V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
Lyn Silva2 Célia Regina Vendramini3
O artigo analisa a experiência de trabalhadores migrantes na Ocupação Contestado, em São José/SC. Apresentamos quatro trajetórias de trabalhadoras migrantes, as quais revelam sua experiência como trabalhadoras, migrantes, mães e participantes do processo político-educativo constituinte da Ocupação. Concluímos que a migração é determinada pela dinâmica do capital, e a ocupação é expressão, por um lado, do processo de expropriação/exploração no trabalho, da ausência de moradia e da violência do estado. De outro lado, revela a indignação e a força de luta dos trabalhadores organizados.
El artículo analiza la experiencia de los trabajadores migrantes en la Ocupación Contestado, en la ciudad de São José/SC. Presentamos cuatro trayectorias de trabajadoras migrantes, que revelaron su experiencia como trabajadoras, migrantes, madres y partícipes del proceso político-educativo constitutivo de la Ocupación. Concluimos que la migración está determinada por la dinámica del capital, y que la ocupación es expresión, por un lado, del proceso de expropiación/explotación en el trabajo, el desamparo y la violencia estatal. Por otro lado, revela la indignación y la fuerza de lucha de los trabajadores organizados.
The article analyzes the workers migrant experience in the Contestado Occupation, which began in São José/SC. We present four trajectories of migrant workers, which revealed their experience as workers, migrants, mothers and participants in the political-educational process constituting the Occupation. We conclude that the migration is determined by the dynamics of capital, and occupation is an expression, on the one hand, of the process of expropriation/exploitation at work, homelessness and state violence. On the other hand, it reveals indignation and fighting strength of the organized workers.
1 Artigo recebido em 18/06/2022. Primeira avaliação em 19/07/2022. Segunda avaliação em 14/07/2022. Aprovado em 06/09/2022. Publicado em 10/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.54919.
2 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGE/UFSC). Professor de História na educação básica.
E-mail: lyn82.novo@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4197314103652558. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5510-5980.
3 Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos/SP (UFSCar). Docente titular vinculada ao curso de Pedagogia do Centro de Ciências da Educação (CED/UFSC) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSC). E-mail: celia.vendramini@ufsc.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7441375272877530. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9600-2868.
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Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito4
Como os processos históricos e contemporâneos de expropriação e exploração se relacionam com os fenômenos da migração e do déficit habitacional no Brasil? Como os/as migrantes da classe trabalhadora lutam para garantir a produção e a reprodução de suas vidas? Estas são questões complexas e de grande relevância. No entanto, para avançarmos na compreensão destes fenômenos, é preciso fazer um recorte na análise, focando em alguns aspectos ou manifestações desta totalidade. Neste sentido, o foco deste artigo se volta para as ocupações urbanas de trabalhadores sem-teto, tendo como objeto de análise a experiência de produção e reprodução da vida de trabalhadores e trabalhadoras migrantes na Ocupação Contestado, localizada na cidade de São José, Grande Florianópolis, no estado de Santa Catarina, buscando analisar elementos da trajetória de vida dos migrantes, tais como: trabalho, moradia, escolarização, educação e luta social.
Os processos originários e atuais de expropriação e exploração5 determinam em última instância o déficit habitacional e a migração forçada. A expropriação – seja dos processos originários que separaram o trabalhador dos meios de produção da vida (MARX, 2013), seja na atualidade, marcada pela mercantilização de todas as formas de vida social e pela disponibilidade total dos trabalhadores ao capital (FONTES, 2010) - cria as condições para a permanente exploração dos trabalhadores. Tal processo combinado resulta em condições de vida abaixo da existência, entre elas, a ausência de moradia, o que gera processos de organização e luta de trabalhadores urbanos e rurais.
A Ocupação Contestado foi fruto de um importante movimento de luta por terra e moradia, que contou com a presença de indivíduos e famílias trabalhadoras
4 Frase escrita em forma de pichação de protesto em muro próximo à Ocupação Contestado.
5 Alguns dos mecanismos da acumulação primitiva que Marx enfatizou foram aprimorados para desempenhar hoje um papel bem mais forte do que no passado. O sistema de crédito e o capital financeiro se tornaram, como Lenin, Hilferding e Luxemburgo observaram no começo do século XX, grandes trampolins de predação, fraude e roubo. A forte onda de financialização, domínio pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e predatório (HARVEY, 2003, p. 122).
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migrantes desde seu início.6 Muitos destes sujeitos forjaram-se lideranças na própria experiência, alcançando vitorias significativas como a permanência provisória no local da ocupação e um acordo vinculado a políticas públicas habitacionais que prometia a construção das moradias demandadas. Entretanto, este processo foi violento por parte do poder público e das classes econômica e politicamente dominantes na região, inserindo-se no contexto de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais tendo na especulação imobiliária uma força motriz significativa. O estopim para a Ocupação foi uma promessa de campanha em ano eleitoral, onde um candidato à prefeitura prometeu que iria conceder uma área para construção de moradias sociais destinadas aos trabalhadores empobrecidos.
A noite de quarta-feira, oito de outubro de 2012, transformaria radicalmente a experiência de um grupo de famílias trabalhadoras habitantes da cidade de São José-SC. Por volta das 20 horas, na Igreja Assembleia de Deus localizada no bairro José Nitro, adjunto ao Jardim Zanelatto, estas famílias participaram de uma atividade de campanha eleitoral que teria sido articulada pelo candidato Djalma Berger (na época PMDB), que concorria à reeleição ao cargo de prefeito da cidade. No contexto das eleições municipais daquele ano, as famílias foram orientadas a ocuparem uma área territorial gerenciada e de propriedade da Imobiliária Suvec Ltda, localizada também no mesmo bairro. No encontro “político-religioso” com os trabalhadores sem-teto realizado na Igreja Assembleia de Deus, o candidato do PMDB, juntamente com Dário Berger, prefeito de Florianópolis na época, fez uma promessa de campanha, “garantindo” que o terreno com uma área de 91.968,80m², que já vinha sendo ocupado de forma espontânea há algum tempo no bairro Serraria/José Nitro, seria desapropriado pela prefeitura de São José e destinado ao uso habitacional das famílias de baixa renda.
6 Muitas destas famílias são provenientes de outros estados (principalmente Rio Grande do Sul, Paraná e alguns estados do Nordeste, como Pernambuco e Ceará) e do interior do estado de Santa Catarina (especialmente da região Oeste, marcada pela expulsão recente dos trabalhadores rurais). A origem dos moradores da Ocupação Contestado é uma expressão da dinâmica das migrações internas no estado de Santa Catarina. De igual modo, a maioria das famílias possui um histórico de periferização na região da Grande Florianópolis, isto é, residem em locais cada vez mais afastados da região central, no que expressam, ainda, a dinâmica da ocupação do solo urbano, como vítimas dos processos de valorização da terra urbana em curso. Em ambos os movimentos, as famílias da Ocupação Contestado e suas trajetórias migratórias dizem muito sobre a dinâmica migratória existente no estado de Santa Catarina e também sobre a dinâmica dos movimentos intra-urbanos na região da Grande Florianópolis. (CANELA, 2016, p.3).
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O prefeito de Florianópolis estava engajado na campanha de reeleição de Djalma Berger (PMDB) e, naquela ocasião, fez um discurso prometendo que as famílias dos trabalhadores sem-teto, as quais estavam em posse do terreno, teriam seu lote de terra cadastrado e legalizado, dando a entender que pessoas com problemas de moradia poderiam juntar-se a outras famílias que já ocupavam o terreno há cerca de dez anos. Eram aproximadamente cinquenta moradias simples que estavam sobre o terreno. A garantia da promessa de campanha foi endossada com a assinatura simbólica do Decreto nº 37.180/2012 de 21 de setembro de 2012, que trata da desapropriação da área.
Após o término do comício, cerca de 200 famílias passaram a ocupar o terreno prometido pelo candidato a prefeito.7 Habitações precárias, de madeira, foram construídas e somaram-se às demais que ali já estavam. A construção das “casas” ocorreu na perspectiva de conquista da moradia, as habitações precárias foram feitas pelos próprios trabalhadores sem-teto, algumas com materiais reciclados. Havia pessoas que no momento não tinham possibilidades de arcar com qualquer custo relativo ao material, por isso passaram a noite ao relento ou embaixo de lonas plásticas, a fim de garantir sua posse do terreno.
Ocorreu que o candidato não se elegeu e os trabalhadores sem teto que já tinham ocupado a área prometida foram expulsos do local de forma violenta pelas forças do estado. Tal evento indignou e mobilizou os trabalhadores, e com o apoio de movimentos sociais que se solidarizaram com a situação, no período da reintegração e posteriormente quando estas pessoas foram alojadas temporariamente em um estádio de esportes, foi realizada uma nova ocupação, a Ocupação Contestado. Neste contexto, a organização política Brigadas Populares teve e tem uma função central no desenvolvimento do processo de luta por moradia
7 A promessa foi registrada em câmeras de celular por algumas pessoas que ali estavam presentes na igreja, vejamos a seguir um trecho do discurso: “Hoje os companheiros estão com uma ordem de despejo. Uma ordem judicial de despejo. Então a partir já de setembro, como foi assinado o decreto, essa possibilidade de despejo, ela não existe mais. Portanto, a prefeitura vai indenizar o terreno, vai legalizar o terreno, e vai dar o terreno para os proprietários que estão em cima do terreno, ali da imobiliária Suvec (...). Segunda-feira a prefeitura vem com a equipe de cadastramento para cadastrar as famílias ali e para que possam fazer o loteamento, legalizar a área e deixar vocês na área onde vocês estão”. CENTRAL DE MÍDIA INDEPENDENTE (CMI). A casa que o prefeito deu pra nós. Vídeo Documentário – Curta Metragem. Florianópolis: CMI, 2012, segs., 0,10’’- 0,50’’. Disponível em: https://vimeo.com/51933986. Acessado em 10 de outubro de 2015.
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travado pela Contestado. A rede de apoio8 aos trabalhadores da Contestado é efetiva e ativa, entretanto as Brigadas Populares se destacaram nesta tarefa.
Por meio de diferentes formas de atuação em diversos territórios, a
organização da Ocupação está embasada por estruturas e instâncias de direção. Entre as estruturas de base estão brigadas territoriais, agindo em ocupações, periferias, universidades, e as Brigadas temáticas, agindo em pautas, eixos e temas como anti-prisional, feminismo, movimento negro, comunicação, transporte e sindicatos.9
Atualmente, centenas de pessoas travam uma batalha diária desde o ano de 2012 pela própria sobrevivência, moradia digna e o direito à cidade, batalha essa agravada pelas mazelas da pandemia da COVID-19 e a crise econômica. As questões da moradia e da migração se retroalimentam, atualmente levantamentos realizados pelas próprias lideranças da Ocupação indicam que o número de migrantes na Contestado se aproxima de 70%. Do conjunto total de trabalhadores
8 A notícia do desalojamento das famílias chegou ao conhecimento de movimentos sociais de Florianópolis e da região conurbada, os quais brevemente se solidarizaram com a causa destas famílias e trataram de articular uma “Rede de Apoio” aos desabrigados. A troca de experiência entre o movimento social organizado e os trabalhadores sem-teto contribuíram para o avanço da luta. Esta Rede era composta por diversas organizações populares, como as Brigadas Populares, Diretório Acadêmico 8 de Maio-DAOM/UDESC, CSP–Conlutas, Sindicato dos Bancários, Partido dos Trabalhadores (PT-Estadual), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), SindSaúde/SC, Gabinete Sargento Amauri Soares, Corrente Comunista Luís Carlos Prestes (CCLCP), CMAS-Fórum da Cidade, Movimento Negro Unificado (MNU/SC), SINDPREVS, Moradores do Maciço do Morro da Cruz, AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros, Movimento Passe Livre (MPL), Coletivo Anarquista Bandeira Negra, Portal de notícias Desacato.info, apoiadores independentes e demais movimentos. Fonte: SILVA, L. A experiência de trabalhadores migrantes na Ocupação Contestado em São José/SC. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
9 A estratégia de trabalho de base das Brigadas Populares tem como eixo fundamental a organização do povo e, para fazer frente aos desafios da conjuntura, trabalhar com a Resistência Popular Prolongada (RPP), disputando cotidianamente os espaços, tempos e territórios, visando um enfrentamento em um quadro de assimetria de forças em conflito, que é o caso brasileiro. Principal instrumento de materialização da RPP, as Comunas são unidades territoriais de organização social e política do povo. As comunas são um dispositivo político e físico implantado nos territórios com o objetivo de engajar a comunidade em atividades que elevem seu perfil de organização e seu comportamento político. Assim, o sujeito social se cria por meio do seu protagonismo e de sua identificação com uma narrativa alternativa à dominante (esta pautada no individualismo e na fragmentação das demandas comuns). As comunas desenvolvem atividades relacionadas à educação popular, organização comunitária, economia popular solidária, cursinhos populares, cultura, acolhimento de demandas do cotidiano, orientação jurídica e muitas outras ações. Essas atividades respondem a demandas imediatas e criam o contexto para o estabelecimento de uma identidade coletiva e de estruturas de afeto e solidariedade que se expressam em engajamento político. ” (Informação disponível na página das Brigadas Populares na internet: https://brigadaspopulares.org.br/).
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que iniciaram o movimento, houve uma alteração de cerca de 25%, atualmente em torno de 130 famílias moram na ocupação.
É verdade que as reformas urbanas e rurais são possíveis de serem realizadas na própria dinâmica do sistema capitalista, tendo já ocorrido em países capitalistas. O próprio capital se realiza nesta relação de déficit e precariedade de acesso à terra e moradia e reformas urbanas e rural. Entretanto, as ocupações urbanas e de terras podem trazer consigo elementos que entram em contradição com o capitalismo, quando direta ou indiretamente agem e forjam lutas contra a propriedade privada capitalista. Tal ocorrência se dá de forma mais evidente quando as ocupações urbanas são realizadas, ou contam com o apoio e orientação de organizações políticas que tem em seu horizonte estratégico a superação do modo de produção capitalista. Pode-se observar que mesmo a demanda imediata e de curto e médio prazo para a conquista da moradia no âmbito do capitalismo, há uma compreensão da própria organização que hoje se funde com a Contestado, as Brigadas Populares, de que a disputa pela forma e conteúdo das reformas agrarias e urbanas fazem parte de um movimento dentro do processo histórico, empenhado no desenvolvimento de uma experiência econômica que forje uma cultura habitacional e de uso e utilização da terra superior a vigente no capitalismo.
Os participantes da Ocupação foram erguendo suas habitações e diversos problemas foram sendo superados no processo. No início se montaram cozinhas e banheiros coletivos, os materiais foram sendo arrecadados perante doações e também comprados pelos participantes que construíram as habitações em forma de mutirão. Esta prática é descrita por Ermínia Maricato, em sua obra “A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial”, da seguinte forma:
A autoconstrução, o mutirão, a autoajuda, a ajuda mútua são termos usados para designar um processo de trabalho calcado na cooperação entre as pessoas, na troca de favores, nos compromissos familiares, diferenciando-se, portanto, das relações capitalistas de compra e venda da força de trabalho. (MARICATO, 1979, p. 71).
Entendemos que todo este processo de autoconstrução é algo que compõe de forma central as estratégias observadas regularmente nas ocupações urbanas organizadas ou apoiadas por setores populares e progressistas da sociedade. Podemos, assim, entender o mutirão, a coletividade e a solidariedade de classe no
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movimento dos sem teto e sem-terra como parte de uma cultura econômica e política forjada na experiência de resistir e sobreviver diante do processo de expropriação/exploração.
As experiências dos que constituem a Ocupação são compreendidas como expressão da experiência de classe dos trabalhadores, os quais vivenciam em comum a expropriação e a exploração, o que decorre, entre outros aspectos, na ausência de moradia. Da mesma forma, os trabalhadores têm em comum – enquanto classe – a insatisfação diante da sua condição de vida, a qual pode gerar processos de rebeldia, organização e luta, como é o caso da Ocupação Contestado. A categoria experiência tem como base teórica os estudos do historiador inglês Edward P. Thompson acerca da classe operária inglesa (1987), na qual abstrai a experiência dos que viveram e lutaram num determinado período histórico, considerando o processo e o sujeito na história. De acordo com o autor, a experiência “compreende a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento.” (1981, p. 15)
Com base em entrevistas realizadas com quatro mulheres da Ocupação Contestado, apresentamos elementos que compõem suas trajetórias singulares de mães, trabalhadoras, migrantes e lutadoras. Em seguida, analisamos suas experiências numa perspectiva de totalidade, enquanto expressão do problema de moradia no país e o decorrente processo de migração e ocupação urbanas.10
10 Foi feita uma inserção no campo de estudos, afim de verificar a possibilidade de concretização da pesquisa. Nesta ocasião foi contatada uma das lideranças da Ocupação para apresentar a pesquisa. Assim, ao longo do processo de investigação no campo de pesquisa, contamos com o auxílio e a mediação desta liderança. A participação de um dos autores do presente artigo na rede de apoio e a parceria já feita dos trabalhadores do movimento com professores e estudantes da UFSC e da UDESC em outras pesquisas e no auxílio à Ocupação, favoreceram a confirmação da realização do trabalho. Obteve-se o apoio técnico na captação de imagem e som, na logística de transporte, e na mediação com as lideranças da Ocupação do doutorando do PPGE/UFSC Luiz Paiva. A rotina do trabalho de campo iniciava com o deslocamento até a Ocupação por volta das 7:00 horas da manhã, assim que chegávamos nos dirigíamos para casa da citada liderança, ficávamos cerca de 1:30h a 2 horas em sua residência. Neste meio tempo, ela nos oferecia café, atualizava informações sobre os acontecimentos políticos e conjunturais do movimento, e nos ajudava a selecionar o próximo trabalhador (a) migrante a ser entrevistado (a). Ao mesmo tempo dava atenção aos filhos, às tarefas da casa e às demandas cotidianas da reprodução da vida social em uma ocupação urbana. Estes períodos nos permitiram acompanhar a resolução de alguns problemas, como por exemplo a distribuição de cestas básicas realizadas por membros da Ocupação que participavam de uma igreja evangélica da região. Auxiliamos na preparação de uma festa junina que aconteceria no local, e demos início a um processo de atualização da numeração das casas e do número de habitantes, destacando questões de coabitação e da presença de migrantes. O surgimento da pandemia da COVID-19 impossibilitou nosso apoio na atualização do senso a ser realizado. A experiência concreta
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Depois que tu começas a conhecer os teus direitos tu começas a lutar por eles.
Priscila é considerada uma das lideranças da Contestado e foi por meio dela que pudemos concretizar esta pesquisa empiricamente. Além de conceder nossa primeira entrevista, ela mediou as demais, nos auxiliando a entender melhor a experiência da Ocupação. Priscila tem 37 anos e está em uma união estável com seu companheiro, com quem vive há aproximadamente vinte anos. Ela tem seis filhos e uma neta. Natural da cidade de Joinville, nos conta que a mãe nasceu na cidade de Braço do Norte e o pai em Urubici, ambos no estado de Santa Catarina. Sua mãe quando jovem migrou e foi morar na Serra Catarinense e depois no morro da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Priscila tem dois irmãos mais velhos que nasceram em Braço do Norte e outro irmão que assim como ela nasceu em Joinville. Foi em 1992 que Priscila veio para Florianópolis, quando tinha onze anos. Após sua chegada, morou no bairro Estreito próximo ao Hospital Florianópolis na parte continental da cidade. Depois sua mãe comprou uma casa na Praia de Fora no município de Palhoça-SC, onde morou cerca de dez anos. Priscila, assim que casou, mudou-se para São José-SC, onde morou na atual casa da mãe, no Jardim Zanellato, de 2005 até o início da Ocupação em 2012.
Entre os motivos que levaram a família de Priscila a migrar de cidade em cidade, temos o elemento dos laços familiares. Sua mãe se divorciou do seu pai, ela e a irmã ficaram sob a guarda da mãe e o seu pai ficou com a guarda dos seus outros dois irmãos. Sua mãe casou-se novamente e em seguida foi buscar as duas filhas. A maioria da família da mãe de Priscila morava na região da Grande Florianópolis, mas também em São Paulo, Urubici, Paulo Lopes e Criciúma. O amparo familiar foi importante quando a mãe da Priscila se separou. Criar duas filhas sozinha seria difícil e complicado, situação comum para mulheres trabalhadoras e migrantes no Brasil.
na Contestado nos proporcionou estreitar os laços de amizade, aprendizagem e solidariedade com os/as trabalhadores (as).
11 Os nomes das trabalhadoras migrantes da Ocupação Contestado, entrevistadas nesta pesquisa, foram modificados com o intuito de preservar a identidade das mesmas.
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Priscila conta que estudou até o ensino médio, porém não o completou. Parou de frequentar as aulas após um acidente e não retornou mais, nesta época Priscila já era casada e diz ter sido um período difícil. Em suas lembranças conta que em seu tempo de escola, ela era rebelde. Era inteligente, tirava notas boas, mas tinha divergências com alguns professores por não aceitar o método de ensino.
Depois que veio para a Grande Florianópolis, relatou que estudou em aproximadamente seis escolas. Priscila recorda a tentativa de um projeto de extensão que seria realizado na Ocupação, uma espécie de supletivo acontecendo de quinze em quinze dias. Se este projeto tivesse se concretizado poderia ter retornado aos estudos. Ela percebe que a demanda por educação formal não é uma exclusividade sua e que há um número grande de jovens e adultos na Contestado que não concluíram o percurso básico da educação. Muitos deles teriam vontade de retornar aos estudos, mas a falta de oportunidades dificulta este retorno.
O aprendizado sobre os processos complexos e dinâmicos vivenciados por Priscila nestes dez anos de Ocupação transformou a maneira como esta trabalhadora migrante sobrevive e define, entre as condições possíveis, os próximos caminhos a seguir. Toda essa experiência lhe permite fazer análises sobre o que se passou.
(...) foi mapeado esse terreno e a gente ocupou (...) aqui né, porque na verdade moradia é um direito de todos e como diz o ditado antigamente, se perguntasse para mim eu ia começar a rir porque para mim antigamente sem-terra era tudo maluco (...). Aí depois que tu começas a conhecer os teus direitos tu começas a lutar por eles. Vai trabalhar o resto da vida e tu não vai conseguir adquirir nada porque a gente hoje em dia trabalha de dia para comer à noite. Então ali a gente agarrou aquilo que eram famílias que realmente precisavam daquilo ali, a gente dependia que isso aqui desse certo, não voltar para aluguel para não voltar a morar de favor, então assim, foi uma resistência muito grande e eu fui me identificando com essa luta. (PRISCILA, entrevista 1, 2019).
A luta coletiva e organizada foi uma forma de interromper seu movimento migratório, trazendo novas características para a trajetória e experiência de Priscila, alterando sua própria compreensão sobre a questão da moradia e da justiça social.
Apesar de enfrentar muitas dificuldades em seu cotidiano e de sua família, ela já não paga aluguel e não precisa morar de favor na casa de parentes. Tal condição proporciona um alívio nas contas do mês e a oportunidade de cessar o
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deslocamento contínuo. Faz dez anos que Priscila e sua família não mudam de casa, nem de bairro ou cidade.
A liderança real surge na base, trabalhadores tornando-se sujeitos políticos, Priscila é uma intelectual orgânica dos trabalhadores migrantes e dos sem-teto. Apesar de não ter uma função burocrática de líder da ocupação, a sua trajetória de vida e a maneira como ela foi lidando com sua experiência de classe dentro da ocupação a fez ser considerada uma liderança para os trabalhadores e para os apoiadores. Sua experiência nos recorda Gramsci, quando aponta que:
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, persuasor permanente, já que não apenas orador puro – e superior, todavia, ao espírito matemático abstrato, da técnica-trabalho, eleva-se a técnica – ciência e a concepção humanista histórica, sem a qual se permanece especialista e não se chega a dirigente. (GRAMSCI, 1979, p. 8).
Assim como Priscila, os militantes mais atuantes da Contestado ingressaram nas Brigadas Populares, motivados pela própria ação concreta e diária deste movimento popular, que esteve apoiando os sem-teto desde o início da Contestado. Atualmente, a Ocupação se identifica politicamente como “brigadista”, ou seja, compõe de forma orgânica o quadro de ocupações urbanas apoiadas pelas Brigadas Populares. Articula-se, assim, com a luta nacional por moradia e com as organizações políticas que lutam pelos direitos da classe trabalhadora.
Eu luto com todas as minhas forças para não sair daqui antes de ter uma moradia, porque eu não tenho para onde ir.
Todas as pessoas têm uma identidade, um rosto, uma história. Aqui mais um desses indivíduos compartilha sua trajetória, experiência e luta. Carmem, a segunda trabalhadora migrante entrevistada começou seu relato se identificando, estou com 53 anos, estou em processo de separação e tenho três filhos. Quatro filhos, porque adotei meu neto. Assim como acontece com Carmen, essa história se repete e é recorrente em muitas famílias brasileiras. As avós ajudarem a cuidar dos netos na
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falta da mãe, ou mesmo para que a mãe possa trabalhar para prover o sustento de todos. Esta trabalhadora migrante viveu esta situação por doze anos, até o momento em que a criança voltou ao convívio pleno com a mãe. Carmem nasceu em São Paulo, capital, sua mãe no estado de Santa Catarina, na cidade de Garopaba, mudou-se para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo. O pai era do Espírito Santo, ambos já são falecidos. Conheceram-se no Rio de Janeiro, tiveram uma filha lá, irmã carioca de Carmem e em seguida foram para São Paulo, onde tiveram duas filhas, Carmem é uma delas.
Observamos na sua trajetória familiar que a experiência da migração esteve sempre presente. Aos 11 anos, Carmem vai para Santa Catarina, especificamente para Imbituba, onde por falta de emprego para a mãe não ficaram por muito tempo. O que moveu a família a migrar inicialmente foi a questão da falta de trabalho e a saúde frágil de um dos irmãos que se agravava em função do clima e poluição na cidade de São Paulo. Mudaram-se novamente, desta vez para a Grande Florianópolis. Moraram no bairro Monte Cristo, Saco dos Limões, Forquilhinha e no jardim Zanelatto, onde tiveram contato com a Contestado. Carmem já tinha conhecimento de que havia um movimento de trabalhadores sem teto próximo ao local onde morava. Em conversa com uma amiga, a quem chama de Galega, ficou conhecendo melhor a Ocupação Contestado.
(...) assisti duas reuniões, primeiro assim sem vínculo (...) daí fui sorteada, não era todo mundo que pegava (...) daí fiz um empréstimo e fiz minha casinha, um chalezinho que caiu num dia de chuva forte. Mas daí vim para cá morar nesse chalezinho, eu vim para cá quinze dias depois que o pessoal entrou. (...) A gente não tinha água, a gente não tinha luz, daí foi feito um gato da água, (...) cada quadra tinha um local, uma torneira, daí a gente tinha que carregar, eu acordava às quatro da manhã para encher tudo, não tinha luz, depois que a gente conseguiu fazer um bico de luz, (...) era tudo feito na cozinha comunitária, então eu vim bem no começo. A maioria das casas era de lona. (CARMEM, entrevista 2, 2019).
Carmem ainda em São Paulo esteve com os irmãos no internato até seus 11 anos, quando se refere a esse período transparece uma certa tristeza por crescer afastada da família. Entretanto, demostra gratidão ao se referir ao aprendizado no colégio interno. Educação de qualidade, limites, disciplina, horário são elementos que ela considera importantes para a sua vida. Reconhece que a prática pedagógica dentro do colégio de freiras foi fundamental para sua formação como ser humano.
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Após o período no internato no interior de Taubaté-SP, um colégio Sírio não católico, curiosamente administrado por freiras, sua mãe retira os filhos dessa escola e vai com todos para o estado de Santa Catarina. Carmem completou o ensino médio e relata que sofreu muito, porque quando começou a migrar teve que repetir do quinto até o oitavo ano, sabendo tudo e não podendo mudar de ano escolar, repetindo tudo o que tinha estudado.
Sobre ter ingressado em uma universidade, esta trabalhadora migrante diz que por questões de saúde não foi possível. Relata ter tido problemas psicológicos que intensificaram suas dificuldades, encerrando o sonho que tinha de ser uma médica cirurgiã cardíaca. Ela chegou a fazer o curso técnico de enfermagem para se preparar para a medicina e conhecer melhor a área da saúde. Porém, permaneceu trabalhando na enfermagem até a aposentadoria. Nos dias de hoje, fala que se tivesse condições voltaria a estudar e constata que o maior problema das pessoas da Ocupação em relação ao estudo é o deslocamento e a conciliação da atividade educacional com as tarefas diárias.
Entende que se tivesse dentro da comunidade um espaço escolar, ela e as demais trabalhadoras poderiam completar seu percurso formativo. A demanda por um espaço de ensino e aprendizagem dentro da Ocupação é recorrente entre o conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Ao chegar no estado, mais especificamente em Florianópolis, Carmem trabalhou como empregada doméstica e camareira. Na sequência fez concurso público para a Prefeitura e trabalhou no munícipio como merendeira, então com dezenove anos. Diferentemente das demais trabalhadoras migrantes entrevistadas nesta pesquisa, Carmem já havia vivenciado a organização política por meio da luta sindical. É com orgulho e satisfação que ela recorda do tempo que estava atuando organicamente no sindicato, onde chegou a ser dirigente por quatro anos, entre o final dos anos 1980 e início da década de 90.
À frente do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Florianópolis (Sintrasen), a diretoria que Carmem compunha foi responsável por conquistas de direitos importantes. O estatuto do sindicato, a data base, a construção de mais de 58 sindicatos em prefeituras do entorno (como na cidade de Rancho Queimado), a informatização dos diretórios dos trabalhadores, o dia oficial de pagamento, o direito de férias e o plano de carreira, foram algumas das
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conquistas relatadas por essa trabalhadora. Ela nos conta que a maioria dos direitos que os trabalhadores do município têm hoje foram conquistados em sua época e que o setor do magistério foi o que mais avançou de lá para cá.
A gente trabalhava meia/meia, lá o dono da terra, se a gente tirava seis sacos de feijão, nós tínhamos direito a dois sacos e eles tinham direito a quatro sacos.
Ao chegar em Florianópolis, Bernadete trabalhou como doméstica com registro na carteira, mas depois de ter seus filhos, parou de trabalhar fora, e foi cuidar de outras crianças para complementar a renda do casal. Já no início de seu relato, Bernadete citou a história que originou a Ocupação, articulando seu depoimento com a sua própria história. A dificuldade de pagar o aluguel em sua antiga residência é apresentada como um fator determinante na sua iniciativa de participar do movimento.
A incompreensão e intolerância das forças do estado no dia da reintegração de posse do primeiro terreno ocupado pelos trabalhadores, marcou sua memória. O contato com a rede de apoio convenceu-a a permanecer no grupo dos trabalhadores sem teto e ajudou-a a compreender os fatores determinantes sobre o problema da moradia por ela vivenciado. Bernadete contou que chegou a falar com o candidato à prefeitura na ocasião, relatando sua difícil situação de habitação e a falta de recursos para pagar o aluguel, nesta ocasião recebeu apenas uma confirmação de que o pessoal estava de posse do terreno. Após dez anos de Ocupação, esta trabalhadora se diz contente por ter pelo menos saído do aluguel, pois já estava muito nervosa com a falta de recursos para sustentar a casa e a família junto com seu companheiro.
No começo do movimento seu companheiro resistiu a ir com Bernadete para a Ocupação, mas acabou se convencendo após essa trabalhadora determinada ter uma conversa séria com ele, questionando-o se o mesmo pretendia passar o resto da vida pagando aluguel. Bernadete começava a acreditar na luta coletiva pela moradia, entendendo-a como forma possível de alterar sua trajetória pessoal e familiar, assim como a condição de sua vida material. A própria luta organizada
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forjava por meio da experiência um processo educativo. Bernadete, assim como a maioria dos trabalhadores migrantes que, moraram de favor na casa de parentes e amigos ou de aluguel, vivenciou a realidade de mudar de residência várias vezes.
Quando chegou em Florianópolis, ainda solteira, morou com o pai e os irmãos que já haviam migrado para a região, na jornada por uma vida melhor. Bernadete relembra sua vida no Nordeste. Nascida em uma das regiões mais carentes do Brasil, experimentou na pele as mazelas da desigualdade social e dos problemas climáticos. Em períodos de seca as dificuldades sociais se agravavam, dificultando a produção e a reprodução, da vida material dos trabalhadores rurais no Nordeste. Situação que Bernadete e seus familiares conheceram de perto, tendo em vista que a produtividade dos roçados em que a família trabalhava dependia diretamente da presença das chuvas.
Assim como seus irmãos e a maioria de jovens e crianças oriundos do meio rural nordestino, filhos de trabalhadores do campo, Bernadete tem em sua trajetória de vida a experiência do trabalho infantil. Atividade essa que se desenvolveu em uma relação de trabalho análoga ao “meeiro”, assim como no trabalho doméstico auxiliando a mãe no cuidado dos irmãos menores e nas tarefas cotidianas. Bernadete vem de uma família numerosa, quatorze irmãos, pai e mãe. Relembra e compara a criação daqueles tempos com a de hoje. Constata que mesmo em meio às dificuldades econômicas, que eram muitas naquela época, era mais fácil ter uma família grande, longe da violência, onde os filhos eram criados mais livremente.
Bernadete fez a alfabetização no Nordeste, mas foi na Educação de Jovens e Adultos, quando já estava em Santa Catarina, que concluiu o ensino fundamental. No período em que estava estudando continuou a trabalhar como empregada doméstica, pois não tinha condições financeiras de se dedicar exclusivamente aos estudos, realidade da grande maioria dos trabalhadores migrantes que cursam o EJA. Sobre esta experiência compartilhada por trabalhadores migrantes é importante entender que:
[...] a escolarização é quase um artigo de luxo, mesmo que muito precarizada. As longas e duplas jornadas de trabalho, sobretudo no caso das mulheres, concorrem com o tempo escolar. O cansaço, o desânimo, a falta de estrutura para estudar, a fome, a timidez, a falta de condições necessárias para ir à escola, como transporte e vestimenta, são elementos que afastam o estudante deste processo. (PEREIRA e VENDRAMINI, 2019, p. 203).
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Em relação à possibilidade de retorno aos estudos formais, Bernadete diz que as vezes tem vontade de voltar a estudar, mas por enquanto o retorno não está em seus planos de curto e médio prazo. Seria preciso melhorar algumas coisas em sua vida para ela conseguir reingressar na EJA.
Nos dias de hoje, morando na Ocupação, Bernadete concilia seu trabalho doméstico com a atividade informal de venda de produtos cosméticos, não fica parada. Diz que não tem interesse em buscar outro trabalho, pois já tem seu tempo comprometido com a casa e as vendas. Quando era solteira e tinha emprego ajudava a mãe e os irmãos no Nordeste mandando dinheiro, depois de casada dedicou-se à sua própria família. Em busca de melhores condições de vida, trabalhadores nordestinos, assim como a família de Bernadete, vivenciam em suas trajetórias o fenômeno migratório. Após uma longa e difícil jornada migratória, a Ocupação proporcionou que esta trabalhadora migrante saísse do aluguel.
O evento trágico que caracterizou a reintegração de posse do primeiro terreno foi um momento marcante na trajetória desses sujeitos. O grau de violência estatal foi tamanho, que somado à real falta de moradia, gerou naqueles trabalhadores resistência, alterou de certa forma sua consciência e suas ações. O terror policial praticado contra aquelas famílias é lembrado por Bernadete, que descreve o ocorrido da seguinte forma:
(...) nesse dia choveu muito, foi parecendo filme de terror, aquelas crianças na chuva, todo mundo na chuva, eu também com a minha lona, meu barraquinho erguido, vindo a cavalaria na frente, aquela operação de choque, helicóptero, soltando bomba na gente (...) aquelas armas assim (...) jogando spray de pimenta. (BERNADETE, entrevista 3, 2019).
Bernadete associa sua experiência no Nordeste, onde passava as noites cuidando do gado na fazenda de seu empregador, dormindo no mato em condições precárias, como uma vivência que a preparou para enfrentar aqueles dias difíceis, onde além da violência policial, passou sozinha dormindo no barraco de lona e telha antes da ação do estado. Paralelamente, tais vivencias aprimoraram sua compressão sobre as estruturas sociais que determinam o déficit habitacional e impulsionam a migração que ocorre por questões econômicas.
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Vou falar para vocês a partir da minha fé, a bíblia diz que você tem que receber bem o órfão, a viúva e o estrangeiro.
Sônia mora na Contestado com seu único filho, um jovem estudante. Os dois tem uma relação de companheirismo, um dando força ao outro nas demandas cotidianas. A migração faz parte da história da família de Sônia. Nascida em Coronel Sapucaia, Mato Grosso do Sul, cidade da fronteira do Brasil com Paraguai, cresceu entre os dois países da América do Sul, fato recorrente para famílias que moram em cidades fronteiriças na região. Devido à relativa facilidade de transitar entre os territórios, se estabelece uma dinâmica social transnacional. Inserida nos movimentos migratórios, esta trabalhadora tem um irmão que também mora na Grande Florianópolis e outro em São Paulo.
Sônia já foi casada e hoje está separada. Seu filho nasceu na cidade de Curitiba, quando ainda estava casada. Este jovem migrante que veio para o estado de Santa Catarina com a mãe é portador de TEA (Transtorno do Espectro Autista). Tal condição tem um agravante que é a péssima política pública implementada no estado para estudantes com alguma necessidade especial. Sônia contratou uma professora particular para ajudar seu filho na disciplina de matemática, tal gasto extra compromete uma parcela da renda mensal, tornando a situação econômica desta família migrante ainda mais difícil.
Sônia nos concedeu esta entrevista em sua casa na Contestado. De uma simpatia notável serviu café e suas deliciosas empadas que são comercializadas pela mesma para garantir o sustento da família. Desde de meados de 2017 na Contestado, conta que além do aspecto emocional da convivência, do cotidiano comunitário, a questão econômica é fator central para Sônia, em seu relato destacou que:
[...] a gente morava num lugar muito isolado, porque a gente morava tipo num prédio na parte de baixo e era só eu e ele e a nossa cachorra, não tinha vizinho para conversar, tinha tipo aquela coisa meio isolada, colocava a cachorra numa cordinha e saia para passear, mas não tinha aquela aglomeração que a gente adquiriu aqui, convivência assim de vizinhos bem de perto, isso foi uma coisa muito boa. E o lado bom, melhor ainda, foi ter parado de pagar
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aluguel né, porque fazia muitos anos que eu pagava aluguel. (SÔNIA, entrevista 4, 2019).
Observando e analisando a trajetória e as condições de vida de Sônia, vemos em sua dinâmica de produção e reprodução da vida, os caminhos que a levaram a migrar da região fronteiriça entre Brasil e Paraguai para a região da grande Florianópolis. Com bom humor e otimismo fez uma brincadeira, dizendo que a única da casa que não era migrante seria a cachorrinha adotada pela família, a quem deram o nome de Vitória. Ainda disse: Na nossa casa moram três estados, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul.
A família chegou à região da Grande Florianópolis no ano de 2011. O aluguel consumia a maior parcela da renda familiar, realidade compartilhada com a maioria dos trabalhadores assalariados no Brasil. No caso dos migrantes a questão é pior, pois estes indivíduos estão distantes das suas redes familiares, na maioria dos casos. Sônia deixou sua cidade de origem em busca de novas oportunidades de trabalho, renda e qualidade de vida, se não tivesse dificuldades socioeconômicas em sua terra natal, enfatizou que preferiria ficar em sua cidade e não ter migrado.
Observando e analisando a trajetória e as condições da vida material de Sônia, vemos os caminhos que a levaram a migrar da região fronteiriça entre Brasil e Paraguai para a região da Grande Florianópolis. Os movimentos migratórios na América Latina são determinados em última instância por fatores econômicos. Guardadas as especificidades, os trabalhadores latino-americanos compreendem a migração como um caminho para sua sobrevivência, Segundo Queiros:
[...] no mundo hoje são milhares de pessoas que se deslocam na condição de migrantes internacionais, nacionais ou como refugiados. Os dados (ONU, ACNUR, IBGE) revelam um intenso fluxo das migrações entre diferentes países, cidades, para diferentes direções (inclusive pequenas e médias cidades), com dificuldade cada vez maior de fixação dos trabalhadores. (QUEIROZ, 2018, p.177).
A Ocupação Contestado traz para Sônia a libertação do aluguel e a convivência em comunidade, fatores que melhoraram a qualidade de vida da família. Ela e seu filho encontraram no convívio cotidiano com os trabalhadores da Ocupação e suas famílias um sentimento de pertencimento. O fluxo migratório na região da fronteira é intenso, tanto que a mãe de Sônia é paraguaia e o pai é brasileiro, exemplos desse fluxo. Sônia afirma que é uma mistura de Paraguai com
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Brasil, literalmente. Seu pai que faleceu quando ela ainda era criança conheceu sua mãe na fronteira, a “fronteira seca”, que é só uma avenida grande que separa os dois países. A irmã de Sônia busca roupas no Paraguai e vende no Brasil, outros irmãos também praticam este comercio. “Tia Sônia” (maneira como a chamam na Ocupação) é uma pessoa de fé, antes de migrar tinha muitas amizades ligadas à igreja e ao grupo de jovens, sua vida era “voltada para o lado da Igreja”, como diz. Agora, morando na Contestado, fez novos laços sociais, ligados à própria ocupação e à nova igreja que frequenta.
Por caminhos diferentes, as quatro trabalhadoras migrantes entrevistadas chegaram à região da Grande Florianópolis, mais especificamente à cidade de São José, onde foram levadas pelas circunstâncias da vida a participar da Ocupação Contestado, no bairro Jardim Zanelatto12. Apesar de constituírem trajetórias diversas, suas condições de vida guardam muitas semelhanças. São quatro mulheres, mães, migrantes, trabalhadoras, lutadoras e extremamente determinadas. As entrevistadas trabalharam com alimentação e no cuidado de crianças, fazendo limpeza e organizando residências, bem como na área da saúde. Portanto, todas relacionadas ao cuidado, em ocupações tradicionalmente delegadas às mulheres. Sem muitas opções, abraçaram as oportunidades de trabalho que iam surgindo, buscando conseguir seu sustento e de suas famílias. O cuidado com a casa e a família foi vivenciado por todas as trabalhadoras, configurando dupla e até tripla jornada de trabalho.
12 O povo, unido, jamais será vencido! Madeira por madeira, lona por lona, os moradores da comunidade José Nitro estão, ao longo dos últimos dias, construindo suas casas e sua história em um espaço que é o germe da Ocupação Contestado, consolidada na madrugada desta quarta-feira [dia 7 de novembro]. O nome da ocupação homenageia os cem anos da Guerra do Contestado, conflito que ocorreu no Estado de Santa Catarina no início do século XX e que, assim como em nossa luta, questionou a propriedade das terras e foi manifestação de insatisfação popular diante dos problemas sociais. A ação deve sofrer retaliações nas próximas horas e dias e a Polícia Militar de Santa Catarina já esteve no local: antes das 4h desta madrugada, a polícia surgiu para intimidar os ocupantes, mas não foi o suficiente para desistirmos. Esses trabalhadores da cidade de São José, oriundos de tantos lugares do Brasil, estão protagonizando um ato histórico diante da desorganização dos sem-teto da capital catarinense nos últimos 20 anos.” (Carta: Ocupação Contestado nasce hoje em São José! O povo, unido, jamais será vencido! Disponível em: http://brigadaspopularessc.blogspot.com.br/2012/11/ocupacao-contestado-nasce-hoje-em-sao.html. (Acessado em: 10 de outubro de 2015).
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Todas enfrentaram e enfrentam dificuldades, por vezes situações precárias. Entretanto, a Ocupação lhes proporcionou sair do aluguel e interromper suas rotas migratórias, tornando-se uma alternativa real à falta de habitação e ao deslocamento permanente. Estas trabalhadoras estão inseridas em um processo de migração interna, que é um processo social com causas estruturais que expulsa as pessoas de seus lugares. Estas causas são em sua maioria de base econômica, segundo Singer (1998). Assim, é possível afirmar que, em última instância, o fator econômico é o determinante para estas trabalhadoras migrarem.
Em se tratando das especificidades, podemos destacar inicialmente a jornada de resistência e liderança de Priscila. Considerada uma das principais lideranças por apoiadores e moradores da ocupação, Priscila teve uma trajetória de vida inserida na realidade da classe trabalhadora migrante. Vivenciando o problema da moradia, e sendo prejudicada por não ter seus direitos trabalhistas garantidos quando precisou deles por motivos de saúde, esta trabalhadora foi aprendendo pela necessidade a lutar por seus direitos sociais. Segundo Dalmagro (2016):
Os Movimentos Sociais são expressão dos limites e das contradições da sociedade atual e são, portanto, educativos uma vez que por sua atuação simultaneamente questionam as estruturas sociais e a educação delas proveniente, oferecendo pistas para novas formas de organização da vida social e da educação. (DALMAGRO, 2016, p. 2).
A luta social organizada por moradia e, consequentemente, pelo direito à cidade contribuiu para que esta trabalhadora migrante passasse a ter a condição de articular prática com teoria, nos termos de Gramsci (1994). Carmem teve em sua trajetória a experiência da luta sindical. Estudou em colégio interno, concluiu o ensino médio e fez curso técnico. Passou em um concurso na prefeitura de Florianópolis, onde trabalhou até se aposentar. A vivência do sindicalismo preparou-a politicamente, dando subsídios para a luta por moradia. O caminho percorrido por Bernadete desde o Nordeste até a Ocupação Contestado se fez em meio a condições difíceis de sobrevivência. A família numerosa, as carências de conforto, educação e alimento são um espelho de uma vida em condições desfavoráveis, enfrentando a seca, a exploração no trabalho e um conjunto de carências, como de acesso às políticas públicas. Analisando a vida material de Bernadete, de sua família e das pessoas do seu entorno, podemos reafirmar a
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centralidade da questão da terra no Brasil. A “meação”, prática utilizada no campo em algumas regiões do Brasil, é um exemplo da materialização dos processos históricos e contemporâneos que combinam expropriação e exploração.13 Segundo Fontes (2010):
A expansão da expropriação dos recursos sociais de produção não diz respeito apenas à expropriação da terra, de forma absoluta, mas à supressão das condições dadas da existência dos trabalhadores, e sua consequente inserção, direta ou mediada pela tradição, nas relações mercantis (e no mercado de força de trabalho). As expropriações não se expandem sozinhas, de maneira mecânica, segundo leis abstratas do funcionamento geral do capital, ainda que sejam uma condição geral de sua expansão. Como já lembramos anteriormente, nem sempre a expropriação resulta imediatamente na relação capital trabalho, podendo também descambar para modalidades híbridas ou mesmo meramente de rapina. Varia segundo a capacidade, possibilidade, interesse ou necessidade de extração de sobre trabalho sob a forma mais-valor das classes dominantes e, portanto, de sua própria subordinação, cada vez mais plena, a um mercado concorrencial e regido pela produtividade. Se não é abstrata e conduzida por um mecanismo rígido e cego, é, entretanto, difusa e generalizada, ocorrendo, em cada país ou caso concreto, sob pressões diversas. Resulta, contudo, em seu conjunto, na produção de levas crescentes de populações disponíveis para – e necessitadas de vender força de trabalho, para assegurar sua existência, crescentemente dependente de mercados. (FONTES, 2010, p. 89).
Na história de Sônia, observamos como questões centrais relativas a saúde do filho, a vivência na fronteira do Brasil com o Paraguai, o trabalho árduo e a religiosidade afetam sua trajetória. Toda a movimentação familiar gira em torno do bem-estar do jovem, além de enfrentarem um cotidiano de muita dificuldade econômica, a situação do filho coloca mais um desafio. Essa família viu no cotidiano da Ocupação sua vida se transformar para melhor. A “questão emocional”, como diz Sônia, juntamente com a saída do aluguel, é o ponto mais importante da participação desta família na Ocupação Contestado.
No que diz respeito ao percurso de ensino formal, por não ter concluído os estudos pela questão da saúde, Priscila aprendeu com a própria experiência, com o
13 Fontes (2010), por meio do conceito de capital-imperialismo cujas características centrais são: concentração da propriedade, expropriações, redes de dominação, encapsulamento do trabalho e garantia de circulação do capital, expõe condições centrais do sistema socioeconômico, em que os trabalhadores migrantes na Contestado estão ou estiveram inseridos. Sobre isso ver: FONTES, Virginia. O Brasil e o Capital-Imperialismo: teoria e história. 2.ed. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010.
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trabalho e a luta social. Bernadete é alfabetizada, concluiu o quinto ano do ensino fundamental na EJA. Carmem estudou em colégio interno, concluiu o ensino médio e fez curso técnico, com problemas de saúde, não pode cursar a faculdade de medicina, e acabou ficando impedida de realizar o sonho de ser médica cirurgiã. Sônia, apesar de começar a trabalhar como emprega doméstica aos treze anos, conseguiu concluir a educação básica antes de iniciar sua jornada migratória. Na opinião destas trabalhadoras migrantes, um espaço de ensino e aprendizagem voltado às especificidades da Ocupação e sediado na Ocupação poderia levar um grande número de trabalhadores da Contestado a retomar os estudos. Sobre a educação das crianças, há um esforço dos trabalhadores para que as mesmas estejam regularmente matriculadas e frequentando o espaço escolar. Essa é uma preocupação permanente, o risco do Conselho Tutelar alegar alguma ilegalidade ou descaso, afim de justificar a apreensão de seus filhos, preocupa a comunidade. Por outro lado, há um entendimento na ocupação referente à possibilidade da educação na transformação da vida material e da cultura dos indivíduos. Claro que tal entendimento é permeado pela ideologia difundida pelos aparatos estatais e privados de hegemonia do capital.
Muitos elementos se cruzam nas histórias destas quatro mulheres. Suas responsabilidades como filhas, mães e avós estão sempre presentes. Começaram a trabalhar muito cedo para ajudar na renda familiar, o trabalho se configura como central em suas vidas, seja o trabalho em casa, o cuidado dos irmãos, filhos e netos, os bicos, os trabalhos informais e, excepcionalmente, o trabalho formal. O trabalho também as moveu, ou suas famílias, a migrar, buscando melhores condições de vida. Mudaram de país, de estado, de cidade e de bairro diversas vezes. Na Ocupação, encontraram a possibilidade de se fixar num local, pelo menos por enquanto. A vida cotidiana é sofrida, os trabalhadores passam por dificuldades diárias.14 Entretanto, o fato de não pagarem aluguel é uma conquista concreta que é reconhecida pelos trabalhadores e trabalhadoras migrantes que viram na Ocupação um meio de cessar seus movimentos migratórios.
14 Apesar dos recursos financeiros limitados, a coletividade fortalece o movimento, que procura enfrentar os problemas da melhor maneira possível. Gastos com escola, comida, remédios, roupas, calçados são providenciados para as famílias com necessidades, que são ajudadas pelos outros trabalhadores e pela rede de apoio. Há muitas mulheres grávidas que foram abandonadas por seus companheiros, realidade que causa depressão e intensifica as dificuldades dessas mães, que tem na coletividade um auxílio fundamental.
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Há uma organização de base bem estruturada na Ocupação por meio de núcleos, das reuniões de quadra e a Assembleia Geral que é soberana. Bernadete considera que as assembleias são atividades em que as pessoas vão adquirindo conhecimento. Sônia participa das divisões de tarefas na Ocupação quando pode, diz que a comunicação e as reuniões para discutir os assuntos comuns são muito positivas. Priscila constata a importância da existência de um barracão coletivo - um espaço onde as mães que não tem onde deixar os filhos poderiam se organizar e neste espaço terem seus filhos atendidos e cuidados, possibilitando que retomassem seus estudos com mais tranquilidade. O protagonismo feminino na vanguarda do movimento é uma marca da Ocupação. Carmem faz uma comparação com o movimento da Ocupação Dandara que conheceu quando estava em Belo Horizonte. Relata que na Dandara a maioria das lideranças são homens ao contrário da Contestado, onde são mulheres.
Os trabalhadores migrantes experimentam uma vivência coletiva no movimento dos trabalhadores sem-teto, deslocam-se com a própria ocupação que também migra. Ela começa no primeiro terreno prometido às vésperas da eleição, vai para o ginásio, depois para o atual local onde nasce a Ocupação Contestado. A perspectiva dos trabalhadores é poder ir para um novo terreno que está em negociação com a prefeitura. Priscila afirma que há um número grande de migrantes na Ocupação, pessoas do Pará, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso do Sul na divisa do Paraguai, Rio Grande do Sul e interior de Santa Catarina, como Chapecó e Lages. Ela vê que a necessidade leva os migrantes a entrarem em uma ocupação urbana de luta por moradia e pelos demais direitos sociais15. Deixar tudo para traz e não saber o que vai encontrar é algo angustiante, a difícil adaptação em outro local não se caracteriza unicamente por questões econômicas, o modo de vida ou os costumes, nos termos de Thompson (1998) é uma questão importante no movimento migratório dos trabalhadores. O modo de vida, a maneira de falar, os hábitos alimentares, o vestuário, são fatores culturais que podem provocar discriminação e preconceito. A maneira como Priscila expõe sua própria condição de
15 O crescimento das migrações no Brasil e na Grande Florianópolis está ligado diretamente ao aprofundamento dos processos contemporâneos de expropriação que resultam em condições que deixam os trabalhadores mais suscetíveis e vulneráveis à exploração de sua força de trabalho. O discurso anti-imigração vem sendo difundido por setores de extrema direita no Brasil e no mundo. Vimos nos últimos anos crescer o número de ataques violentos contra migrantes.
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migrante e a de seus companheiros aborda um ponto interessante. Considera que não existe nenhuma legislação que determine a permanência dos sujeitos nascidos em uma região que os impossibilite ou impeça de migrar, muito menos que precisem viver para sempre num mesmo lugar.
O discurso moralizador sobre a população pobre vigente até meados do século XX em Florianópolis e que foi, em grande medida, voltado para os moradores dos morros centrais, cedeu lugar à criminalização dos pobres e de seus bairros. Palavras como “favela” tomaram o sentido atribuído já em outras partes do país para áreas perigosas habitadas por populações sem o direito de morar na cidade. O crescimento urbano logo evidenciou as deficiências da cidade para a recepção da população em expansão. Nos novos bairros em expansão a situação era crítica. Em 1972, um jornal anunciava que uma comissão pretendia “acabar com favelas”, retirando famílias dos morros da cidade. Seriam retiradas “600 pessoas” do “morro do Mocotó, na Prainha”, juntamente com mais “100 famílias que moram no Pasto do Gado”, as quais, em sua maioria, eram “do interior do Estado” e “vieram para a capital em busca de trabalho. Pobres e sem profissão definida, se marginalizam e não tendo onde morar, constroem suas malocas nesses locais criando um grave problema social”. (CAMPOS, FALCÃO, LOHN, 2010, p. 66).
No entendimento de Priscila, famílias que migraram de outros estados e tentam se fixar na Grande Florianópolis terminam por constituir a população do local, trabalham e muitos têm seus filhos aqui. Faz uma crítica ao preconceito relativo aos migrantes e a “ameaça” ao emprego dos nativos. Lembra da época que pagavam passagens de volta para pessoas que vinham do Nordeste e de outros locais para que voltassem para as suas regiões de origem.
O estado de Santa Catarina, especialmente a região litorânea, tem recebido muitos migrantes nacionais e internacionais nas últimas décadas. Entre muitos problemas, eles enfrentam a grande dificuldade de conseguir um local para morar. A questão da moradia popular não é uma prioridade social, e sim parte de um projeto de manutenção da segregação das classes sociais, levando a uma forma de espacialidade do urbano com vistas ao barateamento da força de trabalho. As famílias expropriadas, enganadas, marginalizadas e desalojadas no bairro Jose Nitro, são compostas por pessoas de baixa renda, vivenciando condições precárias de trabalho, sendo na maioria migrantes. A experiência da Contestado desenvolve-se a partir de problemas sociais históricos do Brasil, forjados na desigual divisão do trabalho. Conservados ao longo do tempo por setores da sociedade que
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se beneficiam economicamente e politicamente de um sistema de classes que produz e reproduz tal realidade visando a expansão do capital.
Neste contexto, não há outra forma de resolver o problema habitacional senão pela organização e luta dos trabalhadores. A experiencia da Ocupação Contestado aqui apresentada revela tal situação. Em meio a muitas dificuldades, repressão, preconceitos, ausência de condições adequadas de vida, associada a problemas internos organizativos, a Ocupação segue viva e necessária.
A vida cotidiana na Ocupação é sofrida, os trabalhadores passam por dificuldades diárias. A falta de um espaço adequado de recreação para as crianças brincarem em segurança é um dos problemas que mais preocupa os trabalhadores. O acesso à água e à luz são problemas constantes, devido à falta de distribuição no local. Em razão do abastecimento de água ser improvisado, existem famílias que têm maior dificuldade de recebê-la.
A organização da Ocupação se deu por meio de Núcleos, divididos em setores. A gestão coletiva do local foi difícil, causando alguns atritos entre as pessoas que ali habitavam. A Ocupação buscava se organizar de maneira coletiva e cooperada. A solidariedade sempre foi algo presente em áreas de ocupação popular, as chamadas comunidades. No entanto, esta solidariedade de classe desenvolvia-se de forma mais espontânea. No modelo proposto na Ocupação Contestado, a questão da cooperação foi tratada de maneira estrutural, ato que causou dificuldades no começo, pois mexia de certa forma com o costume já adquirido pelas pessoas ao longo de suas vidas. A experiência de trabalho, de vida e de militância apresenta elementos educativos e também de consciência da classe trabalhadora. Nos termos de Thompson (2008), a experiência vivida altera a experiência percebida. Em uma sociedade de classes organizada por relações sociais exploradoras e opressoras oriundas dos processos históricos de expropriação, a tendência é que a percepção das contradições vigentes vá avançando em maior ou menor intensidade na história.
Não há fossas nas residências, nem coleta pública formal. Existe uma coleta coletiva feita pelos próprios trabalhadores que juntam os dejetos de cada moradia e conectam à rede de esgoto. Os trabalhadores têm consciência de que esta é uma estrutura precária e provisória, entretanto não podem esperar o poder público resolver uma questão imediata e importante para a sobrevivência na ocupação. O
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cotidiano na ocupação tem seus altos e baixos. Tristeza, euforia, brigas, preocupações com a titularidade do terreno, a própria materialidade do trabalho cotidiano. Entretanto, o fato de não pagarem aluguel é uma conquista concreta que é reconhecida pelos trabalhadores, assim como pelos migrantes que viram na ocupação um meio de cessarem seus movimentos migratórios. Apesar dos recursos financeiros limitados, a coletividade fortalece o movimento, que procura resolver os problemas da melhor maneira possível. Gastos com escola, comida, remédios, roupas, calçados são providenciados para as famílias com necessidades, que são ajudadas pelos outros trabalhadores e pela rede de apoio. Há muitas mulheres grávidas que foram abandonadas por seus companheiros, realidade que causa depressão e intensifica as dificuldades dessas mães, que tem na coletividade um auxílio fundamental.
O modelo de cidade16 e urbanização do capital relaciona-se diretamente com os problemas da migração e da moradia. As ocupações de terras e edificações por movimentos sociais, ou na forma individual e familiar em ação espontânea, ocorrem no contexto de mercantilização da cidade. As condições vivenciadas pelos trabalhadores empobrecidos nas cidades são precárias, podendo até ser desumanas e insalubres. No caso específico dos trabalhadores migrantes em dificuldades econômicas, a realidade na cidade do capital pode ser ainda pior. Podem acabar na pior das hipóteses integrando a população em situação de rua, morando de aluguel em moradias precárias, situação que compromete a maior parte da escassa renda desta fração do proletariado urbano empobrecido. É importante compreender que:
O urbanismo é então a concretização da tarefa ininterrupta que resguarda o poder de classe, tendo como intenção nem sempre aplicável, a expulsão das áreas nobres e, em seguida, a atomização dos pobres em zonas consideradas periféricas, pobres cuja presença torna-se indesejável nas áreas de realização de lucros e status. (REIS, 2015, p. 84).
O problema da moradia não é um problema de capacidade técnica ou de recursos naturais em uma sociedade que busca o bem-estar e o desenvolvimento
16 A experiência dos trabalhadores na cidade do capital se desenvolve em um contexto sociocultural, onde os elementos da vida urbana tornam-se mercadorias. Na situação especifica da região da Grande Florianópolis, ocorre que a base estrutural para a organização social e econômica ainda é permeado por um modelo de cidade forjado no período do regime militar.
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das relações sociais de produção, é sim uma escolha política determinada em última instância por uma necessidade econômica estrutural da classe dominante, visando manter-se no poder. O lugar em que a classe trabalhadora habita, produz e reproduz sua vida material, está relacionado diretamente com a maneira como ela se insere no mundo do trabalho.
Há uma associação entre as expropriações históricas e contemporâneas, e entre os processos de expropriação e exploração que produzem os problemas da migração e da falta de moradia. Recebendo baixos salários ou em situação de desemprego, os trabalhadores experimentam situações de pobreza e precarização, muitas vezes sem moradia, com alimentação insuficiente e de baixa qualidade, pouca escolarização e qualificação, acabam sendo expulsos dos seus locais de origem e/ou compelidos a ocupar e lutar pelo direito à moradia e à cidade.
Os trabalhadores migrantes vivem uma experiência comum de expropriação/exploração no sistema capitalista e na sociedade burguesa, mas que contém em si a possibilidade de forjar uma organização e consciência, provocando o entendimento das relações sociais em que se encontram. A ocupação é uma ação fundamental para os trabalhadores sem-teto continuarem a produzir e reproduzir suas vidas, pois as saídas propostas pelo capital para a resolução de seus problemas não garantem sua sobrevivência. Sendo assim, concluímos que a Ocupação Contestado é expressão, por um lado, do processo de expropriação e exploração no trabalho, da ausência de moradia e da violência do estado. De outro, revela a indignação e a capacidade de luta dos trabalhadores que passam a se organizar. Esse processo forja uma experiência de vida com caráter educativo, nos termos de Thompson (2008), a experiência vivida altera a experiência percebida, levando-nos a afirmar que a ocupação educa.
As trajetórias das mulheres migrantes entrevistadas expressam a situação de vida dos trabalhadores em geral. Suas histórias se entrelaçam. Elas revelam uma vida de expropriação, mas também revelam determinação e bravura. Essas mulheres vindas de lugares diferentes do Brasil se encontraram na Ocupação
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Contestado. Hoje são lideranças do movimento, forjadas na própria base, por meio da experiência.
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