V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
Marcelo Stortti2 Michelle Sato3 Celso Sanchez4
e todas e todos que construíram as memórias de luta do Fórum Global
Escrito para a seção “Memória e Documentos” da Revista Trabalho Necessário (TN 43), o objetivo deste texto consiste em fazer uma breve reflexão e teorização sobre o “Tratado de Educação Ambiental”. Na primeira parte é resgatado o contexto histórico-cultural de sua data de publicação na Rio-92. Depois, são analisados os desdobramentos do Tratado na sociedade, demonstrando como resultados as centenas de políticas públicas e de pesquisas e programas de formação no campo das pesquisas. Na terceira parte são analisadas as concepções teóricas acerca do processo de construção desse documento. E no final, apresenta-se como esse “Tratado” ainda tem um papel fundamental na sociedade atual.
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1 Artigo recebido em 01/08/2022. Aprovado pelos editores em 03/09/2022.. Publicado em 10/11/2012.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55046.
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO-Brasil). Pesquisador do Grupo de Estudos em Educação Ambiental Desde El Sur (GEASur) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO-Brasil). E - mail: marcelostortti@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2106651931972194. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1400-9834.
3 Pós-doutorado em Educação no Canadá (Montréal), na Espanha (Coruña) e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO-Brasil). Docente da Universidade Federal de Mato Grosso no Programa de Pós-Graduação em Educação. Grupo Pesquisador em Educação Ambiental. E-mail: michelesato@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9834-4642.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8536226415824413.
4 Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO-Brasil). Docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Estado Rio de Janeiro (UNIRIO-Brasil). E-mail: celso.sanchez@hotmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3777970267731343. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5634-023X.
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O caminho que nos fazia chegar até a Eco-92 e suas tendas verde e brancas estendidas no Aterro do Flamengo, pintavam aquele cenário, como o que hoje Krenak chamaria de “paraquedas coloridos”. O início da década de 1990 nos obrigava atravessar muitas avenidas, hiperinflação, eleições diretas frustrantes para presidente, a morte inesperada de Tancredo, o Brasil dos anos 1990 vivia de sustos.
Havia um cheiro de ditadura ainda, que não saía das narinas pelas injustiças e atrocidades causadas pelo golpe de 1964. A dor foi intensa e se prolongou nos ecos da ditadura, repressão, cortes das liberdades de expressão, controle e manipulação da imprensa e período de muito medo. E hoje, o que mudou? Continuamos sob a hegemonia militar, agora misturada com igreja evangélica da Idade Média e com a emissão de gases estufa do agronegócio.
Entravam em choque as contradições que nos constituem, expostas ali nos 1,2 milhão de metros quadrados, entre o centro e a zona Sul da cidade do Rio de Janeiro que sediou a conferência oficial da ONU para debater o meio ambiente: a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, ou simplesmente a Rio- 92. Evento considerado “divisor de águas” no Brasil, com início de inúmeras políticas ecologistas a partir desta data, inclusive a abertura de vários programas de pós-graduação com o ambiente em suas políticas.
No Aterro, a Eco-92 ou Fórum Global, reunia outra fauna, flora e outros “seres” diferentes dos engravatados que selavam acordos sobre clima, biodiversidade e Agenda 21. Nas tendas circulavam diferentes sotaques, pessoas com roupas coloridas, trajes indianos, monges tibetanos, jovens com seus bottons e reivindicações, cabelos compridos e raspados e sacolas coloridas carregando sonhos encharcados de utopias.
Em uma dessas tendas, o “fogo no canavial da fazenda” era lançado e um outro mundo era pensado e gestado. E o sentir-pensar-fazer da educação ambiental pulsava nos corações dos presentes para construir um documento internacional que tornou a Carta de princípios da educação ambiental: “Tratado de Educação Ambiental Para Sociedades Sustentáveis e de Responsabilidade Global5”.
E que saudade daqueles tempos, de ver a liderança indígena, o grande cacique Raoni exibindo a pele de uma onça e sendo irônico dizendo que queria
5 Um encontro de gerações com o Tratado no coração: versos, imagens e poéticas, mas sobretudo um compromisso político que hoje orienta a educação ambiental brasileira: https://observatorioea.blogspot.com/p/tratado-ea.html.
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vendê-la a algum “gringo” que pagasse mais, assim como os governantes queriam vender o Brasil. Ah, que saudade enorme de ver Paulo Freire dizer:
Na história da experiência de viver, que caracteriza a experiência dos outros animais, das árvores e da experiência humana, nós, homens e mulheres, fomos os únicos capazes de inventar a existência. (...) Nós temos que colocar a existência decentemente a frente à vida, em sua contradição com a vida, em sua dialética, de tal maneira que a existência não mate a vida e que a vida não pretenda acabar com a existência, para defender os riscos que a existência lhe impõe. Isso para mim faz parte dessa briga pelo verde. Lutar pelo verde, tendo certeza de que sem homem e mulher o verde não tem cor. (VIEZZER; OVALES, 1995, p. 14).
Depois de 30 anos olhando para o Tratado, podemos ver como ele permanece atual e quanto de suas reivindicações hoje não apenas contemporâneas, mas ainda parecem ser distantes de concretização em função do caótico momento de retrocesso político e de colapso ambiental. Nesse período, aprimoramos os discursos da questão ambiental, criando diferentes e diversos movimentos de institucionalização da educação ambiental. Um dos exemplos é o caso da Política Nacional de Educação Ambiental, de 1999, com evidente inspiração nas diretrizes e princípios destacados no Tratado. Infelizmente, vale ressaltar que o atual governo de Bolsonaro busca destruir as vanguardas conseguidas, destruindo as políticas ambientais e deixando os espaços ao agronegócio - maior responsável pela emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) no Brasil (SATO, 2021).
Esse documento internacional ainda ajudou a constituir grupos de pesquisa para fundamentar determinados discursos e debates em torno da educação ambiental. Com especial atenção à América Latina, a Educação Ambiental se revestiu de uma narrativa política e, portanto, com argumentos para muito além da ingênua conservação da natureza, com políticas explícitas da intrínseca relação entre humano e natureza.
O Tratado traz à tona a responsabilidade das sociedades e dos governos à saúde ambiental, em contrapartida do discurso hegemônico que prioriza o individual em detrimento do coletivo e comunitário. A Carta de Princípios é essencial, porque desafia a hegemonia instituída do “desenvolvimento” sustentável, sob a tática instituinte de “sociedades sustentáveis”. Esta política dialoga com as atuais teorias do Capitaloceno (MOORE, 2016), que denuncia as disparidades socioeconômicas,
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dando nomes, endereços e telefones dos maiores emissores de GEE, que são as minorias atuando internacionalmente na promoção da riqueza individual e gerando a injustiça socioambiental na Terra.
Como podemos observar nas palavras de Paulo Freire e nas muitas vozes mundiais, o Tratado considera esse processo educativo permanente, em diálogo com as responsabilidades sobre a equidade ambiental de todas as formas de vida e as suas diferentes inventividades sobre a própria existência e as suas experiências de viver, ser e existir no mundo. Também busca fazer uma leitura de mundo “outra” e refletir sobre os valores e caminhos que possam surgir para transformar a realidade imposta pelo sistema mundo capitalista colonial em nível local, nacional e planetário.
O Observatório da Educação Ambiental (Observare) republicou recentemente o Tratado na sua íntegra, com seus 16 princípios6: a educação como um direito de todos; baseada em um modelo freireano, onde todos somos educandos e educadores. A sua base é o pensamento crítico e inovador em todos os modos formais e não formais; ela permite constituir sujeitos que valorizam e obedecem a autodeterminação, a soberania, as culturas e a territoriania dos povos originários, dos povos de terreiro, dos quilombolas e de diferentes grupos sociais em situação de vulnerabilidade. Assume que a educação ambiental é um ato político; apresenta uma perspectiva holística, embasada na relação integrada do ser humano com a natureza. Visa incentivar e fortalecer os grupos populares da sociedade; valorizar e estimular as diferentes formas de conhecimentos e saberes. Requer a publicização e enfrentamento dos conflitos socioambientais; ampliação dos diálogos entre diferentes segmentos da sociedade e entre os indivíduos; democratizar os meios de comunicação de massa; desenvolver a eticidade, o respeito e a solidariedade a biodiversidade, os seus ciclos vitais e a exploração das diferentes formas de vida.
O Tratado estimula a universalização da educação permanente e incentiva atividades pedagógicas de maneira presencial, remota ou de forma difusa, para diferentes idades e segmentos da sociedade. A educação ambiental é muito importante pois possibilita a troca de saberes entre os indivíduos da sociedade e as suas diferentes culturas, permitindo que saberes milenares sejam compartilhados.
6 A arte é do artista russo, Vladimir Gerasimov, que na ocasião, permitiu a licença para usarmos as imagens: https://1drv.ms/b/s!ArAwKvScjHNvhL09_uvlvQVaAH7yUA.
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Possibilita, igualmente, a divulgação e a abertura dos diálogos entre os diversos e diferentes saberes: leste e oeste; norte e sul; saberes científicos, tradicionais ou outros saberes que, por direito, não possuem hierarquia em suas legítimas existências. Esse modelo pensado fora do sistema mundo capitalista colonial tenta diminuir as relações de poder entre educando e educadores buscando construir novas relações e estabelecer que todos somos eternos aprendizes de alguns saberes e fazeres e mestres de outras formas de conhecimento.
Esse processo educativo pode estar embasado no pensamento crítico, que pode estar associado por um determinado ponto de vista pela Escola de Frankfurt, por meio de Max Horkheimer e a sua ilustre publicação “teoria tradicional e teoria crítica”. Que na concepção desse autor pode ser diferenciada como:
A teoria em sentido tradicional, cartesiano, (...) organiza a experiência à base da formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual. (...) A gênese social dos problemas, as situações reais, nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma considerada exterior. A teoria crítica da sociedade, ao contrário, tem como objeto os humanos/os homens7 como produtores de todas as suas formas históricas de vida. As situações efetivas, nas quais a ciência se baseia, não é para ela uma coisa dada. O que é dado não depende apenas da natureza, mas também do poder do humano/homem sobre ela (HORKHEIMER, 1983a, p.163-164).
Como podemos observar, a teoria crítica proposta por Horkheimer envolve um olhar para além da pura análise das transformações econômicas, pois trata-se de um prognóstico do contexto local, de reflexões sobre as dificuldades que os sujeitos sociais têm em se emancipar das amarras da dominação e da opressão, envolvendo um outro olhar sobre os processos educativos para a emancipação e a construção de um pensamento e ações com viés crítico.
Esse intelectual pode ter contribuído também com outros princípios do Tratado, com a sua preocupação pelos processos psicológicos dos sujeitos e as transformações que ocorrem na dimensão cultural, chamando atenção para a necessidade de envolver outras áreas da sociedade, como lazer, as atividades artísticas, esportivas, religiosas, os direitos de todos os seres coexistentes na natureza entre outros.
7 No texto traduzido de Horkheimer, prevalece a linguagem sexista (do “HOMEM”). Contudo, consideramos que seja uma linguagem sexista e colonizadora, dissonante com os princípios do Tratado. Por isso, os autores modificaram a linguagem da citação sob a licença poético-política.
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Nesse novo momento de rememorar esses dias e essas ideias, dialogando com a tenebrosa realidade atual de desmonte de direitos e aumento de exploração e opressão, vale a pena lembrar da reflexão de Horkheimer (1983b) que a classe trabalhadora tinha sido subsumida pelo modelo capitalista, através da dimensão mercantil da indústria de cultura de massa e não desenvolvia o seu papel de antagonista desse modelo de desenvolvimento e de modos de ser e viver explorados no mundo.
Trinta anos depois da publicação do Tratado, estamos muito distantes de alcançar seus objetivos e aspirações. Entretanto, apesar dos desmontes em função das políticas de extrema direita instaladas no Brasil em 2018, há avanços nos campos teóricos e ideológicos, que seguem mobilizando diversas gerações e não podem ser parados. As universidades públicas estão mais diversas e com isso, novos temas têm entrado em pauta nas pesquisas e conhecimentos antes negligenciados, estão ganhando evidência e sendo valorizados; o racismo, o machismo e a LGBTfobia não são mais tolerados como há três décadas; os debates sobre questões ambientais estão cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas e tem sido amplificados com as novas tecnologias.
HORKHEIMER, M. Filosofia e teoria crítica. In: HORKHEIMER, M. et al. Textos escolhidos: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. São Paulo: Abril Cultural, 1983a.
HORKHEIMER, M. Teoria tradicional e teoria crítica. In: HORKHEIMER, M. et al. Textos escolhidos: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. São Paulo: Abril Cultural, 1983b.
MOORE, J.. Anthropocene or Capitalocene? Nature, history, and the crisis of capitalism. Oakland: PM Press. 2016.
SATO, M. Aurora e crepúsculo do capitaloceno. In: SATO, M & DALLA-NORA, G. (Orgs). Turbilhão de ventanias e farrapos, entre brisas e esperançares. Cuiabá: Ed Sustentável, p. 9-18, 2021.
VIEZZER; M.; OVALES, O. Manual Latino-Americano de Educ-ação ambiental. São Paulo: Gaia, 1994.
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