V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X


DICIONÁRIO DE EDUCAÇÃO E AGROECOLOGIA: A DENÚNCIA E O ANÚNCIO DE PRÁXIS QUE VISEM À EMANCIPAÇÃO HUMANA1


Anakeila de Barros Stauffer2 Alexandre Pessoa Dias3 Maria Cristina Vargas4


O Brasil sofre, atualmente, uma profunda crise ecológica e, diante dessa realidade, precisamos analisar o que denominamos de desenvolvimento, fruto do ímpeto destruidor do capital que se apropria da natureza para manter sua sanha acumuladora. O Painel Internacional das Mudanças Climáticas (IPCC, 2022) demonstra cientificamente que vivemos numa época de emergência climática mundial, de eventos extremos hidrológicos, de ondas de calor, de perda de biodiversidade, do aumento do nível do mar e da erosão costeira, da espoliação e destruição ecológica dos biomas. No caso brasileiro, tais eventos são potencializados pela expansão desenfreada do agronegócio, incrementado pelas políticas neoliberais, avançando incontrolavelmente com seu modelo de monocultura hidrointensivo, químico-dependente e exportador de commodities.

Como analisa Mészáros (2011), a crise ecológica é mais uma face da crise estrutural do capital que compromete a (re)produção da vida, exacerba a espoliação, reduz os direitos ao trabalho, à terra, à água, às sementes, desmantelando a democracia e os processos participativos. No Brasil, essa realidade é potencializada


1 Resenha recebida em 02/05/2022. Aprovado pelos editores em 30/05/2022.Publicado em 10/11/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54296.

2Doutora em Ciências Sociais e Educação pela PUC-RJ. Pesquisadora e professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, professora de Educação Especial e Inclusiva do município de Duque de Caxias (RJ). E-mail: anakeila.stauffer@fiocruz.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3826070513693069. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4089-0891.

3 Doutor em Medicina Tropical pelo IOC/Fiocruz. Professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. E-mail: alexandre.pessoa@fiocruz.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/6160512059771433. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5594-7221.

4 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRJ. Militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Email: vargasmcristina@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5635160695041865. O RCID: https://orcid.org/0000-0001-8645-8933.

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pela fragilização das instituições do Estado e das políticas públicas de proteção social e ambiental. Tal conjuntura impingida pelo capital e suas grandes corporações, exige uma análise multiescalar e multidimensional, para que possamos criar estratégias de reversão deste quadro.

Considerando a materialidade da vida sob o capital, e visando contribuir para processos de resistência e de defesa da vida, foi organizado o Dicionário de Agroecologia e Educação – uma produção coletiva coordenada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com parceira da Editora Expressão Popular.

O referido Dicionário busca dialogar com um público diverso – educadores/as e educandos/as das escolas do campo, das florestas, das águas e das cidades, envolvidos em distintos processos de educação e de formação, estudantes e trabalhadores de áreas como saúde, meio ambiente e agrárias, militantes nos processos formativos e de organização da classe trabalhadora.

A obra é composta por 106 verbetes, escritos por 158 autores/as (educadores/as, militantes, pesquisadores/as) de 68 instituições e universidades públicas de pesquisa, institutos federais de educação, movimentos sociais, ONG’s e redes. Como as veias da América Latina ainda sangram, envolveu autores de, pelo menos, três países latino-americanos – Brasil, Guatemala e México.

Esta miríade de sujeitos possibilitou explicitar na obra que, desde suas origens, a Agroecologia desenvolve metodologias de trabalho popular e diagnósticos da realidade que, articuladas a sistemas de aperfeiçoamento e inovação horizontais dos agroecossistemas, produzem uma diversidade de iniciativas nos distintos biomas do país. A organização dessas experiências pelos movimentos populares camponeses converteu a Agroecologia em diretriz programática e como único projeto viável para o campesinato brasileiro, organizando forças para o enfrentamento ao agronegócio.

A obra demonstra que a Agroecologia se anuncia como terreno fértil na criação de novas relações de trabalho que visam a emancipação social, promove a saúde nos territórios, a elaboração de políticas públicas que efetivem a soberania alimentar, defenda a vida, a saúde e o ambiente. Dessa forma, a Agroecologia compromete-se com a humanidade e seu futuro, numa perspectiva de totalidade.


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A obra também explicita a relação entre Agroecologia e Educação, ressaltando que as experiências educativas agroecológicas precisam estar baseadas nos fundamentos e nas matrizes teóricas da Pedagogia do Trabalho e da Educação Popular. A Educação é compreendida como ferramenta decisiva para a construção de novas relações que intencionem a emancipação humana, mesmo estando cerceada pelas relações sociais configuradas sob o capitalismo. A obra almeja contribuir na constituição da consciência, fortalecendo e aprofundando a ação educativa do/a educador/a do campo e da cidade, compreendendo que os seres humanos são produtos deste tempo histórico, mas podem transformar as circunstâncias e a si mesmos, se autoeducando enquanto sujeitos coletivos.

Interessante ressaltar, numa obra desse porte, sua construção metodológica. Inicialmente foi realizada consulta às pessoas e instituições parceiras que produzem sobre Agroecologia, para que indicassem verbetes para sua constituição. Com este primeiro conjunto de potenciais verbetes, agrupou-se alguns conceitos e temáticas em verbetes síntese e estabeleceu-se eixos agregadores. A partir desta organização realizou-se uma oficina, em junho de 2018, no Rio de Janeiro, para que o material fosse apresentado e discutido coletivamente. A partir desta oficina aprimoraram-se os eixos, suas ementas e os verbetes. Constituiu-se, assim, quatro eixos: 1. Metabolismo socioecológico: questão agrária, sociedade e natureza; 2. Agroecologia e bases ecológicas da agricultura; 3. Organização popular, agroecologia e Estado; e

4. Educação, Saúde, Cultura e Agroecologia.

O primeiro eixo discute a complexa interdependência entre seres humanos e natureza, analisando tal relação inscrita no modo de produção capitalista tardio que cria o antagonismo campo e cidade, o conflito entre o agronegócio e o campesinato, a depredação da natureza e a superexploração do trabalho, entre outros. Identifica também os sujeitos que se rebelam, se organizam e lutam contra o sistema, suas propostas e elaborações teóricas, na construção da Agroecologia. Aborda, enfim, as tecnologias que impulsionaram o desenvolvimento do capital no campo e a industrialização da agricultura, e as modernas tecnologias de manipulação da vida.

O segundo eixo – Agroecologia e bases ecológicas da agricultura – traz o debate sobre a Agroecologia em sua dimensão de ciência, fornecendo as bases teóricas e metodológicas para o manejo sustentável dos agroecossistemas, estabelecendo o diálogo entre os conhecimentos tradicionais e os sistemas que

usam os recursos locais para minimizar a necessidade de insumos externos. Os

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verbetes deste eixo trazem os princípios centrais da Agroecologia – compreendendo-a como um campo multidisciplinar de conhecimentos – e das práticas agroecológicas enquanto estratégias dos agricultores familiares, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais que lutam por autonomia e segurança alimentar, nas suas relações internas e com o meio no qual estão inseridos.

O terceiro eixo – Organização popular, agroecologia e Estado – abarca a Agroecologia como elemento dinâmico da totalidade de um projeto emancipatório dos povos, não circunscrita a um projeto autárquico do campesinato, mas sim, a uma perspectiva de superação da ruptura metabólica empreendida pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista. Nessa perspectiva, a Agroecologia se relaciona dialeticamente entre a organização popular e o Estado, uma vez que seus sujeitos trabalhadores do campo e da cidade – se articulam e se mobilizam, realizando o embate em torno dos aparelhos estatais e da efetivação de políticas públicas.

O quarto eixo – Educação, Saúde, Cultura e Agroecologia – explicita a necessidade de novas exigências formativas, na interface entre natureza, trabalho e cultura em contraposição à pedagogia do capital. A relação entre Agroecologia e Educação tem por centralidade o trabalho no campo, desenvolvido pelos movimentos e sujeitos sociais em luta na direção da emancipação social – relacionando-se com a defesa da vida, da saúde e do ambiente, numa perspectiva de totalidade. Fundamenta-se, assim, nos pressupostos da Pedagogia Socialista, da Pedagogia do Movimento, da Educação do Campo e da Educação Popular. Engloba as distintas formas de produzir e reproduzir a cultura e o conhecimento nos processos educativos formais, não formais e informais, fomentando a constituição de novas relações e práticas sociais.

Quem deseja sentidos fixos e imutáveis não se debruce sobre a obra. Sua riqueza se encontra justamente na ousadia de apresentar uma diversidade de concepções sobre a Agroecologia – o que possibilitou a criação de conceitos, assim como a ressignificação de alguns. O debate propiciado pela obra envolve, portanto, convergências e contradições que explicitam a não neutralidade na construção do conhecimento, entendendo-o como aproximações sucessivas sobre a realidade.


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Referências


DIAS, A. P.; STAUFFER, A. B.; MOURA, L. H. G. e VARGAS, M. C. Dicionário de

Educação e Agroecologia. São Paulo: Expressão Popular; Rio de Janeiro: EPSJV, 2021. Disponível em https://www.epsjv.fiocruz.br/publicacao/livro/dicionario-de-agroecologia-e-educacao. Acesso em 07 de abril de 2022.


INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC). Climate Change

2022: Impacts, Adaptation and Vulnerability. Summary for Policymakers. IPCC: Working Group II to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change, 2022. 36 p. Disponível em

<https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-working-group-i/>. Acesso em 17 de dezembro de 2021.


MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São Paulo: Boitempo, 2011.


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