1
V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
O EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO DE NOVO TIPO E SEUS AGENTES: O
EMPRESARIADO EDUCACIONAL DO TEMPO PRESENTE
1
Maria Carolina de Andrade
2
Vânia Motta
3
Resumo
O artigo aborda o conceito de empresariado educacional construído a partir de pesquisa de cunho
documental-bibliográfico. Demonstramos que o conceito apresenta uma carga explicativa que
transcende a mera compreensão de um “conjunto de empresários”, clareando a complexidade e a
necessidade da luta organizada contra a hegemonia desse grupo na educação. Abordamos sua
trajetória em geral e na educação ao longo do século XX, pontuando as diferenças para seu modelo
atual e mostramos que a tragédia genocida agravada pelo governo atual lhe oferece uma nova
oportunidade de fortalecimento político.
Palavra-chave: Empresariado; Empresariamento da educação de novo tipo; Política educacional
EL EMPREENDIMIENTO EDUCATIVO DE NUEVO TIPO Y SUS AGENTES: EL EMPRENDIMIENTO
EDUCATIVO DE LA ACTUALIDAD
Resumen
El artículo aborda el concepto de emprendimiento educativo construido a partir de la investigación
documental-bibliográfica. Demostramos que el concepto tiene una carga explicativa que trasciende la
mera comprensión de un “conjunto de emprendedores”, aclarando la complejidad y necesidad de una
lucha organizada contra la hegemonía de este grupo en la educación. Abordamos su trayectoria en
general y en la educación a lo largo del siglo XX, señalando las diferencias con su modelo actual y
mostrando que la tragedia genocida agravada por el actual gobierno les ofrece una nueva oportunidad
de fortalecimiento político.
Palabra clave: Emprendimiento educativo; Emprendimento educativo de nuevo tipo; Politica educativa
THE EDUCATIONAL ENTREPRENEURSHIP OF A NEW TYPE AND ITS AGENTS: THE
EDUCATIONAL ENTREPRENEURSHIP OF THE PRESENT TIME
Abstract
The article approaches the concept of educational entrepreneurship built from documentary-
bibliographic research. We demonstrate that the concept has an explanatory charge that transcends the
mere understanding of a “set of entrepreneurs”, clarifying the complexity and need for an organized
struggle against the hegemony of this group in education. We approach their trajectory in general and
in education throughout the 20th century, pointing out the differences to their current model and showing
that the genocidal tragedy aggravated by the current government offers them a new opportunity for
political strengthening.
Keyword: Entrepreneurship; New type education entrepreneurship; Educational politics
1
Artigo recebido em 03/05/2022. Primeira Avaliação em 07/06/2022. Segunda Avaliação em 04/06/2022. Aprovado
em 06/07/2022. Publicado em 21/07/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.54290.
2
Maria Carolina de Andrade é doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
professora da rede privada de Educação Básica. E-mail: carolina.andradep@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4504-5793. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7385344808311775.
3
Vânia Cardoso da Motta é doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
docente na Faculdade de Educação da mesma universidade. E-mail: vcmotta@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/901939580750828. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8286-0808.
2
Introdução
Empresariamento da educação” é um termo assombroso para todos aqueles
que defendem um modelo de educação pública financiada pelo Estado em sentido
estrito; de qualidade socialmente referenciada, laica, equânime e de algum modo
emancipatória. Malgrado as lutas históricas em torno do tema, o período de
redemocratização no Brasil é especialmente pulsante: sentia-se a necessidade
candente de erigir um modelo educacional radicalmente distinto daquele edificado
pela ditadura empresarial militar, cujas dualidade, privatização e precariedade foram
marcas notáveis.
Apesar da luta organizada dos trabalhadores da educação sobretudo via
Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP) em 1987 e de sua forte
presença na agenda política da Constituinte, o empresariado educacional, ao que se
dedica esse texto, soube aproveitar muito bem as legislações ambíguas e
minimalistas provenientes da coalizão de interesses em torno da Constituição Federal
de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996. Desprezando-se
qualquer tipo de relativização da realidade e da verdade, atentamos para o fato de
que, nesses últimos trinta anos, a concretude insiste em teimar com as mágicas
soluções liberais, propostas por essa fração, no seio da educação brasileira.
A despeito dos inúmeros assim chamados projetos, parcerias, prêmios,
reformas, cursos, avaliações e outros, a educação escolar no Brasil parece agradar a
nenhuma das várias concepções de qualidade educacional. Noutros termos, em
suma, parece que o modelo educacional no Brasil não agrada nem aos conservadores
(sobretudo pelas questões ideológicas no sentido amplo do termo); nem aos liberais,
que, em tese, esperam da escola trabalhadores competentemente produtivos, seja no
ramo que for; e menos ainda aos trabalhadores da educação que, exauridos e
adoecidos, são impedidos, consentida ou coercivamente, de oferecer aos seus alunos
a escola que gostariam. Enfim, a realidade escolar permanece apresentando os
índices altíssimos de evasão, repetência, dificuldades de aprendizagem, violência,
precariedade, desigualdade, adoecimento, dentre outros sintomas quadro que, na
esfera da aparência, também parece ser inaceitável por parte do empresariado
educacional.
3
Embora o quadro descrito retrate a realidade educacional hodierna, ele forma
um todo caótico que deve ser interpelado. As características acima descritas não
seriam precisamente sintomas da educação escolar empresariada?
Empresariamento da educação significa, apenas, uma educação escolar erigida e/ou
comandada por empresários? Se as ações dos empresários sobre a educação têm
gerado efeitos opostos aos proclamados por eles mesmos como a realidade
imediata grita aos quatro ventos, diga-se de passagem , por que continuam a
reivindicar o campo para si? Quem são esses empresários? Entre tais empresários e
os chamados conservadores, existe uma divergência realmente radical? Em
contraposição a esse modelo, qual é o outro possível?
A realidade multiplamente determinada e altamente reificada exige um esforço
além de compreensão. Sem qualquer intuito de responder todas as perguntas acima
e sequer algumas poucas de modo permanente discorreremos sobre o tema. Por
acreditarmos que os erros de apreensão teórica podem conduzir a erros táticos
concretos, o foco principal deste texto é abordar o conceito de empresariado
educacional e suas características hodiernas, dado que é este grupo o protagonista
do processo de empresariamento da educação de novo tipo.
Embora tenhamos desenvolvido detalhadamente o conceito em trabalhos
anteriores (ANDRADE, 2020), é importante ter claro que o empresariamento da
educação de novo tipo combina suas características histórico-estruturais a
mercantilização e a mercadorização da educação aos pontos sinapomórficos do
bloco histórico neoliberal. Ao nosso ver, é precisamente aqui que o empresariado
educacional conquista e exerce hegemonia no campo educacional, tornando-se
agente fulcral do aprofundamento do mercado educacional, da subsunção da
educação à lógica da mercadoria e da sua submissão direta ao controle do
empresariado. Desenvolver esse argumento é nervura axial nesse texto.
Na primeira parte, fazemos uma breve retrospectiva da movimentação dos
empresários ao longo do século XX, tendo como marco final a constituição da Nova
República. Na segunda, apresentamos o ponto de inflexão na composição do
empresariado educacional, qual seja, a consolidação do bloco histórico neoliberal no
Brasil, demonstrando algumas formas de atuação desse empresariado no tempo
presente. Na terceira parte explicitamos, com base em Gramsci, a noção de
empresariado educacional como bloco social hegemônico. Por fim, concluímos que
4
esse empresariado educacional enxerga no governo Bolsonaro, ao contrário do que
muitos propõem, uma forma de robustecer sua força política.
O Empresariamento da educação e o empresariado no Brasil: cem anos de
história
A participação dos empresários na escola e nas políticas educacionais não é
uma característica exclusiva da história hodierna, e o século XX ilustra isso. No que
tange à organização empresarial de modo geral, em 1904 o Centro Industrial do Brasil
já representava os industriais. Às vésperas da Revolução de 1930, com a criação das
entidades regionais, consolida-se uma estrutura de representação de interesses do
empresariado. A partir de tais aparelhos, o empresariado, sob forte liderança do
empresário-intelectual orgânico Simonsen, reivindica um Estado forte, protecionista e
altamente interventivo em todas as esferas da vida social (DINIZ, 2010).
No que concerne à intervenção nas políticas educacionais, os trabalhos de
Rodrigues (1998; 2007) são de alta relevância. O autor demonstra como, desde a
década de 1930, a classe dominante disputa um projeto pedagógico hegemônico,
defendendo uma educação pautada pelas necessidades do mercado industrial. A
Confederação Nacional da Indústria (CNI), criada na década de 1930, explicitava a
movimentação efetiva de uma parcela da burguesia industrial no sentido de planejar
suas diretrizes, a fim de ‘formar os homens que o Brasil necessita’.
Outrossim, já nessa época, o projeto educacional transcendia o aspecto físico-
cognitivo: às vésperas do início da guerra fria e no contexto de agitação social, a CNI,
à frente do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e do Serviço Social
da Indústria (SESI), afirmava publicamente que era preciso “ir mais além da simples
oferta de empregos, salários e qualificação profissional”, sendo “indispensável ganhar
a luta ideológica no chão da fábrica, demonstrando a superioridade do capitalismo no
dia-a-dia” (RODRIGUES, 2007, p. 168-169).
Cunha (2014, s./p.) assevera que aspectos da “submissão da educação à
simbiose Estado/capital” podem ser observados na década de 1930, sobretudo no
âmbito do Manifesto dos Pioneiros de 1932. De acordo com o autor, à época estava
revelado “o embate existente na educação brasileira e no mundo capitalista, na
verdade, sobre os interesses do público e do privado na educação” e a coexistência
5
do sistema público e privado “que à época estava escondido por trás da filantropia”
(CUNHA, 2014, s./p.).
Nesse sentido, são vários os trabalhos que demonstram a atuação histórica e
sistemática dos empresários na definição de projetos e estratégias para assegurar
seus interesses na sociedade brasileira, como o de Diniz (2010). Para as autoras, os
empresários industriais revelaram ao longo do tempo alta capacidade de mobilização
política e ação prática em defesa de seus interesses específicos, não sendo de
primeira importância o regime político a ser apoiado. Fossem ditaduras ou
democracias, o empresariado integrou diferentes coalizões e se manteve como
importante figura de sustentação política, inclusive, do assim chamado nacional-
desenvolvimentismo.
É o que nos mostra também o comportamento empresarial no bojo do golpe de
1964 e do projeto educacional da ditadura empresarial militar, sempre visando os seus
interesses mais imediatos e particulares. De acordo com Bianchi (2001, p.125-126), a
“ideia, muito difundida, da escassa participação política do empresariado perde muito
de sua força com a análise de seu papel nos processos políticos que tiveram lugar
nos anos 1960”. No contexto de agitação social e de polarização ideológica mundial,
o empresariado não hesitou em robustecer seu comportamento conservador e a
repressão violenta sobre os trabalhadores. Para a educação escolar,
são notórios os desejos do empresariado de i) ampliar a educação
como esfera de negócios, isto é, como nicho concreto de mercado e
de acumulação de capital, contando com o apoio do Estado estrito
nesse processo; ii) manter um vínculo entre educação escolar e
trabalho, fazendo com que a educação básica confira à massa de
jovens brasileiros competências gerais e específicas requeridas pelo
mercado de trabalho integrado por atividades industriais relativamente
estáveis, balizadas pelo modelo taylorista/fordista de produção; iii)
construir e qualificar o seu exército de reserva, com consciente intuito
de forçar os salários para baixo e iv) reservar o acesso ao ensino
superior para a pequena parcela destinada ao exercício de funções de
maior calibre intelectual e tecnológico. [...]. (ANDRADE, 2020, p. 270).
Importante destacar que os interesses empresariais na educação antecedem o
período ditatorial, mas é fato que o regime muito favoreceu especialmente a iniciativa
privada, e nesse sentido as privatizações propriamente ditas. Isto não porque as
Forças Armadas fossem privatistas ou empresariais, mas porque os próprios
articuladores do golpe tinham afinidades político-ideológicas com o empresariado
6
industrial inclusive no que tange ao projeto da primeira Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, aprovado em 1961, que já favorecia enormemente os interesses privados.
De acordo com Cunha (2007, p. 363), a ampliação das camadas médias
propiciou uma “clientela ávida de escola privada, não como símbolo de status
prestigioso, mas, também, como alternativa para o ensino público que se deteriorava
a cada ano, justamente por força das políticas elaboradas e implementadas pelos
empresários do ensino e seus prepostos”. Nesse sentido, aprofundaram-se e
diversificaram-se os mecanismos de apoio aos empresários no âmbito educacional:
“imunidade fiscal, garantia de pagamento das mensalidades pelos alunos (...). Não
bastassem os recursos transferidos às escolas privadas, (...) a acumulação de capital
no campo educacional foi fortemente favorecida pela reforma tributária do primeiro
governo militar” (CUNHA, 2007, p. 364).
Vale ainda comentar brevemente o papel do Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (Ipes) organização de extrema direita fundada por empresários vinculados
à mineração e à Light tanto na articulação do golpe quanto na política educacional.
No mesmo ano do golpe, o Ipes organizou materiais e eventos para defender e discutir
a educação como vetor do desenvolvimento econômico e como investimento
destinado à asseguração da renda. A Teoria do Capital Humano (TCH)
4
, que até hoje
embasa as ilustres formulações e soluções empresariais para os problemas da
educação brasileira, foi enormemente difundida pelo Instituto: à escola primária
caberia a capacitação para a atividade prática; o Ensino Médio prepararia profissionais
necessários ao desenvolvimento econômico e social do país e ao Ensino Superior
caberia a formação qualificada dos intelectuais e dirigentes.
O legado da ditadura para a educação brasileira, a que se referem
Cunha (2007), Saviani (2008) e Leher (2010), corroborou o auspício
gerado pelas características das reformas do período o obtuso
tecnicismo calcado na TCH, a diminuição real e significativa dos
recursos destinados à educação pública, a vinculação explícita da
educação pública aos interesses e necessidades do mercado e a
relativização do princípio da gratuidade do ensino, pari passu ao
favorecimento da privatização. Esta última abarcou desde
4
A TCH foi formulada por Schultz, na década de 1950. O assim chamado “capital humano” é um fator
da produção tal como os outros fatores de capital alocados nessa esfera. Na realidade, esse “fator
humano” seria tanto mais capaz de potencializar os chamados “insumos de mão-de-obra” (...) quanto
mais desenvolvido fosse. Tal tese criou uma base argumentativa segundo a qual os conhecimentos, as
habilidades e as atitudes adequadas e qualificadas do trabalhador gerariam benefícios e assim
diferenças em termos de desenvolvimento, renda e qualidade de vida para todos. (...). (ANDRADE,
2020, p. 272-273).
7
mecanismos diretos, como aumento real dos privilégios fiscais
concedidos às instituições privadas, que funcionaram como uma
verdadeira mola propulsora da acumulação de capital nessa esfera, a
elementos indiretos, como a recomendação aos governos estaduais,
por parte do governo federal, que evitassem a criação de
estabelecimentos públicos de ensino “onde as escolas privadas
fossem consideradas suficientes para absorver a demanda efetiva ou
capazes de expandir a oferta para atender à demanda contida”
(CUNHA, 2007, p. 365). É nesse sentido que, para Saviani (2008, p.
301), no período ditatorial o governo se aliou ao empresariado sem
qualquer exigência de patamares ou padrões razoáveis de qualidade
educacional: [as instituições privadas] “ensinam mal, acumulam
dívidas e são salvas pelo governo”. (ANDRADE 2020, p. 273).
No âmbito geral, a despeito do aparente jogo de ganha-ganha, os conflitos não
tardaram a aparecer. Autores como Bianchi (2001) e Diniz (2010) discorrem sobre o
processo sinuoso e conflituoso pelo qual grande parcela do empresariado deslocou,
progressivamente, apoio à liberalização política e à instauração da ordem
democrática. Nesse sentido, vários fatos desse processo indicam que tal
deslocamento do empresariado foi motivado não apenas por uma insatisfação
econômica, mas também política; não se tratava apenas da crise econômica
generalizada e das quedas nas taxas de lucro, mas, também, do crescente
afastamento dessa fração dos centros de poder e decisão, além da não aceitação da
condição de subalternidade que, em alguns aspectos, lhe foram impostas.
Andrade (2020), com base em Fontes (2010), discorre com detalhes sobre a
movimentação dos empresários no bojo da “distensão lenta, gradual e segura”,
demonstrando como o período foi palco de profusos e profundos eventos e de uma
colossal complexificação da sociedade civil. As entidades empresariais se
multiplicavam exponencialmente; as crises internas nas antigas organizações pelas
quais o empresariado acessava o aparelho estatal e participava da definição de
políticas também se expandiam e deixavam claro a ausência de um consenso em
termos de o que fazer diante da crise econômica, política e social.
Do outro lado da trincheira malgrado a constância das lutas populares ao
longo de todo o século XX, mesmo diante da beligerância e da repressão permanente
da classe dominante brasileira , construíam-se robustas organizações contra-
hegemônicas e se desenhavam alternativas anticapitalistas, ainda que nas balizas da
ordem.
8
A organização dos trabalhadores foi sincronicamente acompanhada
pela reorganização das trincheiras erigidas pela classe dominante e
pela multiplicação de seus aparelhos de hegemonia, sobretudo
empresariais nascidos das cisões de organizações existentes e
da imperatividade de recalibrar o nexo força-consenso sob a auréola
da democracia, convencendo os trabalhadores de que este regime
poderia tornar a vida mais amena e humanizar o capitalismo, desde
que os esforços coletivos caminhassem nessa direção (ANDRADE,
2020, p. 276 grifo nosso).
Assim se seguem as lutas em torno da Constituinte na luta travada entre
católicos, empresários, trabalhadores e outras frações organizadas. Torna-se visível
neste período, por um lado, a permanente exigência por parte dos empresários de
materialização dos seus anseios nas ações governamentais; por outro, o fato de que,
de algum modo, paira sobre as classes dominantes um tipo de “temor pânico”, a que
se refere Florestan Fernandes, a respeito da movimentação organizada da classe
dominada.
Enquanto internacionalmente se consolidava o Consenso de Washington
(1989), e com ele o padrão de supremacia e do regime de acumulação intrínsecos ao
bloco histórico neoliberal (CASTELO, 2011), no Brasil, sentia-se fortemente a
necessidade de reconstruir um modelo de sociedade radicalmente distinto do período
anterior. Especialmente no âmbito escolar, para os trabalhadores, tratava-se de
destruir por completo o modelo educacional da ditadura militar: privatista, excludente,
repressivo, desigual, precário. Para os empresários industriais, urgia a necessidade
de, para retomar as taxas de lucro, readequar a força de trabalho às mudanças no
mundo do trabalho. Outrossim, de cimentar socialmente as mudanças estruturais e
superestruturais em curso, a despeito da luta dos educadores contra os
desdobramentos da nóxia política educacional da ditadura militar.
Para a classe dominante, no então mercado globalizado, restrito e competitivo,
uma educação de qualidade seria aquela que oferecesse ao indivíduo as
competências que lhe garantiriam a empregabilidade. Noutros termos, o indivíduo
deveria se tornar capaz, via escolaridade, de disputar posições mais competitivas no
mercado de trabalho. Consegui-las ou não dependeria de inúmeras variáveis: da sorte
aos próprios méritos, perpassando a capacidade individual de desfrutar das
oportunidades, em tese, igualmente oferecida a todos.
9
No limiar da década de 1990, a mencionada CNI pautava um novo télos
5
para a educação brasileira. Como demonstra Rodrigues (1998), a CNI formulou e
reformulou los ao longo da história, que serviram como fins para os quais deveria
ser direcionada a política educacional. Ainda na década de 1930, a CNI erige o télos
da “Nação industrializada”; na década de 1960, diante da consolidada industrialização
e do não cumprimento das promessas vinculadas a essa imagem, a CNI
metamorfoseia o télos para “pais desenvolvido”. Não bastava a industrialização: para
que toda a população pudesse desfrutar de melhores condições de vida, o país
deveria ser capaz de “superar a etapa do subdesenvolvimento”
6
.
No limiar da década de 1990, diante da negação concreta do télos “país
desenvolvido”, isto é, da não superação das péssimas condições de vida dos
trabalhadores e da manutenção das enormes desigualdades regionais, econômicas e
sociais, a CNI promove uma nova metamorfose teleológica. No seio da transição do
nexo estrutura-superestrutura, a CNI elege o télos da “economia competitiva” e segue
em busca da reformulação correspondente de toda a sociedade, “perseguindo a
conformação do Estado brasileiro à sua imagem e à novas necessidades”, cuja
estratégia central é integrada pela “reestruturação produtiva, a flexibilização das
relações de trabalho e a redefinição do sistema educacional brasileiro” (RODRIGUES,
1998, p. 133).
Para a CNI, a educação é uma variável essencialmente econômica, alvo de
uma “lógica adequacionista” às necessidades produtivas, sendo uma vertente
fundamental do crescimento econômico. No Brasil, a educação seria um ponto de
estrangulamento na busca por competitividade, de modo que a permanência do
analfabetismo, a baixa escolarização e o afastamento entre educação e as
verdadeiras necessidades geradas nas atividades econômicas seriam entraves
permanentes à produtividade e à competitividade desta derivada.
5
Por télos, entende-se uma imagem construída pela classe dominante, que vem a ser transformada
em meta a ser perseguida a todo custo pelo conjunto da sociedade brasileira. A trajetória deveria ser
dirigida pela classe ou fração de classe que a elaborou, decerto “com o propósito de subsumir os
interesses do conjunto da sociedade, em particular, da classe trabalhadora, aos interesses particulares
da classe dominante, no caso [da CNI], da fração industrial da burguesia” (RODRIGUES, 2007, p. 180).
É uma imagem que, por trazer em si “a promessa de superação da realidade social atual”, justifica
“todas as privações e sacrifícios impostos pela implementação das políticas que, proclamadamente,
encaminharão a sociedade ao fim projetado” (RODRIGUES, 1998, p. 130-131).
6
Aspas aqui por não termos acordo com as leituras etapistas do desenvolvimento. Entendemos que a
condição subdesenvolvida é chave para o nexo imperialismo-dependência, que está na base da
dinâmica capitalista mundial. Para maiores detalhes, recomendamos Marini (2017).
10
A despeito da veracidade da afirmação anterior, a CNI demonstrou
compreender que a atuação pedagógica deveria abarcar uma dimensão socializante
e conformadora, com vistas à consolidação de um novo padrão de sociabilidade que
não seria desenvolvido espontaneamente. Na década de 1990, a Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), por exemplo, dedicava-se a elaborar
programas de governo calcados em políticas econômico-sociais em fina sintonia com
seus interesses, incluindo os moldes da devida atuação pedagógica. De modo
explícito, afirmava-se que “as organizações empresariais sindicatos, federações,
confederações e associações (...) precisarão liderar um pesado investimento na
formação de pessoal em administração de conflitos” (RODRIGUES, 1998, p. 46).
Os anos 1990 e a virada neoliberal: a hegemonia do empresariado educacional
e a nova fase do empresariamento da educação
Como vimos, os empresários participaram ativamente no bojo das esferas
política e educacional do Brasil, sempre visando seus interesses mais imediatos.
Na virada para os anos 1990, Collor e mais robustamente FHC (1994), não
pouparam esforços em alinhar o Brasil aos padrões neoliberais: abertura de mercado
com massiva entrada de capital estrangeiro, privatizações e desnacionalizações de
empresas importantes, flexibilizações, desregulamentações, conservação do
superávit primário, canonização do pagamento dos juros da dívida pública, flutuação
cambial, e outros. Reformas na educação precisariam acontecer, mas não havia
definição de recursos e o orçamento social deveria ser reduzido.
A vitória dessas forças foi um golpe importante nos trabalhadores organizados
e nas suas recentes conquistas, a despeito da sempre intensa correlação de forças.
A contrarreforma
7
do Estado de 1995 garantiu juridicamente as novas formas de
atuação do empresariado, não vistas antes na história. Alguns princípios básicos
atingiram diretamente a educação pública. O caráter público foi fortemente
descaracterizado pela concepção de “público não estatal”. Desta, desdobraram as
sucessivas regulamentações de entidades sociais privadas-empresariais de interesse
7
Em referência a reforma administrativa do aparelho do Estado operada no governo de FHC. A
diferença essencial entre uma revolução passiva e uma contrarreforma resida no fato de que, enquanto
na primeira certamente existem “restaurações” (...), na segunda é preponderante não o momento do
novo, mas precisamente o do velho. Trata-se de uma diferença talvez sutil, mas que tem um significado
histórico que não pode ser subestimado (COUTINHO, 2012, p. 121).
11
público e das parcerias público-privadas. Estes conduziram o deslocamento de
direitos sociais e universais, como saúde e educação, tão recentemente conquistados,
para “serviço público não estatal”.
A partir de então, as já multiplicadas organizações privadas passaram a atuar,
com permissão e apoio do Estado estrito, em todas as áreas sociais. No bojo da
educação, as pautas da CNI, por exemplo, foram totalmente acatadas. Nesse sentido,
se é fato que, ainda em torno da Constituinte, a movimentação do empresariado
originou um novo modo de ‘pensar, formular e resolver as questões’, e assim um novo
projeto que apontava para a superação do patamar econômico-corporativo, também
o é que, no âmbito da educação especificamente, os empresários conquistaram força,
espaço e legitimidade jamais vistas na história, nacional e internacionalmente.
O primeiro ponto a se destacar é que, diante da correlação de forças
estabelecida na década de 1980-90 e da reestruturação produtiva em curso, estava
claro para a classe dominante que não bastaria apenas a formação para o trabalho
nos aspectos cognitivos. Era necessário formar um novo padrão de sociabilidade e,
nesse sentido, construir um modelo de sociedade, nos padrões da ordem, em fina
sintonia com seus interesses de classe. Era necessário, portanto, transcender o nível
econômico-corporativo de consciência coletiva.
Precisamente nesse sentido, a capacitação seria a solução para o desemprego
em tempos de globalização, mas a própria inserção do Brasil no mercado mundial
predominantemente como exportador de produtos primários dispensava mão de obra
qualificada para nossos postos de trabalho; a educação blica precisava ser
expandida, mas o setor público era ineficiente e improdutivo. O então ministro da
educação Paulo Renato Souza, vindo diretamente do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) para a pasta, levou adiante inúmeras medidas que tinham
como nervura central a educação profissional desintegrada do ensino médio e o
ensino fundamental minimalista, defendidas pelo Banco Mundial e pelo MEC como as
modalidades de melhor retorno econômico (LEHER, 2010).
Noutros termos, garantir qualidade da educação para todos, ou a
oportunidade de aumentar as chances de vender a força de trabalho
no mercado, de modo eficiente e produtivo, perpassaria conferir ao
alunado as competências estritamente requeridas pelas ocupações
disponíveis. Nesse sentido, as modalidades supracitadas seriam
economicamente mais produtivas, pois ofereceriam uma formação
menos dispendiosa e, ao mesmo tempo, suficiente para formar forças
de trabalho vendáveis naquela realidade. Como discorre Leher (2010),
12
inúmeras foram as medidas implementadas pelo MEC de FHC que
frontalmente objetivavam a garantia da equidade e da qualidade
educacional via empregabilidade e, dorsalmente, sob a égide da lógica
do Banco Mundial, formavam uma educação minimalista, interessada,
particularista e mercadorizada (ANDRADE, 2020, p. 219).
Frigotto e Ciavatta (2003, p. 107) afirmam que o Governo Cardoso é o primeiro
da história a transformar o “ideário empresarial e mercantil de educação escolar em
política unidimensional do Estado”, diluindo o sentido de público e atribuindo ao
Estado uma função dominantemente privada. Seguem afirmando que no campo da
educação no Brasil passa-se “das leis do arbítrio da ditadura civil-militar para a
ditadura da ideologia do mercado”.
De fato, vários eventos evidenciam a crescente força política dos empresários
em geral, abarcando a educação. Podemos exemplificar com a já citada multiplicação
exponencial das organizações de cunho empresarial, além da criação de importantes
aparelhos de hegemonia como o Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade
(PBQP), via decreto presidencial, e o Movimento Brasil Competitivo (MBC), presidido
pelo empresário Jorge Gerdau em parceria com o Banco Mundial, e a “‘ressuscitada’
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), co-
patrocinado pela Merck Sharp & Dohme, pela Petrobrás, e outras grandes empresas”
(MOTTA, 2012, p.125). Aliados a estes, vários outros aparelhos elaboraram,
difundiram e convenceram a população de que a raiz dos nossos problemas estavam
no “setor público inflado” e na “burocracia, solapadora de ambiente de negócios”
(MOTTA, 2012, p. 143), de modo que a solução seria obrigatoriamente o maior diálogo
entre governo e setor privado.
No mesmo ano, países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC)
assinaram o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (Gats), cujo objetivo era a
liberalização progressiva dos serviços em dez anos, incluindo a educação. À época,
várias organizações aliadas ao setor empresarial atuavam em parceria com a
escola pública, a exemplo do Cenpec (1987) e do Instituto Ayrton Senna (1994). Em
1999, o bloco no poder assegurou o interesse privado na educação pública aprovando
a lei 9.790/1999, que criou as “Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
(Oscip)”, com liberdade para atuar na “promoção gratuita da educação, observando-
se a forma complementar de participação das organizações de que se trata esta lei”
(BRASIL, 1999).
13
Nesse mesmo ano, internacionalmente, sentia-se os efeitos perversos,
sobretudo sociais, das medidas austeras. O chamado Pacto Global, conduzido pelos
organismos internacionais, atribuiu aos empresários o protagonismo na tarefa de
acobertar o antagonismo de classe via construção de uma relação harmônica entre
mercado, Estado e sociedade civil, atribuindo uma “face mais humana ao capital”, sob
auspício de uma sociedade harmoniosa (MOTTA, 2012). Em outros termos, a essa
fração de classe caberia construir um novo senso comum, soldador do bloco histórico
neoliberal doravante em sua vertente social-liberal ratificando, assim, que a
escolarização é um dos mecanismos de conformação, internalização e sedimentação
da forma burguesa de enxergar e compreender o mundo, inclusive sua estrutura de
classes. Essa nova função dos empresários era imperativa diante da realidade que
tratou de demonstrar a fragilidade da teoria do capital humano rejuvenescida nas
políticas de educação dos anos 1990.
Contrapondo a tese da “empregabilidade” constatou-se ainda na
década de 1990 que ao mesmo tempo em que houve a expansão do
acesso à educação, a pobreza de uma parcela significativa da classe
trabalhadora intensificou (...). Em meados da década de 1990, os
intelectuais orgânicos do capital chegaram à conclusão de que (...) não
basta atribuir à escola a função de atender as demandas do capital,
qualificando e modernizando as forças produtivas para aumentar a
capacidade competitiva; não basta atribuir à escola a função de
atender a demanda do trabalhador de inserção no mercado de
trabalho é preciso ‘educar para sobreviver’; é necessário atribuir
outras funções à escola (MOTTA, 2012, p. 238-239).
Como discorre a autora, ao final da década, junto à massificação da educação
pública, observava-se a exacerbação do pauperismo, nacional e internacionalmente.
Nesse sentido era preciso, de um lado, dinamizar a economia para ampliar
oportunidades; de outro, era preciso ir além da capacitação da força de trabalho para
se tornar competitiva e exercer trabalho simples. Era preciso, também via educação,
desenvolver aspectos cognitivos, mentais e atitudinais que contribuíssem para o
desenvolvimento de uma nova cultura cívica que, calcada na solidariedade, na
harmonia e na confiança, possibilitasse a redução das privações humanas e da
pobreza de modo geral.
Como demonstra pormenorizadamente MOTTA (2012), a despeito da
especificidade de cada organismo, esse eixo central interpelava a enorme maioria de
seus relatórios, estando presente nas orientações da Organização das Nações Unidas
(ONU), do Banco Mundial, BID e outros. Além do protagonismo empresarial na adoção
14
de políticas de responsabilidade social, clamava-se pelas “mudanças institucionais
baseadas na ‘boa governança’, isto é, na formação de um ambiente de cooperação
entre Estado-mercado-sociedade civil em vários níveis (...), de forma a instaurar um
ambiente de estabilidade econômica e, principalmente, política (MOTTA, 2012, p.
246).
No limiar do século XXI, no Brasil, se o governo Cardoso vinha perdendo força
política em decorrência do agravamento e dos desdobramentos da crise de 1998 (que
inclui a obstrução das exportações, o aumento da taxa de juros e outros), senão todas,
as essenciais condições para a expansão do capital no bloco histórico neoliberal
estavam postas.
Sendo assim, a despeito da estagnação crescente, da queda dos salários e do
desemprego em nível nunca antes visto e uma dívida estrondosa”, o governo Lula
não rompeu com a nervura das medidas neoliberais até então em curso: mantiveram-
se o rigoroso pagamento da dívida, a sagrada Lei de Responsabilidade Fiscal, as
metas de inflação, taxas de juros exorbitantes, a promoção de reformas pró-mercado,
estrutura tributária regressiva, e a submissão ativa e consentida da política econômica
ao capital rentista nacional e internacional e as políticas econômicas austeras sempre
que necessário (LEHER, 2010; CASTELO, 2012).
Na área social, seguiu-se a cartilha do Banco Mundial mormente no que tange
às políticas sociais focais e compensatórias de alívio à pobreza e administração dos
seus efeitos econômico-sociais nocivos. De modo geral, consolidava-se o Estado
estrito como agente garantidor da estabilidade política e das condições propícias à
dinâmica do mercado.
A crescente organização do empresariado ganha ainda mais força com a
consolidação do social-liberalismo no Brasil, representado pela eleição de Lula em
2003. O primeiro ministro da educação do governo Lula da Silva, Cristovam Buarque,
tinha uma concepção de educação liberal: todo seu argumento em prol da educação
estava “referenciado na dita teoria do capital humano, de acordo com a qual o ensino
fundamental ampliaria a empregabilidade dos jovens, superaria a violência etc (...).
Em sua posse, deixou claro que manteria o Banco Mundial como parceiro estratégico,
sugerindo convergências entre as agendas” (LEHER, 2010a, p. 56).
É precisamente no governo Lula que vem a se constituir o maior aparelho
privado de hegemonia da história da educação brasileira, qual seja, o Movimento
15
Todos pela Educação (TPE), em 2006. Presidido pelo empresário Jorge Gerdau
Johannpeter, o TPE se apresenta da seguinte forma: “com uma atuação
suprapartidária e independente e sem receber recursos públicos nosso foco é
contribuir para melhorar a qualidade da Educação Básica no Brasil” (TPE, 2019). Entre
seus sócios-fundadores estão figuras vinculadas ao Estado estrito (como o então
ministro da educação, Fernando Haddad, e o ex-presidente do CNE, Cesar Callegari),
quanto a grandes empresas e bancos, inclusive empresários-proprietários, à exemplo
de nomes como os de Jorge Paulo Lemann, Gustavo Loschpe, Emílio Odebrecht e
Maria Alice Setúbal.
Além do mais, desde 2006, o TPE conta com o apoio de representantes de
empresas como Itaú Social, DPaschoal, Gerdau, Itaú BBA, Instituto Península, Gol,
Fundação Victor Civitta, e vários outros, bem como de organismos internacionais, tal
como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (TODOS PELA
EDUCAÇÃO, 2018, s./p.). Vale ainda ressaltar o apoio ao TPE por parte do LIDE
(Grupo de Líderes Empresariais), cuja direção é exercida “por um Comitê de Gestão,
composto por representantes de grandes corporações, ex-ministros de Estado,
especialistas em diversas áreas de atuação, que tem como objetivo orientar, avaliar e
decidir sobre as diretrizes do Grupo de Líderes Empresariais” (LIDE GLOBAL, 2018,
s./p.). Organizadas no TPE, essas forças “lograram firmar um eixo discursivo que irá
orientar as ações do capital nos anos seguintes: a educação fundamental foi
universalizada, mas carece de qualidade (...)” (LEHER, 2010, p. 145).
De modo geral, o TPE se propõe a articular os empresários socialmente
responsáveis em torno de objetivos comuns. Um ano após lançar o TPE oficialmente,
o MEC lançou o Plano de Desenvolvimento da Educação: um plano que agrega um
total de 29 ações do MEC sobre diferentes níveis e modalidades da educação básica.
Simultaneamente a esse feito, ocorreu a promulgação do Decreto nº 6.094/2007, que
dispõe sobre a implementação Plano de Metas Compromisso Todos Pela Educação
(CTPE), pela “União Federal, em regime de colaboração com Municípios, Distrito
Federal e Estados (...) visando a mobilização social pela melhoria da qualidade da
educação básica” (BRASIL, 2007). Este Plano é, com efeito, o carro-chefe do PDE.
Dentre as ações, estava o lançamento do Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (Ideb), que até hoje segue servindo como justificativa para as mais
diversas medidas de contrarreforma na educação à exemplo do Novo Ensino Médio.
16
O CTPE foi o corolário, de um lado, do processo de subsunção da educação à
forma e à lógica da mercadoria, de modo que essa “coisa”, além de ser possivelmente
comprada no mercado, é produzida, avaliada, mensurada nos termos da produção
mercantil de serviços; de outro, da aliança entre o governo e os empresários no âmbito
educacional, que passaram a estar à frente da formulação, aprovação e
implementação das políticas públicas de educação. Afinal, a presença do TPE nas
ocupações pertencentes ao Estado estrito, referentes à política educacional, é sem
paralelo na história, conforme demonstra pormenorizadamente MOTTA (2012). De
acordo com Saviani (2007, p. 1253), a lógica do CTPE “pode ser traduzida como uma
espécie de “pedagogia de resultados”: o governo se equipa com instrumentos de
avaliação dos produtos, forçando, com isso, que o processo se ajuste às exigências
postas pela demanda das empresas”.
Do TPE seguem nascendo vários outros aparelhos de hegemonia para tratar
de demandas específicas. Para exemplificar, podemos citar o caso do Movimento pela
Base Nacional Comum (MPB), articulador da polêmica Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). Em trabalhos anteriores (ANDRADE, 2020; MOTTA; ANDRADE,
2020), demonstramos os efeitos deletérios da BNCC sobre o currículo e o trabalho
docente, bem como o quanto a mesma favorece enormemente a ampliação do
mercado educacional. Vejamos brevemente, porém, como a BNCC foi conduzida pelo
empresariado educacional.
Em 2010, com vistas a alcançar as metas propostas, o TPE lançou cinco
bandeiras norteadoras de suas ações, produto das análises contidas no relatório “De
olho nas metas”. À época, a então e atual diretora-executiva do TPE, Priscila Cruz,
afirmou que as bandeiras, em conjunto, eram a base necessária para que o Brasil
pudesse alcançar as cinco metas principais do CTPE, quais sejam, acesso à escola,
alfabetização, aprendizagem, conclusão do ensino e financiamento. Dentre as
bandeiras, estava o currículo: “o País precisa ter um currículo nacional, com as
expectativas de aprendizagem dos alunos por série/ciclo” (GIFE, 2010, s./p.).
Embora não seja o foco do texto, é importante demonstrar como esses
empresários atuam no tempo presente. O MPB se constituiu durante a realização do
“Seminário Internacional Liderando Reformas Educacionais e Fortalecendo o Brasil
para o Século 21”, organizado pela Universidade de Yale em parceria com a Fundação
Lemann e realizado nos Estados Unidos, em abril de 2013. Como consta no relatório
17
de atividades do TPE, o Seminário contou com palestras de gestores educacionais do
setor público americano e especialistas da área acadêmica, de organizações não
governamentais e de instituições privadas dos Estados Unidos, além da participação
de “representantes do setor público brasileiro, educadores e membros de
organizações sociais sem fins lucrativos que atuam no campo da Educação no Brasil”.
São constituintes do MPB organizações empresarias “velhas” conhecidas no bojo da
educação brasileira, como a Fundação Roberto Marinho, o Instituto Ayrton Senna, o
Cenpec, a Fundação Lemann e o TPE.
Figura 1 elaboração própria - Constituintes do MPB (2021)
Fonte: Elaboração própria.
Malgrado esse aparente pequeno escopo, uma investigação mais afundo
demonstrada com detalhes em outro espaço (ANDRADE, 2020) leva-nos a conhecer
“instituições satélites” que, precisamente através de parcerias com três ou mais
organizações diretamente vinculadas ao MPB, participaram ativamente do processo
de construção e tramitação da BNCC, como mostra o quadro abaixo.
18
Figura 2: Fluxo financeiro entre integrantes do MPB e Instituições satélites.
Fonte: Elaboração própria.
Não precisamos mencionar os vários escândalos nos quais estão envolvidos
várias dessas instituições, à exemplo da Oderbrecht. No entanto, vale aqui mencionar
um exemplo de como o dinheiro público é destinado a essas instituições, nem sempre
com a transparência proclamada.
Conforme demonstra a imagem, a Fundação Carlos Alberto Vanzolini
posicionada logo acima na imagem foi contratada pelo MEC, em março de 2017, ao
custo de R$18.923.297,00, para a prestação de serviços especializados para a gestão
integrada dos processos necessários a BNCC, que sequer havia sido divulgada e
muito menos aprovada.
Como abordamos detalhadamente também em outro espaço, buscamos em
relatórios, reportagens, no site oficial da fundação, no portal da transparência e outras
fontes, e não encontramos qualquer informação sobre o destino desse dinheiro. Nos
relatórios de atividades da Fundação de 2017 e 2018 únicos disponíveis no site,
apesar da Fundação ter sido criada na década de 1960 está ratificada a contratação
da Fundação pelo MEC, mas não há detalhes sobre a sua atuação.