V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
José Carlos de Amaral Júnior2
Caroline Becher3
Esse trabalho discute como a extensão rural pública se encontra, atualmente, impossibilitada de lidar com a diversidade de sujeitos e modos de vida no campo, pois está atrelada ao conservadorismo histórico que converteu sua prática aos interesses do agronegócio e do capital internacional. Assim, mesmo com as modificações ocorridas nessa política pública a partir dos anos 1990, a inadequação teórico-metodológica impossibilitou que a diversificação de públicos fosse refletida na diversidade de formas de trabalho dos extensionistas, mantendo intacta a perspectiva ambiental de seu passado.
Este trabajo discute cómo una extensión rural pública es actualmente incapaz de hacer frente a la diversidad de sujetos y formas de vida en el campo, ya que está ligada al conservadurismo histórico que convirtió su práctica a los intereses del agronegocio y el capital internacional. Así, aún en la forma de política pública que se dio en esa fecha de 1990, una insuficiencia teórico-metodológica imposibilitó que la diversificación de públicos se reflejara en el trabajo de los extensionistas, manteniendo intacta la perspectiva ambiental de su pasado.
This work sought to discuss how public rural extension is currently unable to deal with the diversity of subjects and ways of life in the countryside, since it is still strongly linked to the historical conservatism that converted its practice to the interests of agribusiness and international capital. Thus, even with the changes that have taken place in this public policy since the 1990s, the theoretical-methodological inadequacy made it impossible for the diversification of audiences to be reflected in the diversity of the extension workers; ways of working, keeping intact the environmental perspective of their past.
1Artigo recebido em 18/05/2022.. Primeira avaliação:28/06/2022. Segunda avaliação: 29/07/2022. Aprovado em 14/09/2022 .Publicado em 10/11/2022.. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54533.
2 Pós-doutorado em Serviço Social e Política Social na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia(UESB). E-mail: jcamaral1987@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0581277589084312. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9983-4181.
3 Doutora em Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Assistente Social do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-PARANÁ).
E-mail: karolbecher@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0781567490749607. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1221-8707.
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Esse trabalho busca discutir como a extensão rural pública se encontra, atualmente, impossibilitada de lidar com a diversidade de sujeitos e modos de vida no campo, visto que ainda fortemente atrelada ao conservadorismo histórico que converteu sua prática aos interesses do agronegócio e do capital internacional. Para tal, utilizaremos como exemplo profícuo os rumos trilhados pela Assistência Técnica e Extensão Rural - ATER paranaense, demonstrando como o processo de “sojização” da produção agrícola no estado encontrou reverberação em um modelo difusionista produtivista de extensão rural – e os limites que a construção histórica da política em torno dessas premissas colocam à diversificação de público, na compreensão dos distintos modos de vida e no reconhecimento do campesinato.
A extensão rural é uma política pública implementada no Brasil desde a década de 1950, por meio de uma parceria público-privada que aproximava instituições estadunidenses com os estados brasileiros na busca por uma “modernização do campo” (PEIXOTO, 2008). Prevalecia uma leitura altamente evolucionista do rural brasileiro, em que diversas “missões” pelo interior do país, muitas delas de financiamento também estadunidense, reforçavam o campo como lugar do arcaico em todos os sentidos: produção, vida cotidiana, hábitos e costumes (FONSECA, 1985). A extensão rural, vista puramente por uma perspectiva estadista, pode parecer uma política pública voltada para o campo que foi resultante de uma série de iniciativas que ocorreram nas décadas anteriores, como as missões e semanas rurais, de origem bastante diversa. No entanto, compreendê-la pela perspectiva crítica requer maior cuidado.
Em primeiro lugar, deve pesar o caráter adaptado dessa política para o cenário brasileiro, que embora tenha sido trazida sob o discurso de “semelhança com o modelo dos EUA”, foi importada em um formato peculiar (AMARAL JUNIOR, 2020). Aqui inicialmente a política foi construída no bojo dos acordos de cooperação internacional pós-II Guerra, assumindo caráter mais brando e assistencialista, menos focado na difusão tecnológica e fortemente vinculada ao crédito supervisionado. Além disso, como também está demonstrado em Amaral Júnior (2020), vinculou-se a uma perspectiva moralizante de promoção da mudança de hábitos e costumes, apoiando-
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se mesmo em categorias profissionais que já estavam, àquela época, em plena decadência nos EUA.
Em segundo lugar, pelo contexto e formato em que foi implementada, é preciso destacar que, conforme apontado por Alves e Amaral Júnior (2022), a extensão rural é resultado de uma negação de diversas outras políticas ao campo: ela é a soma genérica, reduzida e bastante pragmática do que o Estado preconizava como educação necessária para o campo. Para os sujeitos do rural brasileiro, não bastava mais do que ensinar a ler e escrever, a como produzir utilizando novas ferramentas e a adotar hábitos mais “modernos”, quase sempre filtrados pela ideologia eugenista da origem extensionista. Portanto, a extensão rural é uma política pública voltada ao campo já marcada desde sua gênese por ser, dialeticamente, o símbolo da presença pragmática do Estado e sua consequente negação, afirmando sua ausência em diversas outras áreas – como a assistência social, a saúde, a previdência social, a educação escolar e etc.
No entanto, a vertente “humanista assistencialista” da extensão rural foi, depois de mais ou menos duas décadas, substituída por um modelo focado na difusão de insumos e tecnologias agrícolas, atrelada a uma proposta desenvolvimentista de geração de superávit que tinha como base a tecnificação e a “modernização” do campo (RODRIGUES, 1997). O autor demonstra como, no bojo dos interesses do capital e acompanhando os eventos da Revolução Verde, o positivismo adentrou as agências de extensão, abandonando um projeto educativo mais amplo focado na mudança de hábitos e costumes para debruçar-se especificamente no aumento da produção de culturas específicas. Esse movimento não era necessariamente novo, como demonstra Pinheiro (2016), uma vez que desde sua origem a extensão rural estava pautada na introdução de hábitos de consumo e produção da realidade estadunidense. No entanto, a conversão importante ocorrida foi na compreensão de que a extensão tinha um papel exclusivamente difusionista, em que seus agentes se tornariam representantes do Estado para promover o “desenvolvimento”. Não por acaso, é no contexto do modelo autocrático burguês pós-Golpe de 1964 que o projeto desenvolvimentista da ATER ganhou fôlego, encontrando solo fértil, sobretudo, nos estados da federação já marcados pelo domínio dos interesses da burguesia agrária – São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente.
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É sabido que, embora o processo de difusão das commodities não seja necessariamente exclusivo desse período, a combinação pujante entre Revolução Verde, projeto desenvolvimentista e avanço do capitalismo sobre as periferias mundiais marcou sua introdução no Brasil. No Paraná, cujo primeiro escritório de ATER pública foi estabelecido em 1956, esse cenário tomaria forma de maneira bastante peculiar na década de 1970, sobretudo após a ocorrência da “geada negra” em 1975 que, atingindo principalmente a produção de café do norte do estado, marcou a introdução da soja como cultura difundida entre os agricultores paranaenses (SAVIANI, 2015). Hoje a soja é a principal cultura de exportação do estado, conforme demonstram dados do IBGE (2022). O agronegócio representou 33,9% do PIB paranaense, segundo dados da Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do estado, sendo a soja o seu principal produto de exportação (2020). Esses dados reforçam que, a partir da década de 1970, a extensão rural aliou-se aos interesses do Estado em abandonar uma perspectiva educativa mais ampla, inclinando-se para uma homogeneização de seu público e de suas ações com vistas à difusão de culturas específicas. Como aponta Pinheiro (2016), a extensão rural inclinou-se aos médios e grandes produtores, especializando sua atuação naqueles sujeitos do campo que tinham potencialidade para a produção de commodities.
Há, portanto, uma transição bastante drástica de orientação metodológica, em que a “família do campo” passa a ser vista apenas como variável da produção agrícola (AMARAL JUNIOR, 2020). A extensão rural cresceu e se difundiu, em muitos estados, segundo essa perspectiva conservadora e atrelada ao agronegócio, tendo dificuldades históricas em se aproximar das minorias, dos movimentos sociais e das lutas do campo (CALLOU, 2006; DIAS, 2007). A sobrevida relativamente longa do projeto desenvolvimentista adiou por duas décadas uma reflexão crítica sobre a política pública, que só no final dos anos 1980, com a decadência do Governo Militar e com a crise econômica que a acompanhou, fez surgir os primeiros debates sobre o esgotamento do difusionismo produtivista.
Esse debate acompanhou, é importante destacar, um processo de desmonte do Sistema Brasileiro de Extensão Rural que, no decorrer da redemocratização do país pela via do neoliberalismo, aproveitou-se da própria obsolescência percebida da política pública em questão para justificar o corte drástico de recursos e sua desarticulação. A extensão rural entrou os anos 1990 fortemente desestruturada,
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deixando as instituições públicas de ATER isoladas em seus respectivos estados, sem recursos4 e dificultando a emergência de projetos de renovação. Alguma oxigenação nas agências públicas de ATER viria a ocorrer somente após os anos 2000, com a emergência da categoria “agricultor familiar” e as políticas públicas que a acompanharam. Uma aproximação que, nos termos de Dias (2007), era oportunista frente ao cenário caótico da extensão pública e sua incapacidade de renovação na mesma agilidade e proporção vistas na ATER privada.
Essa aproximação pragmática inverte a situação histórica e, pela primeira vez, coloca a extensão rural pública em contato com pautas e agendas dos movimentos sociais e dos distintos sujeitos do campo. Prevalece a partir daí um reordenamento da extensão rural “por dentro” da adoção da agricultura familiar, incorporando massivamente a perspectiva do capitalismo agrário em detrimento do paradigma da questão agrária5. Nessa linha, por mais que o cenário pós anos 1990 tenha colocado novas demandas de atualização e renovação para a extensão rural, defendemos que a herança histórica de um modelo ambiental conservador atrelado ao agronegócio ainda se faz central para a ATER pública, incorporando mudanças mais discursivas do que objetivas.
Para desenvolvermos melhor esse ponto, apresenta-se o artigo em duas seções distintas: uma primeira buscando contextualizar a forma como, a partir dos anos 1970, essa conversão ao difusionismo produtivista significou a drástica conversão às commodities, aos interesses do capital internacional e a uma perspectiva ambiental reducionista; e uma segunda conectando os desdobramentos desses eventos frente ao cenário de uma extensão rural “repensada” a partir dos anos 1990.
4 Sobre isso ver Peixoto (2008).
5 Sobre os diferentes paradigmas, segundo Fernandes (2016), o paradigma do capitalismo agrário encontra na categoria “agricultura familiar” a força necessária para reproduzir o discurso de que os distintos modos de vida e os diferentes sujeitos do campo não inseridos completamente nos circuitos de mercado capitalistas estariam fadados ao fracasso. Assim, justificam o abandono de políticas públicas pautadas em demandas dos movimentos sociais e estratos excluídos do rural – como a Reforma Agrária radical – e passam a priorizar programas, projetos e políticas de mercado, de tecnificação, de difusão do crédito e etc.
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A história ambiental começou a estruturar-se no início da década de 1970 e não pode ser compreendida apenas como a simples proposição de influências naturais na história humana. Emerge da necessidade de compreender as relações e as reações dos homens para com a natureza e para ajudar a responder aos problemas complexos que enfrentamos, como as desigualdades sociais, os desastres ambientais, dentre outros. A história ambiental vem conquistando um espaço significativo no campo disciplinar da História, assim como nas Ciências Humanas e Sociais em geral. Desse modo, os estudos envolvendo a relação dos homens com o mundo natural não humano já fazem parte das reflexões não apenas dos historiadores, mas de outras áreas do conhecimento, inclusive de uma análise sobre as interrelações com a Questão Social e questão agrária (KLANOVICZ; ARRUDA; BERGO, 2012).
Apresenta-se então a necessidade em estabelecer a interface entre os temas clássicos trabalhados pelos estudos de história social e ambiental (MOSLEY, 2006). Ressalta-se a relevância dessa aproximação da história social e história ambiental, apresentando como justificativa as próprias experiências societárias bem como suas escolhas no passado nos campos energético, tecnológico, industrial, urbano, agrícola e de consumo. Há a necessidade da construção de leituras históricas capazes de pensar as consequências ambientais da atualidade, considerando as relações promovidas por coletivo de humanos e não humanos. Em linhas gerais, é como se retomássemos um papel crucial da “natureza” na história social (MOSLEY, 2006). Entender as políticas públicas que historicamente foram construídas para o campo brasileiro é, portanto, entender também a história ambiental de compreensão do tripé meio ambiente-sujeitos-agricultura.
Sobre estas escolhas, tanto brasileira, quanto paranaense, no campo da produção agrícola, é necessário compreender a agricultura de grande escala, como mais um dos processos de construção da ordem capitalista, a partir da racionalização do campo e da leitura dessa racionalização, das escolhas sobre o quê, quando, como, para quê e para quem produzir alimentos, considerando os fatores ambientais na história das plantations.
A partir dessa interface entre a questão ambiental e os processos sociais
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expressos na realidade objetiva dos diversos públicos existentes em território rural, se torna indispensável compreender as relações entre agricultura e estado, entre formas de trabalho e de propriedade da terra, entre a divisão sexual do trabalho e o forte traço patriarcal ainda presente no campo e na cidade, entre regimes agrários, política e acesso desigual ao “progresso”, resultante do projeto modernizante da agricultura brasileira. A modernização da agricultura no Brasil e a ideologia do desenvolvimento se materializaram em estratégias teórico-metodológicas que tinham por objetivo “fazer crescer a produção e a produtividade do setor agrícola, puxada pela demanda urbana e pela demanda externa em processo acelerado de crescimento” (LUSTOSA, 2012, p. 58). Essa onda modernizante perpassou os aspectos produtivos, trazendo consequências sociais e ambientais para a população. Com a expansão do capitalismo no espaço agrário brasileiro, o processo de modernização ganhou forma e intensidade, gerando uma nova realidade socioeconômica e espacial no campo e na cidade.
Ao optar pelo modelo modernizante da agricultura, o Estado entendia que esse era um projeto que renderia a expansão da produção agrícola no país e do setor industrial, integrando os planejamentos governamentais para o Brasil desde 1930. Os projetos políticos voltados para o desenvolvimento econômico por meio de uma industrialização capitalista planejada originaram-se na década de 1930, tornando-se hegemônicos nos anos 1950. Entretanto, do ponto de vista ambiental e social, trouxeram danos a toda sociedade (BECHER, 2021).
Os estudos sobre a influência do modo de produção capitalista e as suas consequências para a natureza aparecem de forma tangencial nas análises de Mészáros (2011), quando o autor apresenta os limites absolutos do capital. As determinações históricas da crise estrutural do capital precisam ser buscadas no processo denominado por Mészáros de “ativação dos limites absolutos do capital”. O autor traça uma relação precisa entre o desencadeamento desse processo e a necessidade de superação histórica da ordem do capital:
[...] como a ativação dos limites absolutos do capital, enquanto sistema de reprodução plausível, surgiu em nosso horizonte histórico, já não se poderá evitar por muito mais tempo o enfrentamento da questão de como superar os pressupostos estruturais destrutivos do modo estabelecido de controle sociometabólico (MÉSZÁROS, 2011, p. 387).
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A destruição das condições naturais da reprodução sociometabólica, por sua vez, está atrelada ao caráter irremediavelmente incontrolável da propensão do capital à acumulação não planejada. Lembremos que já estava em Marx (2017), que a produção capitalista ocorre de modo caótico e não planejado, em que grupos isolados de capitalistas decidem o que produzir segundo seus próprios interesses, desconsiderando não só a relevância social das mercadorias que irão produzir, como também seus respectivos impactos. Mészáros procura demonstrar que as unidades de reprodução do capital (empresas) são obrigadas a considerar todos os obstáculos externos como barreiras a serem transpostas: “a natureza e os seres humanos só poderiam ser considerados ‘fatores de produção’ externos em termos da lógica auto- expansionista do capital” (MÉSZÁROS, 2002, p. 216). É por isso que a racionalidade do capital, necessariamente parcial, “contradiz diretamente as ponderações elementares e literalmente vitais da restrição racional e correspondente controle racional dos recursos humanos e materiais globais” (MÉSZÁROS, 2002, p. 216).
O planejamento racional e abrangente de uso e aproveitamento de todos os recursos naturais e humanos consiste em uma tarefa para a qual o capital é absolutamente incapaz, e exige uma maneira radicalmente diferente da adotada atualmente de utilização desses recursos. Outra contradição básica do sistema capitalista de controle é:
que ele não pode separar ‘avanço’ de destruição, nem ‘progresso’ de desperdício – ainda que as resultantes sejam catastróficas. Quanto mais destrava os poderes da produtividade, mas libera os poderes de destruição; e quanto mais dilata o volume da produção tanto mais tem de sepultar tudo sob montanhas de lixo asfixiante (MÉSZÁROS, 2011 p. 41).
O processo de modernização da agricultura brasileira teve marcas fortes conservadoras que culminaram na manutenção da estrutura fundiária concentrada na seletividade dos agricultores beneficiados com os incentivos e investimentos estatais, desenhando um quadro agrário de intensas desigualdades sociais. O projeto do Estado de modernizar a agricultura, com objetivo de dinamizar a produção agrícola do país, se iniciou no Sul do Brasil nos anos 1950 e, rapidamente, atingiu outras regiões. Já nos primeiros dez anos de investimento do governo para modernizar o campo, os resultados começaram a aparecer, sobretudo, na produção de commodities, como a ampliação das áreas plantadas de soja, que do ponto de vista da história ambiental é um processo, denominado por Klanovicz e Mores (2017) de “a sojização da agricultura
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moderna”6.
No Paraná, os autores destacam uma particularidade do ponto de vista ambiental: um desastre ambiental 7 ocorrido na região norte paranaense, a chamada Geada Negra, que foi determinante para o aumento da plantação de soja. Entretanto, devemos recorrer aos estudos historiográficos para não cometermos o erro de a partir de uma análise simplista e considerar que a geada de 1975 foi a única responsável pelo fim da cafeicultura no Paraná. É necessário, no entanto, observarmos o contexto em que prevalecia uma concentração de cafeeiros em apenas duas regiões e era crescente “a substituição do café por lavouras anuais como milho, trigo e soja” (MORES, 2017, p. 246), revelando assim a conjuntura e de que forma populações humanas e não humanas reagem ao processo da geada no curso da história.
Ao fazer uso do conceito de desastres ambientais, compreendemos que desastres são processos socialmente construídos, na história de ocupação humana e nas suas relações com outros seres no espaço. Do ponto de vista meteorológico, a geada negra é um fenômeno climático que, ao contrário da geada branca (a mais comum) que ocorre quando há presença de umidade e causa o congelamento da relva por fora, ocorre com a presença de ar frio e seco, congelando a planta por dentro, quando a temperatura se encontra abaixo de 0º grau. Recebe esse nome devido à aparência do caule da relva congelada por dentro das plantas, deixando-as com a aparência de queimada (ZVIR; KLANOVICZ, 2013).
Dessa forma, compreendemos do ponto de vista da biologia, mais especificamente da área da botânica, que as geadas para agroecossistemas são eventos climáticos que provocam a morte da planta ou de suas partes (folhas e ramos), ou que ainda podem causar congelamento dos tecidos e do líquidos internos das plantas, gerando inclusive problemas para que essas realizem fotossíntese (IBC- GERCA,1979)
Deve-se considerar, obviamente, que a presença massiva de produção cafeicultora no norte do Paraná já indicava a disseminação das commodities,
6 Faz referência ao título “A sojização da Agricultura Moderna no Paraná, Brasil: Uma questão de História Ambiental. (KLANOVICZ; MORES, 2017).
7 O uso da categoria "desastre" não se refere ao fenômeno climático, mas aos eventos que de alguma forma afetam o cotidiano de populações humanas. Logo, o uso da categoria "desastres naturais" não passa de uma contradição, pois o desastre só é um desastre a partir do momento que interfere nas populações humanas, enquanto a referência ao natural reforça a ideia de que estes eventos não estão relacionados com o ser humano (MORES, 2017). Para este trabalho, será utilizada a categoria de desastre ambiental, ou ainda, socionatural.
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sinalizando que não necessariamente as geadas – em particular a Geada Negra – foram responsáveis pela implantação desse modelo agrícola no estado. Conforme Mores (2017, p. 281) busca historicizar a plantation no estado do Paraná:
Em primeiro lugar, devemos considerar que no período entre 1963 e 1975, o Paraná teve muitas transformações no cultivo do café, seja pelo programa de erradicação, racionalização e replantio de cafeeiros, pela introdução da ferrugem, pela idade média dos cafeeiros, que estava entre 20 e 30 anos, ou ainda pelo crescimento dos preços de outros cultivos agrícolas anuais, como o trigo e a soja.
Durante o início da década de 1960, o Instituto Brasileiro de Café (IBC) começou a elaborar projetos para a implementação de um novo monocultivo de café no sul de Minas Gerais, com o uso de tecnologias como tratores, defensivos químicos em larga escala e a reutilização de um espaço de antiga cafeicultura. O IBC estimulava os produtores paranaenses a migrar para Minas Gerais, uma vez que, ao mesmo tempo em que produzia uma revolução na escala global de produção do café, Minas Gerais teria sido escolhida justamente por não ser uma região vulnerável à geada (MORES, 2017), havendo o estado do Paraná passado por geadas significativas em 1953 e 1963.
Desde 1972, o IAPAR8 desenvolveu projetos de pesquisa sobre a soja na região, fazendo com que o Paraná se tornasse o principal centro de pesquisas do Brasil, demonstrando o interesse pela plantation de soja, buscando tornar o Paraná um produtor permanente do cultivar. Mores (2017) considera que os esforços políticos foram fundamentais para a expansão da sojicultura no Paraná, e em especial, pela instalação da EMBRAPA-Soja (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) em Londrina, em agosto de 1975, sob fortes influências políticas regionais e expressivos investimentos das políticas públicas voltadas a esse objetivo. Logo, o cultivo de soja teve um grande incentivo após a retirada de cafeeiros da região, tornando-se junto com o trigo o principal cultivo agrícola, especialmente nas grandes propriedades. Mores (2017) argumenta que a geada negra não deve ser entendida como causa única do fim da cafeicultura, pois:
o café não desapareceu das paisagens do norte do Paraná, como a memória e muitas reportagens querem considerar. A geada, não foi a "morte" da cafeicultura e muito menos o final dela. Nos anos após a
8 Instituto Agronômico do Paraná , que no ano de 2019 passou a ser denominado Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-Paraná), unindo-se com o antigo Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER-PR).
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geada, especialmente em pequenas propriedades, muitos cafeeiros tiveram que ser arrancados e outros cultivos deram lugar enquanto os novos cafeeiros eram replantados. Em pequenas propriedades e em famílias que não conseguiam adquirir o pacote tecnológico que a soja necessitava, como tratores, colheitadeiras e outros inputs químicos, a cafeicultura ainda continuava como o cultivo agrícola (MORES, 2017, p. 293-294).
A ideia defendida por Mores (2017) é válida quando nos alerta sobre a diferença entre a memória criada sobre o evento (dramatização em jornais e periódicos) e o desastre ambiental em si. Para o autor
[...] a geada em 1975 foi mais um ponto importante para acelerar as transformações que já estavam ocorrendo na cafeicultura paranaense, sob influência dos agentes de ATER, do que efetivamente um ponto da “morte da cafeicultura” (MORES, 2017, p. 296).
A soja tomou o espaço de diversas culturas tradicionais devido à demanda internacional, superando o café e a cana-de-açúcar em área plantada e em volume de negócios, podendo ser considerada uma nova e diferente plantation, ocupando espaço importante no que Frank Uekötter (2014) considera como nova dimensão mental da agricultura em uma era de unificação biológica do mundo.
A cultura da soja é talvez “o capítulo mais recente da expansão agrícola nacional mas também o produto agrícola que catalisa as intersecções entre tecnologia, ecologia, e todos os riscos biológicos que a monocultura proporciona” (KLANOVICZ; MORES, 2017. p. 242). Para os autores:
Não é forçoso pensar no contexto histórico brasileiro da segunda metade do século XX quando falamos na permanência ou introdução de novas formas da plantation no país, pois encontramos uma dinâmica que perpassa vários governos democráticos ou autoritários. Era disseminado o pensamento de que era necessário retirar o Brasil das nações do então denominado “terceiro mundo” e racionalizar sua produção, difundido “a ideia de desenvolvimento econômico justificando cada ato de governo, e até de ditadura, e de extinção da natureza. Acima de tudo, nas representações de Estado, nos meios de comunicação e no imaginário popular. Compreendemos assim que essa monocultura do século XX é um projeto político de controle da natureza estimulado por sucessivas ondas desenvolvimentistas brasileiras (KLANOVICZ; MORES, 2017, p. 246-247).
Compreendemos, portanto, que a sojicultura não apenas alterou as características ambientais biológicas e florestais, como também as estruturas econômicas, relações de trabalho, sociopolíticas, intensificando a pauta de programas e projetos específicos para a modernização do campo, em especial, na segunda
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metade do século XX. Deixou traços marcantes nos aspectos organizacionais de instituições públicas e privadas, na formulação e execução de políticas públicas e investimentos públicos, levando a um emparelhamento dessas políticas em torno da difusão técnica e tecnológica para efetivação de um projeto específico de desenvolvimento. Por outro lado, os índices de pobreza extrema aumentaram quando a soja monopolizou os campos, em especial na região central do estado (BECHER, 2021). A emergência das commodities como plano de geração de superávit, incentivadas pelo governo obteve crescimento rápido. Entretanto, concomitante a esse crescimento, inicia-se um processo de qualificar o fenômeno da modernização da agricultura, argumentando-se que a inserção de métodos e técnicas modernas não atingiu todos os produtores, a exemplo dos menos capitalizados, caracterizando como um processo desigual e, sobretudo, contraditório (PAIVA, 1971).
A modernização visava tão somente o binômio produção e produtividade, sem levar em consideração todas as conformações da questão agrária. Isso significou pensar em políticas públicas e formas de intervenção estatal com fortes consequências sociais, ambientais e biológicas, visto que limitadas ao produtivismo atrelado ao superávit produtivo. A exemplo das formas tardias e completamente esvaziadas de projetos de Reforma Agrária que, conforme demonstra Mendonça (2013), representam um Estado que foi progressivamente cooptado pelas classes patronais do campo desde a década de 1950.
A extensão rural, representando o ápice do que, segundo essa autora, era o interesse histórico da elite agrária do eixo sul-sudeste (o par “crédito barato e assistência tecnológica gratuita”) foi por muito tempo o vetor e catalisador principal desse movimento de negação das políticas públicas para o campo à diversidade de seus sujeitos em consonância com uma intervenção puramente pautada no conservadorismo das elites agrárias. Portanto, a combinação política pública enviesada para o campo e interesse das elites agrárias encontrou reverberação em um modelo de atuação focado nas commodities, na “sojificação” das culturas, na marginalização da diversidade do campo e na consequente degradação ambiental e exclusão de modos de vida que destoam daquele preconizado no paradigma do capitalismo agrário.
Esse imbróglio peculiar retornou historicamente na extensão rural dos anos 1990 em diante, revelando a contraditoriedade de uma política pública calcada no
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produtivismo e na degradação ambiental com um projeto de redesenho que apontava, desde sua gênese para o completo oposto.
Pode uma política pública cujo eixo estruturante foi consolidado no bojo do difusionismo produtivista comportar uma outra perspectiva ambiental para o desenvolvimento do campo brasileiro? A resposta, acreditamos, está menos no campo das potencialidades da ATER e mais no curso de seu desenvolvimento histórico pós-1990.
O esgotamento do modelo difusionista de extensão rural chegou às agências públicas de ATER, primeiro, pela via das crises econômicas que o mercado agrícola de exportação fortemente fomentado na década de 1970 não foi capaz de conter. Disso resulta uma percepção generalizada de que, embora o projeto desenvolvimentista para o campo tenha trazido certo otimismo em seus primeiros resultados, o rebote social, ambiental e econômico seria de grande lastro. Rodrigues (1997) demonstra como, sendo afetada já nos anos 1980 por sucessivas críticas, a extensão rural pública buscou reorientar-se pela via de uma nova abordagem humanista.
Paulo Freire, que direcionou duras críticas a ATER no ano de 1969 pelo seu viés de “invasão cultural” e intencionalidade educativa plasmada por certa ideologia em Extensão ou Comunicação (2018), foi o principal nome do redesenho desse debate que começou a ganhar forma nas agências públicas. A primeira geração “pós- freireana”, para utilizar os termos de Callou (2006), tomou para si a função de realinhar a ATER aos princípios de uma educação não formal horizontalizada, que tivesse como foco os agricultores familiares e sujeitos do campo – já abrindo a partir desse movimento espaço para a diversificação de público que viria a ocorrer mais tarde, com a adoção da categoria agricultura familiar e suas respectivas políticas públicas.
A extensão tentava livrar-se da herança difusionista e de seu projeto educativo calcado no produtivismo promovendo um humanismo crítico, substancialmente diferente do humanismo assistencialista da década de 1950 (RODRIGUES, 1997). No entanto, esse projeto não só logrou pouco êxito, como resultou em um hibridismo teórico-metodológico que fez emergir certo modelo humanista-produtivista
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instrumental (AMARAL JUNIOR, 2022). Isso quer dizer que, incorporando certas modificações apenas no discurso sobre o método, as agências de ATER tiveram dificuldades em abandonar os projetos historicamente consolidados em torno das monoculturas e da agricultura convencional.
Essa dificuldade seria exponencialmente aumentada pelo desmonte do Sistema Brasileiro de Extensão ocorrido no Governo Collor, cuja diminuição drástica de recursos significou um aumento do poder das agências privadas e instituições internacionais, como o Banco Mundial e empresas de defensivos agrícolas, que passaram a ser “parceiros” importantes para a manutenção financeira das instituições. Adentrando um período de “projetização”, a ATER pública parece ter se adaptado retoricamente, mas objetivamente ter apenas ampliado o leque de projetos que passaram a integrar suas estratégias de sobrevivência financeira (AMARAL JUNIOR, 2020).
Portanto, a ATER pública se estagnou por detrás de uma mudança recursiva, não participando das principais pautas e lutas do campo que se desenrolaram pós- redemocratização, mas aproveitando-se posteriormente das políticas delas decorrentes (DIAS, 2007). Segundo o autor, a aproximação da extensão rural com o PRONAF e demais políticas centradas na agricultura familiar foi puramente oportunista, ocorrendo à margem da luta dos estratos sociais do campo diretamente envolvidos com essas agendas. Disso decorre que, embora uma segunda geração pós-freireana9 tenha participado ativamente na construção de algumas agendas e políticas, a exemplo da PNATER, a diversificação do público e dos modos de vida e produção ali materializadas não se converteram, necessariamente, em bússola para a prática extensionista.
A PNATER, portanto, se converteu em instrumento dúbio e paradoxal dentro da ATER pública, escancarando que uma perspectiva ambiental substancialmente diferente teria problemas de se efetivar pois encontraria entraves na estruturação das agências, nas cobranças do projeto de intervenção estatal pró-agrobussiness e no método extensionista. Sobre o método, está descrito em Amaral Júnior (2022) como mesmo na segunda década dos anos 2000 o debate metodológico na extensão rural era incipiente a ponto de não conseguir efeitos relevantes na prática dos profissionais, reproduzindo uma perspectiva desenvolvimentista com elementos recursivos de uma
9 Sobre isso, ver também Callou (2006).
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educação horizontalizada. Essa adequação instrumental do humanismo freireano ocorreu por meio do hibridismo teórico, cuja origem diversa favorece a manutenção de uma perspectiva focada no agronegócio, comportando sem grandes contradições projetos ditos alternativos lado a lado daqueles de origem mais convencional – como o cultivo de commodities (AMARAL JUNIOR, 2022).
Somado a isso, o máximo de diversificação de público ocorrido pós-PNATER se revela extremamente conservador e ainda atrelado ao produtivismo. Como exposto em Amaral Júnior (2020), a extensão rural adotou uma abordagem a partir dos anos 1990 que apenas seccionou o público em recortes arbitrários – como jovens e mulheres – sem aprofundar-se nas metodologias de trabalho com cada um deles. Nesse contexto, ilustra a dificuldade de compreender a diversificação de público na PNATER, uma vez que utiliza das categorias mais usuais de forma puramente instrumental, ou seja, apenas para seccionar a qual estrato dos agricultores familiares será destinado cada conjunto de ações. No caso da Paraná, a título de ilustração, o relatório de 2019 do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná10 demonstra esse abismo operacional da diversificação de público: o atendimento anual de indígenas, quilombolas e pescadores artesanais representa apenas 1,73% do público total atendido dentro da categoria “agricultura familiar” – nem metade do número total de agricultores patronais atendida pela agência (4.000 agricultores atendidos no ano).
O mesmo documento demonstra também que, se tratando das linhas de atendimentos mais prevalentes, ainda ocupam o ranking de assistência técnica e atividades diversas as commodities: em primeiro lugar o Projeto Leite, que atendeu 31,9 mil pessoas, e em segundo o Projeto Grãos Sustentável, com 29,8 mil pessoas beneficiadas. Vale destacar que o referido relatório pontua, para esse último, a parceria com a “Embrapa-Soja, Senar-PR, universidades, prefeituras, empresas privadas e cooperativas” (p. 29, grifos nossos).
Um breve olhar sobre a política agrária como um todo demonstra que, no bojo do projeto estatal para o campo, prevaleceu a lógica do agronegócio, mesmo perpassada pela categoria da agricultura familiar. Segundo o relatório do Plano Safra 2019, do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o número de valores contratados em Julho/2017 a Maio /2018 referente ao custeio, somam 10 milhões 975
10 À época ainda denominado Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER- PR).
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mil, já em Julho/2018 a Maio/2019 o valor foi de 11 milhões e 275 mil reais. Os dados abaixo, demonstram claramente o direcionamento dos investimentos do programa, para as cultivares de soja e a área de bovinocultura de leite e corte.
Tomate; 1% Pronaf
Uva; 1%
Feijão; 1%
Cebola; 1%
Arroz; 3%
Demais
Produtos; 9%
Soja
Bovinos
Milho
Soja; 26%
Café
Trigo; 5%
Trigo
Café; 6%
Arroz
Cebola
Milho; 15%
Feijão
Uva
Bovinos; 33%
Tomate
Demais Produtos
A partir dos dados observa-se claramente a concentração de determinados plantios e atividade pecuária, consumindo 59% dos recursos do Pronaf... Somente 6% são dissolvidos em outras culturas como olerícultura, fruticultura, dentre outras. Isso demonstra uma forte tendência histórica no Brasil em financiar plantations, como a soja. Para além da financeirização, o estado organiza programas, projetos e instituições para ampliar as grandes lavouras. Lembre-se que o crédito sempre esteve, desde sua origem, atrelado às agências de extensão rural, corroborando com a perspectiva de que, mesmo depois dos eventos ocorridos após os anos 1990, a ATER pública se manteve concentrada na difusão de culturas prevalentes em seu período difusionista produtivista, com vistas à exportação. De certo, atrelada às commodities e aos interesses de acumulação do capital internacional, a extensão rural não pode mesmo converter-se em prol de um modelo agrário mais diverso, menos predatório e que comportasse outros modos de vida e, consequentemente, de produção no campo.
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Para tecer uma ilustração final, basta citar a matéria divulgada pelo IDR-Paraná em suas redes sociais acerca de um estudo realizado por uma de suas equipes em parceria com pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina11 (UEL), que constata que a maior parte dos agricultores de grãos desconhece técnicas básicas de conservacionismo. Assim, se consideramos que um determinado modo de produzir está dialeticamente relacionado com a perspectiva ambiental adotada pelos sujeitos que trabalham no campo, pode-se constatar que o difusionismo produtivista da ATER, além de prevalente, reforça uma relação predatória com o meio ambiente, altamente dependente dos interesses do capital internacional e constantemente colocando à margem modos de vida que se opõem, resistem e/ou se desviam dessas premissas.
Pensar, portanto, uma ATER pública que abranja os distintos modos de vida do campo e sujeitos que dele fazem parte requer, necessariamente, repensar teórico- metodologicamente a estrutura da extensão rural. O que só pode ocorrer ao se conhecer cada um desses sujeitos de forma qualitativamente densa e compreender a lógica de produção e reprodução imbuídas em seus modos de vida. A extensão rural pública só pode caminhar na direção da efetivação da diversidade de existências no campo se compreender as dinâmicas do rural brasileiro, e de que forma a ATER precisa se adaptar e remodelar para atender aos distintos anseios de cada público. Isso significa reordenar-se teórico-metodologicamente para abandonar uma perspectiva histórica desenvolvimentista em que apenas “o avanço do capitalismo no campo” é entendida como a resposta adequada para o desenvolvimento rural. Assim, a extensão rural deve ser capaz de compreender os sujeitos do campo para além de sua leitura produtivista e de transferência tecnológica do passado, o que significa rever também sua própria estrutura.
Assentados da reforma agrária, indígenas, pescadores artesanais, quilombolas, faxinalenses, e povos e comunidades tradicionais no geral não podem ser inseridos a partir de uma perspectiva puramente de estratificação dos públicos que mantém os mesmos contornos metodológicos. Fazê-lo é imprimir ainda, décadas e décadas depois de sua implementação, a face do capital ao projeto de educação
11 A publicação na íntegra, de autoria de Teles et al. (2022), está disponível na Revista Brasileira de Ciência do Solo.
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extensionista. O que quer dizer, por consequência, fazer prosperar uma perspectiva ambiental predatória e insustentável para o campo no Brasil.
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