V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


O LEGADO DE LISETE ARELARO: PRESENTE ONTEM, HOJE E SEMPRE EM SEUS ENREDAMENTOS COM PAULO FREIRE1


Angela Rabello Maciel de Barros Tamberlini 2




1 Artigo recebido em 09/07/2022. Aprovado pelos editores em 11/07/2022. Publicado em 21/07/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.55195.

2 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professora Associado IV da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Membro permanente do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho-Educação, Neddate. Editora adjunta da Revista Trabalho Necessário – TN 42. E-mail: angmlini@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3818755472230739. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8543-3881.

Apresentação3


No momento que o pensamento ultraneoliberal e ultraconservador se impõe temporariamente sobre as diferentes sociedades do planeta, apresentar o contraponto da investida destes pensamentos e do capital é de fundamental importância, o que demonstra a presença de muitas lutas, resistências e experiências emancipatórias, compondo outros discursos, mesmo que não hegemônicos, mas que se faz necessário o reconhecimento, explicitando que um outro mundo, uma outra educação é possível.

Esta transcrição é uma homenagem à professora Lisete Arelaro, que nos deixou há pouco tempo, mas é eterna referência na formação de várias gerações de educadores e pesquisadores em educação. Dona de um inquebrantável otimismo, além de nos oferecer os seus ensinamentos, nos brindava sempre com a sua disposição para a luta por um mundo mais justo e pela garantia dos direitos humanos e dos direitos sociais, sobretudo à educação pública de qualidade, em todos os níveis, etapas e modalidades, ao alcance de todos e todas. Com uma larga e destacada trajetória no campo da educação brasileira, a Professora Lisete Arelaro atuou na educação básica como professora e diretora, no ensino superior, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, na graduação e na Pós-Graduação, foi diretora da faculdade, tendo participado e presidido as suas mais variadas comissões e conselhos, inclusive tendo se destacado como representante eleita no Conselho Universitário da USP. Recebeu o título de Professora Emérita da FEUSP, em junho de 2021, merecida homenagem por sua atuação no ensino, na pesquisa, na extensão e na gestão, acrescidos da participação intensa nas instituições de Pesquisa, como a ANDE, ANPED, ANFOPE, ANPAE, FINEDUCA e outras, além da participação na UNDIME, no Estado de São Paulo e na articulação da UNDIME Nacional. Teve também participação ativa nas discussões sobre o Plano Estadual de Educação de São Paulo e sobre a legislação federal.

3 Este texto é uma transcrição de evento – de uma roda de conversa – realizada pela Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense no âmbito do Festival Paulo Freire, projeto de extensão que congregou várias atividades, de abril a novembro de 2021, em homenagem ao centenário de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, com quem a Professora Lisete Arelaro teve fortes vínculos, tanto no trabalho conjunto, como na convergência de ideias e convicções políticas e pedagógicas. Contamos com as apresentações da Professora Nazareth Salutto, representando a Comissão Organizadora do Projeto e do Professor Jairo Selles, vice-diretor da FEUFF, em nome da direção da faculdade.

Participou ativamente das Conferências Brasileiras de Educação, do “Centro de Estudos Educação e Sociedade”, CEDES, do Conselho Científico da CAPES da Educação Básica e de diferentes fóruns em defesa da educação pública, com qualidade social, um de seus principais compromissos pelo qual lutou incessantemente ao longo de toda a sua vida.

Quando esteve à frente da direção da Faculdade de Educação da USP empenhou-se na promoção de encontros de trabalho com professores das redes municipais e estadual, ampliando a interlocução com os professores da escola básica, estreitando laços com as redes públicas de ensino, na luta pela democratização do acesso à educação pública com qualidade para os setores populares, cuja inclusão social sempre defendeu. Promoveu também a aproximação com as outras unidades da USP, e realizou seminários e diálogos fecundos com intelectuais e políticos em torno de temas tratados nas políticas estadual e federal da educação.

Aliando densa formação acadêmica à experiência na administração pública, trabalhou na equipe de Paulo Freire quando este foi Secretário Municipal de Educação, na gestão de Luiza Erundina na Prefeitura da São Paulo (1989-1982) e foi Secretária Municipal de Educação de Diadema, em São Paulo, por duas vezes.

No trabalho com Paulo Freire, na Secretaria Municipal de São Paulo, o trabalho coletivo, a gestão democrática, a valorização dos professores e de suas condições de trabalho receberam especial atenção.

Com fortes críticas à privatização do ensino e ao empresariamento da educação, Lisete combateu veementemente as parcerias público-privadas que possibilitaram que os interesses privados se sobrepusessem ao interesse público, permitindo tanto a destinação de recursos do Estado para empresários, por meio da compra de kits pedagógicos e livros didáticos para as escolas públicas, quanto a padronização de currículos e supressão da autonomia intelectual dos docentes. Contrapunha-se à educação a distância, denunciando em seus escritos a atuação de grandes conglomerados que, no ensino superior, em São Paulo, ofereciam as disciplinas teóricas, tais como filosofia, sociologia e psicologia de modo não presencial, priorizando oficinas e cursos presenciais só para o ensino de metodologias e práticas, privando os futuros docentes de acesso aos conhecimentos aprofundados nas disciplinas que possibilitam mais reflexão e exercício do pensamento crítico. Combatia esta formação de professores, destacando que

atualmente 75% das matrículas nas licenciaturas estão no setor privado, que, majoritariamente oferece formação domesticadora.

Ao fazer a crítica contundente das ONGs e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, OSCIPs, cuja existência e disseminação foi favorecida pela Emenda Constitucional 19, de 1998, de Bresser Pereira, introduzindo o conceito de público não estatal em nossa Lei Maior, Lisete temia que


A responsabilidade pela oferta dos serviços, historicamente considerados como obrigações privativas do Estado, pudesse ser transferida a terceiros, em particular, os “serviços que atendessem ao interesse público”. Introduziu-se com legitimidade legal, a possibilidade de privatização e de terceirização dos serviços públicos, já em franco desenvolvimento em todo o país, por meio das organizações sociais de interesse público (Oscips) (AREARO, 2017. p.17) 4


A Professora Lisete também militou em partido político, entidades acadêmicas e sindicais e, nos projetos de extensão dos quais participou, dedicava-se à defesa da necessidade de implementação de políticas públicas que transcendessem governos, que fossem políticas de Estado para garantir o direito à educação extensivo aos trabalhadores.

Esteve sempre comprometida com as classes populares: dentre as suas diversas atividades, desde o início de sua carreira. Em meados da década de 1960, participou do Programa de Assistência Técnica em Educação, em Alagoas, por meio de ações que visavam contribuir com o desenvolvimento educacional das regiões Norte e Nordeste, programa este vinculado ao Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, onde também atuaram Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Luiz Pereira e outros pesquisadores destacados, com quem conviveu. Dentre muitas outras iniciativas, mais recentemente, se dedicou ao “projeto de formação de Educadores Populares Infantis, destinado aos movimentos populares (MST, MTST, entre outros) com o intuito de melhor qualificar esses educadores populares”, ofertando ainda curso de Especialização em Educação e Agroecologia para lideranças do campo, pois os seus “ideais de justiça social não são apenas discurso, mas atividades e práticas consistentes” 5


4 ARELARO, L.; SILVA, S. Avaliando políticas sociais no Brasil: algumas diretrizes fundamentais. In: SILVA, S.; ARELARO, L. Direitos sociais, diversidade e exclusão: a sensibilidade de quem as vive. Campinas: Mercado de Letras, 2017.

5 KRUPPA, S. Prefácio. In: ARELARO, L. Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. Disponível em: livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/622.

Para a garantia de educação de qualidade, concebida como um direito social, de que as classes populares possam desfrutar, Lisete sempre considerou fundamental a defesa da educação pública, estatal, de qualidade, socialmente referenciada, que acolha as diferenças. Nesse sentido, a defesa da democracia e da participação popular na tomada de decisões, a gestão democrática da educação e o acesso ao conhecimento e à informação constituem um imperativo. Considerava que os interesses coletivos precisam ser respeitados, adequando o trabalho na escola à diversidade do alunado, às condições sociais do local onde a escola se insere, investindo fortemente nas condições de trabalho e salário dos docentes e na infraestrutura do espaço escolar.

Para tanto, afirmava a necessidade de combater o empresariamento da educação, as concepções neoliberais que visam a oferta de formação instrumental ao alunado, pautada em “competências e habilidades”, voltada ao atendimento das necessidades imediatas do mercado, distantes da perspectiva da formação humana, integral, que possibilite às classes trabalhadoras, por meio de uma educação emancipadora, se tornarem capazes de atuar como agentes históricos e sociais, transformando a realidade.

Lisete apontava em seus textos o evidente retrocesso presente na atual reforma do ensino médio, cujo embrião já se encontrava nas proposições da legislação da década de 1990, nos projetos do governo peessedebista, reforçando a dualidade estrutural que sempre caracterizou a educação brasileira nesta etapa, agora implementada com nova roupagem, mantendo a velha discriminação social. E nos alertava em relação aos impactos da Base Nacional Comum do Currículo, reforçada pela BNC – Formação, nos currículos dos cursos de Pedagogia e Licenciaturas, instados a se adequar a estes documentos que fragilizam a formação dos futuros docentes e pesquisadores da educação básica e, a um só tempo, ferem a autonomia universitária e desconsideram pesquisas e trabalhos dos professores do ensino superior.

Lisete investigou com profundidade movimentos e grupos empresariais como o Instituto Ayrton Senna, o Todos Pela Educação e outros, já que também se dedicava às pesquisas sobre financiamento da educação, preocupada com os necessários recursos para a garantia de universalização do acesso à educação de qualidade à população brasileira. Demonstrou como a legislação de nosso país, sobretudo da década de 1990 à atualidade, favorece a drenagem de recursos

públicos ao setor privado, possibilitando ainda o controle ideológico dos conteúdos ofertados no sistema público de educação aos nossos estudantes e buscando tolher a liberdade de cátedra.

O empresariamento da educação, de acordo com Lisete, levaria à perda da função social da escola, resultando na


perda de referência em relação à própria definição dos objetivos da escola, ou da sua “missão”, confundindo-se seu objetivo permanente de socialização dos conhecimentos, realizado a partir de uma seleção crítica e variável de conteúdos, considerando os diferentes grupos-classe, que lhes permite uma sólida formação intelectual, com um caráter efêmero e quase místico da função da escola – uma escola sem diferenças e desigualdades sociais, em que as novas tecnologias (a internet em especial) superam as origens de classe. (ARELARO, 2007, p.911-912) 6


Coerente com as suas ideias, referendadas por sua prática, a Professora Lisete nos proporcionou uma agradável e inesquecível tarde, em que falou sobre seu trabalho, convivência e experiência atuando com Paulo Freire.


Angela Tamberlini


Olá, boa tarde a todos e todas. Hoje a nossa roda de conversa aborda o tema “Por que Paulo Freire continua atual?” Neste evento do Festival Paulo Freire que vem abrilhantando as nossas atividades durante todo o ano, desde abril. E hoje temos a satisfação de ter a presença da professora Lisete Arelaro, professora titular da Faculdade de Educação da USP e professora emérita da mesma faculdade, da qual foi diretora também. Tem uma larga trajetória de atuação no campo acadêmico, político e administrativo. Foi Secretária de Educação do município de Diadema em São Paulo, duas vezes, e também presidiu o Forumdir, Fórum de Diretores e o FINEDUCA, que faz pesquisas sobre o financiamento de educação. Durante toda a vida se dedicou à educação: desde a educação básica como professora e diretora no ensino fundamental e médio, passando pelo ensino superior e passando pela atuação política. Foi candidata a governadora na última eleição de São Paulo, pelo PSOL, Partido Socialismo e Liberdade. Neste momento, acima de tudo, vamos destacar o trabalho que a professora Lisete fez participando da equipe que trabalhou

6 ARELARO, L. Formulação e implementação de políticas públicas em educação e as parcerias público-privadas: impasse democrático ou mistificação política? Educ. Soc., vol. 28, n.100 - Especial,

p. 899-919, out. 2007.

com Paulo Freire, na gestão de Luiza Erundina, em São Paulo, de 1989 a 1992. Ela trará muitas contribuições para o nosso festival, fechando com chave de ouro nessa semana em que ele se encerra e podemos então começar aqui um diálogo lembrando, desde o início, da atuação do Paulo Freire, na década de 60, um período riquíssimo de atuação e de luta pela justiça social e pela igualdade, por um país melhor, com uma juventude imbuída de muitos ideais e que se empenhou nas lutas dos movimentos populares, da cultura e educação popular, lembrando do MCP, Movimento de Cultura Popular, do qual Paulo Freire fez parte. Naquele momento se abraçava, inclusive no campo das pesquisas, a importância da sociologia da educação como uma contribuição para se pensar a educação numa perspectiva social. A pesquisa social ganha vulto nesse momento e com intenso trabalho no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, nos Centros Regionais, com a gestão do Anísio Teixeira no Centro Brasileiro, mas no Centro Regional de São Paulo há a presença do Florestan Fernandes e do Antônio Cândido, deixando marcas fortes. O Luiz Pereira é um herdeiro dessa corrente e Paulo Freire, inclusive, teve uma participação durante um tempo no CRPE do Recife, único que ganha o nome da cidade e não do estado, e o CRPE de Recife tem uma parceria com o MPC e com Miguel Arraes. Antes de passar a palavra para a professora Lisete comentar, só quero destacar que esse momento é muito rico, até porque é o momento onde nós tínhamos tempos de democracia, algo que precisamos valorizar muito hoje em dia, quando nos deparamos com o império da ignorância, da visão fascista, dos gabinetes de ódio, tentando minar possibilidades como essa, que visavam justamente a libertação dos trabalhadores no Brasil, um país profundamente desigual, e que naquele momento, se não houvesse o golpe, nós teríamos avançado muito mais e não teríamos a situação gravíssima de exclusão social que temos hoje. Então eu gostaria que a professora Lisete comentasse a trajetória do Paulo Freire, desde esse a década de 60, esse período tão rico que vai ser ceifado pelo golpe de 64. Ele já inicia suas atividades na década de 50 e tem um trabalho intenso, mas Paulo Freire não para, ele continua atuando depois, no exilio, mas vou passar a palavra para a professora Lisete.

Lisete Arelaro


Boa tarde a todos, todas e todes. Quero cumprimentar a Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense por essa atividade, que só engrandece o nome das universidades públicas hoje no Brasil. E queria, na pessoa do professor Jairo, agradecer aqui o convite que vocês, tão gentilmente, me fizeram.

É sempre um prazer falar de Paulo Freire, um prazer e até um dever, porque como o professor Jairo lembrou, ele acabou virando “maldito“ pelo grupo, especialmente, da “escola sem partido” que, na verdade, nós sabemos que o nome verdadeiro é “escola com mordaça”, no sentido de que hoje há um controle ideológico que está em pleno vigor no Brasil. A demissão dos nossos 31 colegas no Inep deixa claro, exatamente, o que está sendo para fora e para dentro, a pressão para adoção de uma proposta de ensino e de educação que contraria totalmente o pensamento de Paulo Freire. Por isso que eles querem realmente é deslegitimá-lo, mas, ao contrário, parece que as coisas foram interessantes. Porque hoje quando ocorre o centenário, muitos que nem sabiam que o Paulo Freire existia, muitos brasileiros - parece que o Paulo Freire é mais conhecido lá fora que aqui dentro - leram muito, fizemos muitos debates e estamos fazendo ainda muitos debates sobre o nosso grande educador. Eu diria que hoje o Paulo Freire é um nome nacional, de conhecimento, de leitura e de esperançar, porque, realmente, nessa situação horrorosa em que nós estamos, ter certeza científica, artística e literária de que a esperança é possível, é muito bom. E Paulo Freire faz esse percurso, nos ajuda a percorrer essa travessia.

Então é bom que nos lembremos, que estávamos nos anos 60, no nacional-desenvolvimentismo, que trouxe também uma concepção para a educação como nunca se tinha tido, no sentido de que ela mudava as pessoas. E, logicamente, com o governo Juscelino Kubitschek que antecedeu (esse momento), essa ideia de que o trabalhador brasileiro precisava ganhar outras dimensões, acabou fazendo da educação um pólo de interesse e ele entra na agenda nacional, talvez um dos últimos governos em que a educação entra na agenda nacional realmente com prioridade. Vamos lembrar que depois de tudo, João Goulart (Jango) assume o governo e, evidentemente, se ampliam as possibilidades para o enfrentamento daquilo que era chamada uma chaga, que era o analfabetismo maciço na população brasileira. A UNE, União Nacional dos Estudantes, naquele

momento também compra a ideia da alfabetização de adultos e vira uma obrigação de todos nós, estudantes naquela época, seja do ensino médio, ou do ensino superior, assumirmos a qualquer tempo e sabendo ou não sabendo das coisas, assumindo realmente a responsabilidade por classes de educação de adultos. É um período em que no Brasil você encontra classes de alfabetização nos lugares mais inimagináveis do país, especialmente naquele momento. Também nas paróquias católicas progressistas, porque nós estávamos vivendo a teologia da libertação e, portanto, estávamos com duas grandes questões. Primeiro, uma discussão importantíssima sobre as reformas de base no Brasil, das quais fazem parte a educação trabalhista e a reforma agrária.

Pensem bem nos anos 60, nós já estávamos discutindo no Brasil a importância da reforma agrária e nós estamos em 2021 e até hoje, a reforma agrária não só não aconteceu, como o movimento mais organizado dos trabalhadores, que é o Movimento dos Trabalhadores Sem Terras no Brasil, continua sendo perseguido e morto. Ainda anteontem mais dois de seus líderes foram assassinados, exatamente por interesses de uso da terra da forma mais perigosa e desastrosa para o Brasil. É nesse clima que estava o Paulo Freire assumindo inclusive a responsabilidade pelo plano nacional de alfabetização e os movimentos sociais estavam eclodindo,

Lembrando isso, que esta é uma fase em que existem em debate no Brasil vários projetos políticos de esquerda e, portanto, é um momento de organização social e de reorganização social muito importante. Aliás, no final dos anos 50, inícios dos 60, nós até não estudamos mais nas escolas, mas se vocês forem ver, é onde muitas experiências interessantes em escolas começam a acontecer. A Angela aqui conosco, a professora Angela escreveu um livro importantíssimo7 sobre uma das experiências que se fez em São Paulo e que marca até hoje o que era uma visão de educação política, uma educação para a liberdade nos termos do Paulo Freire e que foi experienciada aqui em São Paulo. Com muito sucesso, até a ditadura empresarial-militar chegar, então é importante lembrar disso. Quero também dizer o seguinte: que é muito interessante porque Paulo Freire, apesar da grande e evidentemente bem-sucedida experiência de Angicos, tinha uma grande preocupação que não nos iludíssemos que 40 horas iriam dar conta da


7 TAMBERLINI, A. R. M. B. Os Ginásios Vocacionais: a dimensão política de um projeto pedagógico transformador. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001.

alfabetização. Aquela era uma circunstância especial com os trabalhadores camponeses, numa determinada região e circunstância, que não se repetiriam, é importante lembrar.

Agora, é fundamental frisar que quando se diz que primeiro é a leitura do mundo, depois as palavras, nós estamos dizendo que o entendimento da realidade é fundamental e, portanto, não é só um problema de ser bem-sucedido, não importam as horas, mas efetivamente a alfabetização e pós-alfabetização são etapas necessárias se nós quisermos realmente formar um cidadão que possa ter uma consciência crítica. Isso que é importante, vou dizer para vocês que nós tínhamos o privilégio, como eu, que trabalhei no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo e ali, na área de mídia, é que se produziam exatamente os slides do chamado, aspas, que ele não gostava disso e nem aceitava, o chamado método Paulo Freire, como ficou conhecido, ele chamava de processos de alfabetização e não método. Que em método se tem passos certos e tem que fazer sempre do mesmo jeito e se há alguma coisa que não dá para fazer sempre do mesmo jeito, é a alfabetização freiriana. Mas estavam ali só para que nos lembrássemos, porque há pessoas que acham que Paulo Freire era meio antiguinho, não, Paulo Freire era muito modernoso porque, inclusive, os aparelhos de slides eram holandeses e a coisa mais moderna que tinha e as gravuras eram muito bonitas, eu quero dizer para vocês, eram diferentes do que fazíamos nas nossas aulas. Primeiro você sabe que fizemos vários absurdos em nome do Paulo Freire, porque ninguém sabia, ninguém nunca tinha lido Paulo Freire propriamente, só sabíamos como é que as coisas eram, e aí usávamos. Quero lhes dizer que era bem pobre, poucos eram os estudantes que podiam ter aqueles aparelhos, usávamos caixa de sapato com aquela luzinha atrás para projetar as nossas gravuras e isso aconteceu em muitos lugares, o que era uma experiência muito boa.

Aliás, cá entre nós, estava na hora de falarmos sobre o fechamento brutal de classes de Educação de Jovens e Adultos no Brasil e nenhum interesse na questão de alfabetização de adultos, vou lhes dizer, fora o Município de Belém, que ouviu o prefeito prometer que até o final de seu mandato, irá solucionar essa questão, porque nós temos professores preparados, temos todas as condições hoje para enfrentar isso. Às vezes há pessoas que falam com naturalidade “ainda temos 7% da população brasileira” que são analfabetas. Supondo 200 milhões, temos mais, mas supondo 200 milhões, são 14 milhões de pessoas analfabetas ainda e esses 14

milhões são mais que muitos países europeus. Então não ouvimos mais falar nessa questão, estamos precisando de um novo Paulo Freire para animar a nossa população e, evidentemente, encher de esperança de que isto poderá ser superado a curtíssimo prazo, falta só vontade política. É isso.


Angela Tamberlini


Lisete, eu acho interessante reforçar essa ideia, que estava presente no Paulo Freire, dos círculos de cultura, da preocupação da época com o desenvolvimento regional, com estudos de comunidade, com as características diversas da cultura regional na perspectiva de desenvolvimento integral do país, pensando a alfabetização não mais como aprender a ler, escrever e contar, mas como muito mais do que isso: uma conscientização política, uma libertação do trabalhador. E você mencionou a questão do material, não é? Eu tenho como presente da Vera e do Barreto, que foram do MCP, quando participamos juntos nos projetos de extensão da USP, aquele documento que traz as figuras, nada mais nada menos, do que do Francisco Brennand, do Recife, um artista maravilhoso que tinha aquelas gravuras para serem discutidas no círculo de cultura e esse círculo abrangia gravuras que dissessem respeito às atividades exercidas também pelos trabalhadores, para que eles tivessem uma conexão com o mundo deles.


Lisete Arelaro


Vou lembrar aqui, a Vera e o Barretão como nós os chamávamos. Eles começaram a fazer pedagogia na Faculdade de Educação da USP, na época era curso de pedagogia ainda, e começaram a namorar e se apaixonaram pelo Paulo Freire. Foram eles que conseguiram que o Paulo Freire viesse para São Paulo e depois eles nunca mais o deixaram. Estiveram juntos pós-exílio e no seu retorno criaram a Vereda, que era um local, um lócus privilegiado para quem quisesse discutir alfabetização de adultos no Brasil, e eles fizeram trabalhos lindíssimos. Esse casal, a Vera e o Barreto tinham exatamente um grupo de alfabetização em Osasco, uma cidade próxima, industrial, encostada em São Paulo. Saímos da USP, andamos dois passos e estamos em Osasco, era ali que eles tinham uma sala de alfabetização. Aliás, um conjunto de salas nas quais eles motivaram vários alunos

da Faculdade de Educação e de outras unidades. Entrava todo mundo, é importante que vocês, estudantes, saibam disto, estudante de física, química, história, geografia e ciências sociais: todo mundo, não era só pedagogia, todo mundo estava exatamente entusiasmado com a possibilidade de “mudar o Brasil” e mudava-se o Brasil dando-se condição de leitura à população. Obviamente a leitura e o entendimento do que se está lendo permitia, o que Paulo Freire chamava de libertação.

Agora, eu queria apanhar um pouquinho essa ideia que a Angela trouxe aqui no sentido do que significava a questão da comunidade. Paulo Freire, vejam vocês que nós estamos falando de alfabetização e hoje nós temos, dentre os absurdos dos absurdos do atual Governo Federal, o que a BNCC e o próprio MEC propõem: o método fônico como sendo o modelo ideal de alfabetização. Eles dizem que é o modelo pelo qual se aprende a ler, aliás, está tendo um curso nessa direção e há muita gente ganhando dinheiro nisso. Vou dizer para vocês, nos anos 60 quando eu estava fazendo o curso de formação de magistério, chamado curso normal - é estranho chamar um curso de normal, como se os outros fossem anormais - de todo jeito nesse curso nós já considerávamos, no início dos anos 60, o método fônico superado. Agora, estamos em 2021 e está aí o método fônico proposto como o método mais moderno para se alfabetizar. Então, cuidado com o que o MEC produz hoje e o que você está lendo ali, e é por isso que eles também estão combatendo uma coisa que o Paulo Freire considerava fundamental, que era uma formação sólida, científica e pedagógica dos e das professoras. Porque ele dizia que quanto menos você conhecer, menos você terá condições de escolher e, portanto, se eu não conhecer as possibilidades e diferentes "métodos e processos de alfabetização” que existem, já feitos no Brasil, e a avaliação que se tem sobre os mesmos, será possível achar que o método fônico pode ser um bom método, mais por ignorância, do que por opção. A BNCC não nasceu para ser um currículo, mas ela está se tornando um currículo e eles querem um currículo único e o que é que você faz? Primeiro, desqualifica a formação de professores, o que o Conselho Nacional de Educação está fazendo e vou citar aqui, na pessoa da Maria Helena Castro, que é sua presidenta, que é a mesma que assessorou por oito anos o governo Fernando Henrique Cardoso (primeira e segunda gestão) e mais, foi secretária de educação em São Paulo, na gestão José Serra, e sabe o que eles fizeram? Fizeram “jornalzinho” que era para o professor seguir exatamente o que eles estavam

propondo. Era tão absurdo que tinha lá, por exemplo, “devo chegar na sala e o professor tem que estar sempre animadinho” é verdade que professor animadinho muda as condições de trabalho, não é? Sempre um professor animadinho dá mais animação na sala, o que acontece é que havia a prescrição: “você deve chegar e dizer com animação oi, boa tarde” e havia um emoticon ao lado de uma carinha para você, professor, saber o que era para fazer. Eu estou dizendo isso porque esta ideia de que o professor é incapaz, que nós professores, especialmente das séries iniciais, ou da educação infantil, somos incapazes, que reagimos a qualquer inovação e somos preguiçosos, é uma ideia muito em vigor difundida pelos privatistas no Brasil, que nunca entraram, como a Maria Helena Castro, em uma escola pública e nunca vivenciaram o que quer dizer a educação das crianças pobres e muito pobres. Acreditam em uma programação determinada, que há um ciclo científico na sucessão de conteúdos e Paulo Freire mostra, de maneira que considero conclusiva, que isso é uma invenção, porque o grande companheiro do professor ainda é o livro didático. E o que são os livros didáticos? São as experiências que colegas nossos, professoras e professores, acharam que deram certo e que propõem para que você siga, mas não têm fundamentação científica. Segundo, como conhecimento é uma totalidade e nós temos essa separação na nossa formação: curso de história, física, química, ciências sociais, educação física e pedagogia, tudo separado, é evidente que, às vezes, temos essa ilusão de que cada área tem uma maneira perfeita de se desenvolver quando, na verdade, cada área é um conjunto de áreas, sempre, a separação é uma separação proforma. Então, o que Paulo Freire propõe é que se conheça quem são seus alunos, quais são as suas condições de vida e de trabalho, para você até poder junto com eles, decidir o que é um currículo que vale a pena, que tenha sentido e que seja significativo para os diferentes grupos sociais. E hoje no Brasil nós estamos correndo esse risco da BNCC caminhar para um currículo único, que vemos que hoje o Conselho Nacional de Educação quer obrigar as universidades, e espero que a Universidade Federal Fluminense reaja de forma animada e participe desse movimento nacional contra resoluções já aprovadas. Que querem, primeiro, determinar o que nós, professores universitários, que trabalhamos nas licenciaturas, temos que trabalhar com os nossos alunos e, segundo, que a proposta deles é que essa história de história da educação, filosofia da educação, sociologia, antropologia, economia, financiamento da educação, tudo isso é bobagem pode ser

feito até à distância, como aliás é a resolução que eles estão preparando. Cuidado, que o ensino híbrido vem aí, mesmo voltando às aulas presenciais, é economia de recursos para que eles entrem, eles, do setor privado, entrem, então cuidado. Eles estão exatamente propondo isso e o que seria importante nos cursos de formação de licenciatura, nesta concepção, seria ensinar aos nossos alunos de graduação o que eles deverão ensinar e que foi proposto na BNCC e eu estou traduzindo aqui, em termos evidentemente superficiais, a gravidade da situação que nós estamos vivendo. Paulo Freire iria dizer: “não lamento, olha, nós, estamos aprendendo a trabalhar com a diversidade agora, faz muito pouco tempo que a questão da diversidade foi incluída nas nossas preocupações curriculares. Então, na hora em que nós estamos aprendendo a lidar com a cultura popular, científica, pedagógica e social do Amazonas, da Bahia, do Mato Grosso, do Rio Grande do Sul é que eles vêm querendo que a gente estabeleça exatamente um programa único? ” Portanto, nós temos que estar alertas e é por isso que eles não gostam de Paulo Freire. Primeiro, porque Paulo Freire falava uma coisa que parece óbvia e que hoje é a menos óbvia, que a educação não é neutra e, por isso mesmo, ela é um ato político, não ato político-partidário, mas ato político porque ela implica opções dos professores e das professoras. Quando eu realço um tema, quando eu realço um artigo, quando eu peço para ler um livro, quando eu digo vá ao teatro, veja tal filme “Olha o Marighella está estreando aí, vá assistir”, tudo isso significa uma visão de mundo, significa o quê é que nós queremos para a educação desta geração, que sociedade que nós queremos. Vamos ficar no individualismo, na falsa meritocracia, no absurdo do empreendedorismo ou vamos realmente lutar por uma ideia mais socialista, mas entendendo no caso aqui, não só o socialismo tradicional. Eu sou socialista também, eu também me sinto incomodada, mas desejamos efetivamente uma sociedade que seja muito mais solidária do que a que nós estamos vendo hoje, então é um pouco isso e, logicamente, esta é a saída. Paulo Freire sempre diria que esse processo de podermos avançar de uma consciência ingênua para uma consciência crítica, ou seja, conhecer a realidade não é tão simples como as pessoas às vezes acham e não é privilégio que só os pobres não conseguem entender. Diria “nós temos doutores”, aliás a pandemia mostrou isso muito bem. Nós temos doutores com um currículo Lattes de 2 Km - antes também do CNPQ perder todos os nossos dados - mas quilômetros de currículo, enfermeiros, professores, cientistas, escritores e políticos e que até hoje não entendem o Brasil, ou falam do

Brasil como uma hipótese, como um país ideal, como se não tivesse 18% de desempregados, isso é 18% de 200 milhões, como se não tivesse 31% das famílias, pensem bem, em 2021, no país em que mais plantando, se dá, nós temos 31% das famílias em estado de insegurança alimentar ou alimentícia. O que significa isso? Pensem bem, 31% dos nossos amigos e amigas brasileiros comem hoje e não sabem se vão ter o que comer amanhã. A figura daquele caminhão cheio de ossos, que eram para dar, agora estão sendo até vendidos, em que as pessoas disputam um osso para fazer uma sopa rala, um pouquinho melhor. É vergonhoso para todos nós. E o pensamento de Paulo Freire é muito interessante nisso, porque ele tinha uma grande preocupação, que era a desigualdade social e tinha uma preocupação, que era o fato de nós sermos, sei lá, não lembro direito, se somos o 14º país em termos de Economia, mas nós, há muitos anos, somos um dos 10 piores países em termos de redistribuição de renda e, portanto, em termos de desigualdade social. Ele tinha uma preocupação. Ele achava que, na verdade, com a chamada abertura das escolas, quando os pobres afinal conseguiram chegar na escola pública, a escola pública não os recebeu considerando essa grande desigualdade real do Brasil que, portanto, muitos dos nossos professores, sejam em seus cursos, ou nas suas práticas, não consideravam a desigualdade social, estrutural, do Brasil como um fenômeno que, obviamente, também atingia as escolas e, obviamente, a sala de aula de todos nós. Então era uma grande preocupação dele e por isso que ele até dizia que não há evasão, há a expulsão de alunos e alunas, exatamente porque eles não são compreendidos, os seus interesses não são atendidos, o fato deles não terem comido, não terem onde dormir, não terem podido tomar banho, trocar de roupa ou uniforme, nada disso, muitas vezes, importa para as escolas. Fecha-se o portão até determinada hora, não se deixa sair nem para comer alguma coisa lá fora e assim por diante, não se preocupa com alimentação sadia e saudável dos alunos, especialmente os que estudam à noite, em geral não são pessoas notívagas como eu sou, são pessoas que têm que trabalhar. E é com isso que Paulo Freire se preocupava, mas ele iria dizer “lamento, mas por isso que eu defendo projeto político pedagógico em cada escola” porque é obrigação, é dever, é direito das comunidades participarem junto com os professores, junto com os técnicos, da elaboração do currículo e que é esse conhecimento que vai dar exatamente dinamismo do que está para acontecer, certamente, me desculpe, não me refiro aos projetinhos de vida que o novo ensino médio está querendo nos propor e provocar, o que nós temos hoje é

uma proposta deslavada de desqualificação da formação da nossa juventude. Porque esse governo e outros coparticipantes desse governo, e realmente eu coloco o PSDB aí no meio, na pessoa da Maria Helena, que é um exemplar desse grupo do PSDB, não estão interessados em uma formação realmente consistente da nossa juventude, ela vai descobrir que não há local para ela trabalhar, a menos que ela vire "a enganação do empreendedor”, ou seja, afirmando aos nossos jovens sobre a sua formação: “que é a sua responsabilidade, se vire, azar o seu de ser brasileiro ou brasileira”.


Angela Tamberlini


Sim, então quando você fala do método de alfabetização que já era ultrapassado na década de 60, eu fico me lembrando que neste momento, no Brasil, havia o investimento no Brasil industrial, na urbanização e as discussões que aconteciam desde a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, e dos CRPEs, Centros Regionais de Pesquisas Educacionais, em relação ao atendimento das crianças das periferias e que vinham, inclusive, do meio rural, porque as famílias vinham em busca de emprego, nesse processo de industrialização. E aí as discussões presentes nos textos do Florestan, do Antônio Cândido, que discutia inclusive a questão da cultura rural e a cultura urbana, em como atender essas crianças e surgia, inclusive, uma nomenclatura que grassava no período “as crianças das periferias em São Paulo e, aqui no Rio, as crianças das comunidades”, porque que a escola, como você mesma frisou, expulsava essas crianças, porque, na verdade, o que estava em jogo era justamente isso: era tentar verificar as condições de vida, usar pesquisa social, ter uma escola que percebesse as necessidades dessas crianças e atendesse à diversidade, para que elas pudessem avançar. Então, naquela época, já se questionava a padronização dos currículos e a mensuração, que tinha sido muito valorizada no período anterior, nos testes ABC do Lourenço Filho, etc. Temos aí, nesse momento, com o avanço de uma postura mais à esquerda, a consciência de que a escola tinha que contemplar a diversidade e que aquele ideal da escola universalizada por meio de um currículo único, de uma padronização, e de uma mensuração de testes de QI, Quociente de Inteligência, etc., não atendia as necessidades formativas que viessem a contemplar o desenvolvimento do Brasil. Então eu fico pensando o quanto há de retrocesso no

governo atual, o resgate de um método de alfabetização ultrapassado, o resgate de uma visão que desconsidera uma consciência social que já existia na década de 60 e, pior ainda, o resgate de ideologias retrógradas e reacionárias da década de 30 à 40, como estamos vendo agora. E então temos a compreensão do que significa escola sem partido, bandeiras de regimes autoritários de direita, de combate ao Paulo Freire, que vem no bojo dessa concepção que aí está. Você me fez lembrar tudo isso e o quanto de retrocesso nós estamos vivendo, que não é pouca coisa.


Lisete Arelaro


É verdade Angela, temos que lembrar que o processo de urbanização frente ao desenvolvimento industrial, se deu de uma maneira muito rápida, praticamente aquilo que era rural virou urbano em 30 anos, o Brasil mudou completamente. Essas modificações não foram apreendidas pela escola, que estava acostumada a trabalhar com a criança urbana, de setor médio da população e assim por diante, isso levou a uma situação também bastante extrema de dúvida da própria escola pública, sobre para onde ela caminhava. Agora eu quero lembrar duas coisas aqui, primeiro, que Paulo Freire sempre defendeu que professoras e professores fossem pesquisadoras e pesquisadores, até porque exatamente o processo que ele propunha para a construção do projeto político-pedagógico - não confundir PPP com parceria público-privada, hoje é mais usada a expressão para isso do que para significar projeto político-pedagógico - alguns nem gostam de colocar o político no projeto pedagógico e é realmente porque a proposta de ida à comunidade não é uma proposta para ir dar uma olhadinha lá, para ver como é que era a comunidade, conversar com o seu Zé da esquina, tal e pronto, já sei. Era um processo científico que implicava numa metodologia de conhecimento da realidade, que ficou conhecido na praça como Estudo do Meio, até Paulo Freire sempre falava “não fui eu que inventei isso de Estudo do Meio, já existia antes de mim, só que eu usei o Estudo do Meio porque muitos propuseram e, na verdade, não aconteceu nada”. Então o Estudo do Meio para ele era uma metodologia científica de conhecimento da realidade, que tem, sim, procedimentos para serem obedecidos antes, durante e depois. Por isso a necessidade de uma formação como pesquisador, e cada PPP significa uma pesquisa. E uma pesquisa tão séria quanto como o que nós entendemos como pesquisas acadêmicas, porque tem que ter objetivo, tem que

chegar a conclusões e buscar respostas que sejam compatíveis com a realidade, então isso é muito importante e hoje, praticamente, não temos isso. Mas com essa pandemia que nós estamos vivendo, com 609 mil mortos, e eu diria que tem um aspecto positivo, que pelo menos tem que ter um, porque um drama desses, que é exatamente o fato das escolas, vou falar das escolas da cidade de São Paulo que eu conheço mais, mas os professores, as aulas foram suspensas da noite para o dia, não é? De repente, no dia seguinte, nós não estávamos mais nas escolas. E depois de um tempo desse choque, professores e professoras começaram a querer saber onde estavam os seus alunos, quantos tinham perdido os pais, avós, vizinhos, familiares, e isto levou, e vem levando ainda, a buscas de professores que nem conheciam muito Paulo Freire, a fazerem essas pesquisas. Alguns, cá entre nós, passado o clima mais duro da pandemia, começaram a ir às comunidades para saber, inclusive, como estavam os alunos e nos perguntávamos o quê que esses professores vão fazer assim que as aulas presenciais voltarem. Irão perguntar em que página nós paramos, ou vão querer saber as histórias dos seus alunos? A opção foi por essa segunda parte e eu diria que tivemos e estamos tendo muitas histórias bonitas nas escolas públicas aprendendo com o nosso drama, o que era o processo Paulo Freire de conhecer a realidade e, obviamente, de propor temas, assuntos e conteúdos que tenham a ver com a realidade de todos e com a realidade científica. Temos que lembrar que Paulo Freire, às vezes, é acusado, de uma coisa aliás, até absurda, coisa de quem não leu nunca as suas obras, mas às vezes ele é acusado de ser um defensor de uma escola sem conteúdo. Ele nunca falou isso, ao contrário. Eu até o levei para falar com os meus colegas de pós-graduação que tinham seus preconceitos em relação a ele, para ouvi-lo falar “não há ensino sem conteúdo” e aí ele falou “eu só pergunto quais conteúdos? Não precisa ser esses que estão aí”. Porque nós tínhamos feito uma pesquisa há pouco tempo e queríamos saber por que em agosto a maioria das escolas em São Paulo estudavam átomo e o que acontece em agosto para se estudar átomo. A resposta dos professores de ciências foi muito prática. Falaram: “Lisete, nós estamos no meio do ano, aqui se abre a metade do livro e, da metade para o final, o primeiro tema é átomo” e eu dizia, isso são as escolas públicas reais do Brasil, “e se não foi dado nada no ano anterior e se os alunos não entenderam? ”, e ele (o professor de ciências) continuou “então, pois é, a gente tem que cumprir o programa” por isso que o Paulo Freire falava “por que tem que ser átomo? Que lógica existe, se eu nem sei

a combinação cientifica na cabeça dos estudantes, porque eu tenho que estudar átomo, de onde nasceu essa questão na cabeça dos estudantes?” Ele propunha a ideia de que se trabalhasse com projetos, posto que a escola é um lócus privilegiado, porque nós temos profissionais formados em diferentes áreas que podem perfeitamente combiná-las e apresentar um projeto, até porque ele sempre brincava “não existe química sem história e muito menos física sem literatura”. O que ele queria dizer é que as coisas não são impossíveis de serem combinadas e que isso atrai muito mais um aluno. O aluno não pensa em pedacinhos, quando ele tem dúvidas e as curiosidades dele, elas aparecem de uma forma mais global do que pinçar um assunto e é nossa tarefa, enquanto mediadores do conhecimento com os nossos alunos, dizer “tem o átomo relacionado a várias coisas que estamos estudando” aí tem razão de ser e não porque o livro mandou que em agosto estudássemos átomo. É isso que Paulo Freire proporia e ele falaria em alguma coisa que todos nós acreditamos, que é na interdisciplinaridade, ninguém duvida disso, mas quem faz? Quem estipula fazer? E cá entre nós, nem nós na universidade trabalhamos o dia inteiro de forma interdisciplinar. Por exemplo, vou falar da minha escola porque é mais fácil. Na Faculdade de Educação da USP, somos três departamentos, nos damos muito bem, agora isso não quer dizer que a gente combine as nossas aulas entre nós. Então pode ter repetições e certamente tem, pode ter repetições desnecessárias e é possível que haja repetições contraditórias. Paulo Freire falava: “quanto mais isso acontecer nas escolas e quanto mais cedo isso acontecer, é um benefício para os alunos (o trabalho interdisciplinar). Agora vejam o problema que nós temos: hoje temos a maioria dos nossos estudantes de licenciatura formados no ensino a distância. São 51% dos matriculados que hoje estão no ensino a distância e não por conta da pandemia, bem entendido, não é por este motivo, e no ensino a distância aqui em São Paulo nós já tivemos até denúncias, na secretaria do consumidor, de que essas pessoas que respondem, lembrando que o aluno tem que entrar num determinado horário quando está matriculado no curso a distância e, obviamente, encontraria um tutor que deveria responder às suas indagações e se descobriu que não existe o tutor, na verdade são robôs que respondem nas grandes universidades. Agora imagine o ensino. Ele é empobrecido dessa forma, não estou nem dizendo que todo ensino a distância é assim, estou dizendo que isto ocorre nas grandes empresas mercantilistas que hoje dominam o mercado universitário no Brasil. Nós (universidades públicas) somos

25% de vagas contra 75% de vagas privadas. Hoje há escolas que tem 500 mil alunos. Nós, a USP, que somos a maior universidade pública, não chegamos aos pés dela, somos maiores que quaisquer Universidade Americana e, assim por diante, para considerar aí as nossas diferenças. E qual era a preocupação do Paulo Freire? O ensino apostilado ou o que você compra de sistemas de ensino. Hoje, o Instituto Ayrton Senna está em mais de 2 mil municípios no Brasil vendendo o mesmo material do programa Acelera Ayrton. O programa interfere na direção das escolas, propõe critérios para selecionar diretor, substitui assessorias, as assessorias da secretaria de educação são substituídas pelas orientações que o Instituto Ayrton Senna dá e assim por diante. Nós encontramos, por exemplo, quando fizemos uma grande pesquisa sobre o Instituto Ayrton Senna, e tanto assim que até hoje, às vezes quando eu estou falando, tem alguém deles lá ouvindo porque dizem que eu falo que eles recebem do governo e eles dizem que não recebem, que eu estou mentindo. Mas se eles elaboram um material que quem faz é a secretaria, quem paga esse material deles para eles que têm um editor é a secretaria, claro que estão recebendo dinheiro público. É interessante a forma como eles lidam com isso. No Estado do Pará, numa sala quilombola, nós encontramos uma professora dizendo para uma professora quilombola: “você está atrasada 15 dias”. Então a questão não é muito simples. Imaginem uma escola quilombola em que a professora está atrasada 15 dias no material do Acelera: então estou dizendo isso porque a situação não é simples! Mas eu diria que Paulo Freire exatamente tentou mexer em aspectos desse tipo, estimulando professores, criando uma jornada de trabalho. Eu acho muito importante quando chegamos na secretaria de São Paulo, é bom que vocês saibam que a cidade de São Paulo, cidade mais rica e uma das mais antigas em termos de sistemas de ensino municipal, não tinha estatuto do magistério, e portanto, uma das reivindicações mais ativas do sindicado dos professores e professoras era a criação de um estatuto e nesse estatuto, que afinal foi aprovado, também como curiosidade, saibam que discutimos tanto esse bendito estatuto; não é fácil ser a primeira proposta para que fosse coerente também com a reivindicação de professores e professoras, e, de fato, o estatuto do magistério foi o único projeto, pensem bem, do governo da Luiza Erundina que foi aprovado por unanimidade. Nós tivemos até um vereador que era contra, mas que chegou a nos telefonar e disse “eu sou obrigado a reconhecer que vocês discutiram com todos e todas que precisavam ter sido ouvidos, eu ainda não concordo com o resultado, mas

eu sou solidário pelo processo democrático que aconteceu, então eu vou ficar doente no dia da sessão da Câmara, porque eu já vi que sou o único que votaria contra, para vocês poderem ter o prazer de dizer que foi por unanimidade”. E é verdade: a Luiza nunca teve maioria na Câmara, mas esse foi o processo, foi o projeto que foi aprovado por unanimidade e que uma das coisas que Paulo Freire previa eram as condições de trabalho. As vezes as pessoas falam que Paulo Freire não ligava para essas coisas, eu não sei, pode ser que antes ele não tivesse escrito exatamente sobre isso, mas assim que ele assumiu a secretaria de educação quero lhes dizer que Paulo Freire levantava, ia à escola e largava toda a papelada conosco. As nossas mesas ficavam cheias de papéis para resolver, que vocês sabem, que secretaria tem um monte de papel que inventaram; a burocracia é maior até do que o pedagógico e, efetivamente, ele ia nas escolas e queria ouvir alunos, professores e trabalhadores, cozinheiras e cozinheiros, guardas escolares, lembra que existia essa figura na escola e era funcionário público e, portanto, ele era muito preocupado com as condições de trabalho e, obviamente, de salário dos professores. Há 10 anos que denunciamos, via Fineduca, os baixos salários brasileiros. Agora que os órgãos internacionais têm realmente denunciado também, agora há um mês, mais ou menos, um dos grandes órgãos internacionais, a própria Unesco reconheceu, além do Banco Mundial e a OCDE -Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - reconheceram que o Brasil é um dos países que pagam pior para os seus professores e nós tivemos ontem, infelizmente, a questão dos precatórios aí votados. Mais uma vez a educação vai levar “um chega para lá”, já levou.com a traição de 17 deputados que não precisavam fazer isto. Anotem bem em quem irão votar em 2022. Esses vereadores e deputados são bons nomes para serem riscados de nossas listas. Eu acho que é bom e importante que vocês saibam disso. Paulo Freire achava engraçado e, sei que no Rio também tem isso, cada aula tem uma duração: se ela é noturna tem 40 minutos; 45-50 minutos, se diurna, e Paulo Freire achava necessário estabelecer uma jornada. Havia uma briga, uma briga histórica entre professores das séries iniciais e professores de séries finais e do ensino médio sobre a duração das aulas: sempre foi um pouquinho menor do que a deles, então Paulo Freire propôs 30 horas relógio que significa 30 horas de 45 minutos como jornada padrão, 20 horas na escola e 10 destinadas exatamente a essas atividades necessárias para projetos de pesquisas, etc., até porque ele dizia que não seria possível sugerir uma proposta de projetos se os pares

não se encontrarem em horários que sejam comuns. Não deve ser do jeito que acontece, por exemplo, aqui em São Paulo, em que professoras de creche, cuja jornada se inicia às 7:00 horas, se reúnem às 06:30: meia horinha para falar sobre o seu planejamento conjunto! Chegar às 6:30 da manhã para fazer uma reunião entre pares, porque depois não vai ser mais possível, sabemos que em creche ainda hoje nós temos profissionais que trabalham como professores que não são reconhecidos como tais, e que tem até a titulação de mestres e que são chamados de auxiliares, de auxiliar de desenvolvimento infantil, qualquer nome pomposo, menos professores, que é o que dá direitos assemelhados aos outros profissionais. Paulo Freire sempre defendeu que o professor pudesse trabalhar numa só escola, lá tem sempre coisas a fazer. É possível superar essa divisão da responsabilidade por disciplina e se todos se ajudarem mutuamente, todos podem ter 30 horas e trabalhar muito bem: do ponto de vista concreto, Paulo Freire propôs que quem escolhesse a JTI, que era a jornada de tempo integral, teria cem por cento de aumento. E, de fato, profissionais que fizeram esta escolha, tiveram este aumento: foi a primeira e única vez que aconteceu isso no governo municipal de São Paulo até hoje. Os professores se sentiram valorizados, entusiasmados e, portanto, tinham uma dedicação. É muito diferente do que houve com nosso antecessor. Nos sucedemos o Jânio Quadros, que tinha na secretaria de educação, um homem que era ligado a movimentos internacionais anticomunistas, era o secretário, do ponto de vista ideológico, o pior secretário do Jânio e, portanto, o Jânio já estava naquela fase anticomunista etc. e, portanto, foi muito difícil. Ele puniu professores, 2.500 professores foram demitidos porque participaram de movimentos de reclamação contra ele e 12 mil professores suspensos porque participaram de uma greve e de uma passeata contra ele. Nós recebemos a secretaria dessa maneira e, rapidamente, a prefeita Luiza Erundina determinou que acertássemos todas essas situações, portanto, não sei se vocês sabem, mas Jânio Quadros demitiu, inclusive, a presidenta do Sindicato dos Professores, SINPEEM, que estava grávida de sete meses o que a lei proíbe, mas a lei, ora a lei, então é só para vocês saberem que começamos dessa maneira, anulando esses processos, readmitindo os demitidos e, portanto, isso trouxe uma certa tranquilidade também para os professores. Eles souberam que com Paulo Freire as questões iam ser diferentes. Paulo Freire tinha feito uma promessa, que é o seguinte: “não publicarei nenhum ato legal”, e é muito difícil alguém falar e cumprir, falar muitos falam, mas cumprir é que são elas, ele prometeu não publicar nenhum

ato legal que não tivesse sido previamente discutido antes. Afirmou que ninguém seria surpreendido por publicações no Diário Oficial e ele cumpriu isso totalmente.


Angela Tamberlini


Em muitos dos seus textos você comenta a questão da formação dos professores, que hoje acontece 75% no setor privado, e que esta é uma formação domesticadora. A própria relação com as crianças periféricas, ou filhos das classes trabalhadoras, passa por essa questão de que a formação é uma formação classista, também lembrando quando você comenta a questão do professor, as propostas da Maria Helena Guimarães Castro sobre o professor que tem que ser risonho(a), e deve ter um padrão de comportamento. Tem até um texto da Raquel Barreto, da UERJ, que fala que há agora documentos dessas instituições privadas que falam como ser um professor nota 10, como se o professor fosse um animador de auditório e não um docente, um pesquisador. E vocês, na gestão do Paulo Freire, justamente no mandato da Luiza Erundina trouxeram uma gestão totalmente nova, que tinha como diferencial principal a gestão democrática e a ampliação do acesso, a defesa da Educação de Jovens e Adultos, a participação colegiada. Então eu queria que você explorasse mais esse trabalho na equipe do Paulo Freire, na prefeitura, porque eu acho que é uma informação importante que você vai trazer para nós e que vai acrescentar muito aqui no nosso festival.


Lisete Arelaro


Então Angela, eu acho importantíssimo dizer que eu tive o privilégio de trabalhar com Paulo Freire, pelo tempo que ele ficou na secretaria, lembrando que ele saiu no terceiro ano de governo, e depois em Diadema também, ele acompanhou o nosso trabalho na secretaria, lembrando que foram quatro anos que ficamos lá. Queria dizer que Paulo Freire era um homem cordial, um homem muito educado, um homem que tinha uma paciência imensa, ouvia todo mundo, até demais, e ele foi muito importante para a minha formação. O contato com ele e a oportunidade de discussão que nós tivemos nesses anos todos, em que ele sempre dizia, é bom que vocês saibam disso e quem concordasse com ele, por favor, que não o repetisse, que o ressignificasse. O que queria dizer isso? Queria dizer que ele

sabia que o mundo muda. Paulo Freire não foi um homem que tivesse saudade dos anos que passaram, Angela, e isso é muito interessante. Eu me surpreendi com Paulo Freire, porque eu já tinha algumas referências de políticos e intelectuais que haviam sido exilados e que quando voltaram estavam defendendo as mesmas teses dos anos iniciais dos anos 60, só que já tinham se passado 20 anos, portanto, eu tinha medo, eu tinha até um pouco de medo de trabalhar com Paulo Freire que, para mim, era uma referência e, de repente, que ele fosse um desses intelectuais. E a minha surpresa foi que Paulo Freire falava em Angicos, por exemplo, mas tinha clareza de que aquilo foi legal, que aconteceu, só que já foi, agora é outro momento, tem que ser de outra forma, mesmo que seja para fazer com os mesmos os princípios. Por isso que Paulo Freire era um homem do Século 21, não era um homem que estava voltado para os anos 60 ou 40, quando, digamos, tudo começou. Por outro lado, ele também não tinha saudades do exílio, e apesar dele ter aprendido muito naquele período. Onde havia um probleminha, ele era chamado, especialmente nos países africanos que estavam com revoluções. Ele era o primeiro para ir conversar. Paulo Freire não se recusava a participar de reunião alguma com grupos que quisessem mudar o mundo. Essa é uma coisa importante que todos precisam saber, por mais estranho que pareça. Paulo Freire sempre se dispunha a dialogar, às vezes até com uma certa preocupação nossa, com o excesso de concordância dele com vários grupos, até com alguns que ele era contra, como os grupos armados, etc. Mesmo assim conversava. Só queria que soubessem sobre esse lado dele. Dizia, se eu puder ponderar com eles, se eu puder conversar, não há objeção. Para quem já leu a Pedagogia do Oprimido, quem não leu, por favor, leia, é um livro essencial. Se você tiver com insônia, deixa a Pedagogia do Oprimido ali do ladinho, você vai se animar, não é uma leitura fácil e Paulo Freire aliás é falsamente fácil, mas é interessante porque ali tem todo o germe das suas propostas e ele realmente deixa claro que considera que “a educação para a liberdade” não pode acontecer sem a gestão democrática. E eu vou radicalizar mais: Paulo Freire achava que era a gestão democrática que permitiria que nós atingíssemos a chamada qualidade social, ou a qualidade socialmente referenciada como hoje falamos, do ensino e da educação. A gestão democrática para ele estava, exatamente, no diálogo e, portanto, por isso mesmo é conhecida como teoria epistemológica, porque para Paulo Freire o diálogo não era simplesmente um jeito para animar uma sala. E vou destacar que ele era favorável ao ensino ativo, mas ele dizia que utilizá-lo não

era tão simples, pois para falarmos que educação é um direito de todas e todos, isso implica em começar a horizontalizar relações e reconhecer que o outro é sujeito, e que o outro pode ter razão, e que o outro tem o direito à vez e à voz. E isso não é tão simples até porque há a questão de classe: então ele afirmava que ouvir os alunos não quer dizer simplesmente usar esse aparelho chamado orelha, não é não, é de dentro, é eu ouvir com o coração, por isso que Freire dizia, às vezes, que educação é amorosidade porque devemos ouvir e admitir que as pessoas podem, têm o direito, têm condições de alterar inclusive o que pensamos, começa aí, isso é exatamente a horizontalidade proposta, segundo, porque ele achava que o diálogo era a condição da relação ensino-aprendizagem e, sem ele, o aluno está sozinho. Por isso ele dizia “ninguém ensina ninguém, as pessoas aprendem em comunhão” e, portanto, nesse processo de relação ensino-aprendizagem, quantas questões que os alunos nos fazem hoje na Universidade, vocês [estudantes] nos fazem pensar na aula que demos ontem, o que faz-nos pensar, “você falou, olha aqui, você tem razão, poderia ser diferente”. Analisar, por exemplo, o Brasil hoje é uma das coisas mais difíceis de se fazer, analisar para onde estamos caminhando. Teremos um golpe militar em 2022, se o demônio não ganhar a eleição? E assim por diante, não sabemos e os nossos alunos também querem saber a nossa avaliação sobre o que está acontecendo no Brasil. E começam as preocupações com as coisas concretas. Vai haver Enem? Como é que serão as perguntas do Enem? Não sabemos. E quem se submeterá a este processo serão os alunos, que irão sofrer as consequências. E Paulo Freire dizia, portanto, que para haver gestão democrática, ela não está só na existência de conselhos, também está neles, mas está, acima de tudo, na relação professor-aluno: por isso que ele chamava de “dodiscência”, porque não existe docente sem discente. Quero também destacar que Paulo Freire fez mudanças importantíssimas.

Logo que assumimos, fizemos um videozinho muito, muito simples e muito bem feito. Chamava-se “aceita um conselho? ” E que tem sentido dúbio do Conselho que, na verdade, ele estava propondo o conselho de escola com caráter deliberativo, que não era tão comum naqueles anos, no final dos anos 80, mas hoje é uma coisa comum que está desativada, mas que é bem comum nas leis, inclusive, estaduais e municipais. Mas do ponto de vista concreto, nesta proposta havia estímulos para que pais, mães, avós, assumissem a coordenação dos conselhos e discutissem e sabemos que não é tão simples assim, e Paulo Freire também sabia das

dificuldades de tirar dos professores e técnicos a ideia de discutir currículo, porque nossa ideia é que pai não entende nada, quem entende, somos nós, só nós. Mas a vida não é bem assim, então ele propunha que os pais começassem discutindo a política de cada escola, o uso do espaço de cada escola e essas questões, tais como o horário de entrada e saída, possibilidade para o pai e a mãe entrarem na escola, se não entram ou se podem acompanhar a criança, se podem ficar lá, se podem ficar passeando no corredor, enfim, que tudo isso fosse definido pelo conselho de escola. E a experiência foi muito interessante, porque conforme os pais assumiram, e muitos assumiram, muitos, não vou dizer a maioria até porque tradicionalmente quem é o presidente do conselho é o diretor ou diretora de escola, e poder flexibilizar isso já era um início e foi muito estimulante ver que os pais começaram a discutir o que podia acontecer nas escolas nos finais de semana, se abriríamos ou não a escola e nós autorizamos que as escolas abrissem, não necessariamente com a figura dos professores ou do diretor de escola, já que todos trabalhavam de segunda a sexta-feira, já era o bastante, mas que pudesse ser um pai ou um aluno a abrir a escola ,desde que assinasse um termo de compromisso de devolver do jeito como eles haviam recebido. Lembrem-se de que naquela época tínhamos os chamados guardas escolares, que muitas vezes ficavam, e alguns até dormiam, nas escolas. E com isso, foi sendo muito interessante que as escolas começaram a ser abertas e os alunos começaram a praticar jogo de futebol, a aprender a fazer jornal, a instalar rádio comunitárias, a fazer teatro, quem tinha a banda, achou o máximo, porque aí tinha um lugar - quem suporta uma bateria de adolescente? Pois lá havia aquele espaço dos adolescentes poderem ter a sua banda, andar até de skate, autorizado pela Luiza Erundina, o que naquela época era um horror, pois ia fazer barulho, era perigoso, atrapalhava as pessoas na rua, por isso ele era proibido em São Paulo e quando a Luíza Erundina assumiu, ela autorizou o uso do skate na rua. Gostaria de lembrar que a rede estadual em São Paulo, e não só em São Paulo, era mais antiga do que as municipais, as escolas municipais estavam mais na periferia do que as escolas estaduais e, portanto, estas escolas, em geral, até hoje constituem o melhor espaço público disponível nas periferias da cidade e, portanto, houve sim, um interesse muito grande da população e quero lhes dizer que, às vezes, enquanto escolas estaduais em frente a nossa estavam colocando grades, nós estávamos tirando grades, com portão aberto no final de semana todo, até para fazer festa. Discutia-se até em tempos de lideranças

populares, se esses encontros poderiam ser feitos lá, enfim, eram os pais e os professores, juntos com o diretor que decidiam essas coisas e isso foi ganhando um interesse grande, o maior número de pais começou a aparecer na escola e conforme eles iam aparecendo, eles foram verificando, “puxa aqui essa fechadura está quebrada”, “ali estão faltando os ladrilhos”, o outro, “o cano está entupido” e eles começaram, inclusive, a querer que a escola ficasse nos trinques. Eles começaram a pintar as escolas, envolviam todo mundo, até as crianças, eu lhes digo, tinha churrasquinho, franguinho assado, feijoada e vou lhes dizer que eu participei muito. O pai e a mãe não iam para a escola para saber se seu filho era o delinquente, que ele não respeitava o horário, que ele não respeitava alguns professores, que ele levantava não sei quantas vezes, se eles iam ao banheiro também 500 vezes, enfim, era uma comunidade e com isso eu lhes diria que as escolas, como nós também estávamos começando, olhem que coincidência histórica, a colocar os primeiros computadores nas escolas, na verdade isso aconteceu em 1990. É nós tínhamos professores de matemática que eram responsáveis até por dar aula para os alunos que haviam se inscrito para serem monitores, e eles acabaram sendo levados pelos alunos para ir todo sábado na escola, porque todo mundo queria usar o computador e era um, dois, três alunos por computador, e é comum vocês ouvirem os depoimentos dos professores, até hoje, dizendo que os estudantes eram muito animados, cada um queria uma coisa, etc. Mas o que eu quero dizer é que o clima na escola começou a ser outro. Então as crianças foram mais procuradas para saber, “escuta, vamos pintar essa parede de que cor, que cor você acha mais bonita? ”, desde coisas desse tipo, até perguntar, “de que altura que vai ficar a pia do bebedouro?”, etc., e que a escola servisse mais aos alunos que lá estavam. Começaram a incentivar os grêmios e os grêmios passaram a ter uma salinha para eles decidirem, para eles terem o seu local. Eu pergunto para vocês, quantas escolas públicas hoje tem grêmios escolares, com uma salinha onde os alunos possam falar mal de nós? Nem os centros acadêmicos têm um espaço aberto, em funcionamento. Todas as vezes há uma crise na universidade, com cada festa que eles dão, também não precisa ter uma geladeira de vodca como alguns que exageram, mas sabemos que a festa é de confraternização deles. Então, era uma coisa muito importante: eu diria que esse clima favoreceu muitas coisas para dentro da escola, do ponto de vista pedagógico também. O Paulo Freire achava um absurdo que um órgão regional chamasse Delegacia de Ensino, porque parece

Delegacia de Polícia e, portanto, imediatamente, ainda no primeiro mês de governo nós fizemos a reforma administrativa interna, ele chamava de Núcleos de Ação Educativa, NAEs, no sentido que eram colegas que realmente iam ajudar outros colegas a resolver problemas das escolas e, nesse processo, criaram-se Conselhos. Havia o Conselho Central em que participavam os coordenadores dos NAEs. Começamos com cinco, imediatamente fomos para 10, para dividir melhor a cidade de São Paulo, que é uma megalópole e, evidentemente, os cabeças dos órgãos centrais discutiam toda a política com Paulo Freire. Nós dividíamos uma pizza, ou sanduíche de queijo que fosse, às vezes até de madrugada, mas Paulo Freire também nos falava: “quando for 20:00 horas eu vou para casa; vocês discutam aí, no dia seguinte eu pego o que vocês estão discutindo”. Às vezes acontecia isso: a reunião começava as duas e ia até as onze horas da noite, porque democracia também implica em investir tempo para conversar, então essa era uma questão importante, que também se espraiou para as escolas. Vou aqui só lembrar o seguinte: para discutir, inclusive, o que era o estudo do meio e outros aspectos das dificuldades de formação dos professores, o professor Paulo Freire conseguiu- e só ele para conseguir- o que nós tivemos em São Paulo, por ter os melhores professores, mais avançados, os mais progressistas da USP, da PUC, da Unicamp que, pela primeira vez, porque é admitido por muitos dos meus colegas ainda, foi a primeira vez que eles saíram, levantaram-se das poltronas na universidade e foram para áreas da periferia para dar aulas. Eles se reuniram com professores, não para que eles dessem aquilo que nós pesquisamos, mas para perguntar para os professores quais eram as suas dificuldades. E a partir das dificuldades dos professores montarem os seus cursos. Quero lhes afirmar que até hoje na rede, mesmo aqueles que eram contra o Paulo Freire, porque também ele não era uma unanimidade na rede, assim, mesmo os que eram contra ele, reconhecem que foi nesse período que tivemos a melhor formação de professores que aconteceu na cidade de São Paulo. E se estimulou realmente a vontade de ler mais e aprender enquanto se trabalha e parar com essa história de que o professor sabe tudo. As vezes ele não sabe, tem que ser sincero, admitir isso e dizer, vamos pesquisar e vamos pesquisar juntos, que é uma postura muito diferente do que em geral o professor sente, acreditando que ele não pode fazer, e nem pode falar para um aluno que não sabe. Se o aluno pergunta, por exemplo, algo sobre uma nave espacial e o professor crê que não pode falar não sei. Ele tem que disfarçar e é o

que ele faz em geral. ”Fique quieto, moleque!. Depois a gente conversa sobre isso” e nunca mais se toca no assunto. Então o que Paulo Freire propunha era que realmente esses assuntos surgissem e a oportunidade da pesquisa pudesse acontecer. Às vezes existem perguntas importantes, me lembro de um depoimento ocorrido em uma sala em que um dos moleques, que era negro, em novembro, perguntava para o professor: o movimento dos zumbis foi antes ou depois da Independência? E o professor não sabia e foi ficando nervoso e nós estávamos lá, presentes. É isso, você vai, olha a pergunta excelente e responde imediatamente: que tal, vamos pesquisar? Olha, quem sabe isso coloca em debate, coloca em discussão e eu diria que os professores se sentiram um pouco mais à vontade com a sua potencial situação. De compreender que, de fato, nós não conhecemos tudo, nós não somos o Google e o Google, às vezes, ainda mente. Então, não sabemos tudo, temos que trabalhar conosco mesmo. E lhes afirmo que foi a participação dessas pessoas que começaram a trabalhar nos conselhos de escola, que repercutiu em várias outras áreas e muitas mulheres e homens passaram a participar dos conselhos populares de saúde, a participar dos conselhos populares de cultura e assim por diante, e foi muito bom.


Viviane Merlim


Professora Lisete, infelizmente essa não é a realidade de algumas cidades como é o caso de Niterói, aqui o discurso de parceria público-privada está disfarçado de pacto social pela educação e o que é pior, ainda se utilizam do nome de Paulo Freire para justificar tal iniciativa, como a senhora avalia contextos como esses?


Lisete Arelaro


Bom, Viviane eu não conheço o que é o pacto, mas estou imaginando, pela sua crítica, que o pacto quer dizer que empresas privadas estão entrando para contribuir para a melhoria da educação. O Paulo Freire era contra essas coisas, era contra materiais pré-fabricados e, por exemplo, se preocupava muito com uma situação que até é legal e difícil de ser discutida no Brasil, devido aos baixos salários, que é o fato de professor poder ter dois cargos. Paulo Freire dizia: “vocês pediram direito histórico de serem escravos, é duro o trabalho de docência e ter dois

cargos, entendo a questão salarial, mas não há dúvida de que dois cargos interferem na qualidade de ensino e vocês não terão tanto tempo para pesquisar”. Dizia, por isso, que os docentes teriam que entender que a reivindicação de melhoria salarial deveria continuar, “porque para o governo atual (governo federal da época) que admite a privatização do ensino, o quanto menos eles pagarem, mais vocês, docentes, terão que trabalhar e quanto mais vocês tiverem que trabalhar, mas vocês aceitarão as apostilas porque é muito diferente, um professor que tem duas salas, às vezes de anos diferentes, com prioridades diferentes, às vezes uma sala de educação infantil e outra de quarta série, ou duas de Geografia, em duas escolas diferentes, conseguir planejar a sua aula com a mesma condição de um professor que só tem uma turma”. Freire dizia que neste contexto o professor que acumula turmas, às vezes, acaba por falar “em que página nós paramos, ou vamos, abram na página 18, referindo-se aos materiais pré-fabricados”. É mais fácil, entendemos isso, mas não podemos comprometer a nossa responsabilidade de professoras e professores em relação aos nossos alunos. Paulo Freire tinha grande preocupação em relação a essa forma como as empresas privadas estavam chegando nas escolas. Nos anos de 1990 esta questão já está aparecendo e, conforme os anos foram passando, essa preocupação do Paulo Freire foi crescendo. Ele ponderava que ou bem se radicalizava em relação a este tema e, ao dar 100% de aumento para os professores, ele estava pensando, realmente, em propiciar condições mínimas de trabalho para o docente. Lamento por Niterói que pode ser, em tese, um governo progressista, é uma Prefeitura do PT?


Angela Tamberlini


Não, atualmente não. É uma coligação de vários partidos com apoio também do PT, mas não é do PT.


Lisete Arelaro


Melhor assim. Mas esse uso do nome do Paulo Freire, muitas vezes acontecia. Ele nem ligava mais, porque não poderia processar todo mundo. Eu às vezes lhe dizia: “professor tem cada centro de estudo que fala que está estudando as suas ideias e propostas e falam muitas bobagens, contrariando o que o senhor

pensa”. E ele falava: “calma Lisete, se eles estiverem fazendo isso com a intenção de melhorar o ensino, atender às classes populares, deixa, alguns enganos sempre ocorrem” e ele relevava. Mas não gostava de ser usado porque afirmava que “tinha lado” e queria deixar claro que a sua proposta era uma proposta política de transformação social. Dizia que é por isso que existem escolas, é por isso que existe a educação. E a educação para a liberdade, significa enfrentar a desigualdade social do Brasil em primeiro lugar, dar condições para que o país tenha condições, tenha instrumentos, ferramentas e material científico e pesquisa, para poder enfrentar os problemas ainda presentes no Brasil.


Nazareth Salutto


Professora Lisete, para onde estamos caminhando? Na sua avaliação qual é o papel da Universidade no enfrentamento a tamanho retrocesso? Agradeço esta roda de conversa que é uma aula.


Lisete Arelaro


Nazareth, eu vou usar aqui a solução que o Paulo Freire nos deu e na qual acredito: “o mundo não é, o mundo está sendo”. Nós não acreditamos em fatalidades diante de tanto horror que nós estamos vivendo, não só no governo federal, mas também em muitos governos estaduais. Aqui em São Paulo estamos em uma situação dificílima com o Dória e o Dr Rossieli, ex-Ministro da Educação (e Secretário Estadual de Educação de São Paulo na época da roda de conversa), ele faz absurdos. Paulo Freire sempre dizia: “não desistir” e eu também digo “não desistir nunca, resistir sempre”. Nossa situação é delicada, mas 2022 está aí! Já estamos no dia 10 de novembro e eu estou fazendo aquela contagem regressiva. E nós podemos escolher outros governantes, se Bolsonaro não se reeleger, e eu espero que não, apesar de aprovação da PEC 23 ontem (Pec 23/2021, que muda a forma de pagamento dos precatórios), que sabemos que dará muito dinheiro para ele, e espero que tenhamos forças para continuar resistindo. Com esse movimento nacional contra a mudança dos cursos de licenciatura, nós conseguimos mais um ano de prazo, o Conselho Nacional de Educação concordou em estender um ano do prazo para nós modificarmos os nossos cursos. E eu espero que cada um de nós

pressione os nossos pró-reitores de graduação, que andam muito tranquilos, alguns tranquilos demais, para que realmente eles reúnam os pró-reitores e os conselhos universitários para que nós possamos ter uma decisão objetiva frente à autonomia universitária. E está na hora da Universidade assumir a sua autonomia, que a Constituição nos garante, a autonomia financeira, administrativa e pedagógica, portanto, possibilita nossa reação e nós podemos dar um belo exemplo dessa situação. Não tem Reitor nomeado pelo Bolsonaro que realmente mande em nós, no Conselho Universitário. Assumir essa nossa posição tem ônus? Sim, como tudo na vida, resultante do fato de assumirmos um lado. Clamo aos colegas que está na hora também de deixar de ser um pouco menos “laissez faire”, como têm sido os nossos conselhos universitários, com pouca participação no sentido de trocar ideias (além do cumprimento de trâmites burocráticos). Precisamos sustentar ideias. A segunda coisa a fazer é conversar com os nossos alunos. Os nossos alunos não têm ideia destas coisas que estão acontecendo. Poucos leem resoluções do Conselho Nacional de Educação e se o fizerem, não entendem por que não têm ideia da dimensão, não porque são incapazes, mas porque, às vezes, meia dúzia de palavras podem nos confundir acerca da dimensão e das consequências das mudanças em curso. Eu estou preocupada porque vejo que os nossos alunos desconhecem o que está sendo preparado contra eles e o mesmo eu diria, da CNTE, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, que tem até apoiado reuniões da Anped, da Anpae, da Anfope, em defesa dos cursos de licenciatura, mas não tem uma discussão para dentro das redes públicas. Devemos ter uma corresponsabilidade, mas creio que nós estamos avançando, acredito que o fato de termos no ano que vem, em meados do ano, a Conape – Conferência Nacional Popular de Educação, é algo positivo. Temos que apostar em algumas reuniões gerais nossas e a Conape é a única conferência prevista de educação popular de educação que reúne professores da Educação Infantil à Pós-Graduação. então, devemos apoiar esse movimento, mesmo diante de suas contradições. Aqui em São Paulo nós temos contradições imensas até com a orientação do Fórum Estadual de Educação, mas ressalto que é um espaço que precisamos defender como um espaço nosso. As universidades federais têm um outro problema que é a defesa de verbas públicas. Nós estamos fazendo juntos esse trabalho que considero importante e tem contado com a participação dos alunos. E vocês também tem feito um trabalho com os estudantes para mostrar que o que eles (o atual governo

federal) querem é acabar com a universidade pública, com um serviço público competente, que seja gratuito, e isso é muito importante para os nossos alunos entenderem que essa crise tem sido maximizada. E nem há a falta de recursos, há a opção da retirada dos recursos, que resulta do que eles esperam e querem, que é um compromisso, assumido desde o governo Fernando Henrique Cardoso e Paulo Renato de Souza, ex-Ministro da Educação, que admitia que a única coisa que o PSDB daquela época não conseguiu fazer nas reformas propostas foi a privatização das universidades públicas. Lembrem-se de que a Reforma do Ensino Médio começou com os governos do PSDB, com este mesmo grupo que propôs a atual reforma do Ensino Médio, portanto, precisamos fazer essas ligações e as redes com quem eles estão conversando, não contam com os colegas que fazem parte da Anped, Anfope, Fineduca, Anpae e Cedes, não somos nós. São conversas com empresas privadas, então, cuidado com eles, são privatistas por opção. E afirmo que nós podemos resistir. E nós estamos resistindo e é essa a nossa função: conversar mais com os nossos alunos sobre as reformas das licenciaturas e, obviamente, denunciar isso que eles querem fazer com os recursos, porque o quê que vai acontecer, o quê é que eles esperam? Percebam que há uma esperteza nessa questão: quanto mais eles asfixiarem as verbas das universidades federais nos gastos mínimos, que é o que está se vendo hoje, há a possibilidade de instituir o pagamento de mensalidades pelos alunos. Esse discurso surgirá, porque na hora em que uma universidade pública disser: “nós não temos mais condições de funcionar e vamos ver agora, no início do ano que vem, com a volta ao ensino presencial, o que faremos: não há papel, não há tinta, não há água, nem luz”. Se uma universidade pública divulgar que irá parar as atividades, não tenham dúvidas de que os pais desses alunos dirão: “cobrem então uma parte que ajudaremos a pagar”. É isso que o governo espera e por isso que suprimem recursos das Universidades desta forma, há recursos e há possibilidades. Vale lembrar que o orçamento secreto, segundo informações noticiadas ontem, possibilitou que fossem destinados a uma cidadezinha de Alagoas, do pai do Lira (Arthur Lira, presidente da Câmara Federal), 3 milhões e oitocentos mil reais. Só para a cidadezinha dele, só para que possamos entender o quê é o orçamento secreto que, obviamente, é uma forma de mensalão e foi estabelecido legalmente por esse grupo do Lira, que é o grupo do Bolsonaro. Então precisamos estar atentos e atentas para essas coisas e saber que nós temos todas as condições para reagir. Nós temos informação e hoje

isso é precioso. É fundamental que a informação possa ser socializada de todas as maneiras que pudermos divulgá-la. Nós estamos aprendendo com as redes sociais, mas estamos aprendendo também de outras e outras formas: com o teatro, a poesia, a literatura, a produção na periferia, que estão sendo interessantes. O movimento cultural que a pandemia e o governo Bolsonaro provocaram, com a falta de apoio, com as mentiras do negacionismo, têm dado resultados positivos na produção e atuação dos setores populares. A resistência é permanente e eu tenho uma tese: nós não podemos nos abater, porque quanto mais animadinhos nós, da esquerda, estivermos, mais preocuparemos a direita, porque assim eles irão achar que nós temos um plano maquiavélico, etc. Como eles sempre tem os deles e consideram que aqui nós podemos sempre atacá-los. Então eu tenho uma fórmula que é: cada dia que eu levanto é um dia a menos para o socialismo. Tem funcionado.


Angela Tamberlini


Professora Lisete, estamos chegando ao final e eu queria ainda fazer, se der tempo, uma pergunta rápida. Quero agradecer profundamente a sua presença, presença de uma pessoa que consegue aliar a experiência administrativa com um aprofundamento acadêmico considerável – algo raro - e que abrilhantou o nosso festival.

Agradeço também à Nazareth, ao Jairo, o vice diretor da Faculdade de Educação, à comissão organizadora, aos alunos, ao Lucas que faz os cartazes, e ao Fábio que sempre nos assessorou. E lembrando então que a educação, como dizia o nosso grande mestre Paulo Freire, é um ato de amor e um ato político: implica opções e também tem embutida a necessidade de uma opção e posicionamento das universidades. Não vamos ficar a reboque da ignorância, do negacionismo: há milhões que se distribuem em profusão só para o Agrosoja. Também foram destinados ao agronegócio 121 milhões só para a realização de feiras. E fiquei sabendo, pelo Stédile, que 40% dos depósitos à vista são destinados para financiar o agronegócio que não tem nada de pop, é tóxico, produz desmatamento e traz fome, porque vende tudo lá fora, aproveitando-se das condições mais favoráveis decorrentes do preço do dólar.

Lisete Arelaro


E é por isso que está na Globo.


Angela Tamberlini


A sua contribuição que tem sido imensa no campo da educação. Aliás, eu tive o privilégio de ser sua orientanda de mestrado e doutorado e queria pedir então que a professora Lisete fizesse um breve comentário, sobre como seria a sua gestão se fosse, como gostaríamos que tivesse sido, a nossa governadora de São Paulo? Eu a escolheria para Ministra da Educação.


Lisete Arelaro


A primeira coisa que eu faria, reestimularia os projetos político-pedagógicos das escolas. Aqui em São Paulo, hoje nós temos uma proposta de currículo feita pelo governo do estado, em que ele tenta, inclusive, convencer parte dos 645 municípios a adotarem a mesma proposta, dizendo que isto facilita a compra de livros e tudo que vocês imaginarem de ruim. O Rossieli está pretendendo ser candidato a cargo eletivo. Ele reuniu, em plena pandemia, quatro mil diretores de escolas, numa sala fechada, amontoados, sem distanciamento, sem máscara e não foi preso. E continua aí fazendo a sua propagação e mentindo sobre as escolas. É um amazonense que não conhece o sistema público, nem daqui, nem do Amazonas, pelo menos, de acordo com o que eu fui informada. A situação está muito grave em relação a esse tipo de coisa. Segundo, e aqui o governador junto com o prefeito, este último que é uma pessoa que já estava com a saúde comprometida antes de ser eleito. É uma pena que o ex-prefeito não tenha escolhido alguém melhor do que ele para ser vice, já sabendo que não teria condições de resistir ao câncer, o Covas, ambos estão privatizando todos os parques, todos os espaços públicos estaduais, extinguindo, inclusive, institutos de pesquisa. Essa é uma atitude, sem dúvida nenhuma, que se governadora fosse, eu impediria. No próximo sábado, daqui a três dias, haverá um abraço ao parque da Água Branca, uma área privilegiada que eles querem que seja privatizada. O Ibirapuera que é um espaço público, é do povo, hoje privatizado com guardas armados, que não permitem que se tire fotos, a não ser

com autorização, sendo que aquilo continua espaço público. Eles foram só contratados para cuidar do patrimônio, mas não para impedir as ações dos cidadãos e das cidadãs. Portanto devemos combater a ideia de privatização e ser contra toda e qualquer privatização é o melhor para o Brasil, e acho que é a grande missão nossa. Estamos em um espaço público em que nós temos que ser os melhores, exatamente para poder, na prática, contestar que o ensino público é falho. Nós (as universidades) somos um dos melhores ensinos públicos do mundo, na quantidade de alunos que estão conosco, nos diferentes locais onde estão as universidades públicas e temos um movimento de resistência efetivo, então, que continuemos dessa maneira. Eu acho que é fundamental que consigamos fazer também por dentro das nossas áreas de extensão da universidade, momentos de conscientização para os mais populares, para os menos escolarizados, e gostaria aqui, se você me permite, de ler um conselho do Paulo Freire. Vou pegar uma frase do livro, das Cartas da Guiné-Bissau, que eu gosto bastante. Gostaria de lhes dizer que o Paulo Freire incorporou a questão de gênero depois dos anos de 1990, porque ele já estava conosco um pouquinho antes dos anos 90 e, portanto, introduziu, sempre, nós, mulheres, na questão dos livros dele e perguntei a ele se, nas obras em que ele ainda não tinha assumido essa posição, se poderíamos incluí-la e ele concordou. Então eu estou autorizada e autorizo vocês a fazerem a mesma coisa. Diz o seguinte trecho que cito, já com a inclusão da questão de gênero: o homem e a mulher não podem participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da realidade, se não forem ajudados a tomar consciência da realidade e da sua própria capacidade para transformar. Ninguém luta contra forças que não entende, repito, ninguém luta contra forças que não entende. A realidade não pode ser modificada senão quando o homem e a mulher descobrem que ela é modificável e que eles o podem fazer. Essa mensagem é uma bela mensagem do Paulo Freire para que possamos continuar e saber disso: que a ignorância é um impeditivo para a luta e, portanto, é a nossa função como professores, como mediadores do conhecimento, ajudar que as pessoas entendam o que está acontecendo, porque eles poderão ser nossos companheiros de luta. Como diz Paulo Freire, esperançar é não desistir, esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se a outros ou outras para fazer de outro modo. Que busquemos diferentes modos que possamos fazer para melhorar a sociedade brasileira e construirmos a sociedade mais solidária que queremos ver pronta amanhã.

Angela Tamberlini


Agradeço profundamente a presença da professora Lisete Arelaro e, mais uma vez, agradeço a presença de todos os que estão nos assistindo. Agradeço também a nossa comunidade FEUFF, todos os colegas, alunos e técnicos. Muito obrigada a todos. Foi um excelente evento e esperamos contar com você mais vezes aqui entre nós.


Lisete Arelaro


Com certeza, é só convidar.


Nazareth Salutto


Agradecemos em nome da comissão organizadora do festival, mas ouso dizer, em nome da Faculdade de Educação, Professora Lisete, agradecemos por esta roda de conversa que foi uma aula e, mais do que isso, muitos depoimentos no chat, revelam que este evento nos dá injeção de ânimo, dessa esperança que mobiliza a luta, uma luta fraterna e consciente, muito obrigada.


Angela Tamberlini


E concluindo, ressalto também a nossa gestão democrática na Faculdade de Educação. Fernando Penna, nosso diretor que hoje não está aqui, mas abriu todos os espaços. É um excelente diretor e Jairo, nosso vice-diretor, é uma parceria importante, com ele também aqui adotamos a gestão democrática. Obrigada.