir sua função de ser um instrumento de avaliação da sustentabilidade socioambiental de um empreendimento, que deveria levar em conta suas implicações políticas, técnicas, sociais e ambientais; e se tornou um meio de atender as demandas que atribuem ao meio ambiente um caráter de recurso material a ser explorado economicamente. Essa argumentação revela que os órgãos ambientais no estado funcionam como um grande “cartório”, isto é, como um procedimento burocrático no qual os órgãos técnicos e deliberativos apenas conferem se a “papelada” foi entregue corretamente e se foi identificada alguma “pendência” a ser mitigada ou compensada, não havendo, portanto, análises técnicas ou preocupadas com aspectos socioambientais.

Ainda segundo Zhouri et. al. (2005), essa crença nos ajustes tecnológicos, através de medidas mitigadoras e compensatórias, cumpre a função de viabilizar e adequar o meio ambiente aos empreendimentos, o que levou esses autores a entender que o licenciamento ambiental em Minas Gerais é regido por um “paradigma da adequação ambiental”. Ou seja:


(...) como procedimento desenhado a partir de um paradigma de desenvolvimento sustentável que, depositando fé nos arranjos tecnológicos como soluções para os problemas ambientais, busca adequar sociedades e meios ambientes à lógica econômica acumulativa (ZHOURI, et. al., 2005, p. 112).


Entre a Lei nº 11.903/95, que de fato institucionalizou o licenciamento ambiental em Minas Gerais, até a presente data, muita coisa mudou, tanto em termos de organograma da SEMAD, como no que se refere aos tipos e procedimentos para licenciar um empreendimento potencialmente poluidor/degradador do meio ambiente. E, concordando com Zhouri et. al. (2005), podemos dizer que essas mudanças acentuaram o paradigma da adequação ambiental na política ambiental mineira,


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flexibilizando ainda mais o licenciamento ambiental no estado aos anseios da acumulação capitalista.


Alterações e “inovações” institucionais no licenciamento de grandes empreendimentos em Minas Gerais


A organização da SEMAD descrita no tópico anterior vigorou até 2003, quando, através da Lei Delegada nº 62/2003, se estabeleceu a regionalização das avaliações de impacto ambiental e da concessão das licenças, através das Unidades Regionais Colegiadas (URC) do COPAM com o assessoramento das Superintendências Regionais de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SUPRAM)14. Essa descentralização provocou modificações na avaliação dos processos de licenciamento em Minas Gerais (RODRIGUES, 2010; SANTOS; BORGES, 2017). Nesse contexto, à SUPRAM caberia subsidiar tecnicamente e juridicamente as análises da URC correspondente. À esta caberia o poder deliberativo de deferir ou não um pedido de licença ambiental feito para um determinado empreendimento no âmbito de sua região de atuação.

Segundo Santos e Borges (2017), esse processo de descentralização dos procedimentos de análises e deliberações a respeito do licenciamento em Minas Gerais se destacou no cenário nacional por ser considerado democrático e participativo, garantindo a representatividade da sociedade civil local nas URC’s15. Entretanto, conforme Zhouri et. al. (2005), mesmo sendo pioneiro e, certa maneira, referência para outros estados, os problemas referentes à participação social nessas instâncias deliberativas que são de ordem procedimental e político-estrutural persistiram. Assim, para estes autores, o licenciamento ambiental com essas alterações continuava hierarquizado, prevalecendo determinadas representações hegemônicas sobre o meio ambiente.


14 Ao todo, haviam nove SUPRAM distribuídas de acordo com as regiões administrativas do estado de Minas Gerais e com sedes nos seguintes municípios: Belo Horizonte (SUPRAM - Central Metropolitana), Divinópolis (SUPRAM - Alto São Francisco), Diamantina (SUPRAM - Jequitinhonha), Governador Valadares (SUPRAM - Leste Mineiro), Montes Claros (SUPRAM - Norte de Minas), Varginha (SUPRAM - Sul de Minas), Uberlândia (SUPRAM - Alto Paranaíba), Ubá (SUPRAM - Zona da Mata) e Unaí (SUPRAM - Noroeste de Minas).

15 A composição das UCR’s seguia a proporção de 50/50, a mesma do COPAM, ou seja, 50% representantes do estado e 50% da sociedade civil.

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Essa estrutura “descentralizada” da SEMAD no que se refere à análise e deliberação de procedimentos referentes ao licenciamento ambiental e às concessões de licenças no estado vigorou até 2016, quando, através da Lei nº 21.972/16, dos decretos estaduais nº 46.953/16 e nº 47.042/16 e da Deliberação Normativa (DN) do Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais (COPAM) nº 217/17 muita coisa mudou novamente.

Com os decretos, em especial o nº 46.953/2016, a composição dos conselhos deliberativos da política ambiental de Minas Gerais se alterou. No COPAM, por exemplo, o decreto retirou a cadeira do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), cabendo a ele apenas um assento na Câmara Recursal (CNR). A representação paritária foi mantida, entretanto, foi assegurada a participação dos setores produtivos nas Câmaras Técnicas Especializadas (CTE)16, que, junto com os representantes governamentais, têm maioria numérica (MILANEZ et. al., 2019a).

Essa modificação retirou o poder de participação das populações atingidas por grandes empreendimentos, uma vez que, além de garantir apenas um assento no COPAM que pode as representar, sua participação in loco em reuniões ficou comprometida, já que a capital mineira, não raro, fica a mais de 400 km de determinadas localidades ameaçadas por grandes obras. Isso, com efeito, comprometeu a participação popular e mesmo a democracia aparentemente em vigor nos processos de licenciamento em Minas Gerais.

Outra modificação, posta com o Decreto Estadual nº 47.042/16, foi considerada uma “inovação”, a saber: a criação da Superintendência de Projetos Prioritários (SUPPRI) na Subsecretaria de Regularização Ambiental (SURAM) (figura 1).

A SUPPRI tem papel de analisar processos de licenciamento de empreendimentos ou atividades consideradas prioritárias em razão da sua relevância para a proteção ambiental ou para o desenvolvimento social e econômico de Minas Gerais17. Essa superintendência pode, portanto, interferir no licenciamento de


16 As CTE, que haviam sido substituídas pelas URC “regionalizadas”, voltaram à cena com a Lei nº 21.972/16, com nova centralização em Belo Horizonte - MG.

17 Segundo Milanez et. al., 2019a, no âmbito da SUPPRI, os projetos são definidos como prioritários pelo Grupo de Coordenação de Políticas Públicas de Desenvolvimento Econômico Sustentável (GCPPDES), composto por cinco secretarias de governo, pelo Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG), Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (CODEMIG), Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais (INDI) e coordenado pela Secretaria da Fazenda. A composição do GCPPDES majoritariamente com representantes do governo ou de órgãos ligados ao Poder Executivo estadual revela que sua unidade é facilmente obtida “a partir de cima”.

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empreendimentos que o governo do estado tenha interesse manifesto, “agilizando” trâmites ou mesmo enviando pareceres técnicos sobrepostos aos da SUPRAM.

Essa “inovação” institucional, a nosso ver, criou um meio de flexibilizar o licenciamento de grandes empreendimentos em Minas Gerais, com destaque para os do setor minerário. Por exemplo, Bertoni (2019) mostrou que, entre 2016 e 2018, mais de um quarto dos projetos classificados como prioritários pelo governo de Minas Gerais eram de mineradoras, sobretudo da Vale S.A., entre eles a barragem B1 do Complexo Minerador Córrego do Feijão em Brumadinho (MG), que veio a se romper em janeiro de 201918 (MILANEZ et. al., 2019a).

A DN nº 217/2017 do COPAM também ensejou significativas alterações no licenciamento ambiental em Minas Gerais. Ela colocou, entre outras coisas, novas modalidades de licenciamento às quais estariam sujeitos os empreendimentos, alterou as classes segundo porte e potencial poluidor/degradador e incluiu critérios locacionais que interferem na classificação dos mesmos.

Em relação às modalidades de licenciamento, as alterações se deram na substituição da Autorização Ambiental de Funcionamento (AAF) pelo Licenciamento Ambiental Simplificado (LAS) para empreendimentos de pequeno porte e potencial poluidor/degradador.


18 Conforme Parecer Único Nº 0786757/2018 SUPPRI/SURAM/SEMAD, em 10 de janeiro de 2017 foi realizada a 18ª reunião do Grupo de Coordenação de Políticas Públicas de Desenvolvimento Econômico Sustentável, na qual foi apresentado pelo Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais (INDI), para deliberação de prioridade, o projeto Córrego do Feijão, do empreendedor Vale S.A, conforme determinam o §1º do art. 5º da Lei 21.972/2016 e a Deliberação GCPPDES Nº 1, DE 27 de março de 2017.

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SEMAD

IEF

FEAM

IGAM

ARSAE-MG

Assessoria de

comunicação social

COPAM

CERH-MG

Assessoria de

gestão regional

Gabinete

Controladoria

setorial

Assessoria

estratégica

Secretaria

executiva

Assessoria

jurídica

SUGES

SUFIS

SURAM

SUTAF

SUPPRI

SGDP

SUAFI

STI


SUPRAMs


SUGA


SUSAB


Superintendência de fiscalização


SUARA


Superintendência de controle processual

Figura 1. Organograma da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), 201619.




19 IEF – Instituto Estadual de Florestas; IGAM – Instituto Mineiro de Gestão das Águas; FEAM – Fundação Estadual do Meio Ambiente; COPAM – Conselho Estadual de Política Ambiental; CERH- MG – Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais; ARSAE-MG – Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Estado de Minas Gerais; SUFIS – Subsecretaria de Fiscalização Ambiental; SUGES – Subsecretaria de Gestão Ambiental e Saneamento; SURAM – Subsecretaria de Regularização Ambiental; SUTAF – Subsecretaria de Tecnologia, Administração e Finanças; SUSAB – Superintendência de Saneamento Básico; SUGA – Superintendência de Gestão Ambiental; SUARA – Superintendência de Apoio à Regularização Ambiental; SUPPRI – Superintendência de Projetos Prioritários; SGDP – Superintendência de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas; SUAFI – Superintendência de Administração e Finanças; STI – Superintendência de Tecnologia da Informação; SUPRAMs – Superintendências Regionais de Meio Ambiente.


15

Já o Licenciamento Ambiental Trifásico (LAT) para grandes empreendimentos, o “licenciamento clássico”, com expedição sucessivas das licenças Prévia (LP), de Instalação (LI) e de Operação (LO), passou a ser possível simultaneamente em apenas uma única fase por meio do Licenciamento Ambiental Concomitante (LAC)20. Além disso, foi possível, tal como descrito no PL nº 3.729/04, a Licença Ambiental Corretiva (LOC), que regulariza empreendimentos que não possuem licença para operar ou que avançaram sobre determinadas áreas e, só depois, “resolveram” licenciar, seja em função de novas necessidades de instalações, seja por conta da fiscalização dos órgãos ambientais.

No que diz respeito às classes dos empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental, a DN nº 217/17 do COPAM alterou ainda os critérios de risco de alguns empreendimentos, permitindo, inclusive, redução de etapas de licenciamento ambiental e reclassificação dos mesmos em termos de potencial poluidor/degradador. Assim, ao invés de passarem obrigatoriamente pelo LAT, grandes empreendedores poderiam obter as licenças ambientais concomitantemente (MILANEZ et. al., 2019a). Todavia, a aplicação desse arranjo está sujeita à discricionariedade da SUPPRI. Nos termos da Lei nº 21.972/2016 e do Decreto Estadual 47.042/2016, caso este órgão considere o empreendimento prioritário, a avaliação técnica é feita pela sua própria equipe e a decisão tomada por uma das Câmaras Técnicas do COPAM, em Belo Horizonte, independentemente de qual regional da SUPRAM foi protocolado

o Formulário de Caracterização do Empreendimento (FCEI).

Em síntese, o que estamos argumentando a partir dessa exposição é que a sequência de alterações legais e institucionais ocorridas no estado a partir de 2016 reduziu o rigor no processo de licenciamento ambiental. Essa diminuição do poder institucional deve ser considerada um fator importante na redução da capacidade de os órgãos de controle ambiental analisarem mais detalhadamente condições de elevação de riscos dos empreendimentos, e uma elevação do poder corporativo do capital.

Nas recentes alterações do marco regulatório ambiental em Minas Gerais fica ainda mais explícito as “relações perigosas” entre capital e normativa ambiental. Neste


20 Na modalidade LAC, segundo DN COPAM nº 217/2017, a licença é emitida conforme os seguintes procedimentos: i) análise, em uma única fase, das etapas de LP, LI e LO da atividade ou do empreendimento, denominada LAC1; ou ii) análise, em uma única fase, das etapas de LI e LO do empreendimento, com análise posterior da LO; ou ainda, análise da LP com posterior análise concomitante das etapas de LI e LO do empreendimento, denominada LAC2.

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processo ficou evidente a atuação direta da Vale S.A. no desenho do marco regulatório. É crescente a literatura crítica no campo ambiental brasileiro que relaciona força econômica de grandes corporações e força política não só para alterar leis e normas ambientais, como também influenciando nos planejamentos territoriais, assegurando condições mais favoráveis para sua produção e apropriação de valor (MILANEZ et. al.; 2018; LASCHEFSKI, 2019).

O gráfico 1, por exemplo, mostra um aumento exponencial das licenças concedidas à empreendimentos de mineração, justamente após a vigência das leis e decretos analisados, em especial, a DN COPAM nº217/17. Nele, é possível ver que foi a partir de 2018, quando a Instrução de Serviço SISEMA nº 01/2018 que definiu os procedimentos para a aplicação da DN COPAM que houve grande aumento na concessão de licenças ambientais para a mineração21.


800

723

700

683

600

535

500

436

400


300

200 153


100

63

47

35

60

0

2013

2014

2015

2016

2017

2018

2019

2020

2021

Gráfico 1. Minas Gerais: licenças deferidas para empreendimentos de mineração, 2013-2021


Fonte: Sistemas SEMAD, 2021/Infraestruturas de dados espaciais (IDE). Data: 21/11/2021.


A atuação dessas corporações na interferência em processos de regulação ambiental se dá através de lobbies e coalizões políticas, como financiamento de campanhas eleitorais, por exemplo, mas por outras vias como a dimensão ideacional e a própria necessidade que os governos têm de alcançar índices de desenvolvimento econômico, o que depende do resultado econômico das próprias corporações (MILANEZ, et. al., 2019b).


21 É importante destacar que nesse gráfico estão representados todas as licenças concedidas e todos os tipos de empreendimentos de mineração, dos mais simples (brita, cascalho, areia, etc.) aos mais complexos (minério de ferro, bauxita, etc.).

17

O caso da atuação da Vale S.A junto à reformulação do licenciamento ambiental em Minas Gerais é um exemplo lapidar disso. Segundo matéria de Maurício Ângelo (2019), no portal Repórter Brasil, quatro representantes da empresa foram recebidos em 2014 por dois servidores da SEMAD na própria sede da empresa em Belo Horizonte. Segundo a matéria, na oportunidade, os representantes da empresa “sugeriram” à SEMAD algumas alterações na legislação ambiental, como um licenciamento único, em substituição ao trifásico. Conforme se viu na seção anterior, esta mudança se efetivou em 2017, com a publicação da DN COPAM nº 217/17. Note- se que a simplificação da licença ambiental produziu efeitos imediatos e trágicos, com o licenciamento da mina do Córrego de Feijão, no município de Brumadinho.


Considerações finais


Nas últimas duas décadas, a legislação ambiental brasileira, de modo geral, e o processo de licenciamento ambiental, em específico, têm sido foco de intensos debates. Tais contendas envolvem ambientalistas, pesquisadores e entidades representativas dos setores industrial, mineral e do agronegócio, e são inflamadas, principalmente, por Projetos de Lei (PL) que tramitam no Congresso Nacional, a exemplo do PL nº 3.792/2004 conhecido como “Lei Geral do Licenciamento Ambiental” e que foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 13 de maio de 2021.

A partir do que foi visto, podemos dizer que as alterações no processo de licenciamento ambiental em Minas Gerais deflagradas através da Lei nº. 21.972/16, os decretos estaduais nº 46.953/16 e nº 47.042/16 e a DN nº 217/17, respondem aos imperativos da acumulação capitalista a partir de um bloco no poder que encampa um padrão de acumulação fortemente arraigado no uso intensivo da natureza enquanto recurso.

Para tanto, a agilidade e facilidade que o novo marco regulatório confere ao processo de licenciamento facilita a apropriação da natureza a preços baratos no processo de acumulação capitalista. O estado de Minas Gerais ganha um destaque na apreensão deste padrão de acumulação por ser, juntamente com o Pará, os dois principais eixos da mineração no país.


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